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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PARTE I

 

Cultura hip hop: um lugar psíquico para a juventude negro-descendente das periferias de São Paulo

 

Hip Hop culture: a psychic room for the afro-descendant youth of São Paulo’s outskirts

 

 

Guilherme Scandiucci*

Instituto Guatambu de Cultura

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo baseia-se em dissertação de mestrado defendida pelo autor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, no ano de 2005. Tem como ponto de partida a psicologia analítica de C.G. Jung aplicada a um contexto local: o Brasil e, mais especificamente, a cidade de São Paulo. Aliado aos pós-junguianos, o trabalho procura referências externas ao campo da psicologia – como a sociologia, a antropologia e a história – para percorrer o fenômeno chamado movimento ou cultura hip hop. Este atinge parte considerável da população jovem de São Paulo, sobretudo a que mais sofre com o processo de exclusão social, isto é: a negro-descendente das periferias. Os materiais coletados foram entrevistas, depoimentos, observações próprias, além de letras da vertente musical rap. A análise realizada concluiu que o hip hop tem grande força de expressão simbólica na construção de uma persona criativa dessa população, conferindo-lhe possibilidade de assumir uma identidade mais próxima de sua realidade. Tal movimento é capaz de exercer influência sobre a autonomia dos complexos da sociedade paulistana, principalmente no que diz respeito à questão do racismo e do lugar ocupado pelos negro-descendentes habitantes das periferias.

Palavras-chave: Psicologia analítica, C.G. Jung, Alma brasileira, Hip hop, Negro-descendente, Cultura afro-brasileira, Relações étnicas e raciais, São Paulo, Periferia, Complexo.


ABSTRACT

The present article is based upon the master dissertation defended by the author at the Psychology Institute of the University of São Paulo, Brazil, in 2005. Its starting point is C.G. Jung’s Analytical Psychology applied to a local context: Brazil and more specifically Sao Paulo City. Allied to the post-Jungians, this work searches for references outside the Psychology field – as Sociology, Anthropology and History – to explore the so-called hip hop culture or movement phenomenon. It affects a considerable part of the young population of Sao Paulo, mainly the one suffering the impact of the social exclusion process: the African-descendant living in the outskirts. The collected material is comprised of interviews, statements, my own observations, besides lyrics from the musical segment rap. The analysis undertaken concluded that hip hop has great power of simbolic expression over the construction of a creative persona of this population, enabling it to assume an identity closer to its reality. Such movement can also exert influence over the autonomy of the complexes of the Sao Paulo society, above all in what is related to racism and the place occupied by the African-descendants living on the periphery.

Keywords: Jungian psychology, C.G. Jung, Brazilian soul, Hip hop, Afro-brazilian culture, Ethnic and racial relationships, Sao Paulo, Outskirts, Complex.


 

 

“O rap é uma brecha no sistema.”

(Mano Brown)

Antes de tudo, gostaria de frisar que é uma satisfação contar com este espaço de publicação cedido pela Imaginário. Ao mesmo tempo, sinto-me grato por poder fazer uso da palavra por meio da psicologia analítica, em lugar não dedicado exclusivamente a ela. Faço questão de enfatizar este ponto, pois, além do simples fato de que o convívio (ou confronto) entre disciplinas diferentes tende a deixar o debate mais rico, tradicionalmente a psicologia analítica, bem com a psicologia de forma geral, no Brasil pouco tem-se preocupado com as questões étnico-raciais de sua sociedade, como bem aponta FERREIRA (2000). O Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, instituição acolhedora da pesquisa na qual o presente artigo se baseia, não apresenta exceção a essa regra.

Tal pesquisa nasceu do curso de mestrado por mim realizado entre o início de 2002 e o de 2005. A dissertação, seu maior fruto em termos de publicação e divulgação do trabalho, tem um caráter ensaístico e versa sobre o movimento ou cultura hip hop na cidade de São Paulo, bem como sobre a juventude negro-descendente1 e a das periferias dessa metrópole.

Seu referencial teórico é, sobretudo, a psicologia analítica de Carl G. Jung e os chamados pós-junguianos, mas também recorre, por vezes, à história, à sociologia e à antropologia, com a finalidade de tentar compreender um pouco do fenômeno estudado sob outros pontos de vista. Aqui é interessante comentar outro “nado contra a maré” que acabei de realizar: tradicionalmente, a psicologia analítica não se volta de maneira especifica aos fenômenos culturais de nosso aqui e agora; se o faz, em geral – ainda que com exceções que fazem a diferença – é exclusivamente sob a ótica do inconsciente coletivo, dos arquétipos e dos mitos. É prática comum outras disciplinas das ciências humanas não considerarem a psicologia de Jung e seus seguidores, e vice-versa.

Os materiais coletados ao longo da pesquisa foram entrevistas, depoimentos, observações próprias – boa parte destes provenientes da Aliança Negra Posse, organização ligada ao hip hop e localizada na Cohab Cidade Tiradentes –, além de letras da vertente musical rap. Os entrevistados, bem como os autores das letras analisadas, são pessoas com uma trajetória relativamente longa dentro do movimento.

 

Movimento ou cultura hip hop

A cultura hip hop surgiu nos guetos nova-iorquinos, nos Estados Unidos, na década de 1970 (ainda que o ritmo do rap tenha origem anterior na Jamaica). Trata-se de um empreendimento coletivo e abarca manifestações artísticas nos campos da música (RAP, sigla derivada de rhythm and poetry – ritmo e poesia, uma espécie de canto falado ou fala rítmica), das artes visuais (grafite) e da dança (break). O movimento chegou ao Brasil em meados de 1980, época de sensível aumento da população pobre do país, conseqüência do agravamento da crise econômica que marcou o período da redemocratização. Vem atingindo maior notoriedade na sociedade com o passar do tempo e ocorre, principalmente, em comunidades que vivem nas partes periféricas ou marginalizadas de grandes centros urbanos como a cidade de São Paulo (ANDRADE, 1996; PIMENTEL, 1997; CARRIL, 2003; LOURENÇO, 2002; TELLA, 2000).2

O movimento hip hop pode ser caracterizado como uma prática social promovida pelos jovens pobres, principalmente pelos negros. O rap, por sua vez, é a expressão que mais difundiu (e difunde) este movimento, inclusive na mídia. Traz à tona o preconceito racial e social, a pobreza, a violência etc., presentes no cotidiano dessas comunidades, sendo uma manifestação contemporânea fundamental na cena cultural paulistana (ANDRADE, 1996).

Os elementos centrais do rap, por exemplo, podem ser interpretados como reelaborações de práticas culturais de origens africanas, ligadas à tradição oral e à música. Questões relativas à etnicidade estavam bastante presentes nas letras de rap feitas por jovens paulistanos a partir do início de 1990. Buscava-se compreender a história da população negra no país, resgatar símbolos internacionalizados de origem africana e afro-americanos, que passam a ser interpretados como parte de uma história comum às pessoas da diáspora negra (SILVA, 1995).

SILVA (1995) mostra que o hip hop se apresenta, politicamente, como sistema orientador por meio do qual os jovens adquirem “autoconhecimento” em relação ao processo social e promovem intervenções práticas no plano mais imediato. O rap, como o elemento constitutivo mais expressivo do hip hop, surge como o principal registro do apartheid social. Ao se inspirar numa produção cultural norte-americana, os rappers de São Paulo promoveram redefinições à luz do contexto local. Começam a se ver como parte de uma história comum marcada por exclusões e conflitos que aproximam os negro-descendentes de diferentes contextos geográficos da diáspora. Puderam então elaborar a crítica à democracia racial, nos seus próprios termos.

Em São Paulo, o hip hop teve início no fim dos anos 80. Ficaram bem conhecidos os encontros de jovens, sobretudo da periferia, na estação São Bento do metrô e na Praça Roosevelt, região central da cidade. Dançavam break, começavam a fazer os primeiros raps, juntavam-se para trocar informação. Começavam a falar em posses3. Enfim, ia nascendo o movimento (ANDRADE, 1996; PIMENTEL, 1997; LOURENÇO, 2002).4 Estiveram presentes nesses encontros figuras que hoje são referências para o rap nacional, como Mano Brown, KL Jay, Thaíde, DJ Hum, entre outros.

 

Pele negra, máscara branca

Existem diferentes formas de manifestação do racismo. É mais fácil lidar com o racismo aberto, como coloca DALAL (2002), porque é “auto-confesso” e, portanto, visível a todos, do que lidar com o racismo encoberto. No entanto, é problemático precisamente por ser invisível e facilmente negado, tanto de forma consciente como inconsciente. Uma maneira de se revelar o racismo é a evidência estatística. Diga-se de passagem, é sabido que, no Brasil, o racismo é bastante encoberto, em relação a países como os Estados Unidos ou a África do Sul, por exemplo – o que faz com que a categorização das pessoas pelas diferenças “raciais”5 seja ainda mais latente.

Os brasileiros, em geral, definem as categorias “raciais” baseados principalmente na aparência, e não na ascendência, como fazem os norte-americanos, por exemplo (FRY, 1996). No entanto, é interessante ressaltar uma pesquisa por amostragem realizada por PENA e BORTOLINI (2004) que, baseados em critérios genéticos previamente utilizados, capazes de estimar com precisão o grau de mistura africana e européia de uma população6, afirmam que, se toda pessoa com mais de 10% de ancestralidade africana for considerada negro-descendente (classificação arbitrária, como eles próprios assumem), 87% (cerca de 146 milhões de habitantes) dos brasileiros estariam nessa categoria – o que é uma cifra impressionante.

Concluem que pelo menos 77 milhões de pessoas (ou 45% da população de nosso país) apresentam 90% ou mais de ancestralidade africana. Porém, de acordo com tais autores, 48% dos negro-descendentes brasileiros autoclassificam-se como “brancos” (PENA; BORTOLINI, 2004). Assim, muitos cidadãos que poderiam ser tranqüilamente classificados como “negros” ou “pardos” dizem ser “brancos”. É um sinal claro de que há vantagens em ser “branco” no Brasil, pois provavelmente esse cidadão sente-se mais aceito na sociedade se considerado como tal. Caso contrário, simplesmente se autoclassificariam como negros.

Hélio Santos interpreta esse fenômeno da seguinte forma:

“O que ocorre no Brasil é que a metamorfose dos pardos em brancos dá-se mediante a construção de um imaginário coletivo construído com o apoio de nossas elites que têm uma baixa auto-estima, própria de quem vive nos trópicos, mas sonha com a Europa.” (SANTOS, 2001: 46-47)

Assim, os negro-mestiços estão bem mais próximos, em geral, do negro, em termos de posição financeira, educacional e social (SANTOS, 2001). Parece-me uma situação perversa por parte das elites: por um lado, querem o embranquecimento do Brasil para que não sejamos vistos como um país de “pretos”, como se isso fosse naturalmente negativo. Por outro, os “mulatos”, mesmo que claros, têm um lugar reservado com os, de fato, “negros”: a senzala ou a periferia da sociedade – ou da cidade. Trata-se de um lugar simbólico e concreto ao mesmo tempo: no plano do poder aquisitivo e no da discriminação.

Os resultados de minha recente pesquisa mostram, como procurarei apontar brevemente no presente artigo, que o hip hop vem justamente ao encontro dessa postura: manifestação essencialmente da periferia excluída, traz o que é inconsciente para a consciência, que pode, então, se reestruturar continuamente, a fim de assimilar aspectos até então relegados, e levá-los às ações e interações mais discriminadas (SCANDIUCCI, 2005).

 

Psicologia analítica e o negro no Brasil

DIAS e GAMBINI (1999) colocam que o negro foi a segunda negação no Brasil (após o índio ter sido negado), tendo como diferença o reconhecimento da força de trabalho, a escravidão, que moveu a economia do país por um largo período de tempo. Na consciência coletiva, vemos, de acordo com os autores, o negro como aquele que constituiu junto, mas nunca como aquele que está profundamente arraigado à nossa identidade.

Quando se pensa na constituição do povo brasileiro, tem-se consciência da presença do negro e da miscigenação, das contribuições dos povos africanos na música, na culinária, na religião etc., mas trata-se de uma presença em certa medida superficial de tais elementos culturais. Pois, ao se ressaltar as realizações do brasileiro, a parte cultivada de nossa alma, não é para os negros que se volta o olhar (DIAS; GAMBINI, 1999).

Afinal, como aponta SANTOS (2001, p. 247):

“Apesar de a cultura negra ser a energia que dá ritmo à vida nacional, considerando ainda a dívida imensa do Brasil para com a África, não se observa uma equivalência desses pesos na vida e na política. Não é um exagero considerar um escândalo a ignorância em relação à África. Dessa forma, a terra-brasilis é um filho demasiadamente ingrato. A grande maioria dos brasileiros considera o continente africano como um bloco homogêneo: tudo igual e todos negros.”

Assim, a dor e o sofrimento causados pela escravidão têm uma função na constituição de nosso povo e de nossa alma, que ainda não foram completamente expressados. Se o indivíduo em psicoterapia sofre dores em seu processo constitutivo, ele deve ter consciência dessas dores e encontrar palavras para expressá-las, para que o processo continue a caminhar. “Só quando consegue voltar, expressar e entender o que aquela dor lhe causou, é que pode finalmente passar para outra fase” (DIAS, 1999; GAMBINI, 1999, p. 65). Isso não teria ocorrido no Brasil. O contingente negro não pôde se expressar completamente; na sociedade escravizadora branca, por seu lado, também há um elemento não expresso, o reconhecimento da ação praticada. “No Brasil, há um débito psíquico que, se não for formulado e trabalhado, não permitirá que surja um novo processo de conscientização de identidade” (DIAS, 1999; GAMBINI, 1999, p. 66).

Dessa forma, definem Dias e Gambini, o negro tem direito de viver nessa sociedade e faz parte da economia, mas não fala.

“Mas se a alma não pode se expressar [através] da fala, ela se manifesta por outros meios. [...] Pela arte, pela dança, pela religião, pelas atitudes, pelo trabalho manual, pelas formas de viver, ela aparece, ela transpira, ela vem.” (DIAS; GAMBINI, 1999, p. 69).

Ou, conforme as palavras de Hélio Santos:

“Mais de três séculos e meio de escravismo estão cravados no cerne da alma brasileira. Não há como exorcizar esse autêntico demônio sem a adoção de uma terapêutica que reverta o pesado acúmulo construído ao longo dos anos. O ovo que vem sendo chocado só tem seu desenvolvimento interrompido com uma imersão da sociedade brasileira em profundo sentimento ético.” (SANTOS, 2001, p. 309).

Tal necessidade de um sentimento ético pode ser interpretada como uma necessidade de participação da consciência nos problemas que degradam a alma de nosso país. Antes de qualquer coisa, é preciso, no mínimo, reconhecer a responsabilidade diante da situação.

 

Os complexos da “alma brasileira”

Para JUNG (1934, 1995), dentro do que ele chamou de “processos psíquicos complicados”, emergem possibilidades ilimitadas que, às vezes, já desde o início, dão origem a uma situação de experiência que pode ser chamada de constelação.

“Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão ‘está constelado’ indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida” (JUNG, 1934/1995, p. 29).

Ora, esses conteúdos constelados são chamados de complexos; não podem ser detidos pela vontade da pessoa, pois apresentam energia específica própria, superando, muitas vezes, nossas intenções conscientes. Os complexos podem “ter-nos”, portanto, de acordo com JUNG (1934, 1995), atuando como uma espécie de segundo “eu”.

Dessa forma, o “complexo afetivo” pode ser definido como uma imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional. Além disso, pode ser incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Assim, o complexo tem elevado grau de autonomia. Pode ser reprimido, mas não negado enquanto existência, pois, em ocasião favorável, volta à tona com toda a sua força original (JUNG, 1934/1995).

A etiologia de sua origem pode ser um chamado trauma, choque emocional ou algo semelhante, que “arranque fora” da consciência um pedaço da psique. Os complexos constituem as verdadeiras “unidades vivas da psique inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir por intermédio deles” (JUNG, 1934/1995: 36). São, portanto, a via regia (embora o caminho seja bem tortuoso) para o inconsciente, responsáveis pelos sonhos e pelos sintomas.

Fazem parte da estrutura básica da psique descrita por Jung, embasando a vida pessoal e a experiência vivida. Outra parte destes provém de uma fonte diferente das experiências individuais. São conteúdos irracionais dos quais o indivíduo nunca foi consciente. Na leitura de JACOBI (1986), o complexo é a representação do fenômeno característico da vida psíquica, que constitui sua estrutura e que, portanto, é em si um componente sadio de tal vida.

Proponho uma reflexão sobre os complexos, nesse sentido, de nossa alma brasileira. Chama-me a atenção o fato de o Brasil ser um país de grande diversidade étnica e cultural. Se pensarmos nas diversas culturas e tradições indígenas, africanas e européias que habitam nosso solo, temos uma infinidade de modos de pensar e criar. Potencialmente, os brasileiros têm condições de criações artísticas e científicas de fazer inveja.

De fato, houve muita criação por parte de nosso povo, destacando-se a música popular e suas danças, internacionalmente reconhecidas como excepcionais. Basta lembrar do samba, do maracatu, do baião ou da bossa nova. Contudo, tenho a nítida sensação de que não nos achamos geniais como os germânicos e suas refinadas músicas eruditas e tradição filosófica. “Isso sim é cultura”, pensamos, em geral, no fundo. “Somos desleixados, cachaceiros, escuros demais para sermos refinados”.

Este é um exemplo do chamado complexo, que nos leva a um sentimento de inferioridade, nesse caso. Julgarmo-nos inferiores é o preço que pagamos por nos sentirmos “desterrados em nossa terra”, citando expressão de Sérgio Buarque de HOLANDA (1995, p. 31). Se continuarmos desse jeito e não trabalharmos de alguma forma com o complexo, iremos nos julgar sempre subdesenvolvidos, subaculturados e subalternos às grandes culturas brancas de origens européias. Esse complexo também revela, por outro lado, a posição de arrogância geralmente adotada pelas elites brancas, que vêem os negro-descendentes como serviçais e sentem-se mais próximas do hemisfério norte (isto é, “verdadeiros” cidadãos).

Acredito que esse complexo vem de nossas raízes coloniais, de onde nascia o que veio a ser uma nação chamada Brasil. HOLANDA (1995), entre outros estudiosos de nosso período colonial, acentua uma característica marcante do povo português naquele seu momento histórico: a mentalidade de explorar a colônia ao máximo para não mais precisar trabalhar. De acordo com ele (p. 38), isso remonta à Antigüidade Clássica, na qual “o ócio importa mais que o negócio”.

Assim, houve pouco investimento de energia para fazer dessas terras do Novo Mundo uma sociedade organizada. A idéia era sugar ao máximo seus recursos para enriquecer a metrópole (Portugal). Viver no Brasil não trazia consigo uma meta de estabilidade. Os habitantes dessa terra não se sentiam em casa e, portanto, não tinham motivação para arrumá-la, para viver num ambiente agradável. Não eram, estavam brasileiros. Como coloca NOVAIS (1997: 20):

“A colônia é vista como prolongamento, alargamento da metrópole (a mãe-pátria), mas é, ao mesmo tempo, a sua negação. Assim, a população da colônia na perspectiva metropolitana é equivalente a da metrópole, porém a metrópole é uma região de onde as pessoas saem (região de emigração) e a colônia é uma região para onde as pessoas vão (de imigração).”

E essa sensação intensa e permanente de instabilidade, precariedade, provisoriedade faz muita diferença no modo de agir das pessoas. Para que reformar e organizar a casa, se pretendemos deixá-la num futuro talvez próximo? Aqui, parece-me que, inicialmente, faltou amor e dedicação à terra e aos seus filhos. Continuando a leitura do historiador Fernando Novais, concluímos que:

“Móbil, instável, e mais ainda dispersa, a população na Colônia devia, provavelmente, angustiar-se diante da dificuldade de sedimentar os laços primários. E note-se que essa dispersão decorre diretamente dos mecanismos básicos da colonização do tipo plantation que prevaleceu na América portuguesa: da sua dimensão econômica (exploração para desenvolvimento da Metrópole) resulta a montagem de uma economia predatória que, esgotando a natureza, tende para a itinerância” (NOVAIS, 1997: 21, grifo do autor).

Os indígenas foram escravizados e mortos. Os povos africanos serviram para produzir na colônia e, de quebra, também como mercadoria, sempre para enriquecer a metrópole. Não é provável que um indivíduo oriundo desse ambiente viesse a desenvolver uma boa auto-estima, orgulho de seu(s) povo(s) e em paz com sua(s) cultura(s), suas criações simbólicas e materiais.

Cabe ressaltar a diversidade das populações desse país que ia nascendo, sem esquecer das diversidades internas entre os ameríndios e os africanos. Nascia um povo miscigenado, parte compelida ao trabalho, parte que os compelia. Os dominadores e os dominados, os senhores e os escravos. Entre os dois pólos, uma grande gama de situações intermediárias. “A miscigenação foi, assim, ao mesmo tempo, um canal de aproximação e uma forma de dominação, um espaço de amaciamento e um território de enrijecimento do sistema” (NOVAIS, 1997: 28) – duas faces da mesma moeda (miscigenação).

Tudo isso, creio, contribui para nosso desenraizamento que, por sua vez, é uma espécie de fato gerador de nosso principal complexo. Mexe, inclusive, com as noções de público e privado, com o que é da ordem, da demanda coletiva e da individual. Temos uma nação com pouco amor próprio em sua origem histórica (colonial), com muitas etnias e culturas diferentes e, ao mesmo tempo, sem raízes reconhecidas ou assumidas pelos seus filhos.

O movimento hip hop coloca o “eu” da consciência coletiva em face do complexo. Faz isso ao trazer à tona, sem meias-palavras, o problema da desigualdade racial, comumente camuflado pela nossa sociedade (seja consciente ou inconscientemente). As posses, quando propõem trabalhos de combate efetivo ao racismo e à baixa auto-estima dos negros da periferia, partem para a projeção. Assim, o “eu” daquela coletividade tem a chance de começar o caminho para a dissolução do complexo. Em termos mais abrangentes, podemos pensar que, de alguma maneira, esse comportamento afeta a consciência da sociedade paulistana.

Enxergo, portanto, o movimento hip hop como possibilidade de expressão da população negra, como possibilidade de ajudar na constituição da identidade e no crescimento da auto-estima do negro-descendente da periferia, como possibilidade de dissolução de um complexo. E a partir do pertencimento a um grupo. Em entrevista a mim concedida em agosto de 2004, Gaspar, MC do Z’África Brasil, diz: “Se for pra participar de alguma religião, é o hip hop”.

Como escreve CARRIL (2003, p. 196-197):

“As letras [de rap] contendo denúncias e recuperando a voz do negro na periferia repercutem na elevação da auto-estima do jovem da periferia, uma vez que lhe permitem elaborar uma interpretação sobre a sua realidade social, de se ver e se compreender parte de uma história e de se territorializar no espaço de forma representativa, dada pela recuperação da auto-estima, pelo sentimento de pertencer a algo, de forma concreta por fazer parte de uma posse, e transmitir a sua mensagem a outros pares, o que lhes permite ser ouvidos.”

Uma criança negra moradora de uma favela em São Paulo, por exemplo, se for atingida profundamente pelas reflexões presentes nas letras de determinados raps, se se engajar num trabalho proposto pela posse de sua região, ou se se identificar com as expressões dos grafites dos muros vizinhos e passar a se interessar por essa arte, poderá trabalhar esse complexo nascido há 500 anos e perpetuado ao longo da história excludente do país. Essas reflexões e criações podem ser projeções do complexo para o mundo exterior. Dependendo da profundidade e da duração da experiência de engajamento com o hip hop, ela terá a chance de se confrontar conscientemente com o complexo e ganhar liberdade diante dele. “O rap é uma brecha no sistema” (MANO BROWN citado por CARRIL, 2003: 198).

Panikinho, membro da Aliança Negra Posse, comenta a sensação de identificar-se com semelhantes no mundo do rap, após viver anos de discriminação:

“O que eu queria enfrentar eram essas coisas [racismo, discriminação]. Eu acho que isso deve ter acontecido com todo mundo dentro do hip hop. Porque, na verdade eles [os primeiros rappers] começaram a trazer temas que eram comuns a todos os jovens da periferia, e sobretudo os jovens negros. Eu lembro que as temáticas foram mudando. Assim, por exemplo, quando Os Metralhas7 começaram a falar sobre a questão da abolição [do sistema escravista] e da questão da situação do negro no Brasil, isso e aquilo, a gente começou a pensar sobre essas coisas: ‘Pô, o que o cara tá falando é a mesma coisa que eu sinto, é a mesma coisa que eu penso, legal isso’. Aí quando veio, por exemplo, o Thaíde falando da situação, pelo fato também de ser negro, pobre e da periferia, ele começou também a abordar esses temas e você começou a ficar mais encucado, e de repente chega Racionais [MC’s] e começou a falar sobre a questão da violência policial com a juventude negra. Aí, meu, você fala: ‘Pô, vem um cara fala uma coisa, vem um cara fala outra’ e era todo jovem negro que passava naquela época. Meu, a gente não podia sair na rua que a gente era abordado [pela polícia militar]. Você dobrava a esquina, podia estar dois, três, uma turminha, era complicado, os cara [policiais militares] paravam toda hora, era um inferno. E aí eles [os primeiros rappers] começaram a vir e eu falei: ‘Meu, os cara tão falando a verdade, é aquilo que eu quero falar”. Porque eu passava por aquilo e aquilo ficava entalado na garganta sem poder falar com alguém, sem poder carregar aquilo. [...] Uma coisa era você ir pra um show de rap, cada show de rap que eu ia, que eu ouvia não só as músicas, mas as frases nos intervalos de uma música e outra, por exemplo, frases dos Racionais [MC’s], do Mano Brown falando, do Thaíde falando sobre uma situação, como a gente tem que ser forte, isso e aquilo. Cara, aquilo te levantava a bola de uma forma, que você falava: ‘Pô, eu quero ser igual a esse cara. Se esse cara é preto como você, automaticamente você não está se negando.’”

O rap passa a ser uma maneira de desentalar a garganta de Panikinho, e de muitos outros jovens negros, de acordo com ele. Como já disse, esse é o primeiro passo para se “desentalar” também a autonomia do complexo diante do “eu”. Os trechos que destaquei acima são notórios nesse aspecto. O rap fala (literalmente, já que é um canto falado e não uma canção), expressa o sentimento guardado. Antes Panikinho carregava o peso, receoso de comentar, ou mesmo sem saber ao certo o que sentia em termos de ser discriminado. E identificar-se fortemente com a fala de um “preto” é essencial, como ele comenta. O rap abre a possibilidade para o jovem, de fato, ser “preto”, não precisar se envergonhar disso. Afinal, pessoas inteligentes e informadas passam a ser admiradas por eles, sendo pretos e pobres.

Dessa forma, julgo que o rap e a atuação do hip hopper carregam uma militância poderosa, transformadora, sem serem associados às camadas intelectuais progressistas da sociedade, falando a linguagem do jovem excluído. Em longo prazo, os elementos do hip hop podem mexer com a estrutura psíquica de nossa sociedade, através da violência simbólica, da confrontação em relação àquilo que faz um negro-descendente colocar-se em posição inferior. Atuando em nosso complexo que julgo central: eis o que o hip hop tem feito em São Paulo, na minha avaliação (SCANDIUCCI, 2005).

As ações afirmativas, pelas quais o movimento negro vem lutando, de modo geral, certamente tocarão também no complexo. Implementar ações afirmativas como uma possibilidade de combate à discriminação racial, é diminuir o que DIAS e GAMBINI (1999: 66) chamam de “débito psíquico”, conforme citação anterior. Conseqüentemente, trata-se de um trabalho com o complexo. Assumidos o preconceito e a situação extremamente desvantajosa em que sempre se encontrou o negro (o que empurra sua auto-estima para baixo, como vimos), faz-se uma proposta de combate a tal conjuntura. Assim, identificado o complexo, parte-se para a confrontação, traduzida aqui pela alternativa concreta de inclusão social conquistada pelos negros.

O hip hop, por vezes, faz uma tentativa de resgatar as culturas africanas e afro-brasileiras – seja através do trabalho das posses em suas comunidades, seja mediante dos ritmos e as letras presentes nos diversos raps. Uma criança ou um adolescente negro-descendente que saiba um pouco da história de seus antepassados, de como eram na África e de como e para que foram trazidos para o Brasil, provavelmente terá uma percepção de si menos estigmatizada.

O hip hop, a meu ver, normalmente não busca estudar ou esmiuçar as diferenças culturais entre as sociedades da África (e nem é sua “tarefa”), e sim o valor destas de forma mais ou menos homogênea. No entanto, ao fazer questão de trazer ao presente a africanidade, é capaz de remodelar culturas trazidas de sociedades africanas. Os hip hoppers refazem-nas, refazendo-se a eles próprios ao mesmo tempo em nossa sociedade contemporânea. Mutatis mutandis, fazem o mesmo que os negros acabaram por fazer nas terras do Novo Mundo, quando se viram ausentes de seus laços afetivos anteriores. Como nos lembram os antropólogos Mintz e Price, com a destruição de tais laços:

“[...] a ‘bagagem’ cultural de cada indivíduo sofre uma transformação fenomenológica, até que a criação de novas estruturas institucionais permita a refabricação do conteúdo, baseado no passado – e muito distante dele”. (MINTZ; PRICE, 2003: 71)

 

Negro-descendência e construção da identidade

Lembramos que identidade é um dos conceitos mais caros aos autores que estudam a problemática negra, não apenas partindo da psicologia, seja ela qual for. Refiro-me à possibilidade de estar identificado com algo, de pertencer a um contexto que tem raízes (um passado), de ocupar um lugar no mundo.

Partindo do conceito psicanalítico de ideal de ego (e, conseqüentemente, suas relações com o ego e com o superego), RIBEIRO (1999) expõe da seguinte forma a problemática vivida pelo negro no Brasil:

“Afro-descendentes que tenham internalizado compulsória e brutalmente um ideal de ego branco vêem-se obrigados a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do próprio corpo. Tentando transpor o fosso criado entre ego e seu ideal paga altíssimo custo que inclui, muitas vezes, o sacrifício do equilíbrio psíquico. Da obrigação de definir um ideal impossível para a realidade do próprio corpo e da própria história pessoal e étnica, decorrem auto-imagem desfavorável e auto-estima rebaixada, ou seja, sérios problemas de identidade pessoal.” (RIBEIRO, 1999: 238)

Assim, como ter uma identidade de negro-descendente se a pessoa é “estimulada” a ser branca e, ao mesmo tempo, vive com os negros em termos de posição social? Além do mais, como coloca SANTOS (2001), os negros no Brasil acreditam no mito da democracia racial – haja vista que, no geral, os brancos são bem-vindos em ambientes onde há predominância de negros. Cria-se para o negro-descendente um conflito enorme, seguido de rebaixamento da auto-estima.

De acordo com Hélio Santos:

“Inúmeros brasileiros negros estão distantes de construir sua identidade racial, pois ainda se encontram em uma fase de absoluta submissão. Esses brasileiros, inconscientemente, trabalham com a idéia de que ser branco é algo positivo, e, ser negro, não. Essa crença consolida-se ao longo do tempo, desde a escola infantil. Para justificar a colocação do mundo branco em uma posição superior, esses brasileiros afastam-se de suas raízes negras tentando escapar de um desconforto maior, em virtude de estarem diante de um conflito. Nessa fase de absoluta submissão, inventam um escudo branco para defender-se do mundo negro que eles rejeitam – eis aí o conflito. Entra em cena, então, um espécime (infelizmente) ainda comum em nossa paisagem: o brasileiro jabuticaba – preto por fora e branco por dentro.” (SANTOS, 2001: 168)

Tratando da constituição da identidade do negro-descendente, FERREIRA (2000) descreve o desenvolvimento desta em quatro estágios: estágio de submissão; estágio de impacto; estágio de militância e estágio de articulação. Em suma, Ferreira crê que o negro-descendente deve passar (paralelamente ao despertar de seu interesse pela história e pela cultura negras) por um estágio de contraposição à cultura e até às pessoas brancas, admitindo uma espécie de modelo bipolar, do bom (negro) de um lado, e do mau (branco) de outro. Somente depois viria uma maior abertura para a alteridade.

Aqui, é possível estabelecer um paralelo com as possibilidades de se lidar com o complexo. Ao identificar o complexo, provavelmente a consciência o projetará no outro (neste caso, o branco) antes de se confrontar mais íntima e profundamente com ele.

Ao defender claramente (ou será melhor dizer “escuramente”?) um lugar para o negro na sociedade, o hip hop choca as classes média e alta predominantemente brancas. Se não for uma pessoa conhecida, o branco nem sempre é bem-vindo em ambientes da cultura hip hop.

Não é sempre regra – e é bom destacar este fato –, mas pertencer a um grupo, pode fortalecer a auto-estima do indivíduo. Por isso, insisto em interpretar a cultura hip hop como uma possibilidade de expressão e construção de uma identidade do jovem negro paulistano, que venha a pertencer a um grupo juvenil (posse, conjunto de rap, grupo de grafiteiros etc.).

Enxergo nessa vivência entre os “manos” do hip hop o que BARCELLOS (2003) chama de arquétipo da fratria. Aponta o autor:

“É cada vez mais nítida a presença do arquétipo fraterno, sua necessidade e sua atuação, igualmente no campo social, onde as ações institucionalizadas do Estado (especialmente na América Latina) dão crescentemente lugar às ações mais significativas e cada vez mais importantes das diversas solidariedades, por exemplo na proliferação e no trabalho das ONGs nos mais variados planos da vida pública e da experiência humana comum.” (BARCELLOS, 2003: 3).

Para BARCELLOS (2003), o “impacto do irmão” traduz-se na experiência de assimilação e apreciação da diversidade. É importante frisar que, ao dizer “irmão”, o autor não se refere somente ao laço de sangue, podendo ser ao da amizade também. Esse “Outro-irmão”, o semelhante que não é igual, compartilha da mesma origem. Creio que os laços (fraternais) entre os “manos” das periferias ligados ao hip hop são imprescindíveis para o desafio conjunto à autoridade paterna da sociedade racista e excludente em que vivem. Em sua entrevista, Gaspar, por exemplo, diz que seria acolhido em qualquer lugar do planeta onde haja uma comunidade hip hop. Assim, esta possibilita ao habitante da periferia a experiência profunda da fratria.

 

O lugar do hip hop na sociedade paulistana

O aspecto geográfico ou espacial parece ser de extrema importância no que tange ao enraizamento da cultura. De acordo com esses depoimentos, percebe-se que o hip hop tem maior poder de entrada na camada pobre de São Paulo. Não é à toa que muitas letras de rap aludem ao bairro, à “quebrada” de origem de seus componentes.

O grupo Z’África Brasil (2002), através do rap “Antigamente quilombos, hoje periferia” passa, a meu ver, a noção de que a periferia teria uma correspondência com os quilombos dos tempos da escravidão. Isto é, um espaço da população pobre “escravizada”, que ao mesmo tempo carrega uma luta e uma resistência à exploração dos “patrões”. É nela que se encontram as pessoas mais sofredoras, é nela que uma revolta contra um sistema injusto pode aparecer.

CARRIL (2003) enxerga, neste rap, uma analogia entre o capitalismo atual e aquele que estimulou a entrada de africanos no Brasil colonial, a fim de abastecer de mão-de-obra seu mercado. No contexto de “hoje”, o Z’África Brasil produz uma imagem de uma nova resistência do negro, aludindo às “guerras” nos territórios da periferia paulistana – uma “terra de ninguém” e do negro: um novo quilombo.

Outro aspecto interessante que se observa em letras de rap de São Paulo é a clara separação entre os habitantes da periferia e os dos bairros mais centrais. Aparecem aí como dois mundos diferentes, que não convivem e, além disso, podem entrar em choque ao se cruzarem. Há uma tensão entre as pessoas das camadas mais pobres da população e as das camadas mais privilegiadas financeiramente. Tensão essa nem sempre vista com maus olhos pelos rappers.

“Da ponte pra cá” é uma expressão comum nas letras de rap da cidade de São Paulo. É uma alusão à periferia, ao lado mais pobre da cidade. Expressão semelhante e igualmente freqüente é “o outro lado da ponte”. Significa o lado mais privilegiado da cidade, onde moram aqueles que têm maior poder aquisitivo. Creio que se refere às pontes das marginais dos rios Pinheiros e Tietê, pois, embora não seja regra, muitas vezes um lado de uma de suas margens é significativamente mais pobre que o outro. Contudo, essas expressões tornaram-se espécies de metáforas para se distinguir classes sociais a partir dos espaços delimitados na cidade.

Resgatando um pouco da história dos territórios da cidade de São Paulo, CARRIL (2003) coloca-nos que a lógica da construção da metrópole explica em boa parte sua segregação socioespacial. Em fins do século XIX, observa-se uma política de imigração subvencionada pelo Estado que compromete a forma de acesso à terra. As periferias começam, então, a surgir nesse processo de disputa pelo solo urbano: vai nascendo a cidade dual, uma legal e outra ilegal.

A segregação espacial veio após a abolição da escravidão, quando ocorreu a divisão entre “territórios específicos e separados para cada atividade e cada grupo social” (CARRIL, 2003: 62). O espaço divide-se entre bairros proletários e loteamentos burgueses. Conseqüentemente, os investimentos públicos e as regulações urbanísticas passam a favorecer as elites. “Nesse episódio, esboça-se o fundamento de uma geografia social da cidade, da qual até hoje não se conseguiu escapar” (ROLNICK citada por CARRIL, 2003: 63). Portanto, a separação centro-periferia constitui-se há, no mínimo, 100 anos: idade suficiente para estar incrustada na alma dessa cidade.

James Hillman, autor da chamada “escola arquetípica” da psicologia analítica, tem uma série de ensaios coletados e publicados no livro intitulado Cidade & Alma (1993). No primeiro deles, Anima Mundi: o retorno da alma ao mundo, afirma que: “Cada coisa de nossa vida urbana construída tem uma importância psicológica” (HILLMAN, 1993: 9).

Retomando idéias platônicas e confrontando-as com as filosofias de Aquino, Descartes, Locke e Kant, Hillman afirma que as coisas “de fora” têm alma – o mundo almado. Assim:

“Como formas expressivas, as coisas falam: mostram as configurações que assumem. Elas se anunciam, atestam sua presença: ‘Olhem, estamos aqui’. Elas nos observam independentemente do modo como as observamos, independentemente de nossas perspectivas, do que pretendemos com elas e como as utilizamos. Essa exigência imaginativa de atenção indica um mundo almado [...] Qualificar um prédio de ‘catatônico’ ou ‘anoréxico’ significa examinar o modo como ele se apresenta, seu comportamento em sua estrutura descarnada, alta, rígida, magra, sua fachada envidraçada, frieza dessexualizada, sua explosiva agressividade reprimida, seu átrio interior vazio seccionado por colunas verticais. [...] Interpretar as coisas do mundo como se fossem nossos sonhos priva o mundo de seu sonho, sua queixa. (HILLMAN, 1993: 14-16).

Indo nessa direção, creio que a desordem amontoada da favela ou os infinitos e homogêneos blocos da Cohab periférica retratam aquilo que é obscuro na metrópole, às margens desta – literal e metaforicamente ao mesmo tempo. É onde a lei é própria, as regras são definidas fora dos prédios das secretarias de justiça ou de planejamento urbano no centro da cidade. Esse tipo de espaço urbano transmite, pelo menos aos olhos de um morador da região central paulistana, algo que lembra o seguinte verso de Caetano VELOSO (1991): “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”.8 Barracos e prédios de apartamentos minúsculos agonizam em terrenos distantes, perpassados por ruas que, quando asfaltadas, esburacadas e cheias de comércios de miudezas em geral.

Assim como os habitantes das periferias, suas construções lutam para se manter em pé e minimamente organizadas. O fato de não se encontrar opções culturais e de lazer, imprime a essa alma do bairro periférico uma aspereza lancinante. O ambiente não está para “brincadeira”. Ele não quer reflexão, diversão. O tempo (e o dinheiro) deve ser usado para a sobrevivência, para as coisas básicas do dia-a-dia. Afinal, “Zona sul é invés/É stress concentrado/Um coração ferido por metro quadrado”. (RACIONAIS MC’S, 2002)

Nesse cenário (des)almado, no entanto, a partir dos anos 1990, desenhos grafitados começaram a preencher muros e tablados. Muitas vezes coloridos, representando figuras humanas ou feições características da grande cidade, esses desenhos passaram a ser uma marca da periferia. Mesmo quando não se dedicam à expressão de arte pura e simplesmente, os grafiteiros passaram a trabalhar também para o comércio local, na confecção de propagandas nas paredes ou portas de aço das casas que abrigam os vendedores ou prestadores de serviços, como um meio de gerar renda a partir da grafitagem.

Esse colorido de imagens vivas – muitas vezes de dor e protesto – dá uma outra roupagem à alma periférica. Não se trata de um colorido simplesmente “bonito”, infantil. Ao contrário, em geral tem caráter denunciativo e contestador da realidade daquele lugar. Portanto, sem deixar de transmitir a dificuldade da pobreza, do preconceito e da violência, essa invasão do grafite anima a periferia. De um estado depressivo, por assim dizer, tal ambiente urbano passa a reagir diante da sua própria situação psíquica e social – algo que o hip hop tem feito, de forma geral, como pude demonstrar em minha pesquisa (SCANDIUCCI, 2005).

CARRIL (2003) afirma não haver apenas uma cidade de São Paulo, mas diversas dentro de seu espaço metropolitano, tanto no âmbito socioeconômico quanto no cultural. Para essa autora, talvez haja várias identidades a serem reveladas, entre elas a forma como os rappers constroem novos territórios na cidade. Acrescentaria que há diversas almas para o corpo dessa metrópole, até mesmo aquelas que passam a vir com os trabalhos visuais impressos pelos grafiteiros.

 

Palavras finais

Procurei aqui defender a idéia de que, no referencial da psicologia analítica, pode-se afirmar que o hip hop e o rap funcionam como canais expressivos de símbolos ao darem possibilidade de “fala” à juventude. Ao abrir espaço para a expressão de elementos reprimidos, pertencentes às relações sociais, atuam como função compensatória no self cultural. Ao realizar tal elaboração simbólica, ocorre uma ampliação da consciência diante dos mecanismos inconscientes que atuam no bojo das experiências do indivíduo.

Diante dessa grande força de expressão simbólica como potencial recurso para o jovem de baixa renda (sobretudo negros), o hip hop confere a ele possibilidade de assumir uma identidade mais próxima de sua realidade. Tal movimento é também capaz de exercer influência sobre a autonomia dos complexos da sociedade paulistana, sobretudo no que tange oo racismo e ao lugar ocupado pelos negro-descendentes habitantes das periferias. Sob outro ponto de vista, a atitude dos hip hoppers faz nascer novas almas para o corpo periférico da Grande São Paulo.

Reconhecer a beleza e as qualidades do negro não é nada comum no Brasil, tanto entre os “brancos” quanto entre os próprios negro-descendentes. O hip hop é uma alternativa interessante para quebrar esse pensamento arraigado em nossas cabeças. Uma linguagem que atinge os jovens. Aqueles que vivenciarem a cultura hip hop (caso consigam sobreviver), poderão levar novas formas de encarar a sociedade excludente aos seus colegas, familiares e, principalmente, aos seus filhos. Assim, o hip hop parece recriar a africanidade em São Paulo, “refazendo” os jovens que nele se engajam.

 

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Endereço para correspondência
Guilherme Scandiucci
R. Francisco Leitão, 665 - ap. 11.
05414-025 São Paulo, SP
tel. (11) 3031-2945/Fax. (11) 3819-6319
E-mail: guilherme.sca@uol.com.br

Recebido em 12/06/2005
Aceito em 15/07/2005

 

 

Notas

* Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Pesquisador do GEAAC - Grupo de Estudos das Ancestralidades Africanas e Cidadania (ONG Instituto Guatambu de Cultura).
1 O termo “negro-descendente” foi adotado a partir da leitura de Hélio Santos (2001). Coloca o autor: “Para o fim que pretendemos aqui [, de tratar das relações raciais no Brasil], quando falamos em não-brancos nos referimos aos negros e mestiços de matriz negra. A expressão negro-descendente é a que melhor cabe para designar esses brasileiros e é a que será mais usada.” (SANTOS, 2001: 39).
2 Para mais detalhes sobre a história do hip hop e do rap, ver Azevedo (2000), Pimentel (1997), ella (2000) e Lourenço (2002).
3 As posses, dentro do movimento hip hop, são agrupamentos de jovens a ele pertencentes (comunidades que se unem geralmente pela proximidade geográfica – bairros ou regiões metropolitanas – e de idéias). De acordo com Andrade (1996: 134), tais jovens “organizam-se em ‘posses’ para atender [aos] [...] compromissos de aperfeiçoamento artístico e desenvolvimento das ações política e comunitária”.
4 Antes disso, em 1984/85, houve encontros para se dançar o break, principalmente na rua 24 de maio, também no centro. Nelson Triunfo, por exemplo, dançarino conhecido no meio, esteve ali presente, de acordo com um de meus entrevistados (Panikinho, de quem falarei mais adiante). Contudo, ainda não se podia falar numa cultura hip hop nesta fase.
5 O termo “raça” é aqui utilizado entre aspas porque não apresenta bases objetivas na biologia e na genética que possam sustentá-lo. É, portanto, um conceito criado no bojo das complexas relações sociais, um artefato cultural arbitrário. (MORGAN, 2002; IANNI, 2004; ADAMS, 1996).
6 Para mais detalhes, ver Pena e Bortolini (2004).
7 Uma das primeiras duplas a fazer rap no Brasil, de acordo com Panikinho.
8 Caetano Veloso (1991), na canção Fora da Ordem.