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Imaginário

Print version ISSN 1413-666X

Imaginario vol.12 no.12 São Paulo June 2006

 

PARTE I

 

Um minuto de grito, um lugar de paz: mulheres jovens e o direito à palavra

 

One minute of screaming, a peaceful place: young women and their right to talk

 

 

Samantha Freitas Stockler das Neves1

Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pesquisando a participação de mulheres em grupos juvenis entre 1999 e 2001, pude perceber que os movimentos hip-hop e anarcopunk, apesar de se constituírem como espaços predominantemente masculinos, eram ainda espaços de relações menos hierarquizadas, onde havia uma aceitação dessas jovens mulheres, ainda que precária. ‘Aberta a brecha’, elas apropriavam-se dessa aceitação e transformavam-na em um discurso da valorização do “ser mulher”, denunciando as discriminações e relações desiguais que sofriam no próprio movimento, buscando construir novas relações – a partir de coletivos de mulheres ou em coletivos mistos, abrindo espaços para a atuação de outras mulheres, rompendo com os modelos tradicionais de socialização que sofreram, construindo também movimentos diferentes, em que os homens jovens estavam tendo que aprender que o poder poderia ser distribuído mais igualitariamente.
A importância de sua ‘juventude’ estava mais em sua participação nos estilos hip-hop e anarcopunk – estilos que são juvenis –, participação que produziu os significados de gênero e raciais que elas vinham construindo, fundamentais na constituição de suas identidades.

Palavras-chave: Juventude, Mulheres jovens, Estilos juvenis, Hip-hop, Anarcopunk, Relações de gênero, Relações raciais.


ABSTRACT

Researching women’s participation in youth groups, from 1999 to 200, I could notice that hip-hop movement and punk-anarchist movement, despite of being masculine spaces, were spaces of less unequal relations, where those young women were accepted, but in certain restricted ways. They ‘caught’ this acception and transform it into a discourse of giving value to the “being woman”, denouncing discriminations and unequal relations in the movements, building new relations – into groups of women or mixed groups –, opening spaces for other women, breaking traditional models of socialization, building also diferent movements, in which young men were having to learn that power could be more equally distributed.
The importance of their ‘youth’ was more in their participation in hip-hop and punk-anarchist styles - that are youth styles -, participation that produced gender and racial meanings that they were building, fundamental to the constitution of their identities.

Keywords: Youth, Young women, Youth styles, Hip-hop, Punk-anarchist, Gender relations, Racial relations.


 

 

“E eu sempre dedico um minuto de grito pra todas essas mulheres, e eu grito muito quando eu danço, porque por que silenciar se a gente pode gritar? Eu acho que toda mulher tem que olhar pra si e despertar a Onijá que ela tem dentro dela. A história das mulheres é uma história de luta, de muita luta, muita luta. E eu quero sempre dizer pras pessoas que elas acreditem sempre muito em si, pras mulheres acreditarem muito em si.” (Fernanda)

O presente artigo é fruto de alguns esforços de reflexão com base em meu trabalho de iniciação científica “A participação de mulheres em grupos juvenis”, desenvolvido sob a orientação da Profa. Marília Pontes Sposito, na Faculdade de Educação da USP, entre agosto de 1999 e setembro de 2001, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em que eu buscava perceber como as mulheres organizavam-se nos grupos juvenis, quais as questões que sua participação produzia, o sentido dessa participação para seu cotidiano e para as demais esferas de sua vida (escola, trabalho, família)2, se havia conflitos em relação a esta participação com os homens no interior dos grupos, no caso dos coletivos formados por homens e mulheres, e no interior do movimento do qual faz parte o grupo, no caso dos coletivos formados só por mulheres.

Partia de um incômodo, pois participava na época de fóruns de juventude em São Paulo e, posteriormente, do movimento estudantil na universidade, como também do movimento de mulheres, espaços onde convivia com outras jovens, bastante atuantes em grupos ligados à cultura de rua ou militantes de movimentos sociais. No entanto, percebia que, por aqueles autores que estudam os estilos juvenis e as formas de organização, atuação e expressão juvenis, as mulheres jovens são quase sempre descritas como coadjuvantes (namoradas ou companheiras dos rappers, funkeiros, punks etc.), ou apontava-se a ausência feminina, mas, como não era a proposta tratar essa questão, os autores não se aprofundavam. Duas das poucas exceções são SILVA (1995) e CASTRO-POZO (1996).

Por outro lado, não encontrava, na época, estudos de gênero que tratassem dessas expressões culturais juvenis. As mulheres jovens, quando estudadas sob o enfoque das relações de gênero, eram-no por meio da temática da gravidez na adolescência ou, casos mais raros, temáticas relativas ao mundo do trabalho ou estudos das relações familiares entre as gerações nas classes trabalhadoras, trabalho, escolarização e significados de gênero (Dauster, 1992; Duque-Arrazola, 1997; Heilborn, 1997; entre outras).

Para compreender a participação das mulheres nos grupos juvenis ligados à cultura de rua em São Paulo, escolhi dois estilos - hip-hop e anarcopunk, observei algumas atividades, li alguns materiais produzidos e entrevistei participantes dos grupos Rap Atual Júnior (Joana e Luís)3, Crítica Negra (Carolina, Carina e Nina), Obirin Onijá (Fernanda e Carla), coletivo de mulheres do movimento anarcopunk (MAP) e Gláucia, participante do MAP que não estava em nenhum coletivo.

 

Estilos juvenis, movimento hip-hop e movimento anarcopunk

Em um esforço de síntese inicial, podemos dizer que vários estudos têm buscado superar a análise bastante difundida pelo senso comum de que a juventude dos anos 80, 90 e 2000 era/é incapaz de pensar a sua realidade criticamente, por meio de olhares que não busquem enxergar nas novas formas de organização e participação juvenil as mesmas questões e respostas da geração anterior. A atuação em grupos juvenis culturais tem sido uma forma fundamental de organização de muitos jovens das camadas populares nas grandes cidades, que se articulam em torno da música, de determinados modos de se vestir e se mostrar no espaço público urbano, construindo identidades com base nesses estilos. Classificar tais formas de organização de “alienadas”, por não configurarem projetos de análise e transformação social, como o eram projetos de grupos estudantis, notadamente de classe média, nas décadas de 60 e 70, é transpôr para outro momento histórico um mesmo referencial do que seja “essencialmente” juvenil, é atribuir à “juventude” um potencial sempre transformador, universal e atemporal. Ao mesmo tempo, configurar tais estilos, em especial o hip-hop e o punk, como movimentos de profundo questionamento da ordem estabelecida e, por conseqüência, transformadores, reproduz o mesmo equívoco teórico: “encaixá-los” nessa “essência juvenil” de inconformismo, rebeldia e utopia (Abramo, 1994). Incomodados com essa fixação, alguns autores no campo da Sociologia buscaram resgatar as dimensões sociais e históricas das expressões juvenis, definindo juventude como uma categoria histórica (Abramo, 1994; Costa, 1993; Dayrell, 1999; Kemp, 1993; Sposito, 1994, entre outros).

Além das críticas à suposta ausência dos jovens nas discussões políticas e sociais, a juventude dos anos 80 e 90 (e 2000) vinha sendo tematizada com grande freqüência, em especial pela mídia, enquanto fonte de “problemas sociais” (violência de gangues e galeras, rebeliões nas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei etc.). (ABRAMO, 1998; SPOSITO e HADDAD, 1998).

Essas percepções da juventude como a-histórica, a noção de “uma juventude”, tem como um dos pressupostos o seu entendimento como uma fase de transição para a vida adulta, datada de características universais. Por essas razões, tem-se buscado o reconhecimento da diversidade social e cultural que caracteriza a juventude brasileira (SPOSITO, 1998).

Admitindo-se, portanto, a necessidade de orientações teóricas que considerem a heterogeneidade juvenil e também a percepção de que os jovens têm-se organizado coletivamente, embora de formas distintas das tradicionais, a análise de Helena Abramo dá-nos pistas interessantes sobre as manifestações e as formas de atuação dos grupos juvenis informalmente organizados e ligados à cultura e ao lazer. Para Abramo, a pista estaria contida na própria designação, um pouco pejorativa, que batizou esses fenômenos: “espetacular”. Tais grupos vêm realizar um aparecimento na cena pública, no centro da cidade; vêm se expôr, apresentar suas questões por meio do espetáculo em praça pública, produzindo, assim, uma intervenção crítica no espaço público (ABRAMO, 1994).

É profícuo também adotar a noção de “estilos juvenis”, desenvolvida por Juarez Dayrell: um conjunto de significados construídos por segmentos juvenis, reconhecidos entre os jovens por seus próprios pares e também “socialmente” - embora tais estilos sejam quase sempre entendidos como um desvio por aqueles que deles não compartilham, construtores de identidades por meio da música, dos modos de vestir, de intervir no espaço público, dos signos compartilhados (DAYRELL, 2001).

Passo, a seguir, a apresentar os grupos investigados, buscando situar rapidamente, por intermédio da bibliografia, as principais características dos movimentos [assim denominados por seus participantes] hip-hop e anarcopunk.

O rap surgiu nos EUA no início da década de 70, a partir da soul music e do funk. Suas primeiras manifestações artísticas foram as apresentações dos DJs (disc-jóqueis) e MCs (mestres de cerimônia) nas ruas do South Bronx e, posteriormente, também nos guetos negros e caribenhos localizados na região norte da cidade de Nova Iorque. Foi da Jamaica que veio a técnica dos sound-systems, que eram usados por jovens para promover grandes festas nas ruas da cidade de Kingston nos anos 60. Ao mesmo tempo em que ocorriam as festas de rua do Bronx, surgiu a dança (o break) e o grafite que, com o rap, compõem o hip-hop (TELLA, 2000). Esse estilo espalhou-se por diversos países como uma manifestação artística dos jovens negros e pobres que vivem nas periferias das grandes cidades, com um caráter de denúncia da situação vivida por eles, o assédio constante dos grupos ligados ao tráfico de drogas, à violência policial, à pobreza, às desigualdades sociais. No Brasil, o hip-hop teve sua origem em São Paulo, nos ensaios de break na estação de metrô São Bento, aglutinando jovens de diversos bairros que, gradativamente, passaram também a escrever suas letras. Do centro, o hip-hop começou a se espalhar para diversos bairros periféricos na Grande São Paulo (SPOSITO, 1994).

Um dos grupos que surgiu nesse contexto é o Rap Atual - o nome do grupo teve o acréscimo “Júnior” quando nasceu o filho de Joana, que tem esse nome. Joana e os irmãos Luís e Leandro conheceram-se em um dos bailes black da zona sul de São Paulo e, na época da pequisa, o grupo já tinha dez anos. No início desta Joana tinha 24 anos, Luís, 23, e Leandro, 25, todos são negros4. Foram fundadores da Posse Ritual Democrático de Rua Negro (RDRN), ligada ao movimento hip-hop, que já reuniu 42 grupos (cerca de 250 pessoas, das quais apenas oito eram mulheres) de um bairro periférico da zona sul da cidade. Na época da pequisa, os grupos que integravam a posse eram os que freqüentavam uma Casa de Cultura também da zona sul, estabelecimento municipal no qual, por dez anos, eles conseguiram manter um programa semanal para os grupos ligados ao movimento se apresentarem - o programa Rádio 10 acontecia todas as sextas-feiras (com exceção da primeira do mês) das 19h às 22h, e era organizado pelo Rap Atual Júnior, enfrentando uma série de dificuldades por falta de apoio do poder municipal no período - Joana era MC (mestre de cerimônias, organizava a programação e apresentava os grupos) e seus “irmãos de coração” e DJs do grupo, Luís e Leandro, faziam a discotecagem. O grupo de rap Crítica Negra, na época inicial da pesquisa, por sua vez, tinha oito meses naquela formação, com a DJ Nina, mas as irmãs Carolina e Carina já estavam juntas há dois anos e participavam de atividades do movimento hip-hop há seis anos. Entrei em contato com o Crítica Negra por intermédio de Joana, pois elas costumavam se apresentar na Casa de Cultura. Na época da pequisa, Carolina e Carina, negras, tinham 20 e 18 anos, respectivamente, e Nina, branca, tinha 19 anos.

Quanto ao movimento anarcopunk, para compreendê-lo é necessário compreendermos em primeiro lugar o punk, do qual se originou. A cultura punk surgiu nos subúrbios ingleses no fim da década de 70 e foi rapidamente apropriada por jovens dos subúrbios das grandes cidades em outros países, filhos de operários, atingidos pelo desemprego. No Brasil, constituiu-se, principalmente, em São Paulo, na região do ABC e na Zona Leste, com a circulação de discos e revistas especializadas entre os jovens (ABRAMO, 1994; COSTA, 1993). A cultura punk é talvez a forma mais explícita da intenção comum nos chamados estilos juvenis de se utilizarem (seus corpos, suas roupas, as músicas que ouvem e produzem etc.) como emblema - devolvem à sociedade o lixo que ela própria gera, e representam esse lixo em seus moicanos, nos objetos pendurados em suas roupas, nas roupas velhas e rasgadas; punk é um termo inglês que significa lixo, coisa podre. (ABRAMO, 1994; PEDROSO e SOUZA, 1983).

No início da década de 80, divergências entre diferentes segmentos punk produziram a constituição de grupos que foram se tornando autônomos; é desse processo que surgiram os Carecas do ABC (COSTA, 1993). Ao mesmo tempo, alguns segmentos punk foram se aproximando de idéias e posturas anarquistas, processo a partir do qual surgiriam depois, no fim da década de 80, em São Paulo, os anarcopunks, que se organizam em um “movimento”. (KEMP, 1993).

A Obirin Onijá5 – utilizo-me do feminino porque é dessa forma que elas se referiam ao coletivo, assim como muitos dos coletivos que fazem parte do movimento anarcopunk –, tinha um funcionamento fluido, por meio de redes de contato, discussão e vivência, sem que houvesse necessariamente atividades desenvolvidas o tempo todo (encontros, reuniões, ensaios etc.). O grupo nasceu como uma rede, durante um encontro feminista. Pela necessidade de estarem mais tempo juntas, decidiram formar um coletivo. Eram cerca de seis obirins, assim elas se designavam – das quais nem todas eram anarcopunks, e encontravam-se para discussões, vivências – em algo que parecia uma constante “auto-reflexão”, e estudos. Estabeleciam relações muitas vezes conflituosas com os homens do movimento, que pareciam não ter aceitado facilmente que elas formassem um coletivo só de mulheres. Fernanda e Carla, participantes da Obirin, são negras e, na época da pesquisa, tinham 21 anos. Mediante indicações de Carla, entrei também em contato com Gláucia, que participava do MAP de maneira mais difusa, sem pertencer a nenhum coletivo. Gláucia, negra, tinha 26 anos na época da pesquisa.

Todos os entrevistados moravam em bairros periféricos ou municípios da Grande São Paulo6.

 

Construindo identidade(s), construindo projetos:a centralidade da participação nos grupos para suas vidas

Para melhor compreendermos os sentidos que a participação dos grupos têm para essas/esses jovens, é necessário entendermos que essa participação constitui, talvez, a principal fonte que alimenta o processo de sua formação identitária, ao menos durante o período em que estão nos grupos/movimentos. Ressalto aqui, sinteticamente, a noção de identidade como trabalhada por Cláudia Vianna e Juarez Dayrell, a partir das contribuições teóricas de Alberto Melucci: identização, um processo contínuo de construção individual e coletiva, com conotação estática e dinâmica; um campo – múltiplo, em um sistema dinâmico de relações sociais (Dayrell, 1999; Vianna, 1999).

Justamente porque tinha que comprender as imbricadas relações entre as identidades de gênero e as identidades juvenis dessas rappers e anarcopunks, esse referencial teórico foi muito importante:

“Nós somos mulheres anarcopunks. Estamos concebendo o punk e o anarquismo de um ponto de vista feminista, pra alegria de uns e desespero de outros. (...) Eu tô num momento que eu tô retomando muitas coisas a respeito do que é punk, do que é feminismo, do que é anarquismo, do que é ser negra. Porque todas essas coisas, elas têm que se juntar, elas não podem ser rótulos, porque acho que ser negra não é uma coisa que você escolhe, você é”. (Fernanda, grifos meus)

“É aquilo, é uma luta horrível, é pesada, árdua, é difícil de manter isso vivo, mulher, jovem, negra principalmente, tar lutando, tar questionando o mundo - só lutar, questionar já tá dentro da luta, por eu ser jovem, tar questionando, eu já vejo que o processo dessa educação que existe aí, de você ser uma pessoa alienada, tar pisando, não pensar no próximo, essa educação capitalista, eu tô totalmente, não tô totalmente fora, mas eu tô realmente fazendo alguma coisa, eu tô lutando realmente por um mundo mais humano e menos capitalista, onde o ser humano tem que pisar no outro ser humano”. (Carla, grifos meus)

“Bastante auto-estima, graças a Deus, agora não é qualquer pessoa que pode vir com idéia errada que a gente vai aceitar ou vai engolir, vai ficar quieto, não. Agora a gente tem idéia pra trocar. A pessoa às vezes vem, às vezes a gente sofre algum preconceito, não só por sermos mulheres, negras e rappers, ainda é tudo um grupo, é tudo uma coisa, pra eles, pras pessoas que estão de fora, sofre bastante preconceito. Mas hoje em dia a pessoa pode falar qualquer coisa que a gente tem como se defender, não precisa tar... não com ignorância, sempre com uma idéia, uma idéia real, já chega e dá uma idéia mais forte, entendeu?” (Carina, grifos meus)

A participação nos grupos as/os constituía como sujeitos, era nas vivências nos grupos/movimentos que elas/eles construíam sentido para suas vidas. Nos dizeres de Nina.:

“Eu aprendi a me valorizar mais, tipo, levava o nome ‘a DJ’, não era só alguém, uma pessoa qualquer, você é reconhecida. Então é importante pra cada um, né? A pessoa se sentir alguma coisa”.

Em graus mais ou menos acentuados, a atribuição de um papel central em suas vidas às experiências que vivenciavam nos grupos permeava as reflexões de todas elas: Joana, Fernanda, Carla, Gláucia, Nina, Carina, Carolina e também Luís, embora ele estivesse em um momento que estava se afastando do movimento, buscando outras experiências:

“A participação no hip-hop pra mim é tudo” (Joana), “Minha vida é o hip-hop, eu curto pra caramba” (Luís), “O hip-hop é tudo” (Carolina), “Acho que eu mudei minha vida assim 100% do que ela era [após entrar no MAP]” (Gláucia), “[o hip-hop] Significa muito porque eu não tinha nada, não tinha o que fazer. Foi depois que eu entrei pro movimento que eu me identifiquei com alguma coisa. Agora, hoje, é tudo pra mim” (Nina).

O movimento anarcopunk mostrou-se essencialmente um espaço em que passaram a ter acesso a conhecimentos aos quais antes não tinham, um espaço de politização, de discussões sobre o capitalismo, as desigualdades, o anarquismo, a contracultura, as culturas indígenas, as lutas contra quaisquer tipos de prisão etc. Foi também com o movimento anarcopunk que Carla e Fernanda se conceberam como feministas, transformando suas percepções das desigualdades entre homens e mulheres em uma ação coletiva no interior do MAP, por meio do coletivo Obirin Onijá.

Já Gláucia, que não participava de nenhum coletivo no interior do MAP, resgatou a “revolução” que a entrada no movimento produziu em sua vida, despertando-a para a questão dos povos indígenas e da luta “contra os cárceres”, que, na época da pesquisa, eram centrais e sobre as quais falava por longos períodos. Quanto às questões relativas a gênero, é interessante notar que, apesar de não fazer parte de nenhum coletivo anarcofeminista, ao mesmo tempo em que se identificou com o “anticonsumismo” do MAP, por uma indignação que já sentia por sua condição de classe e pelas discriminações que sofria também por ser negra, percebeu ainda as diferenças entre sua educação e a de seus irmãos, e como os “boyzinhos” a desejavam.

Assim como o MAP, o hip-hop era o espaço em que essas jovens mulheres (e também Luís) podiam-se constituir como sujeitos e, por meio das relações mais democráticas que vivenciavam nos grupos e movimentos, enfrentaram os preconceitos e as discriminações por suas condições de classe e raça em uma sociedade profundamente hierarquizada, impondo-se como atores. As falas são sempre sobre o quanto suas vidas mudaram com a entrada no hip-hop.

Parece, no entanto, que as discriminações de gênero são mais fortes no hip-hop7, provavelmente porque o MAP, com seus conceitos de liberdade e relações horizontais, procura, de alguma forma, vencer as desigualdades entre homens e mulheres, ao menos no plano discursivo. No hip-hop, no entanto, as identidades raciais são centrais, pois é essencialmente um movimento dos jovens negros nas periferias das grandes cidades, ao contrário do MAP, em que Fernanda, por exemplo, só pôde-se constituir efetivamente como mulher negra quando buscou outros grupos e vivências fora do MAP.

Os grupos e os movimentos são um meio para entrar no espaço público e dele se apropriar, construindo relações menos hierarquizadas do que as constituídas na família, na escola ou no trabalho. Passam a vivenciar questões que remetem a uma atuação política, mais ampla do que aquela que circunscreve o grupo e/ou o movimento e garante uma intervenção em cotidianos marcados pelas hierarquias de classe, idade e, notadamente, gênero e raça.

Ao mesmo tempo em que seus referenciais são construídos a partir dos grupos e movimentos, cada uma construía significados bastante particulares do que eram, para elas, esses mesmos movimentos: “o movimento é raiz (...) pra defender o seu povo, a sua raça, a sua liberdade de expressão” (Joana), “hip-hop é um movimento revolucionário” (Carolina), “o hip-hop é a manifestação cultural mais forte da periferia” (Carina), “o rap pra mim é a voz ativa, o legal do rap que eu acho é que o rap é uma música universal, através do rap você fala o que você quiser, a batida é uma só” (Luís), “Você tem uma visão mais ampla, você começa a ver a questão social. Antes eu achava que aquilo tava acontecendo só comigo, era só naquele bairro. E não, a gente sai bastante e vê que não é só com a gente” (Nina), “O anarquismo tem muito essa coisa de superar a si próprio, ele não é uma ideologia que se propõe a falar e a ficar, é uma ideologia que se propõe a uma evolução social, e tende a superar a si” (Fernanda), “[o anarcopunk] é um movimento realmente que tá indo atrás, que tá na luta, tá fazendo algum trabalho com a comunidade, mesmo sendo, assim, pouco, mas tá fazendo. Assume realmente uma identidade, é aquilo que diz, tá lutando realmente” (Carla), “o movimento anarcopunk é um momento muito importante mesmo, um momento em que a gente vai estar reunindo as nossas forças, nossas idéias, como é que a gente vai estar lutando contra o capitalismo” (Gláucia).

Todo o discurso que Fernanda construía - e pelas entrevistas era evidente o cuidado com que ela construía esse discurso - era fruto de suas vivências como anarcofeminista. Carla, por sua vez, atribuía um valor crucial à sua passagem de punk a anarcopunk, muitas de suas reflexões advinham das experiências dessa passagem. Joana construiu sua auto-estima, afirmou-se no/a partir do hip-hop. Nina disse não saber o que seria de sua vida se não tivesse entrado no hip-hop (“caminho certo”), assim como Carina, que afirmou: “se o movimento hip-hop não tivesse chegado até mim (...) talvez eu nem estivesse aqui, porque minha vida não tava muito legal”.

Suas vidas nas várias esferas sofreram importantes transformações com a entrada nos grupos/movimentos: a relação com o trabalho, os estudos, a família, a importância das experiências culturais/de lazer; estas últimas são elementos centrais das vivências nestes estilos juvenis (MAP e hip-hop). A vivência anarcopunk trouxe um profundo questionamento das relações de trabalho capitalistas para Fernanda, Carla e Gláucia, o anarcofeminismo, uma profunda transformação nas relações familiares para Carla e Fernanda – “papéis” femininos e masculinos foram questionados, a divisão do trabalho doméstico foi questionada, a relação entre os pais foi questionada, a diferenciação entre irmãos e irmãs foi questionada. A objeção à participação no hip-hop criou grandes conflitos nas relações familiares para Nina e Joana. Joana decidiu voltar a estudar, depois de uma escolarização frustrante, com experiências escolares muito fortes de desvalorização e rebaixamento da auto-estima, quando conseguiu se ‘reerguer’ com sua atuação no hip-hop. Carla, Fernanda, Joana e Carolina, por sua vez, planejavam fazer um curso superior.

Sofreram transformações e transformaram pessoas nas relações que criaram depois de sua participação. Fernanda, Carla e Gláucia foram as que mais falaram sobre isso – provavelmente porque isso é um elemento central no anarquismo que concebiam – Fernanda falando de suas relações afetivas, Carla de sua experiência no curso de operadora de som com os “adolescentes machões” e Gláucia de, após dois longos relacionamentos afetivos em que era freqüentemente vítima de violências, ter conseguido construir um relacionamento de companheirismo e respeito.

Aprenderam muito com o movimento e as vivências que passaram a ter. Joana, Nina e Carina falaram explicitamente que aprenderam muito com o movimento hip-hop, Gláucia passou a buscar informações sobre as culturas indígenas, elaborando seus fanzines, e sobre as lutas antimanicomiais e as prisões, construindo sua luta “contra os cárceres”, Fernanda construiu toda uma conceituação do que seria o patriarcado; todas tendo acesso a informações e discussões que antes não tinham.

Construíram muitos projetos para o futuro, negando o estereótipo de que os jovens vivem apenas o presente. Queriam continuar produzindo música (Joana, Carina, Nina, Carolina e Luís), estudar (Joana, Carolina, Carla, Fernanda, Luís, Gláucia), construir trabalhos comunitários (Joana, Carla), queriam continuar “questionando”, “conscientizando” (todas).8

As experiências vivenciadas nos grupos/movimentos foram centrais para a construção de suas identidades. Identidades, pois todas elas – embora apenas Fernanda e Carla falassem isso explicitamente – concebiam a si como mulheres, jovens, negras (exceção de Nina, que ainda que branca, falava ter “sangue negro”) e rappers (Joana, Nina, Carolina e Carina), anarquistas e punks (Gláucia) ou anarquistas, feministas e punks (Carla e Fernanda). E, é importante destacar, enfrentaram muitas dificuldades para/por construírem essas identidades. Falas sobre preconceito, discriminação, opressão, violência, cansaço, falta de apoio eram constantes. Como disse Joana: “Eu faço de tudo. E nos fins de semana, quando tem reunião, eu vou pras reuniões, eu vou pra show, eu, às vezes esqueço até de mim, sabe. Porque eu preciso descansar, a minha mente fica muito cansada, porque tem que fazer tudo, mas eu tô conseguindo fazer tudo, mas eu tô esquecendo um pouco de mim”.

As próprias relações de gênero, elas foram descobri-las pelos grupos/movimentos, por meio de sua atuação, dos conflitos no interior dos movimentos, das lutas para conquistarem seu espaço. Ao que parece, as mulheres vão para os espaços masculinos da cultura juvenil e de rua, deixando de ser apenas coadjuvantes (namoradas, público dos shows) e realizam nesse espaço um esforço de apropriação de uma nova identidade feminina, pois, é interessante notar, foi com base em discussões nos grupos/movimentos que elas perceberam as situações de opressão, desrespeitos e constantes violências a que estavam submetidas e que, aos poucos, foram conseguindo transformar, construindo novos padrões para suas relações afetivas e para suas relações com os homens no interior do movimento. O grupo possibilitou a essas jovens mulheres experiências mais democráticas, vencendo as tradicionais hierarquias homens-atores e mulheres-namoradas.

 

Significados de gênero na constituição de suas identidades

Em uma breve incursão teórica pelo campo dos estudos de gênero (o que, obviamente, significa não explorar as divergências teóricas que esse campo possui desde os chamados Estudos da Mulher ou Estudos Feministas (Correa, 2001; Piscitelli, 2002)), reforço aqui que o conceito de relações de gênero refere-se, de modo indissociável, às práticas sociais de sujeitos sexuados, mulheres e homens, e ao conjunto de significados de feminilidades e masculinidades que constroem/são construídos por esses sujeitos e suas práticas (Scott, 1988, 1990; Souza-Lobo, 1991; Varikas, 1994, 1999; Nicholson, 2000), no sentido de que, portanto, o sexo está subsumido no gênero. (Nicholson, 2000).

Neste campo conceitual, que busca romper as oposições binárias feminino/masculino (Scott, 1988; Nicholson, 2000), torna-se possível (e fundamental) “(...) perceber homens em espaços, relações e valores socialmente associados com o feminino ou o contrário, sem que a pertinência sexual seja a determinante; permite perceber o poder explicativo do gênero em contextos em que as questões da sexualidade e reprodução não são aparentemente centrais – como a arte, a política, o movimento sindical ou a escola, por exemplo.” (Carvalho, 1999: 37, grifo meu)

Somente refletindo profundamente sobre todos esses aspectos do conceito de gênero é que poderemos compreender - ainda que uma compreensão total seja impossível - os significados do que é ser mulher (jovem, negra, pobre, rapper, anarcopunk...) que Joana, Nina, Fernanda, Carla, Gláucia, Carolina e Carina foram construindo e o tipo de relações (de poder) que estabeleceram com os homens de seus grupos/movimentos.

Indiscutivelmente, foi com a participação nestes que elas passaram a construir os significados de “mulheridade”, como afirmava Fernanda. Carla disse que foi na Obirin que passou a “se sentir mulher”, Fernanda disse que quando conheceu “o feminismo dentro do punk, muita coisa passou a mudar (...) eu tive que pensar o que é ser mulher”. Quando perguntei a Gláucia o que tinha mudado para ela após sua entrada no MAP, respondeu “Eu comecei a me respeitar como mulher”. Quando perguntei o que tinha mudado para ela, como mulher, após sua entrada no hip-hop, Joana foi enfática: “Ah, o respeito (risadas). Respeito pra mim é fundamental”.

No caso dos grupos exclusivamente femininos, a percepção do que é ser mulher e a luta para garantir espaços nos movimentos, pois enfrentavam diversas formas de discriminação por parte dos homens do MAP e do hip-hop, foi o que as levou a constituírem grupos só de mulheres. As irmãs Carina e Carolina formavam anteriormente um grupo de rap misto, mas, após algum tempo, decidiram formar um grupo só de mulheres, chamando DJ Nina para participar do grupo. Constituíram um grupo só de mulheres para “mostrar as inúmeras qualidades da mulher” (Carolina), que estão muito além dos papéis que tradicionalmente lhe são atribuídos, e para mostrar que as mulheres têm o direito de se expressarem: “E a gente tá aqui pra demonstrar que a gente também é capaz” (Carina). Foi justamente para garantir seu próprio espaço e as especificidades das questões que enfrentavam não só no interior do MAP, mas também em outras esferas de sua vida, que Carla e Fernanda, com outras mulheres, formaram a Obirin, um coletivo anarcofeminista: “Só que, quando você começa a querer responder a estas agressões, o choque é muito grande. (...) a resistência da parte dos homens é muito grande, o condicionamento, ele é enorme. E você precisa de um tempo pra respirar, porque você tem que ser mulher-maravilha, não dá pra você estar formando essa teoria com pessoas te bombardeando o tempo todo. Então acho que um grupo específico de mulheres é essencial, pra que você possa respirar, pra que as pessoas possam te entender. É difícil pras próprias mulheres se entenderem”. (Fernanda). Mas, mesmo no caso do Rap Atual Júnior – grupo misto –, a luta por construir espaços para as mulheres no hip-hop era central para Joana. Apenas Gláucia disse inicialmente não perceber discriminações contra as mulheres no MAP, mas depois afirmou que o próprio movimento vinha apontando a necessidade de discutir a questão, após histórias de violências físicas e verbais constantes em relacionamentos afetivos entre homens e mulheres anarcopunks.

Ainda que Carla e Fernanda fossem as únicas que nomeassem seu discurso e ações como “feminismo”, todas lutavam cotidianamente - em suas vidas privadas e nos grupos/movimentos – contra as diversas formas de discriminação e violência que sofreram/sofriam. Com relação à discriminação nos próprios grupos e movimentos, Joana e as meninas do Crítica Negra contaram as inúmeras vezes em que os homens do hip-hop, ao vê-las, duvidaram de que fossem capazes de fazer um bom trabalho, chegando até a boicotá-las em algumas situações. “E como mulher então, pra mim foi uma guerra vencida, porque eu passei por uma guerra. Foi difícil pra mim vencer, mas eu venci”. (Joana). “Essa é a idéia de quem pensa/Que rap é ‘coisa só pra homem’/Mas isso não interessa/A minha arma é o microfone” (Trecho de “C.N. está em ação”, letra de Carina e Carolina).

Carla, assim como Fernanda, acreditava que os constantes atritos com os homens participantes do MAP e suas cobranças e vigilância com relação à postura delas foram em grande parte responsáveis pelo próprio fim do coletivo: “É porque tinha os problemas de fora, contato de fora, tinha muita coisa nova, a gente tava crescendo com a Obirin naquele momento, conhecendo muita coisa, compreendendo muitas coisas e a questão de estar fora, a gente era um grupo, éramos fechadas, um grupo fechado de mulheres. Então, os caras do movimento se incomodavam muito, foi uma das coisas que fez a Obirin quebrar um pouco.” (Carla)

É importante destacar que, embora no MAP Gláucia, Carla e Fernanda enfrentassem aparentemente menor dificuldade para imporem-se como sujeitos no interior do movimento no qual se inseriram, foram elas que, ao contrário de Joana e das meninas do Crítica Negra, haviam sido vítimas de situações de extrema violência antes de sua entrada no MAP – e Gláucia também, ainda no início de sua vida no movimento. Fernanda contou ter sofrido violência sexual aos 14 anos. Gláucia teve uma trajetória marcada por sucessivas relações violentas: seu pai batia nela, nos irmãos e na mãe, tendo, por isso, rompido, anos depois, qualquer tipo de convivência com seu pai; o pai de seu filho – filho que na época da pesquisa tinha oito anos - não a deixava sair de casa, tentou impedi-la de estudar e também batia nela; outro relacionamento longo que teve, dessa vez com um anarcopunk, acabou por ela não agüentar mais tantas agressões físicas e verbais, terminando com um espancamento violento e uma ameaça de morte. Mas conseguiu romper esse “ciclo vicioso” e na época da pesquisa mantinha um relacionamento de muito respeito e companheirismo com um homem também do MAP. Carla, por sua vez, saiu do meio punk e entrou no MAP, onde pôde se sentir mulher: “E foi isso que me fez sair do punk e entrar no anarcopunk, porque no anarcopunk quando eu encontrei essas mulheres eu já senti que, poxa, eu me senti mulher, porque antes eu não me sentia realmente, era deixada de lado porque eu não era a mulher do cara punk” (Carla)9.

E, aos poucos e com muitos conflitos, essas jovens mulheres foram conquistando espaço, respeito e “facilitando” o caminho que outras seguirão. Joana falava com freqüência sobre a pouca presença feminina no movimento, fazendo apelos à maior participação das mulheres no hip-hop, buscando a união e o apoio entre as que já participavam - o que certamente garantiria mais condições para essa ampliação. As meninas do Crítica Negra também pediam mais apoio entre as mulheres do hip-hop, reafirmando que havia muito poucas mulheres no hip-hop, e que seria fundamental se mais mulheres ocupassem os espaços do movimento. Por outro lado, citavam Joana como exemplo: “Tem a MC Joana, lá da Casa de Cultura, que ela dá uma força, mas grupo feminino não tem não, não tem ninguém que ajude não. Apesar que tem pessoas de grupos femininos que sabem que a gente toca só que não dão uma força não. Eu não sei por que. Porque a gente acha que, assim o ideal seria que todas as mulheres se unissem, entendeu? A gente sempre quis fazer uma banca com muita mina, muita mina mesmo pra mostrar a real, só que até agora a gente não achou as minas certas”. (Carina)

Em uma das vezes em que fiz observação na Casa de Cultura, um grupo de rap só de mulheres apresentou-se e Joana insistiu muito em que os presentes ouvissem o grupo com atenção – percebi que de forma mais enfática do que ela fazia normalmente, quando era sempre com muita atenção e cuidado que ela apresentava cada um dos grupos. Sua fala pretendia valorizar as mulheres que estavam começando um trabalho de rap. Luís, por sua vez, dizia: “Todo lugar que a gente ia só tinha macho, só grupo de homens. Raramente você via. Quando você via, era só as mina simpatizante ou as que curtia e trocava idéia, as que tinha vontade mas não tinha espaço, oportunidade, ou mesmo que, assim, não tinha apoio de alguém, incentivando, falando ‘vamo, vamo junto’. Porque ninguém se preocupa em fazer isso também, tem esse lado também. Então tem que ter uma mulher por trás, pra poder empurrar a outra”. (Luís)

Fernanda, de uma outra maneira, também ressaltou a importância da solidariedade entre mulheres nos estilos: “Então eu acho que uma das coisas que mudou pra caramba nas minhas atitudes foi essa coisa da rivalidade entre as mulheres. (...) E eu passei a sentir uma coisa muito forte assim de irmandade com as mulheres, necessidade de estar junto, é uma coisa assim de gostar de mulher, confiar em mulher, são coisas que as mulheres geralmente não fazem, e isso é muito da maneira como elas se vêem, e da maneira como elas se desenvolvem”. (Fernanda)

Os homens jovens também estavam mudando suas posturas com essas lutas. Elas diziam que ainda havia muito a fazer, muito a conquistar, muitas relações que precisavam mudar, outros modelos de feminino e masculino a construir; mas as transformações vinham ocorrendo, como a relação que Joana, Luís e Leandro construíram; a relação que Carolina e seu namorado Nil vinham construído; a relação que Nina e seu professor de discotecagem tinham; o novo relacionamento afetivo de Gláucia; relações de respeito, companheirismo. Sobre a relação com Luís e Leandro, dizia Joana: “Maravilhoso. Eles me apóiam demais. Eles não são meus irmãos de verdade, sangue e tal, mas eu considero eles meus irmãos, e a gente tá numa luta aí, há esse tempo todo, a gente tá lutando junto há 15 anos”.

As falas de Luís sobre sua percepção das relações entre homens e mulheres no hip-hop ilustra o quanto a participação das mulheres no movimento é fundamental para a construção de mudanças nessas relações. Quando perguntei como ele havia passado a perceber as questões das mulheres no hip-hop, ele afirmou categoricamente: “Da época em que eu convivia com a Joana”. Pode parecer óbvio que, apenas com a participação das mulheres, os homens irão se sensibilizar para a própria questão da relação entre os homens e as mulheres nos grupos e movimentos, mas trata-se de um ciclo difícil de romper, pois elas não participam justamente porque enfrentam uma série de discriminações nesses movimentos.

Com suas falas e ações, essas jovens mulheres têm buscado questionar os “papéis” femininos e masculinos: ao se inserirem e lutarem por espaço em movimentos predominantemente masculinos, ao criticarem a postura de muitas mulheres de expôr seus corpos como mercadorias e dos homens de valorizarem apenas o corpo das mulheres (as críticas ao grupo “É o Tchan” e grupos semelhantes eram freqüentes) e ao procurarem construir outros padrões de relações com os homens e também com as mulheres. Fernanda que, embora muitas vezes assumisse um discurso das oposições binárias entre feminino e masculino, em outros momentos reconhecia que “não é simples assim: eu posso ser homem, você pode ser mulher (...) e ser mulher é cultura, ser homem também, tem muita coisa aí”. E, ao mesmo tempo em que se construíam como mulheres buscando outros referenciais do que é “ser mulher”, elas construíam movimentos diferentes, em que os homens estavam tendo que aprender que o poder poderia ser distribuído mais igualitariamente entre homens e mulheres.

Os próprios grupos e movimentos (MAP e hip-hop) apesar de se constituírem como espaços predominantemente masculinos, eram ainda espaços de relações menos hierarquizadas, em que havia uma aceitação dessas jovens mulheres, mesmo que precária. Talvez por isso, nesses espaços, elas aprendessem a ser mulheres dotadas de auto-estima. “Aberta a brecha”, elas se apropriavam dessa aceitação e transformavam em um discurso da valorização do “ser mulher”, denunciando as discriminações e relações desiguais que sofriam no próprio movimento, a fim de construir novas relações – por meio de coletivos de mulheres ou por coletivos mistos –, abrindo espaços para a atuação de outras mulheres, rompendo com os modelos tradicionais de socialização que sofreram, construindo, talvez, outras concepções de feminismo.

É possível perceber os diferentes significados construídos em suas vidas nos âmbitos público e privado pela atuação nos grupos/movimentos. No âmbito público, elas construíram seu direito ao estilo juvenil como atores e, não apenas, como parceiras dos homens, como namoradas. Construíram relações de autonomia em relação a eles, com quem atuavam; constituíram-se como sujeitos, com demandas e necessidades, lutando contra o machismo, a depreciação e a desvalorização. E, finalmente, assumiram a militância feminista em seu próprio estilo (hip-hop ou MAP) ou, o que parecia estar ocorrendo com Fernanda e Carla, assumiram essa militância feminista também em outros espaços, ampliando sua luta e atuação.

Nos espaços privados, Fernanda, Carla e Gláucia conseguiram, por intermédio de sua atuação, do que aprenderam e de sua luta, “impôr-se”, conquistar respeito e autonomia também nas relações familiares e afetivas que estabeleceram – divisão de tarefas domésticas e novas parcerias com os homens, mais igualitárias –, transferindo essas experiências, construídas pelos grupos, não só para a família e relações afetivas, mas também para a escola, o trabalho etc. (dimensões, essas últimas, que não seria possível desenvolver no presente artigo):

“Pra mim foi muito importante elas [da Obirin] estarem do meu lado para eu conseguir botar pra fora e reclamar que eu tinha sofrido violência sexual. Porque até então eu não me sentia no direito de reclamar, afinal de contas eu estava de saia curta (pausa) afinal de contas eu tinha brigado com a minha mãe pra sair, ela falou pra eu não ir e eu fui” (Fernanda)

“Então era uma coisa que eu comecei a achar absurdo depois que eu comecei a tar junto com as meninas [da Obirin], a ver isso, antes eu não via isso, antes eu achava que eu tinha que fazer, agora não, agora o serviço tá dividido, minha mãe, ela também não entendia isso, hoje ela vê isso também, meu pai já trabalhava junto com ela, eles sempre dividiram as tarefas, mas os filhos não. Hoje ela coloca os filhos dela pra fazer, eles querendo ou não, e ela não faz mais nada pros filhos, eles têm que aprender a fazer isso também” (Carla)

“Por que assim, em termos de relacionamento com o companheiro, eu morava com uma pessoa que era extremamente ciumenta, extremamente possessiva, tudo ele era o extremo, tudo ele era o extremo. (...) O cara dava um escândalo, rolava altas agressões, me bateu várias vezes, muitas vezes... teve uma agressão que foi foda, o cara perfurou o meu tímpano com um soco que ele deu, quebrou meu nariz, com um soco assim. Rolou altas coisas ruins pra mim, só que eu nem imaginava que eu podia viver de uma forma diferente com outras pessoas. (...) Só que eu não imaginava que eu algum dia pudesse me relacionar com um cara e o cara me respeitar pelo que eu sou e falar ‘olha, você é livre pra você fazer o que você quiser, você quer ir pra algum lugar, não se prenda por mim, vá sozinha’”. (Gláucia)

Para Joana, porém, isto não parece ter sido possível com relação às dimensões familiar e afetiva, ao menos até então. Seus relatos de um casamento insatisfatório, mantido por ter sido ele o responsável pela construção da casa onde moravam e de uma ausência na divisão das tarefas domésticas foram exemplos claros.

“É... casamento é complicado. Por mais que o cara me entenda, ele me respeita, mas a gente não vive bem. Eu vivo de aparência. Eu nem sei porque que eu vivo nessa. Eu sou uma pessoa tão revolucionária, que não dá é não dá...Só que tem uma coisa da qual eu não posso abrir mão, que é minha casa” (Joana).

Quanto à Carina e à Carolina, parece que sempre tiveram relações familiares mais igualitárias: seu pai as incentivava muito a participar do hip-hop por ter, ele próprio, vivenciado o “black power” nos anos 70 e sua mãe, após romper com o estigma do hip-hop como “coisa de marginal”, também passou a incentivá-las. A mãe delas era, inclusive, uma grande referência de “mulher lutadora”, a quem admiravam e respeitavam muito. Nina, por sua vez, falou muito pouco sobre suas relações fora do movimento para que algo pudesse ser afirmado.

Estabeleceram, tanto Gláucia quanto Joana, relações diferenciadas, nada idealizadas, com a maternidade. Ambas disseram ter boas relações com seus filhos, mas enquanto Joana optou por criá-lo, passando a viver com o pai da criança, ainda que sua relação com ele fosse insatisfatória, Gláucia optou por deixá-lo com sua mãe, após separar-se do pai da criança, que a agredia.

“Bom, eu sou mãe. Foi uma novidade enorme pra mim, ter ficado grávida. Eu queria meu filho, adoro meu filho, faço tudo pra ele, quero passar coisas pra ele. Ele sabe que a mãe dele é das correrias. Mas tudo o que eu faço, é pra ele. E assim, quanto à gravidez, foi uma gravidez difícil, foi muito difícil pra mim”. (Joana)

“Eu tenho um filho, meu filho tem oito anos, quando eu tive meu filho eu tinha outra mentalidade, muito ingênua e tal, até quis ter meu filho antes de ficar grávida...lógico que eu não me arrependo, só que hoje em dia eu penso que daqui pra frente, jamais quero ter um filho, ter outro filho. Primeiro porque eu não quero, vai me atrapalhar, eu tenho outros planos”. (Gláucia)

 

Importância das marcas simbólicas e da palavra10

Para compreendermos a importância que tem para Joana, Fernanda, Carla, Nina, Carina, Carolina e Gláucia a participação nos grupos na construção de suas identidades, foi fundamental não somente observar suas práticas, mas compreender os significados que elas construíam por meio de suas vivências. Não só porque todos construímos nossas identidades de gênero material e simbolicamente, mas porque certas dimensões simbólicas são cruciais na construção dessas jovens mulheres, por estarem inseridas em grupos juvenis/movimentos em que essas dimensões são centrais.

Trata-se de grupos em que os signos são fundamentais para a construção das identidades coletivas: as vestimentas que usam, o modo como utilizam seus corpos para se expressar, o modo como falam. Basta observar a importância que o visual adotado tem para os significados que querem expressar, os punks principalmente, com suas roupas desbotadas e sujas, cheias de tachinhas, alfinetes, bottons etc. – e que os anarcopunks, ainda que menos intensamente, também adotam – representando “o lixo da sociedade”, mas também os rappers, os b-boys e as b-girls e os grafiteiros, com suas calças largas, suas bombetas, seus tênis. O modo como falam e as gírias que utilizam - e que somente quem está “no meio” compreende de fato - demarcam quem é e quem não é do movimento hip-hop ou do MAP. Os modos como ocupam os espaços com suas músicas, sua dança, seus grafites, seus protestos. Tudo isso constrói o que é ser anarcopunk e o que é ser do hip-hop.

Essa produção simbólica é crucial na construção das identidades dessas jovens mulheres. No caso delas, a palavra é central, não apenas por serem rappers – e, portanto, cantarem –, ou anarcopunks – as falas públicas em protestos e reuniões são centrais –, mas também porque é a palavra que contesta, denuncia, conquista espaços em meios socialmente associados ao masculino, busca subverter as relações de poder entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre ricos e pobres, entre adultos e jovens; palavra que constrói outras relações entre homens e mulheres e outros referenciais de femininos e masculinos no espaço público.

Para elas, o tema “falar, expressar-se” desenvolveu-se como um ponto central de conflitos nas relações de gênero:

“Quando eu tinha 14 anos, e eu era virgem e imaculada, eu achava que eu ia casar virgem, eu nem tinha beijado na boca ainda, e eu cheguei na escola uma vez com uma amiga minha na mesma situação, e as pessoas jogaram milho na gente, vários garotos da mesma idade jogaram milho na gente a ponto de machucar nossa pele. Eles achavam que a gente era um bando de piranha porque a gente participava do grêmio estudantil e a gente falava muito pra mulher, pra uma mulher a gente falava demais.” (Fernanda)

“Como, assim, eu tinha medo de falar, de me expressar, de dar uma entrevista igual agora, por exemplo, eu não conseguia, gaguejava. Tá sendo legal, tô um pouco nervosa, mas tá sendo legal. Então o hip-hop foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Conhecer pessoas, participar com a comunidade, conhecer outras áreas, outros estados representando o hip-hop”. (Joana)

“A minha participação. Assim, minha participação política mudou bastante. Agora eu converso mais com as pessoas sobre qualquer assunto, antes eu era meio acanhada, hoje em dia não, hoje em dia eu converso mais, a pessoa pode vir para debates, a gente tá sempre conversando, vários assuntos”. (Carina)

“As mulheres precisam mostrar que a gente também tem o direito da expressão.” (Carina)

 

Significados raciais11 na constituição de suas identidades

“Às vezes eu fico muito deprimida, mas a minha cultura é uma cultura que... eu acho que o povo negro é um povo de resistência e a gente aprende a estar de pé não importa o quanto você esteja triste. Nossa história é uma história triste e nem por isso a gente deixou de dançar, de cantar. As pessoas vêem isso de uma forma muito pejorativa, ah é festa. Mas é a maneira como meu povo reza, e eu aprendi isso. Por mais que você tenha problemas a gente tem que estar sempre de pé.” (Fernanda)

O hip-hop nasceu como um movimento dos jovens negros das periferias das grandes cidades, e a temática racial é central no movimento, em especial no rap. Foi por meio da participação no movimento que Carolina, Carina, Joana (e Luís) constituíram uma auto-imagem positiva como negros, como todos afirmaram e a seguinte fala de Carolina sintetizou:

“Como eu te falei a gente aprende a ter uma visão crítica de tudo, né, e até na questão da auto-estima também, há alguns anos atrás, às vezes eu lembro, puxa na escola, de repente o pessoal falava aquela coisa de “ai, que você é neguinha”. Poxa naquela época de repente você ficava pensando, eu quando tinha 7, 8 anos de idade ainda não tinha uma visão legal dessa questão de negritude. Então o pessoal chamava você de neguinha, de não sei o quê, eu ficava meio assim, meio pra baixo. Mas hoje em dia não. O cara fala pra mim que eu sou negra, negrinha, pra mim é mó orgulho, entendeu? Então acho assim, levanta muito a nossa auto-estima, e é que nem eu falo, hoje em dia, eu tô com 21 anos, quando eu tiver meus filhos, eu vou querer passar pra eles também tarem se orgulhando.” (Carolina)

Assim como Carolina, também Carina passou a valorizar sua história, seu povo, a partir do hip-hop, reconstruindo sua auto-estima:

“Bastante auto-estima, orgulho de ser negro, e bastante conhecimento pelos nossos antepassados também, fez com que eu lesse mais sobre os antepassados, sobre os escravos, tudo que é matéria que sai, aniversário da morte de Zumbi, shows, a gente está participando, participação total no movimento negro”. (Carina)

Suas identidades raciais estavam profundamente articuladas a suas identidades de gênero e a suas identidades no grupo. Joana falou sobre a sexualização da imagem das mulheres negras jovens:

“É o seguinte, a mulher jovem negra: sem consciência. Por que sem consciência? Porque estão se vendendo muito e elas próprias não estão se valorizando. Agora com esse negócio de bundinha, as irmãs têm um corpo maravilhoso, têm umas bundas maravilhosas, e a burguesada quer mais é que elas vão rebolar pra eles ficarem vendo e ficar passando mal. (...) A gente tem que lutar pras pessoas respeitarem a gente por dentro, como a gente é e não ter que se vender, se expor, pra ter valor, pra ser bonita, pras pessoas comentarem, achar que é maravilhosa. Não. A gente pode tudo isso mas com dignidade, com trabalho, simples, sem se expor pra ninguém.”

Carina falou sobre o preconceito racial:

“O preconceito sempre é maior pra negros, não só pra mulheres, como pra homens também. A gente cita isso também nas letras, o preconceito racial. E a gente tá...e, assim, a idéia, o nome do grupo por mais que seja Crítica Negra, você pode ver que a Nina não é negra, só que a consciência é negra”. (Carina)

Ao contrário do hip-hop, havia uma ausência de discussões raciais no MAP (a origem do punk está associada aos brancos). Carla, assim como Fernanda, falou sobre isso e sobre a importância dessas discussões na Obirin, onde descobriu, assim como Fernanda, não só o que é sentir-se mulher, mas o que é ser negra:

“Hoje eu sei que eu sou uma pessoa negra, preta, mas até há um tempo atrás eu não afirmava isso. E você tar afirmando uma coisa dessas, em um movimento que se diz libertário, as pessoas achavam “Oh, que absurdo”, as pessoas tarem se assumindo, afirmando que é a origem que vem, as pessoas ainda acham um absurdo, é uma coisa que ta causando reboliço ainda” (Carla).

Para Gláucia, no entanto, o MAP foi uma “porta de entrada” para a temática racial, pois foi por esse movimento que conheceu um curso de capoeira, em que se percebeu como negra. Após conhecer, também por intermédio do MAP, alguns povos indígenas, passou a buscar principalmente reconstruir suas “raízes indígenas”.

Lembro-me muito bem de uma cena, quando fui encontrar Fernanda para uma das entrevistas, na saída de um curso de dança afro. Cheguei um pouco antes e ouvia diversas vozes femininas cantando, ao som de palmas ritmadas, um trecho de música que ficou gravado em minha mente (e que, anos depois, reconheci como a música “Alguém me avisou”, de Dona Ivone Lara): Foram me chamar/Eu estou aqui, o que que há?/Foram me chamar/Eu estou aqui, o que que há?/Mas eu vim de lá, pequinininho/Mas eu vim de lá pequinininho/Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho/Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho...

Foi nesse dia que ela me disse as duas frases que escolhi como epígrafes para este artigo.

 

Considerações finais

É quase óbvio constatar, como já havia afirmado anteriormente, a centralidade da raça, conjuntamente com o gênero, a classe e a idade, na construção das identidades dessas jovens mulheres e nos grupos/movimentos que elas/eles vinham construindo – articulação destas categorias sociais, e não a sua justaposição12. E os elementos preponderantes nesta articulação são gênero e raça, e não idade. A importância de sua “juventude” estava mais em sua participação nos estilos hip-hop e anarcopunk (estilos juvenis), participação que produziu os significados de gênero e raciais que elas vinham construindo.

Para concluir, trago apenas alguns elementos em que se evidenciaram as inter-relações entre gênero, raça e classe que elas operavam em seus materiais e reflexões:

“Se as pessoas vêem como conquista as mulheres adquirirem o poder, seja este no trabalho, em casa ou em cargos pólíticos, ou seja, a dita “mulher moderna”, não podemos comparar isso à emancipação. Pois essas mesmas mulheres continuam sendo vítimas e sustentando o machismo, além de explorarem milheres de outras mulheres. Não é porque uma minoria conseguiu independência financeira e por isso acha ser emancipada, que temos que achar que todas nós estamos.” (manifesto produzido pelo Obirin em abril de 1999)

“Se acha que mina não rima/Você não sabe de nada/A idéia aqui é firmeza/Só mina de atitude/Que vive na periferia/E não se ilude.” (trecho de “Até as últimas conseqüências”, de Carina e Carolina, grifos meus)

Uma fala de Joana sobre o tipo de relação que um rapper americano13 mantinha com os freqüentadores da Casa de Cultura, em comparação ao que ela mantinha, é bastante significativo desses outros padrões de masculinos e femininos possíveis, também articulados às concepções de raça e classe presentes no hip-hop:

“Porque ele vivia gritando com as pessoas, ele pegava muito pesado com as pessoas. Eu pego pesado, mas de uma forma carinhosa, eu converso, tendo uma oportunidade, eu chego em um e converso. Se ele tá aprontando, se não tá legal, se tô vendo que ele não tá numa boa, a gente troca uma idéia, mas com sensibilidade, com carisma, não com brutalidade, que ninguém gosta, nem um animal gosta de ser tratado com ignorância, imagina o ser humano! (...) Por que eles vêm pra Casa de Cultura? Por que eles tão cansados de tanta violência, de passar por uma viela e ver um mano esticado, ver uma criança com a cara cheia de bala (...) Então a maioria aqui é dos guetos mesmo fodidos daqui de São Paulo, que vem para cá porque aqui é um lugar de paz”. (Joana)

 

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VIANNA, Cláudia. Os nós do “nós”: crise e perspectivas da ação coletiva docente em São Paulo. São Paulo: EC. Xamã, 1999.

 

 

Endereço para correspondência
Samantha Freitas Stockler das Neves
E-mail: samanthaneves@yahoo.com

Recebido em 21/07/2005
Aceito em 15/08/2005

 

 

Notas

1 Graduação em Pedagogia, Faculdade de Educação da USP. Mestranda em Sociologia da Educação, FEUSP, sob orientação da Profa. Marília Pinto de Carvalho, em estudo sobre o conceito de gênero nas pesquisas em educação.
2 Por tratar-se de um artigo não será possível explorar todas essas dimensões. Buscarei pontuar apenas as principais percepções que tive com relação à centralidade dos grupos/movimentos na constituição das identidades dessas mulheres jovens e os significados de gênero e raciais na constituição de suas identidades.
3 Lembro apenas que não era o objetivo da pesquisa explorar os significados de gênero, principalmente os modelos de masculinidade, na constituição identitária de Luís. Sua entrevista, também riquíssima, foi explorada apenas quanto ao que informava sobre as relações entre homens e mulheres no grupo e no hip hop.
4 Definirem-se como negras e colocarem a dimensão racial como central em sua constituição identitária, revelou novas facetas da complexa relação com os movimentos e a construção de identidades raciais que neles se dá.
5 Obirin Onijá é uma expressão ioruba que significa “mulheres guerreiras”.
6 Da mesma forma que os nomes dos sujeitos de pesquisa foram alterados, também não informo onde vivem.
7 O conteúdo machista da cultura hip hop já foi apontado pelo estudo de Cidinha Silva (Silva, 1995).
8 Gostaria apenas de destacar algumas de suas falas concebendo-se como jovens e os significados a isto atribuídos - na verdade, falas de Fernanda e Carla, as únicas que falaram explicitamente sobre o que é ou deveria ser “ser jovem”: “Quando eu tinha 13 anos e eu lia muito, minha mãe me levou num psicólogo como se eu fosse doente. Porque ela achava que eu devia estar curtindo Xuxa. Eu gostaria que a juventude tivesse outras opções que não essas (...) Que juventude deve ter outros rumos, outras escolhas que não só paternidade, maternidade, trabalho, velhice, dinheiro“ (Fernanda). “É aquilo, é uma luta horrível, é pesada, é árdua, é difícil de manter isso vivo; mulher, jovem, negra principalmente, tar lutando, tar questionando o mundo - só lutar, questionar já tá dentro da luta, por eu ser jovem, tar questionando“. (Carla). Nas falas de Fernanda, é interessante notar que ela em determinados momentos parecia afirmar a necessidade de se respeitarem as especificidades da juventude, e para tanto criticava a concepção de que se precisaria ‘moldar’ os jovens, e em outros reforçava o estereótipo social da geração ‘alienada’, ao afirmar, por exemplo, que faltava ‘maturidade e responsabilidade’ aos jovens atualmente.
9 Com relação ao meio punk, é interessante notar que os depoimentos de Carla foram bastante semelhantes às observações feitas por Maritza Castro-Pozo em relação a duas bandas punk que acompanhou no México: embora essa presença feminina apresentasse, algumas vezes, outros aspectos - pois, para muitas delas, representava a possibilidade de transformação de relações desiguais em outros espaços da vida -, em geral as desigualdades no meio punk eram bastante profundas. (Castro-Pozo, 1996).
10 Devo essas percepções às contribuições da Profa. Marilia Sposito. “Uma segunda polaridade, bastante próxima da manifestação cultural em torno da música, pois caminha de forma integrada e concomitante, reside na tentativa de construção de pautas de significados alternativos às interpretações dominantes. Resgata-se a importância da palavra, como é o caso dos rappers, da circulação de idéias pela imprensa alternativa, como os fanzines e algumas das iniciativas em torno das rádios comunitárias, ou um outro significado para o jogo do corpo pela dança. Na apropriação da palavra evidencia-se a necessidade de recorrer à informação, ao conhecimento e, assim, propiciar uma explicação diferente daquelas produzidas pelos grandes veículos formadores da opinião pública que asseguram uma certa homogeneidade das interpretações: a cultura juvenil afirma com força as necessidades comunicativas, mas reinvindica, também, o direito de decidir quando e com quem se comunicar.” (SPOSITO, 2000: 8, grifo meu).
11 É importante explicitar aqui que utilizo o conceito de raça “em seu significado propriamente sociológico, relacionado a uma certa forma de identidade social”, buscando “retirar a fundamentação biológica do conceito de raça” (Guimarães, 1999: 156).
12 Nos termos de Heleieth Saffioti, o “nó” constituído pelas “três contradições sociais básicas”, gênero, raça e classe. Com essa imagem, a autora explicitou a impossibilidade de se compreender uma dessas categorias como única e total. (Saffioti, 1994: 278). Para a compreensão desta articulação, foram também fundamentais as questões colocadas por Maria Célia Paoli: “De que modo as relações de gênero (como as de cor, de idade, as de etnicidade) podem se universalizar nas ciências sociais? Serão matrizáveis apenas em uma única articulação teórica? Ou deveriam estar presentes exatamente por sua diferença, para a análise sociológica, como categorias centrais à compreensão de todas e quaisquer relações sociais?” (Paoli, 1991: 107).
13 Este rapper a substituiu na Rádio 10 quando Joana saiu para ter seu filho.