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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART I

 

Culturas juvenis na FEBEM

 

Youth culture at FEBEM

 

 

Rosane de L. S. Vianna*

CICE - Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação da FE-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Jovens privados de liberdade da Fundação do Bem-Estar do Menor de São Paulo – FEBEM por meio da arte – rap, break, grafite – falam de seu universo: a vida na periferia, o contexto em que buscam identificar-se com uma cultura juvenil constituída de estilos, estéticas, consumo. Por intermédio das letras de rap, revelam os impasses da vida, a privação de liberdade em que o poder da cultura institucional penetra em seus corpos, gestos, afetos, movimentos; deixam entrever seus sonhos, fantasias, expectativas para a vida em liberdade. Pela linguagem própria, manifestam seus modos de vida e sua realidade, resistem à segregação e incluem-se numa forma de comunicação para além dos muros da FEBEM, bem como atingem outros jovens.

Palavras-chaves: Identidade, Cultura jovem, Imaginário.


ABSTRACT

In this article, young people who are in custody at a juvenile detention center – Foundation for the Well-Being of Minors (FEBEM) – tell us about their universe through music and art (rap, break, and graffiti). They tell about the life in periphery, where they try to identify themselves with youth culture constituted by styles, esthetics and consume. Through rap lyrics, they show life problems, lack of liberty, reaction and acceptance in relation to this control over themselves, their movements, feelings and personal style. Through their own language, they show their ways of life and their reality, resisting the segregation and including themselves in a form of communication with persons of the same age, who live outside the FEBEM

Keywords: Identity, Youth culture, Imaginary.


 

 

Falar dos jovens internos na FEBEM – que ocupam as manchetes de jornais, especialmente as páginas policiais; que surgem nas telas da televisão em épocas de rebelião – exige uma abordagem que aponte para outros focos, para uma visão capaz de inverter as imagens até aqui privilegiadas.

A imprensa quando traz à cena pública os jovens da FEBEM escolhe as rebeliões, pois estas acontecem em determinados momentos de tensão dentro da instituição e oferecem possibilidades de trazer à tona imagens dramáticas que revelam, de certa forma, o perfil do “jovem delinqüente”, como pertencente a uma certa faixa etária (de 14 a 24 anos), com um nível socioeconômico baixo, morador das periferias das cidades, excluído da escola, usuário de drogas e ligado, muitas vezes, a quadrilhas. As imagens mostram esses jovens como diretamente responsáveis pela violência que desencadeia, por sua vez, reações de medo, pânico e perplexidade na sociedade.

Essa forma de abordar a realidade desses jovens, chamados delinqüentes, infratores, criminosos, utiliza a palavra, os textos, as manchetes e as imagens para fazer ver, criar, levar à existência, construir um imaginário social acerca dessa parcela da juventude.

Então, ser jovem morador dos bairros periféricos é ser violento, sem ocupação, ladrão, “drogado” e assassino em potencial ou real.

Assim, reforça-se um imaginário que atribui à juventude um papel de “inimigo interno”, que deverá ser reprimido por todos os meios.

A FEBEM tem sido a instituição para onde são conduzidos os jovens acusados de cometer atos infracionais. Lá, além da privação de liberdade, aos jovens são impostos hábitos, na tentativa de criação de atitudes de submissão à ordem, por meio de práticas repetitivas, da vigilância constante, dos castigos e das ameaças.

Mas, como orientar o olhar para perceber outros aspectos desses jovens, outras formas por meio das quais eles possam revelar quem são, como constroem suas identidades, o que desejam, de que forma esperam ultrapassar os limites que a exclusão social impôs às suas vidas...

A perspectiva de abordar os jovens pela cultura, como outros pesquisadores já têm realizado1, no Brasil e em outros países da América Latina, tem revelado que eles expressam por meio da música, da dança, do desenho, dos estilos de vestir e falar uma identidade social própria. Identidades, não mais predeterminadas por papéis sociais fixos e comportamentos rigorosos, quando se define antecipadamente a trajetória inteira da vida, mas identidades com temporalidades menos extensas, mais precárias, também mais flexíveis, capazes de amalgamar, de fazer viver num mesmo sujeito ingredientes de universos culturais muito distintos.

Canclini2, ao traçar um quadro das transformações culturais contemporâneas que alteraram as identidades e provocaram hibridações, diz:

“‘en un mundo tan interconectado, las sedimentaciones identitárias (etnias, naciones, clases) se reestructuran en medio de conjuntos interétnicos, transclasistas y transnacionales. Las maneras diversas en que miembros de cada etnia, clase, nación se apropian de los repertorios heterogéneos de bienes y mensajes disponibles en los circuitos transnacionales genera nuevas forma de segmentación’. Para Canclini, estudar processos culturais ‘es por esto más que afirmar una identidad autosuficiente, conocer formas de situarse en medio de la heterogeneidad y entender como se producen las hibridaciones’.”

Também o “ser jovem” vem sendo construído ao longo da história, em alguns momentos, como protagonista de movimentos contestatórios na área política (anos 60 e 70); mais recentemente (dos anos 80, 90 em diante), como criadores de outras formas de se fazerem presentes nas cidades e no imaginário social.

A percepção da juventude como fase passageira da vida, ou de transição para a idade adulta, tem favorecido que suas manifestações sejam tratadas como um momento de turbulência, mudanças e descontrole, que passarão quando eles assimilarem normas e valores sociais dos adultos.

Por outro lado, a perspectiva que vê a juventude como vítima ou agressora não ultrapassa o olhar criminológico e desconhece outras maneiras de inserção e de estar dos jovens, quando marcam sua presença com seus pares em territórios onde circulam com suas músicas, danças, gostos, estilos de vida. E esta tem sido a marca que jovens pertencentes às camadas populares vêm imprimindo às suas manifestações desde o movimento punk, funk e rap, dentre outros. Essas culturas juvenis são formas alternativas de entender o político e a participação, diferente dos canais institucionais e das organizações clássicas da política (partidos, sindicatos).

Também as múltiplas visões que vêm da escola, das famílias, dos meios de comunicação, de outras instituições como organizações governamentais e não governamentais, universidades, organismos internacionais (UNESCO, OIT, UNICEF), muitas vezes são conflitantes entre si e em relação às novas sensibilidades, formas de relacionar-se, conhecer e experimentar o mundo, de construir o futuro, próprias de parcela significativa das juventudes atuais.

Os principais conflitos que emergem entre jovens e adultos e instituições acontecem no âmbito da família e da escola e expressam-se por meio da disciplina e do controle; outros situam-se nos planos afetivos, da corporeidade, das hierarquias, das sensibilidades próprias do mundo contemporâneo.

Se de um lado, as culturas juvenis ligadas ao rock e a outros estilos musicais questionam as autoridades, bem como os valores adultos, muitas vezes marcados pelo patriarcalismo, ficam evidente; por outro a socialização dos jovens não está mais restrita à família e à escola, ocorre também em outros espaços, com outros atores – seus pares, meios de comunicação, o entorno das moradias, as diversas tribos pelas quais circulam e se vinculam.

A emergência da juventude como ator social, com estatuto próprio, presente nos espaços públicos; a expressão de sensibilidades, de cosmovisões, visões acerca da vida e da morte; circulação nos espaços da cidade; a construção de identidades coletivas, porém flexíveis, tem mobilizado pesquisadores a identificar e a compreender as formas como essa categoria social vem-se constituindo e se transformando no decorrer da história.

Cabe aqui destacar o Seminário Internacional realizado em 1996, em Bogotá – Que sabemos de los jóvenes – com a participação de pesquisadores de vários países da América Latina, que resultou numa coletânea: Viviendo a toda – jóvenes, territórios culturales y nuevas sensibilidades.3 Para os autores,

“La perspectiva cultural con la cual se está mirando hoy la problemática ha permitido ver aspectos que hasta ahora no habían sido tenidos en cuenta, ha dejado ver su complejidad, ha mostrado que el fenómeno de la juventud no ha podido ser entendido sino se asume integralmente, y que no existe una sola sino varias juventudes, con múltiplas manifestaciones y atravesadas por condiciones espaciales y temporales concretas.” (MARGULIS, 1998: xi)

Esta foi a primeira tentativa de compartilhar e avaliar o que se tem construído na América Latina e na Espanha como conhecimento acerca da juventude.

Em 2002, em Medellín, a Corporación Región4 realizou outro seminário sobre juventude, registrado em Umbrales – câmbios culturales, desafios nacionales y juventud, em que se encontram as discussões sobre a gênese do tema juventude nos campos cultura, socialização, participação, assim como os ritmos e os consumos, no contexto das mudanças culturais e aos desafios nacionais.

No Brasil, Helena Abramo, ao estudar punks e darks, recupera as diferentes manifestações desses grupos juvenis e considera:

“que assumem uma forma de elaborar as questões colocadas para eles nesse contexto histórico, já encontradas em outras gerações de jovens, como a busca de intensidade no lazer em contraposição a um cotidiano medíocre e insatisfatório, mas muitas outras são colocadas pelo momento histórico específico, como a desvalorização da educação, a exacerbação do consumismo e a crise que dificulta a estruturação de projetos individuais e coletivos de futuro.” (ABRAMO, 1994: 155)

A autora procurou, com a análise dos estilos juvenis dos anos 80, chegar:

“à compreensão do significado de sua existência, de seu estilo, de suas roupas, dos objetos de sua preferência, bem como dos temas de suas músicas e das formas de atuação e exposição nos espaços públicos.”

Para ela, essa abordagem

“Pode ser útil para o entendimento dos problemas e das formulações dos jovens do nosso tempo e, quem sabe, trazer alguma contribuição para o conhecimento das tensões e contradições da sociedade atual.” (ABRAMO, 1994: 155 e 159)

Portanto, novas imagens vêm sendo construídas, com base em outras vertentes, para considerar saberes, lógicas, éticas, estéticas e sensibilidades próprias das diversas “juventudes” que se expressam de múltiplas maneiras, condicionadas por sua inserção como elite, classes médias ou populares, sua condição de gênero, procedência regional e étnica. A criação de imagens do jovem acompanha o desenvolvimento histórico, as mudanças significativas no plano da comunicação, da publicidade, da internacionalização, da economia e da política.

Margulis chama a atenção para esse processo, em que conceitos e imagens transformam-se, como a idéia de juvenilização que marca o contexto cultural da atualidade:

"Por una parte el avance de la cultura de la imagen y además el encumbramiento de lo juvenil, fetichizado por los lenguajes hegemónicos de la sociedad de consumo. Los canales informativos y de entretenimiento, junto con la extensa red de publicidad que envuelve las ciudades, van conformando este circuito de imágenes con el que interactuamos cotidianamente. Por otra parte se va articulando un proceso que toma características del mundo juvenil, tales como pautas estéticas, estilos de vida, consumos, gustos e preferencias, ‘looks’, imágenes e indumentarias y las propicia ante segmentos crecientes de la población como señales emblemáticos da modernización.” (MARGULIS, 1998: 15)

Urán5 identifica dois níveis de cultura em que se inserem os grupos juvenis no contexto das sociedades modernas:

“Partimos de afirmar la existencia de una cultura general mass-mediatizada – que sobre todo define y configura los objetos de deseo y unas culturas segmentadas – en correspondencia con el nivel de ubicación en la estructura socio-económica, dónde se define preponderantemente en el objeto de deseo, sino los medios de acceso y las formas de relación con el mismo.” (URÁN, 1996: 34)

As imagens do “ser jovem” que implica ter acesso a determinados bens de consumo (carros, motos, aparelhos de som, roupas de marca, entre outros) são veiculadas pela propaganda mediante os meios de comunicação. Os jovens recebem a mensagem e passam a desejar aqueles bens, mas só uma parcela poderá possuí-los. Aqueles principalmente atingidos pelo desemprego, pela pobreza e por outras formas de exclusão, não conseguem satisfazer seus desejos. Condições da estrutura econômica limitam, a certos segmentos da sociedade, o acesso ao consumo.

Urán considera que, diante do desejo de consumo não realizado, os jovens das camadas populares encontram alguns caminhos. O primeiro é renunciar ao desejo; o segundo, postergar a realização desse desejo para o momento em que consigam trabalhar; e o terceiro, lançar mão de expedientes fora das normas legais para conseguir o que desejam.

Urán avalia que

“La renuncia implica la configuración de una subcultura disconforme que, consciente o inconscientemente, se plantea la ruptura con el sistema simbólico (pude leerse también ideológico) dominante. Encontramos aquí varias opciones que pueden ir desde la política radical anti-stablisment hasta la creación, o ingreso, a grupos de ‘pasotas’, ‘hipíes’, ‘punk’, movimientos religiosos etc. Por otra parte, la actitud delincuencial, en el doble sentido de ser una estrategia de supervivencia (racional, conforme a fines construida) y hacer parte de un modo de vida, se levanta contra la normatividad legal, para acceder a los objetos deseados, los cuales, a su vez, tienen la virtud de erigirse en indicadores del status social.” (URÁN, 1996: 34)

Se a vinculação dos jovens a uma tribo ou galera possibilita encontro com iguais, esta pode oscilar entre a busca dos sinais de identidade e de símbolos de integração ou de uma situação almejada.

No estudo sobre punks e darks, Abramo assinala que:

“o padrão veiculado pela mídia não impõe só um modelo estético e sinalizador de um status social almejado, mas também um modelo de cidadania – quem não o ostenta é imediatamente jogado para o campo dos desqualificados do convívio social, sob suspeita de marginalidade ou de delinqüência ou simplesmente pela demonstração da incapacidade de consumo.” (ABRAMO, 1994: 73)

Margulis identifica um grupo que chama “herdeiros do futuro” como se fosse constituído por jovens que incorporam qualidades que a classe dirigente define como requisitos para a reprodução da vida, do patrimônio e da posição social. São os típicos “bons filhos genéricos do sistema”. Estes adotam um “look” de juventude veiculado pela mídia como descreve o autor:

“deportista, alegre, despreocupada, bella, la que viste las ropas de la moda, vive romances y sufre decepciones amorosas, pero se mantiene ajena, hasta su pleno ingreso a las responsabilidades de la vida, a las exigencias y conflictos relativos a la economía, el trabajo y la familia.”

Outros grupos identificados por Margulis – criam outros modos de sociabilidade, pois não se identificam como “herdeiros do sistema”:

“Las tribus son una reacción, consciente o no, a la progresiva juvenilización de sectores medios y altos que no son alcanzados y aparecen desvinculados de la conflictividad social, del aumento de la pobreza, el desempleo y la exclusión. Estos procesos van restando posibilidades a los sectores jóvenes en cuanto a los modos de forjar una representación del ‘sí mismo’ ante los demás. Los jóvenes necesitan de inclusión, pertenencia y reconocimiento, aspiran a una reducción de la incertidumbre, y topan con obstáculos crecientes y vías de promoción cada vez más cerradas. El refugio al que pueden apelar, cuando no poseen los requisitos exigidos para corporizarse en la imagen de los herederos, es de la defensa de ámbitos y enclaves simbólicos que ellos han creado y reconocen como propios.” (MARGULIS, 1998: 17-18)

Portanto, quem não ostenta o “look” de juventude veiculado pela mídia acaba destituído de juventude, porque carece desses sinais de identificação; tampouco tem a possibilidade de compartilhar com a “moratória social”, ou seja, a possibilidade de postergar a idade de compromissos sociais – como ingresso no mercado de trabalho, constituição de família – por um período mais longo, ao contrário do que acontece com os jovens de classes médias e altas. Estes, apoiados por família e instituições escolares, ampliam esse período até que estejam preparados para assumir as responsabilidades esperadas.

Os jovens de camadas populares deparam com o compromisso de ingressar no mundo do trabalho muito cedo (quando as condições do mercado permitem) não só para contribuir no orçamento familiar, mas também para ter acesso aos bens e aos símbolos que desejam consumir.

As incertezas quanto ao futuro, para muitos jovens que pertencem às camadas populares, residem nas periferias das cidades, e estes almejam sentir-se incluídos na sociedade do consumo, bem como serem reconhecidos como jovens; provocam um conflito, que segundo Alba Zaluar,

“aparece como resultado dos padrões novos do consumismo que laçam os jovens no mercado do vestuário e das atividades de lazer variadas, muitas vezes incompatíveis com economia doméstica e sua hierarquia de consumo.” (Zaluar, 1994)

Diógenes, que estudou o movimento hip-hop em Fortaleza, percebeu a combinação entre integrantes desse movimento e as gangues, como

“uma forma de adquirir, por meio da violência, dos saques, dos furtos, um passaporte para sua inserção no campo do consumo e da estetização das condutas.” (DIÓGENES, 1998: 45)

Esse ingresso em gangues vai produzindo jovens que, pelas circunstâncias vividas, assumem uma guerra contra o mundo. Expressam, por intermédio desses agrupamentos, sinais de uma juventude que perdeu a perspectiva de entrar num mercado de trabalho restrito aos mais preparados. Ao mesmo tempo, afirmam seu desejo de “não ser como seus pais”, com os quais experimentaram um mundo de privações. Por outro lado, as quadrilhas proporcionam-lhes acesso às drogas que os levam a “viajar”, bem como a carros, motos, roupas, discotecas e outras diversões; ainda que, por pouco tempo, eles se sintam cidadãos e jovens como outros jovens, cujos modelos assimilaram.

Os jovens que se encontravam na FEBEM e participavam das oficinas de hip-hop eram parcela dessa população destituída dos sinais do “ser jovem”. Eles buscaram, por meio dos delitos, ultrapassar seus limites de jovens excluídos do consumo e, por meio dos grupos com os quais se ligaram, procuraram se firmar como identidades proscritas; por intermédio dessas identidades mantém vivos os estereótipos que a sociedade lhes atribui de delinqüentes, marginais.

Não podem ostentar a imagem de “herdeiros do futuro”, mas criam outros símbolos com os quais se identificam, buscam outras formas de expressão cultural e social, criam novas identidades.

Passam por meio da música, do grafite e do break a constituir espaços de interreconhecimento; eles se sentem parte de uma rede juvenil e se reconhecem na música; compartilham situações lúdicas, encontram-se nos bailes, muitos se tornam criadores de canções, textos, em territórios onde assumem sua condição social.

As identidades juvenis afirmam-se quando conseguem espaços para fazer-se presentes, para produzir e difundir sua música e outras formas de expressão, para locais onde encontram jovens em situações sociais semelhantes. Assim é que o movimento hip-hop chegou à FEBEM para ensinar, divulgar e partilhar sua experiência com jovens com os quais também se identificam.

O Projeto “Fique Vivo” procurava formas de comunicação com os jovens da FEBEM, que possibilitasse uma maior aproximação para falar de sexualidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e Aids.

Sabe-se que a palavra, em um ambiente de privação de liberdade, é medida, estudada e pode ter vários significados.6 Assim, era preciso buscar meios de aproximação e de comunicação que integrassem os profissionais do projeto, para além da palavra, com a realidade daqueles jovens. Essa busca resultou na escolha do hip-hop como intermediário entre internos e profissionais.

Estudos realizados em vários países da América Latina têm revelado a identificação dos jovens latino-americanos com os negros norte-americanos integrados ao hip-hop. Segundo Urquijo, o hip-hop, por isso, ganhou o estatuto de “un manifiesto y de símbolos de una forma de pensar y asumir la vida.” (Urquijo y Caicedo, 2000: 68)

Ao levar em conta esse aspecto do universo daqueles jovens, o Projeto “Fique Vivo” iniciou uma nova perspectiva para abordar a prevenção de Aids na FEBEM.

Começaram, desse modo, as oficinas de hip-hop, realizadas uma vez por semana num espaço dentro do Complexo Tatuapé, onde funcionava a escola freqüentada pelos jovens. Dessas oficinas participavam, além dos internos, um grupo de psicólogos do Projeto “Fique Vivo”, os “mestres” da Posse Haussa, estagiários da área de ciências humanas, uma fotógrafa e alguns monitores, que em geral permaneciam em locais estratégicos, para evitar fugas. Os jovens vinham de diversas unidades de internação, tinham entre 14 e 18 anos, eram do sexo masculino e escolhidos, porque aqueles que se encontravam sob “seguro” 7 ou sob algum tipo de castigo, não tinham permissão para participar.

Essas oficinas estimulavam a criatividade dos jovens por meio de atividades artísticas como prosa, poesia, desenho, dança, som – todos expressos no rap, no grafite, no break, na figura do DJ (ou mestre de cerimônia) e em outras formas de manifestação típicas do universo dos internos. No início, as expressões desses jovens davam-se mais no plano simbólico, por meio de grafites e de letras de rap. Aos poucos, porém, eles começaram a falar de suas histórias de vida, algumas vezes com timidez, outras como desabafo. Suas reivindicações e seus direitos também eram temas freqüentes. Desse modo, ao mesmo tempo em que estimulava a criatividade dos jovens, o hip-hop ajudava a trazer à tona os assuntos que diziam respeito ao modo de vida dessa parcela da sociedade, dentro e fora da FEBEM. O hip hop deu-lhes segurança para falar, entre si e com os integrantes do programa, sobre criminalidade, drogas, riscos. Esse foi o primeiro passo para a discussão de outros assuntos: violência, condições de vida dentro da instituição, quadrilhas, vida na periferia, consumo, direitos.

Minha participação, que durou de maio a agosto de 1999, deu-se como observadora e participante das discussões dos grupos.8 Nos intervalos das atividades e durante as oficinas, eu conversava com os jovens, informalmente, sobre sua produção, seus gostos, suas aventuras dentro e fora da FEBEM. Essa maneira de estar – para acompanhar os acontecimentos, os impasses, os espetáculos – colocava-me, muitas vezes, em fusão com os fatos, a fim de sentir e captar melhor o que estava sendo dito ou manifestado. Tratava-se de aproximação e de afastamento, movimentos que me faziam chegar perto, conversar, olhar os vários atores, acompanhar seus movimentos, procurar entender o significado dos símbolos contidos nos grafites, quais os assuntos que mais lhes interessavam, quais não podiam ser tocados.

Ao acompanhar as etapas de criação do rap, percebi as expectativas de futuro desses jovens, a percepção que tinham da vida de exclusão e dos enfrentamentos com as autoridades policiais, a resistência à violência das quadrilhas, as regras e normas do sistema prisional – que incluía também outras formas de resistência que sinalizavam a afirmação de seus valores e, portanto, uma ética, uma moral e uma estética próprias de seu universo cultural.

O movimento de buscar a expressão das subjetividades e da objetividade por intermédio da descrição dos acontecimentos, do registro das falas e da leitura das letras do rap resultou em uma certa parcialidade, pois só aconteceram conversas com aqueles que se mostravam disponíveis para isso. Por outro lado, porém, a força da expressão simbólica do rap, do grafite e do break levou-me a perceber sinais de sensibilidades estéticas, identidades que ligam esses jovens a outros que vivem no mesmo contexto ou em outros países, em outro lado do mundo.

Observar uma realidade distante da minha, da qual eu tinha uma visão fragmentada e parcial, exigia romper com um olhar carregado de categorias, que me impediam de ter “olhos novos para o novo”, de reelaborar pontos de vista que possibilitassem uma visão do significado da produção artística, dos contextos, das falas dos jovens, de seus gestos, reticências, silêncios.

O contato dos jovens da FEBEM com o hip-hop, nas oficinas de prevenção de Aids, a identificação com os integrantes da Posse Haussa, o aprendizado dos elementos que compõem o hip-hop e o registro de sua produção, pode ter sido o início de outras perspectivas de inserção no campo da cultura e da criação de uma imagem própria, talvez a construção de um sonho de um novo modo de vida. A música leva-os a comunicar-se com aqueles que estão no “MUNDÃO” de onde vieram. Essa comunicação se dá por suas histórias, conflitos, seus sonhos. É uma linguagem comum que amplia a situação de receptores, para produtores de imagens, por meio das quais dizem quem são, como vivem, e como é estreito seu espaço de inserção social.

O hip-hop, como movimento, encontra-se na confluência entre galeras e gangues, com diferenças muito tênues, segundo Diógenes:

“Gangue e delinqüência passam a ser termos correlatos, tanto na visão policial, no imaginário social, como na percepção que pontua as diferenciações entre as turmas de jovens. O uso do termo gangue pode ser enfocado levando-se em conta um tênue limite entre as galeras que se organizam para ir a bailes, às praias para compartilhar músicas, drogas, e aquelas que têm um objetivo explícito entre seus membros, para o roubo, as brigas entre galeras, os saques a bens e equipamentos coletivos etc. (DIÓGENES, 1998: 108).

 

O papel do hip-hop

O hip-hop teve origem, nos Estados Unidos, em meados dos anos 70, nos bairros onde negros eram discriminados e a violência entre gangues marcava um clima de insegurança. Os grupos negros passaram, por estímulo de um de seus líderes (Afrika Bambaataa), a dançar inicialmente o break, como forma de luta pacífica; depois, incorporaram o rap, o grafite, o disk-jóquei (DJ) e o MC.9

No Brasil, o surgimento desse movimento também ocorreu na confluência de galeras e gangues. Procurava aglutinar jovens das periferias das grandes cidades, muitas vezes envolvidos com aqueles grupos, para buscar alternativas pela cultura e pela arte.

As posses formaram-se quando vários grupos de rap começaram a dar conteúdo social e político às músicas, a promover em bairros a formação de disk-jóquei, rappers e grafiteiros. A conscientização era o objetivo maior. Os jovens deviam reconhecer necessidades de mudanças nas condições de vida das periferias, além de combater todas as formas de discriminação social e étnica.

Pode-se dizer que o movimento hip-hop contribui para a emergência de uma resistência desenvolvida pelos jovens, criando formas de manifestação, discursos sobre a realidade da vida, modos de relacionar-se com o outro, uma sensibilidade por meio da qual, como diz Guattari, possam produzir uma “subjetividade singular”.

A aproximação da realidade dos jovens e de suas relações precisava ser buscada em vários ângulos. Era como olhar através de um caleidoscópio e encontrar suas várias figuras, com cores diversas e contornos nem sempre precisos. Somente essa visão poderia mostrar o que há além da visão estereotipada e preconceituosa que concebe esses jovens como delinqüentes, rebeldes, filhos de famílias desestruturadas, sem moral, violentos, a “escória” da sociedade. Era preciso olhar para esses jovens como eles são: seres humanos complexos, com planos, sonhos, frustrações, perdas.

Estava, portanto, aberta para perceber os significados das falas, dos movimentos da dança, das inscrições de grafite, mas, principalmente, das letras do rap, para trazer à tona expressões que se referem à vida dos jovens, às suas singularidades e à construção de identidades culturais.

Foi com essa postura que acompanhei o aprendizado do break10, quando os jovens, e o mestre, experimentavam seu corpo, rodando no espaço, criando coreografias, imagens, fazendo acrobacias, lutando, jogando, dançando. Inicialmente, pareciam temerosos ao enfrentar passos desconhecidos e piruetas no espaço que exigiam criatividade, atenção, relação com os pares, ritmo.

Diogo, da localidade Curalla, em Bogotá, lembra que o fundador do break, o norte-americano Afrika Bombaataa, relata que, viu no break uma forma sã de batalha contra os adversários. Propôs aos colegas das gangues que deixassem as armas pelo baile. Com base nisso, as brigas por territórios, ou para que fosse provado quem era o maior ou o mais poderoso, passou a medir-se por meio de categorias, nos bailes. Assim, o break constituiu-se em um símbolo pacífico de luta, sem armas.11

No Brasil, a partir dos anos 80, o break começou a difundir seu lema de luta com criatividade, sem armas, demonstrando que por meio da arte corporal, os bailarinos podiam saltar de um espaço a outro, de um tempo a outro, realizando imagens da capoeira, do “eletric boogaloo”, das artes marciais às danças africanas, do “comic” às ginásticas e aos contorcionismos; por meio de saltos e da criação de imagens, os bailarinos desafiam as leis da gravidade, dançam os ritmos da cidade e, ao mesmo tempo, recuperam seus ancestrais africanos.

Já o grafite, por assemelhar-se à pichação – prática experimentada nas aventuras noturnas de delimitação de territórios –, provocava maior interesse naqueles que, por meio do desenho, falavam das armas, da droga, de seu estilo de vestir, de estar na cidade. Aprenderam a arte do grafite como possibilidade de deixar suas marcas nos muros, com cores vivas, símbolos de seu universo, bem como de fazer seu protesto, contar suas estórias, acontecimentos e falar de Aids.

A produção do rap, também exigia atenção, inspiração, soltura para escrever o texto em prosa, transformá-lo em poesia, criando rimas acompanhadas pelas batidas do som do DJ. À medida que os jovens saíam de suas unidades de internação para expressar-se pela arte, abandonavam seu cotidiano para viver outra esfera da realidade simbólica constituída de sonhos, mitos, magias. Morin fala dessa outra linguagem, que utiliza

“a conotação, a analogia, a metáfora, ou seja, um halo de significados que circunda a palavra, cada enunciado e que ensaia traduzir a verdade da subjetividade.” (MORIN, 1998: 35)

Quando escrevem em prosa, os jovens revelam seus impasses do cotidiano, da vida dentro e fora da prisão. Mas, quando passam à criação poética, passam para o campo da imaginação, combinando novas palavras, rimas, tecendo sonhos em outros planos. No entanto, não deixam de estar ligados à oportunidade de oferecer suas letras para grupos por meio dos quais buscam divulgar sua produção.

Ao se concentrar nas artes gráficas (grafite), escrituras (rap), criando o som ou as coreografias do break, tornam públicas suas visões de mundo, desejos e aspirações.

Ao falar por meio desses símbolos, expressam o sentido de suas vidas, dizem quem são, de onde vêm e de que imagens seus sonhos são compostos. Também denunciam a sociedade que os coloca à parte, em guetos ou atrás dos muros; colocam a nu a violência na periferia, no trabalho, no consumo a que querem ter acesso, na vida humilde à qual estão ligados, na instituição que os priva da liberdade de movimento e de expressão. Ao falar de suas vidas por meios artísticos, usam uma linguagem contemporânea por meio da qual marcam sua presença, sua forma de estar na sociedade, seu estatuto de jovens. Apesar da cultura institucional, os internos fazem-se ouvir por outros jovens, que também falam essa linguagem e com os quais têm identidade, além de circular em espaços semelhantes.

Por meio das artes, os jovens identificam-se com formas de expressão cultural, afirmam um estilo, uma estética distante das formas tradicionais de participação (na política, em partidos, sindicatos) e iniciam um processo que Guattari chama de produção de subjetividades, em contraposição à aceitação da hegemonia da cultura de massas que orienta valores, consumos, modos de vida:

“a idéia de que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de ‘processos de subjetivação’: uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com instauração de dispositivos para mudar o tipo de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos.” (GUATTARI, 1986: 16-17)

Por intermédio de oficinas de prevenção à Aids, oferecia-se a “deixa” para que se discutisse a sexualidade, as drogas, a adrenalina sentida nos assaltos, nas fugas da polícia ou da FEBEM. Nesses momentos, os jovens relatavam atos heróicos, medos, traições, derrotas. Além disso, este era um espaço onde podiam viver suas fantasias, relembrar estórias, deixar-se contagiar pela magia que aumentava seus sentidos, sem as drogas que, na vida real, lhes davam coragem, embalo, sensação de superheróis. A frase de um interno, no encerramento de uma das oficinas, ilustra bem o sentimento que tomava conta dos jovens: “É como se eu não estivesse preso. Falar desses assuntos, aqui, até dá a impressão de que já estou em liberdade”. Dentro da FEBEM não tinham encontrado formas de expressar seu modo de vida, seus valores, as condições vividas na instituição, porque nela existe um poder que barra, invalida, anula e desqualifica suas falas e seu saber.

A experiência dos jovens nas oficinas de hip-hop, na criação das letras de rap, pode ter sido a criação de espaços de liberdade, de expressão de sensibilidades, de afetos, como ilhas em meio a florestas sombrias. O exercício de pensar sobre a própria vida, sobre suas histórias, buscas e esperanças sob a forma de música, levou-os para um outro campo, do qual têm estado separados – o campo dos desejos, da criação, da imaginação. Levou-os também para o campo da produção e da circulação do rap por meio da gravação de um CD Dos manos de cá pros manos de lá.

Apesar do caráter repressivo que marca a FEBEM, da imposição de hábitos e da tentativa de criação de atitudes de submissão à ordem por meio de práticas repetitivas, da vigilância constante, dos castigos e ameaças, os jovens criaram um espaço de produção pelo qual expressaram sua realidade, seu lugar subordinado na sociedade, apropriaram-se do que Canclini chama de capital cultural. Ao estudar as culturas populares, diz:

“As culturas populares são o resultado de uma apropriação desigual do capital cultural, realizam uma reelaboração específica de suas condições de vida, através de uma interação conflitiva com os setores hegemônicos.” (CANCLINI, 1983: 43)

Essa apropriação desigual do capital cultural, que se dá, principalmente, por meio das instituições escolares, da família e dos meios de comunicação, limitou a percepção e a crítica dos jovens a essa subordinação. Mas, quando dizem publicamente o que é a FEBEM, como vivem na estrutura de pobreza que as periferias urbanas oferecem e de que maneira chegaram à violência, rompem com o silêncio imposto e iniciam um processo de criação em um espaço de comunicação.

Esse espaço ofereceu a possibilidade de comunicação, feita por intermédio das letras de rap. Por meio delas, esses jovens assumiram sua situação de moradores das periferias, sujeitos aos limites de “uma vida humilde”, às internações na FEBEM. Nem por isso, no entanto, deixam de buscar caminhos para alcançar a liberdade, a paz, a salvação, escapando da morte que os cerca. Aspiram viver outra vida, sonham com os sinais do “ser jovem” e já começam a se fazer ouvir por aqueles que compartilham com eles os mesmos conflitos, dentro e fora da FEBEM.

Essas letras são, ao mesmo tempo, mostra e resultado de como esses jovens construíram, ao longo do tempo, suas trajetórias, imagens sobre sua história de vida, sua relação com as drogas, com a criminalidade, com o consumo, com a polícia, com a violência dos bairros; falam da vida, da morte e da salvação. Falando de si (os manos de cá) para outros (os manos de lá), procuram alertar aqueles que ainda não chegaram à FEBEM para que saiam “dessa vida errada”, pois viver sem liberdade não é vida. Assim, o rap, como expressão cultural, possibilita a compreensão dos sentidos que esses jovens dão à vida, às relações pessoais, familiares, sociais, às alternativas de sobrevivência.

O conceito de cultura que Canclini desenvolve permite a tentativa de aproximar a experiência da produção do rap a essa perspectiva – por meio da qual as expressões culturais não se limitam à reprodução do universo hegemônico da sociedade, mas

“à produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, a reprodução ou a transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, à renovação e à reestruturação de sentido”.

A noção de cultura que desenvolve inclui seu aspecto simbólico porque considera que:

“A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também, dentro das necessidades de produção de sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas. Além de representar as relações de produção, contribui para a reprodução, a transformação e para a criação de outras relações.” (CANCLINI, 1983: 29-30)

Daí a importância de incorporar também a concepção de imaginário, pois a escrita e a criação das rimas mobiliza imagens que os jovens fazem de si, das relações com o outro, com a sociedade. Mas essas visões estão articuladas também com as imagens que a sociedade faz a seu respeito. É como um diálogo, em que cada um fala à sua maneira, em que cada fala nunca é igual à outra. Nessas trocas, porém, cada fala pode incorporar uma parcela da outra. Claro que o imaginário social marca forte presença sobre os jovens pertencentes às classes populares, mas essa imposição nunca é absoluta. Ela precisa contar com conteúdos que a realidade lhe proporciona.

Morin diz que o imaginário

“é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, no qual se banham igualmente nossas vidas. É o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual, isto é, singular, limitado e finito no tempo e no espaço. O imaginário começa na imagem-reflexo, que ele dota de um poder fantasma – a magia do sósia – e se dilata até os sonhos mais loucos, desdobrando ao infinito as galáxias mentais. Dá uma fisionomia não só aos nossos desejos, às nossas aspirações, às nossas necessidades, mas também às nossas angústias e temores. Liberta não apenas nossos sonhos de realização e felicidade, mas também nossos monstros interiores, que violam os tabus e a lei, trazem a destruição, a loucura ou o horror. Não só delineia o possível e o realizável, mas cria mundos impossíveis e fantásticos. Pode ser tímido ou audacioso, seja mal descolando do real, mal ousando transpor as primeiras censuras, seja se atirando à embriaguez dos instintos e do sonho.” (MORIN, 1997: 80-81)

 

O que dizem as letras do rap

Por intermédio das letras criadas por esses jovens, o seu imaginário insinua-se, fala do real e do irreal, dos desejos e daquilo que eles incorporam como imposição, de como sonham ultrapassar os limites das possibilidades até então oferecidas.

Ao percorrer as letras de rap, pergunto: de que falam eles? A quem se dirigem quando escrevem? Escrevem para quê?

Tomam um estilo internacional, dos negros americanos, mas falam da instituição onde estão privados de liberdade, do bairro, da cidade, do país. Quando falam dos bairros de São Paulo, e das cidades da região Metropolitana e litoral, mostram que tecem vínculos com realidades periféricas que se assemelham: Tremembé, Capão Redondo, Joaniza, Itaim Paulista, Bela Vista, Osasco, Guarulhos, Baixada Santista.

A crítica à situação dos bairros toca na questão da corrupção; falam também do descrédito com relação ao Estado e aos políticos.

A identidade também se refere ao cotidiano dos privados de liberdade e da vida nas periferias: a violência da polícia, a precariedade das condições de vida, as quadrilhas, os traficantes, a morte. Falam da situação que afeta suas vidas diretamente e os leva às práticas delitivas e à busca do “dinheiro fácil” para o consumo dos bens desejados. Estão se referindo às condições de vida que os afeta como jovens, consumidores e cidadãos, que também afeta suas famílias, seus grupos de vizinhança.

As letras armam-se com base em sua experiência e, quando se dirigem aos “manos”, partem do que viveram, presenciaram, sofreram para dizer: saíam dessa vida errada.

Por intermédio das letras, falam com emoção e, assim, querem sensibilizar os “manos”. Não falam do passado, mas do presente e de um futuro de trabalho, estudo, família – uma vida humilde – longe das drogas e do crime.

Deus aparece para ajudar a libertação, a salvação, a busca da paz e do amor e fala com os que estão na vida errada. Não é um Deus que castiga, mas que estende a mão, aglutina, cria irmandades e esperança.

Não se referem a um coletivo, mas a histórias particulares, pessoais, e, por meio delas, traçam uma outra forma de identidade; nem sempre escapam na vida real dos atos que os levaram a FEBEM, mas conhecem um outro caminho, que pode apontar para outros desafios e outros sonhos.

As carências, as imagens de ausência de tempo para crescer, para desfrutar desse período da vida com uma certa espera – uma “moratória social e vital” estão ditas nessas letras, quando falam de uma história de vida que se apresenta como símbolo de abandono, na qual o protagonista – real ou imaginário – entra no mundo da rua sem nem mesmo ter chegado à adolescência; trajetória que alguns “meninos de rua” percorreram; a ligação entre “menino de rua” e criminalidade não encontra concretude, mas é uma imagem construída socialmente e assimilada como inevitável.

Essa história não fala da média, do que é mais comum, mas exagera, monta um clima em que simbolicamente cada um encontra um ponto de identificação:

“Meu passado e presente não são um mar de rosas

Se liga meu irmão essa é a minha história.

Ao que me lembro, aos oito anos meu primeiro trampo

No farol, busão fazia um adianto

De trocado em trocado, de moeda em moeda

Na minha casa eu segurava a onda da galera.

Infelizmente nesse tempo o meu pai já se fora

Que saudade daquele cara, era gente boa Faz muito são poucas recordações.

Mas aí oito anos de idade Meu primeiro contato com as drogas, cigarro

Primeiro ato

Um delinqüente juvenil Roubava bolsa, saía a mil

E no final o que se viu, o menino fugiu

Defini bem cedo minha profissão

Um cinco cinco na lei

O pixote das ruas verdadeiro vilão.

Se liga meu irmão Aos treze anos, a missão, viciado em maconha

Quem mesmo sabe, o éter Se não me engano, a cola

Uma grande paranóia.

O bicho solto nas ruas, roubava todo mundo

Pra garantir meu consumo, vida do submundo.

Mas aí me empolguei, nem me liguei

Que o diabo é mais forte que os deuses do além

Quinze anos de idade, enfim o pesadelo

Um cinco sete na lei, destino traiçoeiro

Sem muito vai e vem a minha casa caiu.

Me lembro muito bem tinha até refém

Na hora nem sei o que aconteceu, me entreguei

Não tinha como escapar.”

A letra conta a saída para o primeiro trabalho, aos oito anos, quando, nos faróis e nos “busões” (ônibus), o protagonista conseguia “uns trocados” para ajudar a família; sem pai, ele continua sua “profissionalização”; entra em contato com as drogas, que proporcionam algum alívio; e logo assume ser “delinqüente juvenil”. Com os primeiros furtos, vai-se tornando o “pixote das ruas”; entra em contato com outras drogas, mais entusiasmo, quem sabe mais prazer; mas vê que, de menino, vai-se transformando em “um bicho”, preso ao submundo; cai no “inferno” da FEBEM pela primeira vez e, como é primário, sai. Empolgado, não segura mais o vício, e o diabo, que sempre está mais à mão do que o Deus lá nas alturas, tenta-o e leva-o a cair mais uma vez no pesadelo. Ele sabe que não pode escapar, é esse o destino traçado desde o início, quando, pela primeira vez, foi para os faróis e percebeu que podia conseguir dinheiro pedindo, tirando e, finalmente, assaltando.

O sentimento de desumanidade avança quando, mais uma vez, ele passa pelo “inferno”. Mas agora consegue falar para os manos de lá:

“Dando seqüência à idéia, quero agradecer a todos aqueles que acreditaram nesse CD

Pois através do CD pude lhes passar tudo aquilo que sinto aqui neste lugar:

Pois nem é legal ficar sem moral, trancafiado o dia inteiro feito um animal

E o pior, se liga só, é a saudade da quebrada, enfim

Da minha liberdade, dos manos de cá pros manos de lá

A maldade está aqui, com ela estamos vivendo Um veneno, que agora vou tentar relatar

Tristeza e ironia dominam este lugar

É só maldade que rola nos pensamentos dos manos

Estou mais de um ano preso aqui, não é um paraíso.”

A entrada no circuito do chamado “dinheiro fácil”, a que a força do destino o levou e para a qual os demônios o ajudaram, tem outros motivos:

“Sei que às vezes é embaçado, eu tô ligado Falta umas roupas, um carro, uns trocados Mas eu te digo meu amigo, nem dê motivo Pra não virar motivo Melhor que eu pra lhe falar sobre isso Se tá pros manos de lá, o veneno dos manos de cá.” (Grupo: Elementos do rap. Música: Dos manos de cá pros manos de lá. Autor: Fabiano Rogério)

A dificuldade de enfrentar as necessidades criadas, de usar as roupas da moda, o carro e os trocados para se divertir, para consumir droga, é o que move com mais força do que a razão. O destino e o demônio ajudam a realizar esses desejos, mas o preço é mais alto do que o protagonista imaginava. E outros manos estão lá para contar:

“Não só eu, como os meus manos,

Tivemos a oportunidade de relatar a vida atrás das grades

Se liga, meu irmão, você que está no mundão

O crime não compensa, é pura ilusão Hoje eu estou aqui, vocês estão aí

Permaneçam aí, pra não pararem aqui.” (Elementos do rap. Dos manos de cá pros manos de lá. Fabiano Rogério)

A expectativa da prisão como castigo procura mostrar aos “manos de lá” que o inferno realmente existe; que se deixar cair nas tentações do demônio e do dinheiro fácil pode levar para esse lugar, onde se fica preso como um animal; onde se perde a cada dia que passa a humanidade.

Sair desse circuito e dessa “profissão” (que nem sempre eles escolhem), depende de outras condições sociais, de outros envolvimentos, de outras sensibilidades que possam ser criadas, mas que a instituição durante o tempo de internação não proporciona, só confirma a imagem que já estava sendo construída antes de entrar na prisão. Lá perde a identidade de jovem e cria-se a de infrator, ladrão, bandido, jovem da FEBEM.

As histórias de vida que aparecem nas letras retratam visões que ainda são correntes: as de que os jovens da FEBEM são aqueles que, sem família, sem casa para morar, acabam se tornando “meninos de rua” e que, dessa situação, passam aos poucos à condição de delinqüentes. Seu futuro? A FEBEM. Essa trajetória pode ter marcado um momento da história da população da FEBEM. Hoje, são imagens ainda presentes, como atestam as letras do rap.12

Mas essa história de vida, juntando-se a outras em que a sobrevivência não era tão premente, nas quais outras necessidades faziam-se presentes – como estar na “onda”, com a turma, com a diversão, com as “minas” – tinham em comum a situação de exclusão e o contato diário com a violência, as necessidades de mostrar uma imagem, de desfrutar a vida.

A música dá espaço ao protesto contra esse quadro social. A favela aparece como um local que determina experiências de vida que levam à marginalização e à busca de alternativas postas pelo próprio entorno onde esses jovens vivem. Poucas são as alternativas que se apresentam aos garotos das periferias, para ajudá-los a sair da situação em que se encontram:

“Nasci numa favela, com crime e violência

Ao decorrer do tempo, fui criando experiência

Eu não queria trabalhar, usava drogas

E só pensava em roubar

Sem valorizar a minha vida

Não, não era isso que eu queria.”

(Sentimento raro. Encontrei a solução. Cláudio Adão, Cleiton Rodrigo, Eduardo Henrique)

Vai-se delineando também uma visão crítica que ultrapassa a situação da favela, ou dos bairros pobres, indo além da realidade local para chegar à sociedade brasileira:

“Sociedade do mundo, ninguém é vagabundo

Agora eu quero paz, sem violência nesse mundo.

E na verdade do mundo ninguém é vagabundo

Agora eu quero paz sem violência nesse mundo

Viemos falar a realidade desse país que tem muitas crueldades:

Menores de rua, que fogem da escola pra se drogar e para cheirarem cola

O nosso país, lógico que é o Brasil, se morre um dois três,

Ninguém sabe, ninguém viu. Meninas menores se jogam pro mundão

Do dia para a noite já estão na prostituição

Procuram ajudar, mas só que não dá,

Por causa dos cafetões que só querem espancar.

E essas drogas que vêm para o Brasil, é claro e evidente

Todos sabem e todos viram

E a federal é tudo indiscreto

É só dar um dinheiro que já está tudo certo.

O meu Brasil mostra sua cara.

E essas obras que começam e já param

Várias famílias não têm onde morar

Dormem em viadutos, ou sem teto vão virar.

Agora então se ouvi um pancadão estou aqui,

Cantando com o mano sangue bom

É muita crueldade, onde já se viu

Cantamos então a realidade do Brasil

É muita covardia e isto não pára ste é o funk Brasil, mostra tua cara

O presidente! Escute o refrão Todinho e Chocolate Cantando com emoção.” (Todinho e Chocolate. Brasil, mostra sua cara. Bruno)

Mostrar a cara do Brasil, para quem quiser ver e ouvir, leva a afastar dos jovens a carga que a sociedade tem posto em seus ombros, de responsáveis pela violência e pela perda dos valores.

A morte como castigo está presente em parte significativa das letras, venha ela da polícia, das gangues, do destino. Os jovens lembram-se dos manos que já se foram, aqueles que, por entrar na criminalidade, encontraram a morte em alguma esquina. Suas letras, carregadas de dureza, falam da morte como conseqüência quase natural da vida e das alternativas que encontram:

“Você nem se liga, não está nem aí,

Diz que entrou no crime, foi pra se garantir

Mas te falo uma coisa, saia enquanto é tempo

Tem ladrão na sua cola, tem ladrão no seu veneno

Não se iluda, não vacile, não seja incapaz

Se distancie do crime, procure a sua paz

Tire como exemplo do nosso passado

Quantos manos sangue bom já foram derrubados

Foi uma fita mal feita deram de cara com a morte.” (Elementos do rap. Procure a sua paz. Jessissai e Renivaldo)

Os sonhos aparecem em meio à sombra da morte, como sinais de que existem alguns afetos e esperanças aos quais, e com os quais, eles buscam se ligar. O abandono do crime é visto como capaz de evitar o sofrimento da família, especialmente da mãe, figura central no campo dos afetos; a existência de filhos também tem um significado especial nos esforços que esses jovens desejam fazer para mudar de vida:

“Hoje estou aqui tirando minha bronca

Minha filha lá fora deve estar grandona

Rezo por todos que amo Principalmente por ela,

Não esquecendo meu pai

Nem muito menos minha velha

Manos que sonharam não precisar mais roubar,

Ter casa, seu carro, seu filho pra criar

Procure a sua paz, faça por merecer

Eu sei que você pode, eu sei que você consegue

Pense na sua família, pense no seu pivete

Que está aos dois anos crescendo

Vendo a maldade que rola no mundo em que vivemos

Será que você pretende passar o mesmo exemplo

Ver o seu filho no crime ao mesmo tempo morrendo.” (Elementos do rap. Dos manos de cá pros manos de lá. Fabiano Rogério)

Sair dessa situação, em que a vida está por um fio, parece já um ganho, uma vitória. Mas a droga surge como uma entidade que se alia a outras situações, sobre as quais os jovens não têm controle.

As letras também trazem a expectativa de saída da vida de sofrimento na FEBEM e a possibilidade de ganhar a liberdade, de novamente poder usar os sinais que faz esse jovem sentir-se jovem - usar as roupas da moda – e mostrar que faz parte da sociedade:

“A minha vida aqui é um verdadeiro sofrimento

Por isso, meus irmãos, abandonados vocês nunca estarão

Pois pode crer, você já deve saber, um dia eu estarei aí para lhe dizer

Pode acreditar

Pois minha cadeia não é perpétua Um dia eu estarei aí fora, usando aquelas roupas da moda

Podes crer, podes crer, vai saber, vai saber

Que a realidade pode acontecer.” (William Varelo de Souza)

Por meio da música, o autor fala do consumo, que quer realizar como jovens de outras camadas da sociedade. Em outros momentos, aparece o conflito entre querer participar da sociedade de consumo e, ao mesmo tempo, para realizar esse desejo, ser obrigado a arriscar a própria vida.

A salvação pela fé e a busca da religião, muito mais do que um modo de escapar da realidade pode significar, como diz Canclini quando se refere aos rituais religiosos:

“uma ocasião na qual a sociedade penetra no mais profundo de si mesma, naquilo que habitualmente lhe escapa, para compreender-se e restaurar-se. A causa entre o ordinário e o festivo deve ser buscada na história cotidiana, no que lhes falta ou não compreendem no trabalho, na vida familiar, no relacionamento impotente com a morte.” (CANCLINI,1983: 54-55)

Esses jovens procuram, pela fé, uma força que não encontram à disposição na situação de vida em que se encontram. Eles procuram, além da situação concreta em que vivem, uma força, que possa acrescentar o que lhes falta, na realidade que terão que enfrentar quando estiverem em liberdade:

“Se liga meus amigos

No que vou dizer,

Fazendo este louvor

Para todos me entender.

Foi numa sexta-feira

Que tudo começou

Eu fui para o culto

E Jesus me libertou

Eu andava no mundo

Roubando de montão Jesus me chamou

E eu ganhei a salvação.

Jesus ama você e você tem que entender

Dobre o seu joelho que ele fala com você.” (MC’s. Jesus ama você. Marco Antonio)

A dureza das letras não é só um espelho da vida desses jovens, mas também de suas expectativas, do futuro, do enfrentamento de impasses desse conflito:

“Eu estava na vida do crime

Essa vida não dá pra ninguém

E se isso desse alguma coisa

Eu não viria parar na FEBEM

Dessa vida não se leva nada

Só leva você a roubar Hoje estou sossegado do crime

Agora vou cantar lalaiá

Saia dessa vida errada e entre numa vida humilde

Essa jogada é uma furada Você não viverá mais livre

A liberdade é bem melhor...” (Toque inocente. Saia dessa vida errada. Bruno)

Se os jovens recebem dos meios de comunicação de massa as mesmas mensagens, independentemente da classe social a que pertencem, os jovens pobres nem sempre encontram meios para expressar seu modo de vida, para fazerem-se ouvir e marcar sua presença por esses meios.

Na FEBEM, como em outras instituições prisionais, a entrada de grupos que ofereçam alternativas de aprendizado e de expressão não é uma prática incorporada às programações da estrutura institucional. Projetos como “Fique vivo” nunca gozam da certeza de continuidade. Eles acontecem, em brechas em que a própria FEBEM define o tempo, os espaços, os participantes.

Por intermédio dessas letras, os jovens falaram dos impasses do sistema prisional, das perspectivas de saída, dos desafios da vida em liberdade.

É importante destacar que falar do sistema prisional, contrapor-se às diversas formas de violência física e psíquica poderia ampliar o tempo de permanência na FEBEM. A vigilância interna presente em todos os espaços: dormitórios, refeitórios, pátios, banheiros, além dos relatórios acerca dos comportamentos, cumpre importante papel para silenciar vozes discordantes e comportamentos contrários às normas. Foi por intermédio das oficinas que eles encontraram maneiras de se fazer ouvir para além dos muros, quando falaram dos “sistemas” e de suas regras, castigos, hierarquias.

Porém, algumas manifestações culturais são mais incentivadas em momentos de tensão, após rebeliões ou como forma de prevenção aos conflitos sempre presentes na história dessa instituição.

Por intermédio do movimento hip-hop, os “manos de cá” iniciaram um processo de criação de identidade, produziram letras de rap e um CD, marca de sua singularidade, como vêm fazendo o movimento rock no Brasil e em outros países da América Latina, bem como outros estilos musicais derivados do rock desde os anos 60.

De lá para cá, a cultura de massa vem penetrando mais e mais em todos os recantos do mundo, levando aos jovens o rock, o funk, o rap, o “heavy metal”, o “hard core” e outras formas de expressão. Estas se misturam às identidades locais, regionais, criando padrões de identidade semelhantes àqueles oferecidos pelo mercado simbólico internacional.

Assim também o rap, ao chegar dos Estados Unidos, tem aqui condições de reproduzir-se; encontra jovens que desejam expressar seu modo de vida por meio de um ritmo, da palavra falada, de um universo que chega das periferias. E, ali como na FEBEM, inicia-se a criação dessas identidades.

Os diversos ritmos, muitas vezes, também se cruzam: o rap da zona sul com o samba e o pagode das zonas leste e norte com o funk da Baixada Santista. Assim, cada região da cidade de São Paulo, representada na FEBEM, dança o seu ritmo.

A nova vida dos rappers passa a ser vivida antes de sua saída para a liberdade. De um lado, eles sabem que a sociedade exige deles uma mudança de estilos, hábitos, modo de encarar a vida. Sabem que precisam mostrar que estão dispostos a encarar com uma certa resignação a ordem social e legal.

Por outro lado, eles viveram essa experiência de trânsito do inferno para um certo paraíso de criatividade, de expressão de sensibilidades, de uso de uma linguagem com a qual se comunicaram com seus manos, com suas famílias, com a sociedade. A ameaça da morte que os cerca não foi obstáculo para que construíssem suas identidades.

Nesse conflito, produzem letras, com tintas escuras da realidade, e, ao mesmo tempo, são chamados a se integrar numa sociedade que os estigmatiza. Aspiram à liberdade e querem ser ouvidos com os sinais e os símbolos que são seus, de sua geração, de outros jovens que vivem nos bairros de São Paulo em situações semelhantes.

Se a cultura institucional procura silenciar vozes discordantes e se fazer dominante, a produção do Cd Dos manos de cá, pros manos de lá revelou que a ocupação de brechas é possível e que, por meio delas, podem jorrar novas sensibilidades; que essas marcas de criação podem, em outros momentos, com outros atores, inventar outras formas de expressão para circular em novos espaços, criar outros acontecimentos, revelar identidades culturais que assinalem uma linguagem comum, um estilo, com significado para outros jovens.

 

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Endereço para correspondência
Rosane de L. S. Vianna
E-mail: rosilviana@uol.com.br

Recebido em 24/02/2005
Aceito em 11/04/20

 

 

 

* * Socióloga, com mestrado no Prolam da USP (Programa de Integração na América Latina), pesquisadora da área de juventude.
1 Rossana Reguillo, Jesús Martín Barbero, Helena Abramo, Néstor Canclini, Juan Guillermo J. Cano, G. Diógenes, Mario Margulis, Carles Feixa Pampols, Germán Muños González, Rodrigo Parra Sandoval, Carlos M. Perea, Alonso Salazar, José F. Serrano, Marcelo Urresti, José Manuel Valenzuela, Michel Mafessoli, Hermano Vianna, Luís W. Montoya, Oscar Dávila León, Sergio Balardini, dentre outros.
2
Canclini, Néstor, G. - “El mal estar en los estudios culturales”. In: Revista Fractal. México. Texto obtido via Internet: www.fractal.com.mx.
3 Margulis, Mario. <et al.>. Viviendo a toda: jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades. Siglo del hombre editores; Departamento de Investigaciones Universidad Central: Santafé de Bogotá, 1998.
4 Corporación Región é uma organização não governamental, sediada em Medellín - Colômbia, dedicada a estudos e intervenções no campo da educação, comunicação, cultura, juventude, direitos humanos e desenvolvimento local.
5
Uran, O.A.A. “La juventud: de movimiento social a conjuntos de acción juvenil diferenciados”. In: IPC. La ciudad en movimiento. Medellín. 2000.
6 Para os internos, a fala pode significar o aumento ou a diminuição do tempo de permanência na FEBEM, uma vez que os relatórios diários compõem-se de detalhes do que dizem, de como se movem, das relações que mantém, de como cumprem as normas estabelecidas. O cuidado que eles tomam com a elaboração dos discursos dificulta a espontaneidade da comunicação verbal.
7
“Seguro”, como em presídios comuns, é um local imaginário reservado para delatores, homossexuais, estupradores e aqueles que cometeram algum tipo de ação considerada imoral pelos jovens ou contra as regras criadas por eles. Fisicamente o lugar não existe. É sinônimo de estar sob proteção do educador para não ser agredido.
8
O resultado dessa pesquisa encontra-se em: Vianna, R. de L. S. Jovens à busca de identidades culturais: ser jovem em São Paulo e Medellín. Tese de mestrado apresentada ao PROLAM-USP. 2002.
9
Jane Souto descreve os Masters of Cerimony - MCs como “misto de cantores/compositores, que se apresentam individualmente em duplas, estas quase sempre formadas por jovens do sexo masculino. A trajetória dos MCs geralmente inicia-se em suas comunidades de origem, onde compõem e apresentam suas músicas para seus amigos e começam a ser conhecidos em bailes e festas locais. Nelas, os MCs sempre se apresentam e saúdam suas galeras com um grito de abertura”. Os outros lados do funk carioca. In: Vianna, H.(org.) Galeras cariocas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
10
Break - dança de solo, praticada em grupo que se assemelha à capoeira. Os movimentos podem ser “quebrados” com acrobacias, saltos que simbolizam luta, jogo, dança.
11 Em “Caracterização das famílias de jovens privados de liberdade da FEBEM/SP”, pesquisa realizada em 1997, os jovens que se encontravam no momento da internação, fora da casa da família, constituíam 19%. 70% residiam com suas famílias. In: Adorno, R. e Vianna, R de L. S. Faculdade de Saúde Pública - USP e FEBEM/SP. 1999. Mimeo.

 

 

 

 

 

 

 

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