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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART III

 

Sartre e a questão do preconceito1

 

Sartre and the question of prejudice

 

 

Maria Luisa Sandoval Schmidt*

Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo faz uma apresentação comentada do texto A questão judaica de Jean-Paul Sartre, publicado, pela primeira vez, em 1946. Na abordagem do texto, seguindo os passos de Sartre, são examinadas as descrições do anti-semita ou do preconceituoso como “totalidade sincrética” e da situação do judeu na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Por fim, são apreciadas as propostas feitas por Sartre para o combate ao anti-semitismo.

Palavras-chave: Jean-Paul Sartre, Anti-semitismo, Preconceito, Situação.


ABSTRACT

This article makes a commented presentation based on the Jean-Paul Sartre’s text “Jewish Question”, which was published in 1946. Following Sartre’s concepts, it was examined the description of the anti-Semite or a person who have some prejudices such as “syncretic totality”, and also the description of the Jews situation in Europe after the World War II. At last, Sartre’s proposals concerning the fight against the anti-Semitism are analyzed in this article.

Keywords: Jean-Paul Sartre, Anti-Semitism, Prejudice, Aituation.


 

 

Introdução

O centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre convida à homenagem. Embora trata-se de um autor que foi avesso às homenagens pomposas, sua obra, como legado, continua provocante e, talvez, a melhor forma de homenagem seja aquela da atualização de um modo de interrogar cuja coragem interpela-nos no presente. O preconceito, por sua vez, persiste nas relações sociais, exigindo ações inspiradas num pensamento capaz de apreendê-lo em sua complexidade.

Portanto, parece pertinente um comentário sobre o texto A questão judaica, escrito em 1944 e publicado, pela primeira vez, em 1946, por se constituir numa reflexão sobre o anti-semitismo realizada no fim da Segunda Guerra Mundial, na França, no contexto de uma espécie de “ajuste de contas” com os colaboracionistas e na perspectiva de reconstrução de uma nação ferida, social e moralmente, em decorrência da ocupação nazista e das escolhas e ações de indivíduos e grupos sociais durante a guerra. Nesse contexto, o anti-semitismo, figura do preconceito que se manifesta no horror do holocausto, é tomado como tema a ser enfrentado de imediato, de forma inadiável, por aqueles que buscam contribuir para a reconstrução, oferecendo suas idéias como instrumentos para a construção de um mundo melhor e como armas no combate ao preconceito. Esta parece ser a intenção de Sartre ao escrever aquilo que pensava sobre a questão judaica, sem consultar documentos, por seu envolvimento pessoal e emocional com judeus e tendo, talvez, como interlocutores, Maurras e Céline, escritores como ele, influentes, porém, declaradamente, anti-semitas (SCLIAR, 1995).

O texto está construído em partes que dão conta, primeiro, de definir o anti-semitismo como uma “totalidade sincrética”, fazendo, a seguir, uma descrição dessa totalidade, focalizando o anti-semita ou o indivíduo preconceituoso. Depois, argumenta em favor da conceituação do judaismo como situação, preocupando-se em compreender essa situação. Por fim, Sartre não se furta a oferecer propostas de ações coletivas, políticas, contra o anti-semitismo, comprometendo-se com o combate efetivo ao preconceito. Ao terminar o texto com uma pauta de ações necessárias e urgentes, assinala que o destino de um único indivíduo implica o destino de todos e que a segurança de todos estará em risco enquanto um único judeu “puder temer por sua própria vida”

 

Preconceito e anti-semitismo: compreendendo o preconceituoso

Na introdução, Sartre procura mostrar que o anti-semitismo é uma “totalidade sincrética”, ou seja, uma escolha de si, por parte do indivíduo preconceituoso, que implica uma atitude global em relação aos seres humanos, à história e à sociedade: totalidade que é, a um só tempo, paixão e visão de mundo.

A definição do anti-semitismo como “totalidade sincrética” tem como ponto de partida a crítica à redução do preconceito a opiniões. Opiniões anti-semitas, ou, genericamente, opiniões preconceituosas, tendem a minimizar o problema, pois é como se as opiniões equivalecem a gostos e todas pudessem ser, “democraticamente”, aceitas. Tomar o preconceito como opinião é torná-lo inofencivo, pois, “gostos, cores, opiniões não se discutem” (Sartre, 1995: 8). Há, aqui, o perigo de a “liberdade de opinião” legitimar o preconceito.

Em vários momentos, Sartre exibe uma atitude de desconfiança na democracia, quando esta se apresenta implicada na idéia de tolerância condescendente com as diferenças.

O preconceito que equivale à opinião opera mediante duas facetas: uma subjetiva e outra objetiva. A faceta subjetiva considera o indivíduo como um composto de características no qual o anti-semitismo ingressa como um elemento entre outros, por exemplo, ser bom pai, erudito, sofisticado, generoso. A faceta objetiva atribui ao “objeto” do preconceito sua origem ou razão de ser, apoiando-se em estatísticas e porcentagens que “coisificam” os indivíduos sobre os quais recaem as opiniões preconceituosas, bem como aqueles que as professam. Nas palavras de Sartre:

“Dessa maneira, o anti-semitismo parece ser tanto um gosto subjetivo, que se combina com outros gostos para formar a pessoa, quanto um fenômeno impessoal e social, que pode ser expresso com números e médias e é condicionado por constantes econômicas, históricas e políticas” (SARTRE, 1995: 9).

A opinião serve à administração de coisas, mas não deveria ser aplicada a uma “doutrina que visa expressamente a pessoas específicas e tende a suprimir-lhes os direitos ou a exterminá-las” e, por isso, o anti-semitismo não pode ser protegido pelo direito à livre opinião.

Para o autor, o anti-semitismo não pode ser legitimado pela liberdade de expressão porque não se trata de um pensamento, mas sim de uma paixão.

O argumento da paixão é, para Sartre, basicamente, mental. Argumenta o anti-semita que deve haver algo de errado com os judeus, pois eles lhe incomodam fisicamente. Ora, diz Sartre, ninguém que não goste de tomate atribuiria ao tomate esse não gostar. Esse tipo de argumento ou de atribuição, diz o autor:

“(…) mostra-nos que o anti-semitismo, em suas formas mais moderadas, mais evoluídas, continua a ser uma totalidade sincrética que se exprime por discursos de aparência racional, mas que pode implicar até alterações corporais” (SARTRE, 1995: 10).

Portanto, numa comparação com a histeria, a origem do anti-semitismo é representacional, pois a repulsa chegaria ao corpo pela mente ou pela representação, não dependendo da experiência.

De fato, Sartre interroga vários anti-semitas, e suas “razões” são, invariavelmente, baseadas em atitudes preconcebidas que dispensam a “prova” da experiência. Alguns exemplos trazidos por ele são bastante elucidativos: um ator que atribui seu insucesso aos judeus que sempre lhe deram papéis menores nas peças em que atuou; um pintor que acha que a atitude crítica dos judeus instiga os empregados domésticos à desobediência; uma moça que sente ódio dos judeus porque um peleiro judeu estragou-lhe uma pele (e Sartre pergunta porque ela não passou a odiar os peleiros); e, o caso mais radical de um rapaz que ficou em 26° lugar em um concurso em que entraram apenas 12 cadidatos, entre eles um judeu, e que acusa esse judeu de ter-lhe roubado a vaga.

Esses exemplos ilustram uma idéia central na argumentação sartreana de que a noção de judeu dá sentido à experiência, sem que nela tenha origem. A experiência não cria a noção ou a representação de judeu mas, ao contrário, é ela que informa a experiência.

No plano da história, tanto quanto no plano social, a idéia de judeu parece ser essencial. Historicamente, parece mais importante a idéia que os agentes históricos constróem do judeu do que os “dados históricos”. Na esfera social o mesmo ocorre: se há uma queixa de que existem muitos advogados judeus, isso não acontece em relação aos normandos, por exemplo.

Não sendo uma opinião, o anti-semitismo é, da perspectiva sartreana, uma escolha ou a escolha de uma paixão e de uma visão de mundo. Essa escolha define o anti-semita como uma totalidade sincrética e não como um indivíduo que exibe, a despeito de outras qualidades ou outros defeitos, essa qualidade ou esse defeito de ser anti-semita.

Aqui cabe um comentário que visa qualificar a paixão e a visão de mundo que constituem a totalidade sincrética como escolha e não como determinismos, inatos ou adquiridos, contra aos quais um homem ou uma mulher nada podem fazer. Importante para essa clarificação é a noção do trabalho interior que modifica o homem. No livro Questão de método (Sartre, 1979), ao se referir à incomensurabilidade entre o vivido e o saber tal como tematizada por Kierkegaard, Sartre escreve:

“(…) não basta conhecer uma paixão pela sua causa para suprimi-la, é preciso vivê-la, opor-lhe outras paixões, combatê-la com tenacidade, enfim, trabalhar-se2” (SARTRE, 1979: 16).

“Entregar-se” a uma paixão ou “submeter-se” a uma visão de mundo é, ainda, escolher-se, pois, há sempre a possibilidade de trabalhar-se na direção de uma transformação de si que se opera na e pela transformação dessa paixão e dessa visão. É possível, então, entender o anti-semitismo como uma paixão que se escolhe.

Por isso, Sartre pode afirmar, ao terminar sua introdução à questão judaica que:

“Fica evidente que nenhum fator externo pode levar o anti-semita ao anti-semitismo. O anti-semitismo é uma escolha livre e total de si mesmo, uma atitude global que alguém adota não apenas para com os judeus, mas para com os seres humanos em geral, a história e a sociedade: é tanto uma paixão quanto uma visão de mundo (…). Mas os traços estão todos presentes e se comunicam uns com os outros” (SARTRE, 1995: 14).

O esclarecimento da questão judaica passa, portanto, pela tentativa de descrever a totalidade sincrética que é o anti-semita, fonte primeira, de acordo com Sartre, dessa questão.

Já se disse que o anti-semitismo é, para o autor, uma paixão. E essa paixão é o ódio ou a ira que, no entanto, não são desencadeados pelo desacato de um outro, mas que, ao contrário, se antecipam aos fatos e ao contato.

O anti-semita, ainda segundo Sartre, não responde ao objeto, mas escolhe odiá-lo, escolhendo viver, preferencialmente, num estado passional e não racional. O anti-semita escolhe o raciocínio falso que justifica sua paixão, seu ódio, sua ira. Como se ele odiasse, não o seu objeto, mas amasse o seu estado passional, o seu ódio. sua resposta engendra a descrição que interessa a uma apreensão do anti-semita mas que, de maneira mais geral, expande-se para o indivíduo preconceituoso em alguns aspectos importantes.

São três os elementos em torno dos quais Sartre concentrará sua descrição: a nostalgia da impermeabilidade, o desconhecimento de si e a mediocridade.

O anti-semita escolhe-se anti-semita porque tem a nostalgia da impermeabilidade. Vale a pena transcrever o que escreve Sartre sobre essa nostalgia. Ele diz:

“O homem racional busca angustiosamente a verdade, está ciente de que seus raciocínios3 são apenas prováveis, de que outras considerações vão colocá-los em dúvida; nunca sabe muito bem para onde está indo; é “aberto”, pode até ser tomado por hesitante. Mas há pessoas que são atraídas pela constância das pedras. Querem ser maciças e impenetráveis, não querem mudar – pois aonde a mudança as levaria? Trata-se de um medo primordial de si mesmos e um medo da verdade. E o que as assusta não é o teor da verdade, do qual aliás nem desconfiam mesmo, mas sim a forma do verdadeiro, esse objeto de contornos indefinidos. É como se a própria existência dessas pessoas estivesse permanentemente em suspenso. Mas elas querem opiniões adquiridas, querem opiniões inatas; como têm medo de raciocinar, desejam um modo de vida no qual o raciocínio e a indagação tenham papel apenas subalterno, no qual só se busque o que já se descobriu, no qual o que já é nunca se transforme. Para isso, resta apenas a paixão. Só um forte preconceito (une forte prévention sentimentale) pode produzir uma certeza fulgurante, só ele pode subjulgar o raciocínio, só ele pode permanecer impermeável à experiência e durar toda uma vida. O anti-semita escolheu o ódio porque o ódio é uma fé; antes de mais nada, preferiu desvalorizar as palavras e as razões. Agora se sente à vontade, e as discussões sobre direitos dos judeus lhe parecem fúteis e levianas – pois logo de início ele já se colocou em outro terreno. Se, por cortesia, consente em defender por um instante o seu ponto de vista, ele se presta a fazê-lo, mas na realidade não o faz e simplismente tenta projetar no plano do discurso a sua certeza intuitiva” (SARTRE, 1995: 15).

Interessante notar como, nessa citação, Sartre focaliza o medo da forma da verdade e não propriamente de seu conteúdo: o preconceituoso teme o regime precário e transitório da verdade e torna-se, também por essa razão, impermeável e conformista. A impermeabilidade torna o diálogo impossível. Quando se dispõem a conversar, os preconceituosos empurram para o interlocutor o dever de usar bem as palavras, enquanto eles próprios brincam. Não querem convencer com bons argumentos, mas intimidar e desorientar o interlocutor. A má-fé não permite o diálogo.

A impossibilidade do diálogo indica, também, que a impermeabilidade à experiência e à razão não é fruto da convição, mas, ao contrário, que a convição é que é fruto da impermeabilidade à experiência e à razão.

Além de impermeável, o anti-semita procura e quer ser terrível. Quer ser o medo que provoca nos outros, fugindo da consciência íntima de si próprio. Pois, não percebendo seu medo da precariedade da verdade, da ausência de determinismos e da mudança, projeta seu temor sobre um outro.

Por fim, a terceira caracterísca chama-se mediocridade e diz respeito à impossibilidade de ser anti-semita sozinho. Para Sartre: “A frase ‘odeio os judeus’ é dessas que as pessoas pronunciam em grupo, pronunciando-a, ligam-se a uma tradição e a uma comunidade: a dos medíocres” (SARTRE, 1995: 17).

Essa comunidade é bastante especificada por Sartre, uma vez que seu interesse pela questão judaica recai sobre a situação da França no pós-guerra. São os franceses que podem desprezar a inteligência ou os bens materiais e culturais dos judeus porque têm um bem maior, o idioma e o solo francês dos quais são proprietários há milhares de anos. Podem, também, se sentir roubados pelos judeus uma vez que são proprietários do idioma e do território que com eles compartilham. O anti-semitismo aparece, aos olhos de Sartre, como uma espécie de esnobismo dos “pobres”, de espírito e de bens. Esnobismo que permite a afirmação de uma superioridade de raiz e inata.

“O anti-semitismo não consiste apenas no prazer de odiar; acarreta também prazeres positivos: tratando o judeu como ser inferior e pernicioso, estou também afirmando que pertenço a uma elite. E esta, muito diferentemente das elites modernas que se baseiam no mérito e no trabalho, assemelha-se em tudo a uma aristocracia de sangue. Não preciso fazer nada para merecer minha superioridade, e não há como perdê-la. É dada para sempre – é uma coisa 4” (SARTRE, 1995: 20).

Na mediocridade, ainda, a mesma dinâmica anteriormente descrita em relação à verdade aparece em relação aos valores. Os valores, assim como a verdade, estão sempre em questão, sempre em estado de precariedade. O anti-semita, assim como foge à auto-consciência, foge à responsabilidade, escolhendo valores petrificados, consagrados, em vez de inventá-los.

A mediocridade marca a escolha do anti-semita que: “(…) escolhe o irremediável por medo da liberdade, a mediocridade por medo da solidão, e por orgulho faz desta irremediável mediocridade uma aristocracia petrificada” (SARTRE, 1995: 20).

A escolha anti-semita produz efeitos sociais e políticos em correspondência com as características elencadas e discutidas por Sartre.

A oposição ao judeu, no caso francês, mas não exclusivamente neste caso, ao mesmo tempo que encobre as diferenças sociais numa sociedade hierarquizada, construindo a imagem de uma sociedade igualitária de franceses, une as diferentes classes sociais em torno da nacionalidade.

O anti-semitismo dissimula a luta de classes e é, segundo Sartre, também, uma forma dissimulada de luta do cidadão contra o poder democrático. Sartre refere-se, aqui, àquele cidadão medíocre que busca um poder totalitário que lhe tire a responsabilidade de pensar e de agir por si próprio. Para o autor, esse cidadão é levado à indisciplina, em suas manifestações criminosas contra judeus, por amor à obediência.

As organizações anti-semitas, por sua vez, são irresponsáveis e destrutivas. Nas palavras de Sartre:

“As associações anti-semitas não querem criar nada, recusam-se a assumir responsabilidades, teriam horror a apresentar-se como um segmento da opinião pública francesa, pois nesse caso precisariam estabelecer um programa e buscar meios de ação legal. Preferem apresentar-se como a expressão absolutamente pura e absolutamente passiva do sentimento do país real5 em sua indivisibilidade” (SARTRE, 1995: 23).

O anti-semitismo adere à ordem social, desobedecendo à ordem política. Sua pauta política, se assim pode-se dizer, difere fundamentalmente daquela do revolucionário, pois enquanto esse quer mudar a sociedade, podendo, até mesmo, contar com o auxílio das classes privilegiadas quando elas, de boa fé, querem participar do intento de mudar a sociedade, a tarefa anti-semita é destrutiva: “não se trata de construir uma sociedade, mas apenas de purificar a já existente” (SARTRE, 1995: 29-30).

Nesse contexto do comentário sobre as dimensões sociais e políticas, Sartre introduz as figuras do sadismo e do maniqueísmo como modos complementares, mutuamente implicados, de exercício de poder. Pelo maniqueísmo, de cunho religioso, o mundo e a história são apreendidos pela divisão entre o bem e o mal, divisão pela qual se constrói uma interpretação dos acontecimentos históricos em que se busca “a presença de um poder maligno”, os judeus, que devem ser destruídos. Para esse “dualismo ingênuo”, “trata-se apenas de suprimir o Mal, pois o Bem já está dado” (SARTRE, 1995: 30). Ocupar-se com o Mal, desobriga o anti-semita de questionar o Bem. Sua tarefa destrutiva volta-se para o Mal, “lavando as mãos na sujeira”: descompromete-se em relação à construção do Bem e sacia-se nos gestos criminosos de difamação e agressão aos judeus e suas instituições. Sartre identifica no anti-semitismo uma “curiosidade fascinada pelo Mal” que equivale ao sadismo. Sadismo que se traduz no exercício de poder sobre um mais fraco, em nada temível por si e desarmado.

O percurso empreendido por Sartre para descrever o anti-semita, e que aqui pôde-se apenas palidamente resumir, encerra-se com um grande parágrafo de síntese que convém reproduzir.

“Agora estamos em condições de entender o anti-semita. É um homem que tem medo. Certamente não dos judeus; mas de si próprio, de sua consciência, de sua liberdade, de seus instintos, de suas responsabilidades, da solidão, da mudança, da sociedade e do mundo – de tudo exceto dos judeus. É um covarde que não quer confessar sua covardia; um assassino que reprime suas tendências homicidas sem conseguir refreá-las e que, no entanto, só se atreve a matar em efígie ou no anonimato da turba; um descontente que não ousa revoltar-se por medo das conseqüências da revolta. Aderindo ao anti-semitismo, não adota apenas uma opinião, mas escolhe também a pessoa que quer ser. Escolhe a constância e a impermeabilidade da pedra, a irresponsabilidade total do guerreiro que obedece a seus chefes – e ele não tem chefe. Escolhe não adquirir nada, não merecer nada, que tudo lhe seja dado de nascença – e ele não é nobre. Finalmente, escolhe que o Bem já esteja pronto, fora de questão, ao abrigo de qualquer perigo; não se atreve a encará-lo por medo de ser levado a contestá-lo e a procurar outro. Nisso, o judeu não é mais do que um pretexto: em outro lugar, o negro, o amarelo servirão. A existência do judeu simplesmente permite ao anti-semita sufocar suas angústias no nascedouro, persuadindo-se de que seu lugar no mundo já estava determinado e o esperava e de que, pela tradição, ele tem o direito de ocupá-lo. O anti-semitismo é, em resumo, o medo em face da condição humana. O anti-semita é o homem que quer ser rocha implacável, torrente furiosa, raio destruidor – tudo menos homem” (SARTRE, 1995: 36).

Essa triste figura é, de maneira exemplar, apresentada no conto A infância de um chefe, no qual o personagem Lucien torna-se anti-semita numa espécie de rito de passagem que sela sua adesão ao destino e ao lugar de chefe que lhe estava reservado (SARTRE, 2005).

A questão judaica como situação A perspectiva sartreana enlaça escolha e situação: o homem é um ser-em-situação e escolhe-se em situação.

Já se viu como o anti-semita se escolhe preconceituoso e como essa escolha constitui aquilo que o anti-semita é em sua totalidade. A escolha anti-semita configura, por sua vez, a situação do judeu: saber o que é o judeu exige a apreciação de sua situação.

Para Sartre, os judeus não podem ser definidos como raça, e não é possível atribuir-lhes características psicológicas ou de caráter distintivas. Não constituíam, à época em que escreveu, uma comunidade nacional, pois o estado de Israel não havia sido criado, tampouco é possível identificá-los como comunidade religiosa. Até mesmo uma comunalidade histórica e cultural teria, ainda de acordo com Sartre, se perdido, à medida que os judeus se dispersaram pelos quatro cantos do mundo. Há todo tipo de judeu, e as características generalizadas são atribuições simplificadoras dos outros. São essas atribuições que unem os judeus numa mesma situação. Para ele, esta é sua tese central, o que define o judeu contemporâneo é a sua situação, tal como configurada pelas ações e representações dos outros (não-judeus).

“Não é nem o passado, nem a religião, nem a terra o que une os filhos de Israel. Se têm um vínculo comum, se merecem todos o nome de judeu, é porque compartilham uma situação de judeu, ou seja, é porque vivem numa comunidade que os considera judeus” (SARTRE, 1995: 45).

A indagação pertinente, nesse caso, não é aquela sobre o que é o judeu, mas aquela sobre o que a consciência cristã fez do judeu. A “maldição” religiosa (o assassinato de Jesus Cristo) e a “maldição” econômica (dedicar-se a atividades de comércio consideradas espúrias) são construções históricas, empreendidas pelos outros. A situação do judeu é, portanto, aquela das construções históricas que o colocam num lugar instável e inconstante em que depende da opinião dos outros que sempre exigem dele muito mais do que ousariam exigir de si e em que depende das paixões e dos humores da sociedade “real” para viver, trabalhar e ter direitos reconhecidos (SARTRE, 1995).

Para o judeu, ainda de acordo com Sartre, a escolha configura modos de responder à situação: autêntica ou inautenticamente. “Ser judeu é ser lançado e ‘abandonado’ na situação judaica e, ao mesmo tempo, ser responsável em sua pessoa pelo destino e pela própria natureza do povo judeu.” (SARTRE, 1995: 58).

Na autenticidade implica a escolha radical da situação em que se está e a inautenticidade na negação dessa situação. Na inautenticidade responde-se à situação fugindo dela, negando-a. Mas as vias de escape da situação judaica são iniciativas e não qualidades inatas. O anti-semita, porém, irá costurá-las para definir o judeu em geral. Dada a situação, as iniciativas para enfrentá-la ou para responder a ela são tomadas como características inatas ou como determinantes do caráter e do modo de ser do judeu. Para Sartre, a noção de situação permite, justamente, compreender os modos autênticos e inautênticos de responder e, com isso, substituir os traços gerais da mitologia anti-semita – avareza, gosto pelo dinheiro, racionalidade acima dos afetos e da intuição, submissão, humildade, inteligência – por “algumas verdades mais fragmentárias e, no entanto, mais precisas” (SARTRE, 1995: 61).

A inautenticidade pode ser apreendida como um “deixar-se envenenar” pela mitologia anti-semita, respondendo a ela pela via da reflexibilidade, da assimilação e do masoquismo.

Na reflexibilidade prática, o judeu enxerga-se agindo ou pensando, numa busca por antecipar-se ao olhar crítico do outro, tentando ver-se com os olhos dos outros.

Amóz Oz, escritor israelense, recolhe, em seu livro de memórias De amor e trevas, o depoimento de sua tia Sônia sobre sua infância, nos anos 20 do século XX, na Europa Oriental. O trecho a seguir parece abrir, com rigor poético, essa atitude descrita por Sartre como reflexibilidade.

“O medo que pairava sobre toda casa judia, o medo do qual quase nunca se falava, era inculcado apenas de forma sutil, como veneno, gota a gota, o tempo todo. Vivíamos o pavor de talvez não sermos pessoas limpas, adequadas; quem sabe não éramos mesmo barulhentos demais, oportunistas, fura-filas, espertos demais, loucos por dinheiro. Quem sabe se nossas boas maneiras não eram assim tão boas. Havia um terror difuso, o terror de, D’us nos livre, não causar boa impressão aos góim, e isso os deixar encolerizados a ponto de, por essa razão, fazerem novamente conosco coisas tão horríveis que melhor seria nem pensar nelas” (OZ, 2005: 223).

Na assimilação, que implica uma negação da origem judaica, haveria o desejo de ser reconhecido como homem pelos outros homens, de ser como todo mundo, como qualquer um. O fascínio pelo cristão, ao qual se quer aderir, não se deve a uma admiração pelas suas qualidades, mas ao fato de ele representar o anonimato, a humanidade sem raça. O masoquismo apresenta a face complementar da irresponsabilidade anti-semita.

O masoquismo encena o desejo de ser tomado como objeto, fugindo da responsabilidade de ser o judeu que se é. O essencial no masoquismo é:

“Essa tentação de evadir-se de si mesmo e acabar marcado para sempre por uma natureza e uma sina judaicas que o dispensam de toda responsabilidade e de toda luta” (SARTRE, 1995: 70).

Essas figuras da inautenticidade são para Sartre vias de escape nas quais o racionalismo e o intelectualismo afirmam-se como paixão pelo universal e como amor aos homens; o pensamento como um desencarnar-se que iguala todos os homens; o espírito crítico como combate à irracionalidade e à intuição, como busca de construção da união entre os homens. São, na verdade, o apego a um universalismo que aspira à integração, mas, ao mesmo tempo, nega ou procura evadir-se da consideração sobre o fato de que foi a sociedade que o fez judeu e de que o social é, sempre, afirmação de diferenças.

Para Sartre, é no plano social que a inquietação judaica se manifesta, “pois é entre os homens que se sente desamparado”. O judeu é, portanto:

“O homem social por excelência, já que seu tormento é social. O que fez dele judeu foi a sociedade, e não a vontade divina; foi ela que deu origem ao problema judaico, e, como o judeu se vê obrigado a definir-se totalmente nas perspectivas desse problema, é no social que ele define sua própria existência. Seu projeto constitutivo de integrar-se na comunidade nacional é social; social é o esforço que faz para pensar-se a si mesmo, ou seja, para situar-se entre outros homens; sociais são suas alegrias e seus pesares – porque é social a maldição que pesa sobre ele. Por isso, se lhe reprovam sua inautenticidade metafísica e lhe dizem que sua eterna inquietude faz-se acompanhar de um positivismo radical, também é necessário lembrar que tais críticas voltam-se contra quem as formula: o judeu é social porque o anti-semita o fez assim” (SARTRE, 1995: 85).

O dilema do ter que se escolher judeu, o dilema da autenticidade e da inautenticidade é “produto artificial de uma sociedade capitalista (ou feudal) e cuja única razão de ser está em servir de bode expiatório para uma coletividade ainda pré-lógica” (p. 86).

Na autenticidade, o judeu escolhe-se judeu e abandona qualquer idéia de universalidade do homem e, com isso, foge às descrições: “ele é aquilo que faz de si”.

Porém, a autenticidade, como resposta à questão judaica, oferece uma solução no plano ético, mas não serve de solução no plano social e político.

 

Propostas sartreanas

As considerações de Sartre sobre a ação política na abordagem da questão judaica são coerentes com sua idéia fundamental de que o anti-semitismo está na origem dessa questão. A integração não depende dos judeus, mas da supressão do anti-semitismo.

Sartre propõe o liberalismo concreto como objetivo, definindo-o nos seguintes termos:

“Entendemos com isso que todas as pessoas que colaboram através de seu trabalho para a grandeza de um país têm pleno direito à cidadania. O que lhes dá esse direito não é a posse de uma ‘natureza humana’ problemática e abstrata, mas a participação ativa na vida social. Isso significa, portanto, que os judeus, assim como os árabes ou os negros, têm direito de intervir na empreitada nacional porque também são responsáveis por ela” (SARTRE, 1995: 92).

Se o liberalismo concreto é um objetivo, quais seriam os meios de atingi-lo? Não se trata de atuar sobre o judeu, mas de eliminar o anti-semitismo. Isso deriva na pergunta sobre como combater o anti-semitismo.

A propaganda e o ensino, especialmente destinado às crianças, é um recurso que não deve ser descartado, assim como o uso de leis permanentes que proibam declarações e atos difamatórios. A propaganda e o ensino, porém, não bastam por si e as leis esbarram no fato de que os anti-semitas não costumam respeitá-las num regime democrático.

A revolução socialista seria o caminho mais efetivo, uma vez que mudaria a situação do anti-semita, permitindo-lhe fazer outras escolhas. O anti-semita busca uma união nacional contra a divisão da sociedade de classes, reduzindo, contudo, a divisão da sociedade à divisão entre judeus e não-judeus. Sartre acredita que a abolição da sociedade de classes conduz a uma situação capaz de gerar outras escolhas.

Por último, considera, ainda, que uma liga contra o anti-semitismo composta por não-judeus, legitimaria a idéia de que o problema judaico não é dos judeus e sim dos não-judeus, bem como seria uma organização política capaz de articular-se imediatamente com as vantagens de: (1) atuar na propaganda e no ensino nas esferas nacional e internacional; (2) organizar numa coletividade ativa os adversários do anti-semitismo, atraindo aqueles hesitantes que não pensam nada sobre a questão judaica, e (3) oferecer um exemplo concreto de comunidade diferente daquela oferecida pelas idéias nacionalistas.

Em favor da liga, Sartre pensa que:

“A causa dos israelitas já estaria ganha se seus amigos arranjassem para defendê-los um pouco da paixão e da perseverança que seus inimigos usam para desgraçá-los” (SARTRE, 1995: 96).

 

Referências

OZ, Amóz. De amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.         [ Links ]

SARTRE, Jean-Paul. Questão de método. São Paulo: Difel, 1979.        [ Links ]

_______. A questão judaica. São Paulo: Ática, 1995.        [ Links ]

_______. “A infância de um chefe”. In: O muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SCLIAR, Moacyr. “Apresentação”. In: SARTRE, J. P. A questão judaica. São Paulo: Ática, 1995.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Luisa Sandoval Schmidt
E-mail: maluschmidt@terra .com.br

Recebido em 20/03/2005
Aceito em 19/04/2005

 

 

 

* Instituto de Psicologia - USP.
1 Este artigo foi apresentado no Seminário Perspectivas Teóricas sobre o Preconceito, promovido pelo Laboratório de Estudos sobre o Preconceito (LAEP) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
2 O grifo aparece no texto original de Sartre
3 No texto de Sartre, recorre a palavra raciocínio com o sentido de pensamento. Pode ter sido uma escolha da tradução, porém é importante salientar que não parece se tratar da idéia de raciocínio como cálculo, mas sim como trabalho do pensamento.
4 Grifo no original
5 Grifo no texto original.

 

 

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