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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART II

 

Jovens do bairro da Pedra do Papagaio: notas sobre uma oficina de fotografia - Projeto Casa Rosa

 

Young People of Pedra do Papagaio: reports of a photography workshop – Projeto Casa Rosa

 

 

Talita VecchiaI*; Denise Dias BarrosII**; Miki SatoIII***

I Projeto Casa Rosa
II NIME
III Casa das Áfricas

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O artigo relata a experiência de uma oficina de fotografia com jovens do bairro rural da Pedra do Papagaio, em Aiuruoca – MG. A iniciativa partiu do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória – NIME da Universidade de São Paulo – USP e do Projeto Casa Rosa (Associação Bem Comum). O objetivo central for de viabilizar um contato ainda inicial com o universo da fotografia e como forma de provocar um olhar novo, de lugares e relações próximas. Favorecer, portanto, uma forma de expressão dos jovens, além de possibilitar discussões e reflexões sobre o lugar onde vivem. Foi feito convite a quatro jovens que participam das atividades do Projeto Casa Rosa. Em um encontro foram dadas explicações e, durante uma semana, permaneceram com as máquinas fotográficas. Depois da revelação, as fotos foram analisadas em grupo. As temáticas que emergiram foram: natureza e principais pontos turísticos, redes de sociabilidade, experiências entre campo e cidade. A fotografia constituiu uma linguagem e instrumento importante para apreensão do sentimento de pertencimento, assim como para favorecer discussões, facilitando a aproximação dos jovens de temas polêmicos.

Palavras-chave:Juventude, Cidadania, Fotografia, Comunidade rural, Identidade.


ABSTRACT

This article describes the experience in a photography workshop, in which the participants were the young people of a rural neighborhood called Pedra do Papagaio, in Aiuruoca, MG. The project initiative was developed by Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória – NIME of University of São Paulo – USP and Projeto Casa Rosa (Associação Bem Comum). The main objective was to get in touch with the photography universe in order to stimulate a new look at places and close relations, and develop a form of expression, generating discussions and reflections about the place, where they live. Four adolescents, who had taken part in Projeto Casa Rosa activities, were invited to participate in this study. In the first meeting, they had explanations about the project, and, for a week, they kept a photographic camera. After the photos developing, they are analyzed by the group, and the themes emerged were: nature and main tourism places, forms of sociability, experiences between countryside and city. The photography established a language, an important tool for developing the feeling of belonging and discussions, bringing the adolescents close to polemic themes.

Keywords: Youth, Citizenship, Photography, Rural community, Identity.


 

 

“(...) que janelas até agora fechadas sejam abertas, e que, uma vez aberta a janela, seja possível ver o que antes não se enxergava.” Victor Vicent Valla (2001, p. 9)

 

 

As fotografias e as discussões realizadas com jovens do bairro rural da Pedra em Aiuruoca – Minas Gerais são as fontes principais das reflexões aqui apresentadas. A iniciativa partiu do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória – NIME, da Universidade de São Paulo – USP, que convidou o Projeto Casa Rosa1 para realizar uma oficina de fotografia. Tratava-se de favorecer discussões sobre como os jovens de diferentes lugares discutem seus pertencimentos. A proposta feita aos jovens foi de que fotografassem aquilo que desejassem no bairro da Pedra, e produzissem uma discussão sobre os resultados e os processos.

 

A juventude no Brasil

Há uma vasta literatura sobre infância e juventude nos diferentes momentos da história brasileira referente às representações sociais desse segmento da sociedade. No século XX, os “menores” – as crianças e os adolescentes pobres – tornam-se objetos de controle, disciplina e repressão. O Estado brasileiro deveria tutelá-los e assegurar as condições para a modernização da sociedade.

Esse modelo de controle social corretivo e repressivo foi posto em questão apenas no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Esses anos foram marcados por lutas pelo reconhecimento de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. A Constituição Federal de 1988 – CF 88 consolidou e legitimou essa definição no plano jurídico. Houve, em 1990, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, lei complementar que regulamenta o conteúdo da CF 88, a Lei no. 8.069/90. O Brasil “passa a contar com valiosos instrumentos, no plano jurídico, de reivindicação de políticas públicas em consonância com a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos” (PINHEIRO, 2001: 64).

No ECA, artigo 2o. (Brasil, 2002), o adolescente é definido como a pessoa que possui entre 12 e 18 anos de idade – excepcionalmente até os 21 nos casos expressos em lei, com relação ao cumprimento de medidas socioeducativas. O ECA delibera sobre diversos aspectos desse grupo como educação, saúde e medidas socioeducativas.

Atualmente, a juventude no Brasil é formada por 34 milhões de jovens que se dividem, igualmente, entre homens e mulheres. Segundo o IBGE, no último senso de 2000:

“A proporção de adolescentes – jovens entre 15 e 18 anos incompletos, conforme definição do Estatuto da Criança e do Adolescente – é de 31%, ou 10.727.038. Somam 7.222.250 os que têm 18 ou 19 anos (21,4%). E a faixa posterior, de 20 a 24 anos, alcança 47,6% (15.828.372), sempre conforme o ano de 2000.” (Instituto Cidadania, 2004: 13)

Desses 34 milhões, 84% vivem no meio urbano e 16%, cinco milhões e meio, no meio rural. No caso do município de Aiuruoca – MG, mais especificamente no bairro rural da Pedra do Papagaio, das 140 pessoas da comunidade, aproximadamente 50 são jovens – 15 a 24 anos, segundo o Instituto Cidadania (2004).

Juventude rural é, para Carneiro (2005), uma faixa demográfica afetada de maneira importante por uma dinâmica de diluição de fronteiras entre os espaços rurais e urbanos, já que pertence a um contexto em que existe uma crise da agricultura familiar e uma falta de perspectivas para os que vivem da agricultura – o campo tem-se transformado, cada vez mais, em um “espaço heterogêneo, diversificado e não exclusivamente agrícola” (2005: 1). A diluição dessas fronteiras somada à compreensão desses jovens, pelo viés da lógica do trabalho, faz com que assumam apenas a função de aprendiz de agricultor e, precocemente, a condição de adulto trabalhador. A autora discute, ainda, uma definição auto-representativa de jovem – realizada em sua pesquisa – em que ele “(...) é aquele indivíduo que se encontraria em uma fase caracterizada pela discrepância entre o projeto de vida vislumbrado e as atividades em realização” (2005: 2). Isso significa que os indivíduos de 15 a 26 anos, na dada pesquisa, têm projetos futuros que são objeto de idealização.

 

Juventude no bairro Pedra do Papagaio

A população residente no vale compõe-se por dois grupos principais: antigos e novos moradores. No bairro da Pedra do Papagaio a quase totalidade dos moradores são descendentes de ancestrais que ali se instalaram a mais de um século e segundo Costa (1994: 18) seriam “os guardiões de uma maneira diversa e significativa de conviver, produzir e se relacionar com a natureza”. Data do final do século XVI as primeiras incursões portuguesas na região, mas o processo de ocupação do vale e de suas propriedades, remonta à última década do século XIX. Trata-se de uma sociedade “hierarquizada, moldada pela dor e pelo afeto, que permite a expressão do humor e da alegria apenas dentro de uma estrutura rígida, onde a família é a célula básica de organização” (1994: 17-18).

Em meados da década de 1970, iniciou-se uma migração de pessoas de centros urbanos (principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) que compraram terras e constituíram novo estilo de vida, de moradia e de processo e relações de trabalho. Embora os novos moradores não formem um único grupo, eles passaram a ter poder de decisão e têm sido agentes de transformação como para a ampliação da estrada, a instalação da rede elétrica e para a criação da Área de Proteção Ambiental da Serra de Mantiqueira.

A distância de 17 quilômetros entre o bairro rural da Pedra do Papagaio e a cidade de Aiuruoca tem o tráfego dificultado devido as condições da estrada de terra e, sobretudo, por não existir transporte coletivo. Esse fato impõe limites importantes, pois a maior parte dos antigos moradores da comunidade não possui meios de transporte pessoais.

O acesso dos jovens à escola restringe-se ao ensino fundamental, que é garantia Constitucional regulamentada pelo artigo 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O acesso ao ensino médio só é garantido na cidade, o que faz com que alguns dos jovens da comunidade da Pedra não possam acessá-lo. O ECA, no artigo 54, inciso II, menciona a progressiva extensão de obrigatoriedade e gratuidade, deixou assim desprovida uma parte importante dos jovens em período escolar e dificultando reivindicações e pressões políticas.

A forma de lazer principal é o futebol. Em frente ao barzinho local, há um campo gramado construído pelos próprios moradores em um terreno privado. Aos domingos, são realizados campeonatos entres os times dos diversos bairros – trata-se de um acontecimento, sendo o maior entretenimento da comunidade, o momento em que os homens e os jovens jogam futebol, os meninos ensaiam passes ainda desajeitados, as meninas – nas proximidades – brincam dos mais diversos jogos, as mulheres e as jovens torcem pelo time do bairro, em meio a conversas e cuidados com as crianças mais novas.

As festividades das comemorações locais (Reis, Terço de São Gonçalo, entre outras) são, igualmente, possibilidades de lazer, sociabilidade e descontração. Nessas datas, são realizadas festas organizadas coletivamente, em que as mulheres preparam a quitanda2 e o sanfoneiro é chamado para organizar o forró. A participação dos jovens nessas ocasiões é muito dispersa. Embora estejam sempre presentes, têm uma participação mais marginal na organização. Identificam tais manifestações com as pessoas mais velhas do bairro. Grande parte deles diz preferir festas com som eletrônico, a exemplo das que acontecem na cidade.

A natureza também se configura como forma de lazer. A população, principalmente os jovens, utiliza-a, de forma esporádica, para fazer passeios e para acampar. Essa prática tem-se intensificado com a presença dos turistas que valorizam os lugares de visitação e que, conseqüentemente, geram uma valorização desses espaços por parte dos jovens.

Esse panorama demonstra que a população jovem que habita o meio rural não conta com “(...) possibilidades mínimas na área da educação e da ocupação produtiva, carecendo, também, de alternativas básicas em equipamentos de lazer, cultura e saúde.” (Instituto Cidadania, 2004: 71).

 

O Projeto Casa Rosa

O Projeto Casa Rosa iniciou-se em fevereiro de 2004, no bairro rural da Pedra do Papagaio em Aiuruoca - MG. Constitui-se em uma parceria da Associação Bem Comum de São Paulo, do Projeto METUIA (grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura de redes sociais de suporte) da USP e da Associação (de moradores) da Pedra.

Cada um desses parceiros tem sua função. O Projeto Casa Rosa é um dos programas da Associação Bem Comum. Ela é responsável pela manutenção financeira do projeto e pela contratação de uma terapeuta ocupacional que o coordena. O Projeto Metuia faz a supervisão das atividades e colabora com a inserção de um programa de estágio extracurricular da graduação de Terapia Ocupacional da USP.

A Associação da Pedra tem papel fundamental na formação e andamento do Projeto. Quatro de seus associados foram escolhidos para dar continuidade aos intercâmbios entre a comunidade e a seqüência das atividades da Casa Rosa.

As ações desenvolvidas, segundo Vecchia (2004), levam em consideração as relações subjetivas entre os indivíduos, bem como a organização social e territorial, a fim de colaborar para o desenvolvimento social da população local. Partindo de um aprendizado mútuo, trabalha-se pela ampliação de oportunidades tanto de trabalho como do repertório cultural, além de valorizar os saberes e as práticas que vêm-se constituindo como eixo de suas identidades.

Inicialmente, dois grupos tornaram-se alvo prioritário da ação: as mulheres e os adolescentes. Isso se deu em virtude da situação de maior vulnerabilidade desses grupos, graças à falta de continuidade da escola e de oportunidades de lazer e cultura, além da questão dos trabalhos sazonais e mal remunerados.

As atividades do projeto com a juventude têm como objetivos principais:

· promover acesso às alternativas culturais e à experimentação de formas variadas de expressão, além de incentivar o resgate da cultura local, valorizando seus conhecimentos;

· favorecer acesso à tecnologia, permitindo o aumento da capacidade dos indivíduos e das populações de acompanhar a evolução tecnológica;

· formar jovens para protagonizar ações responsáveis para si e para a comunidade, além de assumirem papéis de organizadores, e gestores e colaboradores do projeto.

Além de realizar diversas atividades com os jovens, desenvolveu-se um programa de monitoria. Dessa forma, alguns deles são responsáveis pelo funcionamento da casa e do pequeno ponto de venda de produtos artesanais nos fins de semana. Paulatinamente, a realização de atividades com alguns grupos, bem como a organização e a idealização do projeto têm sido assumidas pelos monitores. Para isso, recebem orientação e um auxílio financeiro, o que garante sua presença nas atividades semanais programadas.

 

 

Oficina de fotografia A oficina de fotografia realizada em junho de 2005 está inscrita entre as diversas atividades realizadas pelo Projeto Casa Rosa e teve como objetivo principal criar oportunidade para que alguns dos jovens pudessem retratar o modo como concebem o lugar onde vivem e facilitar discussões sobre sua história, contexto e cotidiano.

Foram convidados quatro jovens entre aqueles que participavam mais assiduamente nas atividades do Projeto Casa Rosa e que pudessem estar presentes em todas as etapas da oficina. O gênero foi um critério complementar. Assim, foram convidados Roberta, Diana, Tomás e Marco.

Roberta tem 13 anos, é aluna da oitava série do ensino fundamental da escola do bairro da Pedra, filha mais velha de um casal que teve quatro crianças. Ela é, também, neta de uma importante liderança feminina e foi eleita durante a Conferência Municipal da Criança e do Adolescente para representar o município de Aiuruoca na Conferência Estadual, do ano de 2005. Diana tem 11 anos3, é aluna da sexta série do ensino fundamental da escola do bairro, segunda filha da família e neta da liderança feminina já citada.

Os dois jovens que participaram da oficina de fotografia são monitores do Projeto. Marco tem 15 anos, é aluno da sexta série do ensino fundamental da escola da cidade (estudou até o ano anterior na escola do bairro), filho de uma das professoras da escola do bairro, tem apenas um irmão mais novo, é primo de Roberta e Diana, logo, neto da mesma liderança anteriormente citada, e monitor do Projeto Casa Rosa há aproximadamente um ano. Tomás tem 16 anos, concluiu o ensino fundamental na escola do bairro. É o segundo filho e possui três irmãos. Neto do presidente da Associação da Pedra, artesão (trabalhos com madeira e bambu) e monitor do Projeto Casa Rosa há, aproximadamente, seis meses.

A apresentação da proposta feita para este pequeno grupo foi de que eles fotografassem lugares, coisas e pessoas que fossem importantes para eles. Deveriam comentar, posteriormente, o que significavam as fotos tiradas em discussão grupal. A linguagem fotográfica é um recurso de diálogo e de elaboração da própria percepção do mundo em que se vive. Cada um recebeu uma câmera e fotografou durante uma semana. Foi feita uma breve explicação sobre a utilização e manuseio do equipamento, e também, sobre luz e enquadramento.

Após a revelação das fotografias, fez-se um encontro com todos os participantes para a discussão das imagens, foi um momento em que cada um relatou sua experiência, a motivação para cada fotografia e as questões suscitadas no processo. As apresentações foram conduzidas de forma que cada um comentasse suas fotos. Em alguns momentos dessa etapa, foi necessário pedir mais informações, ajudando-os a refletir sobre o sentido e o significado das imagens. Alguns deles conseguiram explicitar mais claramente o que queriam, outros tiveram mais dificuldades em elaborar e demonstrar essa reflexão. No decorrer da discussão, emergiu um debate sobre a definição das fronteiras do bairro e das diferentes formas de pertencimento, que existem segundo a experiência do grupo.

 

Anotações sobre a oficina de fotografia

Os resultados da oficina foram reunidos em temáticas abordadas pelos jovens: natureza, turismo, redes de sociabilidade e experiências entre campo e cidade.

 

Natureza e principais pontos turísticos

A maioria das fotografias tiradas pelos quatro jovens foram da natureza: imagens de algumas cachoeiras do vale como Batuque, Três Marias, Macacos, do Fundo, além do poço das Fadas, da vegetação local – grandes árvores antigas, flores e pastos, bem assim paisagens como o Pico do Papagaio e a Pedra do Pinhal. Eles disseram que acham todas as cachoeiras bonitas, mas iguais, pois são “pedras com uma água correndo e um poço em baixo”.

Contudo, impressionam-se pelo interesse dos turistas: “eles querem visitar todas elas, como se fossem lugares muito diferentes. Chegam a ir a todos os pontos do bairro em apenas quatro dias de visita”.

O Pico do Papagaio, mencionado como símbolo de identidade do bairro, foi fotografado pelos quatro jovens de diferentes formas.

 

 

Essa natureza representada remete a uma diferença de valores tanto por parte dos turistas, quanto da população local. Para os moradores, a natureza é, ao mesmo tempo, um fato corriqueiro e incorporado. É também um valor adquirido, já que os que não são do bairro conferem um valor positivo a esses elementos, quando mostram interesse pelos pontos turísticos. Essa aquisição de valor fica evidenciada quando eles falam sobre as vantagens do fácil acesso às paisagens, diferentemente dos turistas.

A tentativa de representação do bairro da Pedra do Papagaio colaborou para a discussão dos limites, das fronteiras do lugar. Onde era Pedra? De que ponto a que ponto eles consideravam o bairro? Quem eram as pessoas da comunidade?

A questão da fronteira proporcionou questionamentos de coisas que, para eles, eram dadas. Era óbvio quem era e não era da Pedra. Mas, ao serem instigados a definir as características necessárias para que uma pessoa pertencesse ou não àquela comunidade, sentiram-se confusos e entraram em um embate.

Definiram diferentes tipos de categorias que poderiam se compor para conseguir realizar tal definição: as fronteiras geográficas, definidas pelos vales, pelos caminhos e pelas paisagens naturais; as fronteiras relacionais, que englobam categorias mais subjetivas mediante relações estabelecidas entre os moradores do local, tais como vínculos históricos, de amizade e de parentesco; e o mais importante, que foi determinante para as conclusões, o que os mais velhos diziam.

A temática produziu uma discussão acalorada, pois os jovens dividiram-se entre a opinião de diferentes referências. Roberta dizia que sua avó definia a fronteira em um ponto. Tomás referia outro ponto segundo seu pai. Marcelo falava mais da fronteiras relacionais. O ponto-chave da discussão foi quando, ao serem determinadas, em consenso, as tais fronteiras, foram questionados sobre uma pessoa muito importante da comunidade que havia ficado fora da tal marcação. Rapidamente, as fronteiras geográficas foram alargadas para as relacionais, a fim de que esse ancião pudesse estar no território.

 

Redes de sociabilidade

As próprias casas dos participantes foram fotografadas por três deles. Cada um trouxe sua particularidade, de acordo com a história pessoal.

Marcelo, que hoje mora na cidade, retratou sua atual casa, refletindo uma nova fase da sua vida. Explicou que estava estudando e, por isso, mudou-se para a cidade. Em sua fala sobre a foto de sua casa, Marcelo expressou o sentimento de ter maior liberdade por morar na cidade, além de novas possibilidades e responsabilidades. É interessante perceber que, apesar de ser da comunidade rural da Pedra e de ter passado toda a infância no bairro, a casa da cidade foi retratada como significativa. Aqui é estabelecida uma composição de valores, já que ele se refere como da Pedra, mas valoriza a condição de ter um vínculo importante também com a cidade.

Tomás mostra a foto de sua casa em um momento de reforma. Isso fez com que ele falasse sobre os diferentes momentos que viveu naquele local. Remeteu-se à sua infância, quando aquela casa ainda era bem menor e mais simples. Lembrou-se das brincadeiras com a irmã mais velha e com os primos, e de como gostava do “aconchego (sic)” da antiga casa. Roberta, retratou uma fotografia de seu quarto que costumava estar sempre bagunçado por causa de Diana (sua irmã mais nova, com quem divide o cômodo) mas que, naquele dia, estava organizado, e, por isso, teve vontade de tirar uma foto do modo como ela gosta de ter o quarto.

É interessante perceber que a casa é uma referência para a construção da identidade e que tem significado e importância diferentes para cada um.

Tomás, ao relatar sobre os diferentes períodos de sua vida e a reforma de sua casa, fez um paralelo entre a mudança da estrutura física da casa e as mudanças de dinâmica de vida de sua família. Explicou que agora a casa é bem maior, cada um tem o seu quarto mesmo que a família tenha aumentado com o nascimento do filho de sua irmã. Conta que auxilia nos cuidados do sobrinho.

 

 

 

Experiências entre campo e cidade, entre “nativos” e “não nativos”

A terceira temática, resultante, sobretudo, das discussões sobre as fotografias, foi sobre a imagem de si (dos moradores do lugar) e a do turista (aqueles que vêm da cidade). Os jovens trouxeram questões resultantes desses (des)encontros de valores e maneiras de relacionar-se com aquele lugar. De um diálogo, muitas vezes sem voz, entre campo e cidade, emergiram as discussões dos jovens: ambivalente, conflituoso, conciliatório, pleno de expectativas, desejos e desconfiança. Discutiram com entusiasmo sobre como os próprios jovens da Pedra percebem e relacionam-se com a cidade. Os participantes mostraram muito interesse em dar sua opinião e posicionar-se sobre o assunto.

Falaram que eles próprios acabam assumindo a idéia de que tudo aquilo que vem de fora da zona rural (da roça) é melhor. Afirmam que muitos não querem mais permanecer no local, desejam ir para a cidade e apreciam a maneira de viver do meio urbano, desmerecendo a cultura local. Os jovens explicitaram que algumas pessoas do bairro, principalmente as pessoas mais velhas, acreditam que não têm os mesmos direitos que as outras. Roberta afirmou que “tem gente daqui que acha que não tem mais direitos que outras, não tem o direito de melhorar de vida.” Ela falou de sua vontade de continuar os estudos e de freqüentar a universidade. Deseja conseguir com seu trabalho uma melhor situação econômica. Contudo, acredita que não será bem-vista pela comunidade se isso ocorrer. Tomás assumiu uma postura menos conflituosa em sua relação com o meio rural, ressaltando o que considera positivo no estilo de vida que leva. Ele terminou o ensino fundamental e diz não ter vontade de continuar os estudos, mas gosta de outras coisas como o artesanato em madeira e a informática. A informática é atividade que descobriu no Projeto Casa Rosa. O artesanato é elemento importante na construção de sua identidade, pois a marcenaria é ofício do pai de quem é aprendiz e auxiliar.

 

 

 

Como dito anteriormente, convivem no vale do qual o bairro da Pedra faz parte, novos habitantes que pertenciam a grupos sociais urbanos com referências culturais, trajetórias pessoais e estilos de vida diversos da população que caracterizou aquele lugar até a década de 70. Eles formam Os chamados novos rurais ou neorurais, ou seja, são homens e mulheres que trocaram as cidades (relações e trabalho) por uma vida no meio rural. Existem aqueles que migraram motivados pela redescoberta da natureza, por interesses ecológicos e ambientalistas e por uma busca de cotidiano menos acelerado. Esse fenômeno tem sido discutido em vários países como parte das transformações sociais das últimas décadas. Os novos rurais de Aiuruoca são pessoas atraídas pela beleza do lugar, muitas vezes com formação universitária e/ou provenientes de famílias de alto poder aquisitivo, desenvolvem atividades ligadas ao turismo, dedicam-se ao artesanato e à agricultura orgânica.

As novas relações foram se estabelecendo em configurações variadas de proximidades e distanciamentos, negociações, transformações e conflitos. Entre eles, há os que buscam recompor o anonimato da cidade e aqueles que procuram construir uma interação com a população que encontraram no lugar e que se vê uma comunidade específica.

Os jovens diferenciaram os “nativos” dos “não nativos”, além de definirem subcategorias os diversos tipos de pessoas que não são do bairro, mas que possuem algum tipo de relação com a comunidade da Pedra. Assim, “nativos” são os moradores do bairro, porque nasceram no local ou porque se casaram com pessoas nascidas lá. Os “não nativos” seriam aqueles que vêm de outro local que não a Pedra, mas que, segundo a explicação dos jovens, podem ser subdivididos em: (a) turistas - pessoas que vão visitar o bairro esporadicamente ou apenas uma vez; (b) moradores não nativos – aqueles que residem no vale mas que vieram de São Paulo ou do Rio de Janeiro; (c) não nativos proprietários - são aquelas pessoas que têm propriedades no bairro; (d) pessoas que compõem o Projeto Casa Rosa – aquelas que têm vínculo com os moradores por meio das ações do projeto.

Uma das questões que surgiu ao longo da oficina foi sobre as relações entre os nativos e os não nativos. Essa tentativa de classificação das pessoas que vêm de fora partiu dos próprios jovens nos esforços de diferenciar e nos explicar os diversos tipos de freqüentadores do local e suas relações com cada um desses segmentos. Os participantes da oficina dividiram ainda os não nativos em “bons” e “maus” quando tentaram explicar de forma didática a relação estabelecida com a comunidade.

Eles enfatizaram os benefícios do turismo na geração de emprego para a população local e no reconhecimento do bairro como turisticamente atrativo. Por outro lado, enfatizaram que alguns moradores do bairro não pertencentes à comunidade (não nativos) e tentam transformar e invadir o lugar em benefício próprio. Também os “maus” turistas, acabam, segundo os jovens, desvalorizando os nativos, colocando-se numa posição superior como no exemplo que citaram: brincam com o sotaque local e os tratam como se a população não tivesse capacidade de entender a cultura “de fora”.

Os “bons” turistas são aqueles que vêm de fora e, mesmo tendo outros valores, não desvalorizam o local, demonstram interesse em conhecer a comunidade rural e reconhecem seu saber. Citam como exemplos desse tipo de turista a maioria das pessoas que não são da Pedra, que possuem alguma propriedade e algum tipo de relação duradoura com os moradores.

Os participantes, ao comparar a vida no campo e na cidade, defenderam a idéia de que existem relações conflitantes entre esses dois universos. Ainda que haja uma percepção crítica sobre os valores, os conceitos e às representações do meio urbano, persiste um forte sentimento de desqualificação dos saberes e da cultura local. Muitas vezes, as diferenças são percebidas como desigualdade e as pessoas do campo, desvalorizadas quando comparadas às da cidade. Foram citadas várias situações ligadas à convivência com os turistas, os moradores que vieram de São Paulo ou Rio de Janeiro. O sotaque foi lembrado como alvo de atitudes jocosas dessas pessoas e, inclusive, de alguns professores. A desqualificação foi considerada como existindo mesmo entre eles, pois afirmaram que alguns jovens acabam adotando atitudes dos turistas, dos moradores e dos professores que vieram das grandes cidades.

Mencionaram que a ascensão econômica contraria os valores de algumas pessoas do bairro, pois não concebem essa possibilidade para si e nem para seus iguais. Roberta explicita que deseja essa ascensão, mas reitera que isso não será bem aceito pela comunidade. Para fazer parte da comunidade seria necessário permanecer sempre na mesma condição socioeconômica, afirma.

A desvalorização da comunidade rural surge, também, como fator importante e preocupante para os jovens moradores da Pedra, quando se queixam que os moradores “não nativos” tentam transformar o lugar de acordo com seus valores, interesses e necessidades, desconsiderando, em muitas situações, o conhecimento e as tradições locais. A prática da invalidação do discurso e da cultura locais, bem como de imposição de atitudes e idéias é algo sempre questionado. Os jovens sentem-se cobrados, como se houvesse uma exigência de pensar, falar e agir como as pessoas que não são do bairro.

Por outro lado, os jovens reconhecem que existem outras formas de relações estabelecidas com as pessoas que vêm de fora: de afirmação da identidade e de reconhecimento. Há pessoas que se interessam pelo saber e valorizam o modo de vida local. Existem trocas sociais e culturais mais horizontais quando se estabelecem vínculos continuados, pessoais, de trabalho, de ajuda e de amizade. Nesses casos, ficam favorecidas as relações de colaboração e de participação em processos internos da comunidade, valorizando as manifestações coletivas e fortalecendo suas produções.

 

Considerações finais

Oferecido aos jovens para apreensão do lugar em que vivem, a oficina de fotografia foi um instrumento para apropriação pessoal e coletiva. Momento em que as identidades puderam dialogar com uma dimensão espacial coletiva com o tempo e história pessoal, gerando a possibilidade de um olhar novo, de descoberta para o lugar e relações (re)conhecidas. A família, que é “o espaço privilegiado de sociabilidade nas chamadas ‘sociedades tradicionais’” (CARNEIRO, 2005: 3), afirma-se como elemento base de uma rede de relações de fundamental importância. No bairro da Pedra, a comunidade é regida pelo que Castel (1998) denomina “regulações da sociabilidade primária4”. O reduzido número de habitantes e o alto grau de parentesco faz com que os indivíduos participem de uma rede de relações que produz sentidos novos e revitalizam sentidos transmitidos, por meio de negociação permanente entre mudanças e permanências.

O reconhecimento dessas identidades tem ocorrido na relação com o turista, a alteridade que traz a presença forte do urbano, mas que pode adquirir configurações variadas e complexas de aproximações e afastamentos. Os jovens, ao citarem as pessoas de fora e ao estabelecerem relações de comparação e qualificação, estão se percebendo em relação a esse outro. Os valores que atribuem a eles e os valores que lhes são atribuídos permitem se (re)situar e buscar novos referenciais na composição de sua história, da família, do lugar.

Venturi e Abramo (2000) ressaltam duas concepções da atual juventude no Brasil, em que a primeira caracteriza o jovem ou como vítima ou como produtor dos problemas sociais do país. Na segunda visão, a juventude não tem mais um compromisso político e revolucionário como acontecia nos anos 60 e 70. Cabe discutir que jovem a sociedade deseja e constrói. Os participantes da oficina puderam, por meio das reflexões em conjunto, repensar questões ligadas à juventude e ao bairro rural onde moram. Puderam opinar sobre os assuntos por meio desse olhar que fizeram de suas vidas, pensando em o que é ser jovem no bairro da Pedra.

O Projeto Casa Rosa, no campo da juventude, tem trabalhado com a possibilidade de assunção de responsabilidades perante a vida. Na perspectiva do protagonismo juvenil de Costa (2003), é imprescindível a participação efetiva a fim de que se construa uma sociedae que respeite os direitos de cidadania e que aumente a participação democrática da sua população jovem.

A oficina de fotografia tornou-se, assim, um momento de facilitação da aproximação dos jovens com temas polêmicos que dizem respeito a eles próprios. Espera-se que seja possível desenhar propostas na continuidade do trabalho com eles para abrir novas vias e espaços para que possam experimentar novos lugares sociais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Talita Vecchia
E-mail: ddbarros@usp.br

Recebido em 18/03/2005
Aceito em 14/04/2005

 

 

 

* Terapeuta Ocupacional. Associação Bem Comum- Projeto Casa Rosa. Membro do Projeto Metuia, laboratório do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional.
** Universidade de São Paulo. Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional. Apoio CNPq (1994-96), Fapesp (2000-2001) e Casa das Áfricas (2003). Doutora em sociologia pela USP. Pesquisadora do NIME.
*** Terapeuta Ocupacional. Pesquisadora da Casa das Áfricas.
1 Parceria da Associação Bem Comum de São Paulo, do Projeto METUIA (grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura de redes sociais de suporte) da USP e da Associação (de moradores) da Pedra.
2 Pães, biscoitos e broas feitos pelo grupo de mulheres com ingredientes doados pela comunidade, que serão servidos no momento da festa.
3 Sua participação constante nas atividades dos outros jovens favorecia sua presença na oficina de fotografia. Teve, entretanto, mais dificuldade de analisar as situações.
4 Robert Castel, em seu livro, Metamorfoses da questão social (1998: 48), define a “sociabilidade primária” como “(...) os sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança e do trabalho e que tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições específicas.”

 

 

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