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Imaginário

Print version ISSN 1413-666X

Imaginario vol.12 no.12 São Paulo June 2006

 

PARTE I

 

Alice no país do espelho: o MUD - o jogo e a realidade virtual baseados em texto

 

Alice in “through the looking glass”: The MUD - game and virtual reality based on text

 

 

Ivelise Fortim*

Universidade Ibirapuera

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo versa sobre como os jovens estão imbricados no mundo das tecnologias e, principalmente, nos jogos eletrônicos. Assim, há uma conceituação sobre a juventude atual e seus comportamentos, para depois versar sobre os jogos eletrônicos, em especial um jogo chamado MUD. O jogo é uma aventura de estilo medieval, no qual o usuário confronta-se com monstros virtuais a procura de tesouros. O programa funciona mediante descrições textuais e permite uma comunicação entre os diversos jogadores conectados a ele. O MUD apresenta características de jogo, realidade virtual e comunidade virtual. Quanto ao jogo, examinou-se que tipo ele é e porque atrai os jogadores. Quanto à realidade virtual, verificou-se que os jogadores se utilizam dele de duas formas: uma, como espaço psicológico e, outra, para a vivência de uma Aventura. A seguir, discute-se porque se considera o MUD como uma comunidade virtual. Ao final, faz-se um paralelo entre o MUD e o conto “Alice no país do Espelho”, considerando o jogador de MUD como Alice, que se aventura por um mundo mágico e depois retorna. Os “mudeiros”, como Alice, entram no mundo virtual, aventuram-se e acordam novamente para a vida cotidiana, com a diferença que, desse sonho, trazem amigos para a sua realidade.

Palavras-chave: MUD, Realidade virtual, Jogos eletrônicos, Juventude, Comunidades virtuais.


ABSTRACT

This paper is about how the youth has been connected with new technologies, mainly electronic games. Firstly, it is presented conceptions of Youth and its behavior, and then, a discussion about electronic games, especially a game called MUD (Multi User Dungeon). This game is based on a medieval adventure, which the user has to fight against virtual monsters, looking for treasures. This program works through textual descriptions, and it allows communication among several players who are connected in it. MUD shows characteristics as a Game, a Virtual Reality, and a Virtual Community. Concerning the Game, it was examined why the youngsters are attracted to it, and also it was verified what kind of game it is. MUD can also be classified as a Virtual Reality, and the players can use it in two ways: as a Psychological Space or a place to live an Adventure. Then, there is a discussion about why MUD can be considered as a virtual community. Finally, there is a comparison between MUD and the tale “Alice through the looking glass”, considering the MUD player as Alice, who ventures in a magical world. The players, like Alice, go to a virtual world, where they can venture, and then they can live their ordinary lives with the presence of friends from the magical world.

Keywords: MUD, Virtual Reality, Electronic games, Youth, Virtual communities.


 

 

Apresentação

O presente artigo é um resumo da dissertação de mestrado “Alice no país do espelho: realidade virtual baseado em texto e imaginação”. O texto versa sobre um jogo baseado em texto chamado MUD. Mediante uma pesquisa de levantamento, constatou-se que esse jogo era freqüentado por jovens, os quais permaneciam muito tempo on-line, conectados a ele (chegando a permanecer cerca de oito horas em apenas um dia). Pesquisou-se por que esses jovens participavam tão ativamente desse jogo e quais seriam os encantos e as seduções de um ambiente virtual textual.

Verificou-se que eles se interessavam pelo jogo principalmente por três motivos: por ser um jogo, e, ao mesmo tempo, por ser uma “realidade virtual”, bem como por proporcionar um ambiente de “sociabilidade” para esses jovens. Concluiu-se que “esses são as causas e os motivos mais comuns que levam os jogadores a estar no MUD” – são as seduções que propicia aos jogadores para que permaneçam tanto tempo nele. Dessa forma, em primeiro lugar, há uma conceituação sobre juventude – uma vez que se trata de um jogo freqüentado por jovens. Em seguida, aborda-se a questão dos jogos eletrônicos, para depois discorrer sobre o MUD e suas seduções. Ao fim, faz-se um paralelo entre o conto “Alice no país do espelho” e a vivência dos jovens nesse ambiente virtual.

Poderia-se escrever livros e livros sobre este termo, tamanha é sua amplitude. Para a maioria das pessoas, ela representa a faixa etária dos adolescentes; no entanto, esse conceito tem sido constantemente visto e revisto pelas ciências humanas.

Segundo Feixa (1999), tradicionalmente a juventude é entendida como a fase da vida individual compreendida entre a puberdade fisiológica e o reconhecimento do status de adulto (a combinação de uma condição biológica com uma condição social). Para o autor, entretanto, a juventude é compreendida dentro de uma perspectiva antropológica, como uma “construção cultural”, relativa no tempo e no espaço. Cada sociedade organiza sua transição da infância à vida adulta, ainda que as formas e os conteúdos desta possam ser muito variáveis. Mesmo existindo determinantes biológicos, a percepção social do que isso significa pode ser bastante diferente de uma sociedade para outra.

Tradicionalmente, a juventude é vista como a faixa etária que compreende os púberes (12-14 anos), os adolescentes (15-18 anos) e os adultos jovens (18-25 anos). Mas essa categoria etária é amplamente discutida. Como exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA considera jovem aqueles entre 12 e 18 anos de idade, ao passo que uma pesquisa da MTV, realizada em 1999, considera jovem pessoas de 12 a 30 anos. Hoje, é cada vez mais difícil delimitar uma faixa etária e um conjunto de características para definir a juventude.

Segundo Abramo (1994),

“A noção mais geral e usual do termo juventude refere-se a uma faixa etária de idade, um período da vida, em que se completa o desenvolvimento físico do indivíduo e no qual uma série de mudanças psicológicas e sociais ocorre, quando este abandona a infância para processar sua entrada no mundo adulto. No entanto, a noção de juventude é socialmente variável. A definição do tempo de duração, dos conteúdos e aos significados sociais desses processos modificam-se de sociedade para sociedade, e, na mesma sociedade, ao longo do tempo e por meio das suas divisões internas. Além disso, é somente em algumas formações sociais que a juventude se configura como um período destacado, ou seja, aparece como uma categoria com visibilidade social” (p. 1).

Abramo declara que, apesar de existirem diferentes definições de juventude, há dois traços básicos e amplamente generalizados na busca da conceituação do termo: o primeiro, que ela representa uma situação de transitoriedade (a transição da vida infantil para a vida adulta) e o segundo, que vê a juventude como um momento de crise (uma etapa conturbada pelas profundas transformações envolvidas no processo de transição, produzindo uma relação conflituosa do jovem com o ambiente).

No entanto, hoje, pode-se dizer que ela significa mais um estado de espírito do que uma faixa etária definida: é considerada um estilo de vida. Segundo CARMO (2000),

“existe, hoje, uma ânsia em parecer jovem e aparentar menos idade, agora importa mais do que exibir uma postura de classe. Os movimentos de contestação da cultura juvenil, o prolongamento do jovem na vida universitária e o universo dos meios de comunicação de massa e de lazer, criaram uma cultura juvenil descontraída, que é perseguida por todas as idades, trata-se de crianças ou adultos. Recompensa-se o ar jovial e valoriza-se qualquer artefato, vestimenta, ou ideal que faça aparentar menos idade. Todos são incentivados a pensar, a sentir, a agir e a falar como ‘jovem’. O espírito jovem tiraniza a todos, pois a cultura de massa tem obsessão por esta faixa etária”.

Segundo MURILHO (2003), se num recuo de uns dois séculos na história ocidental a juventude era vivida como uma fase, uma etapa de transição para a vida adulta, hoje pode-se dizer que ela passou a ser uma “coisa em si”. A partir da década de 60, o que se vê nas sociedades ocidentais é uma crescente valorização do “espírito juvenil”, uma vez que os jovens não estão mais interessados em viver como adultos, e, aos poucos, começam a impor aos adultos um modo de vida juvenil.

Para SARLO (1997), a juventude não é apenas uma idade e, sim, uma estética da vida cotidiana, um território onde todos querem viver indefinidamente. Mas, segundo a autora, os “jovens” (os que seguem a faixa etária usual) expulsam desse território aqueles que não cumprem as condições de idade e entram numa guerra geracional banalizada pela cosmética e pelas cirurgias estéticas.

 

Jovens nascidos nos anos 80

Geração. Segundo ABRAMO (1994, p. 51), este é um conceito importante, pois oferece uma maneira de examinar os vínculos entre determinadas manifestações juvenis. A geração diz respeito a uma similaridade de situação num mesmo tempo histórico: as pessoas de um mesmo grupo etário têm uma localização comum na dimensão histórica do processo social. Cada geração juvenil, por assim dizer, “é delimitada por uma determinada conjuntura histórica e pelas experiências definidas por ela, apresentando modos peculiares de ‘sentimento, pensamento e comportamento’, e um determinado tipo de relação com o acervo cultural que recebeu como herança, bem como a ordem social na qual está entrando”.

Ainda segundo a autora, a geração a que cada um pertence se definiria na juventude. Pensando assim, o que se poderia dizer acerca da geração atual de jovens? Longe de fazermos um “compêndio” sobre todas as “características” da juventude atual (aquela nascida em meados dos anos 80), pretende-se neste artigo apontar apenas alguns elementos que nos serão úteis.

Uma primeira característica que se deve apresentar sobre essa geração é que não é mais possível falar-se em “juventude” no seu todo. Tem-se que distinguir pelo menos duas juventudes, as quais se diferenciam pelas oportunidades de vida. O jovem de classe média ou superior, que vive no mundo das escolas particulares e das universidades, dos cursos de línguas estrangeiras e dos recursos da microinformática, daquele que enfrenta a decadência do ensino público ou abandona os estudos em decorrência de uma maternidade precoce, da marginalidade, do crime e do tráfico de drogas. Assim, deve-se falar em juventudes, e não em juventude em seu todo.

Para muitos autores, a juventude é apontada como um período em que existe um espaço para a experimentação de identidades. Essas diversas identidades podem ser experimentadas e construídas nas diversas tribos das quais o jovem participa, podendo ser multifacetadas. Para Abramo (1994), a constituição da identidade do jovem é marcada pela crise entre o mundo objetivo/social e o subjetivo/individual, o que leva a uma recusa das inserções institucionais, bem como à ênfase à experimentação e à busca por novos meios de sociabilidade. Essa recusa faz com que muitos jovens procurem uma via alternativa para a construção da identidade. Isso, muitas vezes, ocorre nas atividades de lazer nas quais encontram espaço para tal manifestação, visto que, no lazer, as relações de sociabilidade não são ditadas majoritariamente por uma ordem institucional (MAGNANI, 1996).

Dessa forma, uma importante característica dessa geração é sua profunda imbricação com o lúdico e sua relação com a cultura de massa. MURILHO (2003), lembra que a cultura de massa praticamente “nasce” na década de 50, com o conceito moderno de juventude. Nesse momento, surge uma espécie de civilização do lazer, cujo alvo principal é a juventude, que cada vez mais dispõe de tempo livre e de lazer. Isso em razão de vários fatores, como o prolongamento da escolaridade (fazendo com que os jovens fiquem cada vez mais com grupos de sua idade), e pelo fato de algumas famílias poderem prescindir do trabalho do jovem. Essa civilização do lazer vinculará cada vez mais o jovem ao espaço lúdico, à diversão, com uma crescente valorização dos momentos de lazer e de práticas excitantes. Em suma, esta é uma geração de jovens em que o espaço lúdico é cada vez mais importante. Esse espaço, por sua vez, remete-nos a uma característica dessa juventude que é destacada por PAIS (2001) e MAFFESOLI (2001) como o gosto pela aventura. Essa geração veria toda a vida como um jogo, numa estética de aventura.

Outra característica da juventude atual é apontada por MAFFESOLI (2001) como o desejo dos jovens de estar em grupo. A vida deles é vivida de forma intensa, mas coletivamente. Ele aponta que essa geração tem um grande desejo de viver em tribos e comunidades, ainda que de forma virtual. Em “o tempo das tribos”, o autor aponta como os jovens da era pós-moderna fazem parte de comunidades emocionais, que ele chama de tribos. Ele diz que a ligação entre a emoção partilhada e a comunalização aberta é que suscita uma multiplicidade de grupos, que chegam a construir uma forma de laço social muitas vezes bem sólido. O tribalismo refere-se à uma vontade de “estar-junto”, com o objetivo de compartilhar emoções em comum, tendo como única preocupação o presente vivido coletivamente.

O autor remete-se ao conceito de socialidade em contraponto ao de “sociabilidade”. A socialidade marca os grupos urbanos contemporâneos, que enfatizam o instante vivido nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionalizados. Isso a diferencia da sociabilidade, caracterizada por relações institucionalizadas e formais de uma determinada sociedade.

Mas, segundo FEIXA (1999), a principal característica dessa geração é a relação estreita com as novas tecnologias da informação: vídeo, fax, telefonia digital, informática, Internet. Esses jovens são chamados pelos teóricos de Geração Arroba (Feixa), N-Geners ou Net Generation (Tapscott). A mídia costuma rotulá-los de Geração Z (de Zapping), Geração Digital ou Geração Pontocom (Revista Veja, agosto de 2003).

 

A Geração Arroba (@)

Os jovens que nasceram em meados dos anos 80 são os primeiros de uma geração que nasceu e cresceu com a informática e a Internet como parte elementar da contemporaneidade. Essa geração não viu a “transformação” de um mundo analógico em digital, mas sim cresceu dentro de um ambiente no qual a vida virtual nada mais é que parte de seu cotidiano.

Isso se deu pela crescente utilização dos computadores e das novas tecnologias em nosso meio. Apesar de ser, em princípio, um recurso reservado às classes média e alta, nossa cultura passa a ser cada vez mais informatizada. Quais os efeitos dessa informatização nesses jovens? Esta, certamente, é a geração considerada como depositária das novas informações, ou seja, existe em nossa sociedade um conceito de que as crianças e os jovens têm domínio sobre o “mundo dos fios e dos botões”. Segundo FEIXA (2001), agora são os pais que começam a aprender com os filhos, os quais constituem um novo referencial de autoridade e deslocam as fases e condições biográficas que definem o ciclo vital. São os jovens os encarregados de dar conta das novas tecnologias.

Os reflexos da digitalização da cultura nos jovens dessa primeira década de 2000, com certeza, trazem mudanças em relação às outras gerações de jovens que já existiram. Não é o objetivo aqui fazer uma análise comparativa com outras gerações, mas sim aprofundarmo-nos um pouco sobre as características desta.

FEIXA (2000) usa a expressão Geração Arroba para denominar esses jovens (o símbolo da arroba (@) é, por excelência, o ícone da geração digital) e também por causa de três tendências de mudança social em relação à época em que a geração anterior vivia, comparada com a primeira do século XXI. Em primeiro lugar, esta é uma geração que tem o acesso universal (ainda que não seja generalizado) às novas tecnologias da informação e da comunicação. Em segundo, há uma erosão das fronteiras tradicionais entre os sexos e os gêneros com os quais os jovens têm de lidar. Já em terceiro, o autor acredita que o processo de globalização cultural traz, necessariamente, novas formas de exclusão social em grande escala - dividindo os jovens entre conectados e desconectados.

O autor aponta outras características sociais nas quais essa geração está imersa: uma, de espaço, outra, de tempo. Por exemplo, esta é uma geração que pode usufruir uma grande interconexão entre o espaço local e o espaço global. A Internet, como veículo global, traz uma cultura “Glocal1 ou seja, em muito globalizada, mas sem perder totalmente suas particularidades. Além disso, uma nova configuração de tempo é determinada – a fragmentação dos tempos de trabalho e de lazer prefiguram o tempo virtual, ou seja, é como se na Internet houvesse um “tempo atemporal”.

Já TAPSCOTT (1999) chama essa geração de Net Generation, ou N-Gen, e seus componentes de N-Geners. O autor diz que esse termo refere-se “à geração de crianças que, em 1999, têm entre dois e 22 anos de idade, não apenas aquelas que são ativas na Internet (...), mas têm alguma fluência no meio digital” (p. 3). Aqui, há uma ressalva. Temos que levar em conta que a Internet no Brasil só chegou ao público em 1995, ao contrário dos Estados Unidos, que têm a Internet aberta à população desde 1988. Assim, nossa geração digital não necessariamente tem a mesma faixa etária que a americana.

O autor analisa diversas questões em seu livro “Geração Digital”. Ele faz comparações principalmente entre duas gerações, a que chama de N-geners (a atual geração de adolescentes) e seus pais, o que define como geração dos Boomers (em referência ao baby boom ocorrido depois da Segunda Guerra Mundial). TAPSCOTT faz diversas considerações sobre como crianças e jovens dessa geração pensam, comportam-se e como aprendem, brincam e trabalham com a nova tecnologia.

Pensando nos usos que crianças e jovens fazem da tecnologia, ele diz que

“as crianças (e jovens) usam o computador para atividades que caminham lado a lado com nossa compreensão do que seja uma infância tradicional. Elas usam a tecnologia para brincar, aprender, comunicar-se e formar relacionamentos, como sempre o fizeram. Por outro lado, a mídia digital está criando um ambiente no qual essas atividades próprias da infância estão mudando radicalmente e poderão acelerar, para o melhor e o pior, o desenvolvimento infantil”. (p. 7).

Ou seja, ele considera que os computadores podem ser usados criativamente por crianças e jovens. Concorda com FEIXA (2000) sobre o fato de que esta é a geração na qual houve uma inversão de valores - são os filhos que ensinam os pais. Isso implicaria diversas coisas, como a perda do poder por parte dos pais, resultando em relações de autoridade mais frouxas. Ele também aponta para o fato de que as gerações antigas temem a tecnologia e seu futuro, porque o espaço das novas tecnologias é comandado pelos jovens e pela juventude. A revolução digital não é controlada apenas por adultos, e sim por jovens. Para essa geração, isso é parte componente de sua vida, e, para alguns jovens mais novos, a vida é impensável sem o computador. Dentre os muitos atrativos da rede, certamente os jogos eletrônicos são os que mais fascinam os jovens, em especial o público masculino.

 

Os jogos eletrônicos

De diversas formas são os jogos eletrônicos. Do antigo Pacman ao elaborado Counter Strike, os jogos eletrônicos são de interação entre homem e máquina, ou, às vezes, de interação entre os homens através da máquina. Os jogos eletrônicos mais difundidos são, com certeza, os videogames e os de computador, que simulam realidades virtuais. Hoje, além dos jogos de combate (Counter Strike), dos de raciocínio e de aventura (os role playing games virtuais, com temática medieval, como Ragnarok), dos de simulação de atividades (corridas de carro e moto como The Need for Speed), existem também os jogos eletrônicos, que têm por objetivo apenas simular eventos sociais (The SIMS, por exemplo).

Segundo CABRAL (1999), os jovens são fascinados pelo universo dos jogos eletrônicos. Para ela, esse fascínio se deve porque

“esses jogos representam, para a cultura lúdica infantil, mas não só –, o que há de mais moderno e inovador em matéria de diversão eletrônica. Também aparentam ser a expressão cultural do processo de mundialização que, em última instância, ‘co-habita e se alimenta’ das culturas e dos imaginários locais e regionais.”

Na Revista Superinteressante de junho de 2003, a reportagem de Kenski e Aguerre conta do impressionante grau de realismo dos jogos de computador. Nessa reportagem, vê-se que uns dos jogos que mais sofreram mudanças ao longo do tempo foram os de RPG, em que os participantes assumem um personagem e tentam melhorá-lo. A reportagem refere-se, entre outros, ao jogo Everquest, baseado em imagens. Este, por exemplo, é um mundo medieval que tem pelo menos 90 mil usuários, bem como trabalha com o mesmo sistema de lutas com monstros e a conquista de equipamentos. Segundo a reportagem, esses jogos são sedutores porque conseguem preencher determinadas características interessantes para o jogador: não é um jogo tão fácil a ponto de perder a graça, e nem tão difícil que se torne frustrante. Os jogos eletrônicos apresentam objetivos claros, há vários modos de atingir o sucesso e existe um feedback rápido, ou seja, o jogador recebe uma conseqüência imediata após cada reação.

Hoje, no Brasil, tomam grande vulto os jogos medievais como Tíbia e Ragnarok, que propõe o mesmo objetivo: ter um personagem, melhorá-lo, dentro de um ambiente que simula, com uma riqueza de detalhes, um mundo virtual medieval, mágico e fantástico. Mas, apesar de toda a profusão de jogos gráficos que existe hoje, um tipo quase anônimo, mantém-se na Internet até os dias atuais: os chamados MUDs.

 

O que são MUDs?

Ancestrais de todos os jogos eletrônicos de RPG (Role Playing Game), como os citados anteriormente, os MUDs são mundos virtuais, em que o jogo acontece unicamente em um sistema baseado em texto: sem gráficos, sem imagens.

A palavra MUD, de origem inglesa, é a abreviação de “Multi-user dungeons and dragons2” e refere-se a um ambiente virtual – um jogo de aventura, em que o usuário explora mundos em busca de monstros e tesouros. Foi criado em 1979, por estudantes da Universidade de Essex, na Inglaterra. Desde então, o jogo tem-se popularizado e, apesar de antigo, ainda atrai inúmeros jovens. Os MUDs são mundos virtuais baseados em textos, nos quais os usuários podem criar personagens num espaço interativo e compartilhado. Nesses ambientes virtuais, a interface e as interações entre o usuário e o ambiente são realizadas unicamente por meio da linguagem escrita.

O MUD original é baseado no mundo mágico do Dungeons and Dragons (AD&D), um jogo de temática medieval e mágica, com magos, guerreiros, elfos, anões e duendes. As aventuras incluíam lutas com dragões e expedições a castelos, às vezes em busca de tesouro, ou em busca de equipamentos para melhorar o personagem.

Em 1989, o MUD foi adaptado para outras finalidades, e surgiu um ambiente onde não havia monstros nem armas, conhecido como Tiny MUD, destinado apenas a interações sociais, sem o caráter de jogo. Os MUDs foram então divididos em Adventure MUDs – os originais, com qualidades de jogo – e o Social MUDs, destinados apenas a interação social.

O acesso a esses “mundos virtuais” não é feito pela Web, e sim pela porta de Telnet do microcomputador. Neste artigo, será descrito um MUD brasileiro em particular, que é um RPG situado num mundo medieval; este se chama “O Mundo de Vitália”, e conta com cerca de 2.000 jogadores. Ele é o maior MUD de língua portuguesa existente no Brasil.

Foi realizada uma pesquisa, a qual mostrou que o público usuário desse MUD era composto, em sua maioria, por homens, com idade entre 17 a 20 anos, solteiros e de nível socioeconômico de classe média ou superior. São estudantes, em especial do fim do Ensino Médio ou dos primeiros anos da graduação. A região do Brasil que mais concentra jogadores é a sudeste. Esse MUD foi estudado porque muitos jovens diziam-se “viciados”, “fanáticos”, pois passavam muitas horas on-line nesse mundo virtual. Assim, para poder compreender como os jovens estão imbricados nesses jogos eletrônicos, primeiro fez-se necessário compreender qual o contexto do jogo e como ele funciona.

Toda a interface de um MUD é textual, ou seja, não existem figuras, nem gráficos, sons ou qualquer coisa semelhante na interação com o usuário, o qual pode se mover entre os diferentes espaços do ambiente virtual, utilizando comandos como N, S, E, W (Norte, Sul, Leste, Oeste). Os lugares são descrições textuais, que evocam tanto sentimentos, como estímulos sensoriais, procurando estimular a imaginação do visitante. As descrições dos lugares contêm os objetos e as pessoas presentes neles. Essa percepção permite ao usuário interagir com objetos existentes e com outros usuários; as interações são consideradas ações. O número de ações de um usuário dentro de um MUD é limitado; depende do ambiente e dos objetos existentes nele. A interação entre pessoas pode ocorrer de duas formas: pelos canais de comunicação e pela manipulação de objetos - por exemplo, um jogador pode entregar um objeto para o outro segurar (SOUZA NETO, 2001). O jogo é multiusuário, ou seja, diversas pessoas podem jogá-lo simultaneamente.

Para entrar nesse tipo de mundo, é necessário que você crie um personagem, o qual deve ser homem ou mulher e deve pertencer a uma das seis classes: Mago, Guerreiro, Druida, Bardo, Clérigo ou Ladrão. Cada uma dessas categorias tem habilidades e dons específicos, necessários para sobreviver no mundo medieval. Além disso, pode ser incluída uma descrição de suas características físicas ou a história de seu personagem.

Quando se entra no jogo, o que se vê no monitor é um texto que descreve o ambiente onde você está, os objetos existentes, os monstros para se matar e as pessoas que estão nesse local, bem como as ações de outros personagens, que aparecem como texto escrito. A seguir, o exemplo da sala principal de muitos MUDs:

“O Templo de Midgaard

Você está a sul do hall do Templo de Midgaard. O templo foi construído com blocos gigantes de mármore, com aparência eterna, e muitas paredes são cobertas por velhas pinturas de Deuses, Gigantes e camponeses. Grandes degraus descem logo após o portal do templo, descendo o enorme monte sobre o qual o templo está construído e termina na Praça do Templo logo abaixo. Para oeste, você pode ver a Sala de Leitura. A Sala de Doações é uma pequena sala para o leste. [Saídas: n e s w d ]”

Para locomover-se nesses ambientes, é necessário dar comandos no teclado como N (norte), S (sul) etc. Para pegar coisas, comer, beber água, é necessário digitar a ação que você quer executar (“Drink” água, “Get” espada; “Kill” monstro; “Open” porta, etc.).

O objetivo do jogo é tornar-se imortal, e, para isso, é preciso jogar até o nível 100 com cada classe de personagem. Esses níveis são atingidos mediante lutas com “monstros virtuais” que o programa fornece. Cada monstro morto é um ganho de experiência, e é isso que permite as mudanças dos níveis. A cada mudança, são adquiridas novas habilidades para o personagem, que passa a ser mais poderoso e pode matar monstros maiores.

Esse jogo é regido por uma classe especial de jogadores, chamados de “Deuses”, que são os programadores desse ambiente virtual. Além de programadores, eles têm por objetivo regulamentar tudo o que ocorre no ambiente, como brigas entre jogadores, problemas nas inteligências artificiais etc.

À primeira vista, o MUD é um jogo eletrônico como muitos. Mas um MUD é muito mais que um jogo: ele é considerado por diversos autores, como BRUCKMAN (1992), como uma mistura de “jogo, realidade virtual baseada em texto e comunidade virtual”.

 

O MUD como um jogo

O MUD é considerado um jogo pelo fato de o usuário poder matar monstros e adquirir pontos de experiência, procurando equipamentos e buscando melhorar seu personagem, a fim de torná-lo mais forte. É um ambiente de diversão e desafio que entretém o jogador. Os jogadores interessam-se pela ludicidade, a qual é dada por esse tipo aventura que o MUD proporciona (matar monstros e ganhar tesouros).

Como o jogo é inteiro baseado em texto, o papel da imaginação é fundamental; isso vai na contramão da tendência mundial dos jogos, que tendem a tornar-se cada vez mais próximos de uma simulação gráfica da realidade ( tais como os jogos Ragnarok, Tíbia e Última on-line). O MUD é um jogo eletrônico, em que o jogador deve medir sua força com a máquina, ou seja, ele precisa vencer um programa de inteligencia artificial (que são os monstros virtuais do programa). Isso é bastante atrativo, pois o jogador mede sua força com alguém que não é igual em possibilidades, e sim diferente (uma máquina).

Outro atrativo do jogo para os jovens é que ele proporciona um espaço e um tempo chamados “medievais”, ou um ambiente de RPG, onde é possível a representação de um personagem em uma época antiga. O jogo é composto de diversos “ lugares” virtuais, com diferentes temáticas. Cada “parte” refere-se a uma determinada mitologia, e, é nesse ambiente, que os jovens enfrentam seus monstros. Por exemplo, em um lugar chamado “Camelot”, os monstros daquele lugar, a serem enfrentados, são “o Rei Arthur”, “Lancelot” etc.

No entanto, o conceito de medieval aqui refere-se não à temática do jogo em si – pois, na verdade, este é composto de uma bricolagem da mitologia mundial – mas sim ao tipo de valores que os programadores procuram estabelecer diante desse jogo. Nesse ambiente, os programadores procuram fazer com que certos valores, considerados por eles como “medievais” – como a honra, a solidariedade etc. – sejam seguidos pelos participantes do jogo.

Caillois (1967) caracteriza os jogos em diversos tipos, dos quais os quatro principais são: os jogos de competição (Agon), os de azar (Alea), os de simulacro, de teatro (Mimicry) e os de vertigem, em que se procura uma sensação de entorpecimento (Ilinx). Para o autor, cada tipo de jogo seduz o homem por sua ludicidade e pelo prazer que proporciona. Sendo assim, de que tipo poderia ser o MUD? Ele é considerado, principalmente, como um jogo de Agon (das disputas entre homem e máquina) e Mimicry, pois permite uma representação quase teatral dos personagens. A representação dos jogadores, no Mimicry, entretanto, pode ser mais do que apenas um jogo, e, por isso, foram levantadas outras hipóteses sobre os usos que os jovens fazem da realidade virtual propiciada pelo MUD.

 

O MUD como Realidade virtual

Segundo Bruckman (1992), um MUD é uma realidade virtual baseada em texto, multiparticipante e acessível pela Internet. O termo “realidade virtual” refere-se à simulação computadorizada de um ambiente, que tem vários graus de interatividade. Os MUDs dão ao usuário a sensação de estar dentro de um ambiente compartilhado, por meio de suas descrições textuais. Para Turkle (1997), os MUDs são um tipo de realidade virtual, mas com ênfase na interação social.

Esses autores usam o conceito de realidade virtual porque os jogadores costumam manter uma espécie de vida paralela dentro dos MUDs. Nestes, não apenas se joga, mas se vive: existem casas, os personagens passam por necessidades “biológicas” (como comer, beber água, apesar de não precisar ir ao banheiro); existem amigos, namoradas, clãs, famílias e há toda uma vida social, com regras sociais próprias ao contexto do jogo, códigos de conduta e honra, como será visto mais adiante. Essa característica do MUD, de prover um ambiente virtual, com tempo e espaço próprios, é o que faz esses pesquisadores o definirem como uma realidade virtual, além de um jogo.

O MUD é uma realidade virtual por ser ele uma metáfora computacional, que procura representar o mundo tal como o conhecemos, contendo pessoas, lugares e objetos com os quais se pode interagir. Ele tem uma organização espacial e uma mobilidade dentro do ambiente. Muitos jovens são atraídos pela sensação de simulação de um ambiente que ele provoca, e “podem fazer diferentes usos dele”.

Um dos usos é o “espaço psicológico”, lugar que pode ser considerado como um espaço transicional, onde o usuário tem a sensação de poder fazer dali uma “extensão” de sua mente. Esse espaço, no MUD, pode-se desenvolver de quatro formas. Pode ser um lugar propício à “experimentação de comportamentos e identidades”, como um workshop, não só de comportamentos, mas de identidades, ou seja, os jovens experimentam ali comportamentos que desejam trazer para sua vida presencial. Isto é, um jovem tímido pode experimentar ser, no jogo, extrovertido e alegre, e, com isso, aos poucos trazer esse comportamento para a vida presencial.

Outros jovens, entretanto, usam esse espaço propiciado pelo MUD para poder ter uma “vida paralela”, em que se podem viver comportamentos fantasiosos. Ter uma vida paralela não significa necessariamente que o usuário apresente dificuldade psicológica para se expressar – isso significa que muitas vezes o jogador, efetivamente, não tem como assumir sua personalidade virtual. Os MUDs são interessantes para muitos jogadores, pois podem ser extremamente fantasiosos. Por exemplo, ser um mago, com magias diversas e poderes especiais do estilo “Harry Potter” fora de um MUD é impossível.

No entanto, o que surpreende no relato de muitos jovens é que eles podem fazer uma inversão: “viver o MUD como uma realidade e representa-la na vida cotidiana”, pois muitos afirmam poder dar vazão a sentimentos, personagens e comportamentos muito diferentes dos de sua vida presencial. Assim, alguns jovens tomam a vida como um jogo, uma aventura, e fazem do MUD sua realidade, um espaço onde, de fato, podem se expressar sem as restrições sociais impostas. Ou seja, alguns jovens representam um personagem no cotidiano e dizem “viver”, realmente, no MUD. Existem muitos motivos pelos quais eles alegam fazer isso, mas o principal é que, diante das incertezas da vida cotidiana, o MUD parece apresentar um espaço de segurança, um espaço onde o jovem está livre de críticas e onde os amigos podem aceitá-lo com mais facilidade. Esse espaço parece ao jovem ser mais controlado do que a vida cotidiana, em que ele exerce pouco ou nenhum controle sobre muitos fatos em sua vida; no MUD, os jovens são protagonistas de sua própria história, escolhendo viver como querem e do jeito que desejam, sem se preocupar com as conseqüências.

Os jogos informáticos, por outro lado, permitem ao jovem exercer um poder, seja como um simulador de vôo, seja na missão de heróis ou na de aventureiros virtuais, em busca de tesouros, como é o caso do MUD. Pais (2000) acredita que estes são apaixonados por jogos informáticos justamente porque dentro do cenário virtual de um jogo, vêem-se protagonistas ativos em meio a uma realidade composta de fatos e de imagens do real. E, penso, talvez por essa razão muitos possam considerar essa realidade mais “real” do que o mundo presencial.

Ainda, muitos jovens usam essa forma de realidade virtual como um “escapismo”, uma fuga da realidade presencial. O mundo real é, por eles, visto como um lugar desinteressante, em oposição ao mundo virtual, lugar de aventura, no qual os jogadores são protagonistas e estão “imunes” à violência das grandes cidades. Muitos jovens relatam que é bom viver no MUD, pois este é um mundo de fantasia, livre do mal e da violência do mundo presencial. O MUD configura-se, então, como uma possibilidade de fugir, de escapar dos problemas da vida cotidiana e da vida que não se tem controle.

Esse desejo de escapismo, mais do que um desejo individual de cada jogador, parece ser uma constante antropológica, o que nos remete à noção de nomadismo, de MAFFESOLI (2001), que discute a errância pós-moderna, bem como os escapismos pós-modernos praticados pelos jovens. O MUD pode ser considerado como uma forma de nomadismo virtual, como muitas outras praticadas pelos jovens.

A noção de nomadismo, por sua vez, remete a idéia de “aventura”. A aventura aqui é vista em dois níveis: para alguns, o jogo proporciona uma vivência de aventura, e, para outros, tomam toda sua vida como uma aventura. O jogo é visto como uma aventura, algo fora da continuidade da vida, isolado e acidental, cheio de imprevistos. Jogar MUD aparece como uma aventura que reage ao marasmo instalado na civilização, uma aventura de cunho medieval, do que se costumava chamar “capa e espada”, fazendo com que os jogadores de MUD possam ser vistos como cavaleiros medievais virtuais. Esses jovens praticam um nomadismo virtual, e não necessariamente físico, proporcionando uma dualidade: a de viver aventuras sem ter que sair de seu próprio quarto.

 

Comunidade virtual

O MUD propicia uma grande sociabilidade entre os jogadores, que podem formar agregações sociais. Para Rheingold (1993), os MUDs são essencialmente uma atividade de comunicação mediada pelo computador. A característica de multiusuário desse tipo de programa proporciona às pessoas que jogam conhecerem-se e criarem fortes laços de amizade, os quais acabam por formar uma comunidade entre os diversos jogadores que habitam esse espaço virtual. Com regras e normas próprias, essas comunidades formadas em torno de uma atividade de comunicação mediada pelo computador são consideradas “comunidades virtuais”.

As amizades virtuais entre os jogadores do MUD podem ocorrer de diversas formas, mas são mais intensas pelo fato de que elas se expandem do mundo virtual para o presencial. Existem diversos encontros presencias entre os jogadores, chamados de MUD encontros. Ou seja, os jogadores não apenas se encontram no ambiente virtual (no jogo e no MSN), mas também se vêem e mantêm contato pessoalmente. O fato de o jogo propiciar que seus participantes fiquem amigos (e não só virtualmente) é o principal diferencial do MUD como jogo, uma vez que o ciberespaço é um lugar de interação no qual novas formas de sociabilidade são criadas e atualizadas pelos usuários.

Retomando os conceitos de MAFFESOLI (2001), sobre os agrupamentos juvenis e os conceitos de socialidade e sociabilidade, acredita-se que no MUD os usuários possam viver tanto os aspectos de socialidade (relações efêmeras e passageiras, caracterizadas pelo hedonismo, tribalismo, presenteísmo), como os de sociabilidade (relações estáveis, duradouras e formalizadas).

Isso porque o MUD propicia ambos os aspectos. Existe espaço para relações fugazes e passageiras (típicas da socialidade), pois muitos criam seus personagens e desaparecem, bem como para relações duradouras e formais (o que pode ser caracterizado como sociabilidade). No MUD estudado, “O Mundo de Vitália”, as relações dos jogadores podem ser muito duradouras, pois existem aqueles que estão há praticamente sete anos no jogo e têm diversas relações formais, que visam à formação de uma unidade social, apresentando relacionamentos formais e institucionais.

Mas como esses relacionamentos entre os jogadores pode formar um agrupamento, uma comunidade? Uma comunidade, tradicionalmente, forma-se por meio de relacionamentos sociais, ligações de parentesco, relações de poder, regras sociais estabelecidas, por hábitos e costumes, assim como valores estabelecidos entre as pessoas. No MUD, podem ser verificados todos esses aspectos.

A comunidade virtual proposta pelo MUD conta com diversas teias de relacionamentos sociais e hierarquias. Por isso, pode ser considerado como uma comunidade. Ela tem uma organização própria; os jogadores montam clãs (que são associações de jogadores amigos), associações familiares (muitos formam uma família com sobrenomes em comum, tratando-se por pais, mães, filhos etc.). É uma comunidade que cultiva valores, cujos principais são a honra, a solidariedade e as amizades. Esses valores remetem aos ideais propostos pela antiga cavalaria medieval européia, e, assim, pode-se ver sua retomada pelos jovens que freqüentam o MUD. Essas relações sociais são de extrema importância para os jogadores.

Ainda, tem-se que considerar que como a comunidade encontra-se tanto on-line como off-line, os encontros presenciais dão outro tom às comunidades virtuais brasileiras. Acredito que isso seja uma característica específica do Brasil. Nós, brasileiros, parecemos ter a necessidade de nos encontrar com as pessoas que conhecemos on-line – assim pela diferença da literatura estrangeira (na qual não foi encontrado nenhum trabalho, como os citados ao longo do artigo, que se referisse a encontros off-line) com a nossa, que, apesar de escassa, sempre cita encontros off-line das comunidades virtuais.

 

Alice no país do espelho

Alice, personagem da ficção de Lewis Carrol, pode-nos ser bastante ilustrativo, ao pensarmos sobre o MUD. Aqui, referimo-nos especialmente ao conto “Alice no país do espelho”. Neste, Alice está brincando com seu gato, quando eles se dirigem a um espelho, no qual a criança vê refletida a si, seu gato e a casa onde mora. Mas essa casa que ela vê não é sua casa, e sim o país do espelho, onde tudo é invertido. O espelho desvanece-se, e Alice entra na casa que ela chama de “casa do espelho”. A casa do espelho, como diz Alice, é igual à dela, mas é diferente: os quadros parecem vivos, assim como seu jogo de xadrez. E assim ela percorre o país do espelho, encontrando flores falantes, cartas de baralho e um jogo de xadrez vivo, animais falantes etc. A procura pelo caminho de volta para casa é difícil, mas cheia de aventuras emocionantes, em que todo o conhecimento do mundo fora do espelho não é válido, e nas conversas entre os habitantes desse mundo existem inúmeros jogos de palavras. Nessa sua aventura, Alice busca se tornar rainha, e, na festa de sua coroação, ela acorda e descobre que esteve sonhando. Mas lá está seu gato e seu jogo de xadrez, com quem ela se encontrou no mundo do espelho.

Assim, pode-se ver os MUDs, tendo o espelho de Alice como a tela do computador, que reflete um mundo tão semelhante ao nosso, porém mágico. A metáfora do espelho (no texto original, o titulo é “the looking glass” ou “o espelho de se olhar”) e da tela do computador pode ser levada ainda mais adiante, se pensarmos que o MUD reflete aspectos psicológicos dos próprios jogadores. Este reflete a eles próprios, espelhando suas características, suas vontades e seus desejos, ainda que muitos não se dêem conta de que o mundo que vivem ali é um reflexo.

Um reflexo que se constitui como um mundo imaginário e mágico; este é o mundo onde Alice vive sua aventura. A aventura do MUD, muitas vezes, é semelhante à de Alice, quanto ao encontro com criaturas mágicas (agentes eletrônicos) e animadas. Cada mudeiro, por sua vez, aventura-se como Alice num mundo de fantasia, onde deve desafiar o perigo e jogar com seu eu virtual, correndo o risco da morte. O aventureiro, como ela, deixa seu corpo adormecido na cadeira e viaja para um outro mundo, com seu “eu” virtual.

Mas quando acorda, como Alice, vê que o gato ainda está lá: o gato, poderoso dentro do sonho, continua ao seu redor, mas volta a ser apenas um gatinho. Da mesma forma, o amigo virtual tão poderoso que o jogador encontra no MUD, país do espelho, também está fora dele, mas sem poderes - é tão real quanto ele, tem tantos sentimentos quanto ele, mas é apenas um jovem, como tantos outros.

E aqui existe uma diferença entre a Alice e os mudeiros: o mundo de Alice restringe-se a um sonho (do qual ela duvida da veracidade, mas não de seu sentimento), enquanto nossos jogadores vivenciam o MUD de diversas maneiras, até mesmo como uma espécie de sonho. Mas eles trazem alguns aspectos de sua aventura para o mundo concreto e, principalmente, seus amigos. Se, é impossível trazer o rei Arthur para o mundo presencial, muitos mudeiros trazem, pelo menos, os amigos, o gato de Alice que a acompanha na aventura mágica e que volta com ela.

O fato é que o MUD retoma o mundo mágico, idílico e aventureiro. Mas essa retomada não é feita apenas pelos nossos mudeiros: parece-se tratar de um fenômeno social mais amplo. Muitos temas de aventura mágica e medieval estão sendo retomados – daí o sucesso de livros e filmes como “Harry Potter”, bem como a impressionante revivescência do livro do “Senhor dos Anéis” (impulsionada pelo lançamento dos filmes).

O MUD, o Potter e o Senhor dos Anéis apresentam o mesmo tipo de aventura, que parece estar sendo necessária à vida pós-moderna e tecnologizada de hoje – a magia resolvendo todos os problemas e as dificuldades, bem como salvando o herói no fim. É o desejo de aventura num mundo rústico, imprevisível e cheio de perigos, onde os jogadores colocam-se como heróis que podem vencer feras mitológicas. Infelizmente, na vida cotidiana nenhuma magia é capaz de salvá-los do desemprego e das dificuldades que encontrarão. Entretanto, os amigos que se encontram virtualmente, muitas vezes compensam essa incerteza e essa insegurança, pois o sentimento de amizade, para muitos, é uma das poucas certezas que eles têm.

 

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Endereço para correspondência
Ivelise Fortim
R. Manoel Gaya, 1812 Tremembé
02313-001 São Paulo, SP
Tels.: 62041791/ 62034176
E-mail: ivelisef@uol.com.br

Recebido em 11/08/2005
Aceito em 12/09/2005

 

 

Notas

* Membro do NPPI - Núcleo de Pesquisas de Psicologia e Informática - PUC-SP. Psicóloga, Mestre em Antropologia pela PUC-SP, professora da Universidade Ibirapuera.
1 O autor usa o termo “Glocal” , para designar a junção do “Global” com o “Local”.
2 Uma tradução literal seria “Dominio multiusuário: calabouços e dragões”.