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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PATRE II

 

Construindo o “nós”: o trabalho de uma equipe – na reserva indígena de dourados MS – por uma antropologia das negociações culturais

 

Constructing “we”: a teamwork - in the Indian Reserve in Dourados, MS - aiming to an anthropology of cultural negotiations

 

 

M.Sc Simone Anselmo Girão*; Mercolis Alexandre Ernandes**

Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória/Laboratório de Estudos do Imaginário, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


 

 

O Grupo de Trabalho do programa Guarani/Aruak – mantido pelo LABI/NIME/USP – desenvolve, desde 2002, trabalhos com jovens indígenas da Reserva de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul.

Somos uma equipe, cujos membros vêm de formações acadêmicas diferentes, no que se refere à área de atuação, e de formações teóricas divergentes no que tange ao desenvolvimento de nosso trabalho de campo.

A metodologia utilizada no campo e a nossa postura, enquanto pesquisadores, diante das pessoas que fazem parte dos grupos indígenas em que desenvolvemos nossas atividades, sempre foram motivos de calorosos debates entre os membros de nossa equipe. Após muitas dessas discussões, levantadas pela nossa vivência e convivência com os jovens da reserva e pelas posturas antropológicas tomadas como referência, começamos a questionar os conceitos objeto de pesquisa e pesquisador.

Foram momentos de grande angústia para a equipe, principalmente porque a maioria dela não estava acostumada a entender a relação entre nós e os jovens indígenas, como uma troca, como uma relação entre pessoas, em que os dois lados contribuem para a constituição de um elemento que permeia os dois saberes, tanto o dos que seriam objeto quanto os dos que seriam os pesquisadores.

Pensar em um trabalho de pesquisa transformando e invertendo a concepção de quem é o pesquisado e de quem é o pesquisador é um exercício de existência para os intelectuais que têm uma formação calcada, fortemente, na experiência da ciência, pois como diria Geertz: “O que acontece com o eu quando o outro desaparece?” (O saber local, pg. 86). Para alguns estudiosos, essa questão pode parecer óbvia ou, até mesmo, obtusa; porém, para nós que pautamos nossos trabalhos em uma lógica interdisciplinar e no conceito de identidade, defendendo que todo o conhecimento ou área podem contribuir para dialogarmos com o ponto de vista do outro, essa é a grande questão.

Nesse aspecto compreendemos que nosso papel nessa relação vai além de meros pesquisadores que descrevem o modo de ser de uma determinada sociedade. Somos, também, atores dessa interlocução, saímos dessa relação tão “modificados” quanto os jovens indígenas.

Um dos nossos primeiros desafios, e talvez o maior deles, foi tentar entender como um grupo social diferente pode ser tão igual, e nessa igualdade voltar a ser diferente. Trata-se de jovens indígenas de três etnias: Terena, do tronco Aruak, e Kaiowá e Ñandeva, do tronco Guarani, conservando suas especificidades. De certo modo, seria até fácil, ou talvez menos árduo, compreender esse processo se a Reserva não estivesse a menos de cinco quilômetros da área urbana de Dourados. Se essas pessoas não dominassem, ainda, os nossos códigos culturais, pois o “problema”, que pode não ser muito bem um problema, mas uma conseqüência de um emaranhado de acontecimentos, surge quando eles se auto-identificam como jovens e passam a levar, dentro da reserva, uma vida “ocidental”, na qual os princípios, a moral e os valores são alheios aos que lá vivem. Os conflitos gerados com isso permeiam a vida de todos, confrontando saberes e posturas diante de determinadas situações.

Dentro da reserva é perfeitamente visível que, a maioria deles, e principalmente os jovens, jogam conosco de uma maneira extremamente funcional. Absorvem de nossa sociedade o que querem e (re)significam, ou não, e aplicam em seu meio de convivência. Em caso de não-aceitação, tudo é perfeitamente resignificado mais uma vez, ou superado.

Cruzar o caminho que liga a reserva à cidade, no processo inverso, significa, muitas vezes, ser discriminado por pertencer a um grupo indígena. Essa transitoriedade cultural faz que a apreensão da nossa realidade seja feita em muitos casos através da periferia, por assemelhar às condições de vida existentes na R.D.1 . Nessa relação, a periferia os acolhe, proporcionando a eles o domínio de alguns signos desse mundo não tão diferente; ao mesmo tempo em que as luzes, o movimento de carros e os transeuntes noturnos também chamam a atenção de jovens indígenas desaldeiados, tornando a cidade atrativa a ponto de esses índios permanecerem no perímetro urbano.

Ao retornar para a R.D., donos da certeza em dominar nossas práticas, reproduzem-nas, gerando discriminação e fazendo a sociedade indígena não os acolher da mesma forma. De posse desse dilema, no entre, de uma sociedade e outra, geram suas próprias frustrações, por não se sentirem pertencidos a lugar nenhum.

Depois de entender minimamente essas questões, tivemos de aprender a respeitar o tempo e o espaço de cada um, que são únicos e muitas vezes estranhos ao nosso way of life.

Vivemos numa sociedade urbana, branca, e excludente, que, não absorve como deveria outras culturas, não a ponto de respeitá-las, mas, sim, tirando proveito delas. Trabalhar isso em nossas mentes já é um exercício complicado, pois nossa permanência na aldeia permite-nos observar ações frustradas com as quais não concordamos, porém nosso poder de fogo para combatê-las é em alguns casos, ineficiente. Portanto, temos nossas concepções: a da sociedade, a dos índios e a híbrida, que surgiu a partir da nossa relação. Essa coexistência de saberes permite ao pesquisador ser pesquisado em sua relação com o outro, o que é interessante se considerarmos que, sendo pesquisados, podemos nos tornar semelhante, e, nesse ponto, cúmplices de uma mesma idéia, pois estabelecemos uma relação de confiança entre nós a partir do dia-a-dia.

Nesse dia-a-dia, trabalhamos com base no que os jovens nos acenam. São oficinas e atividades culturais que eles decidem, juntos, como e quando fazer, e nós participamos como apoio e como integrantes dessas atividades. Para melhor se organizarem, criaram a A.J.I. – Ação dos Jovens Indígenas, um grupo de jovens, com um colegiado, que é composto de dois representantes de cada etnia, escolhidos por eles, numa votação.

Eles têm um periódico, o Jornal AJINDO, e nos encontros para preparação deste, trabalham em conjunto para escrever as matérias, e saem em grupos ou reúnem-se aos fins de semana, preparando as reportagens. Esses espaços proporcionam-lhes conviver com outros jovens oriundos de várias regiões da R.D., muitas vezes desconhecidos, proporcionando a eles conhecerem-se mais, na tentativa de amenizar os conflitos interétnicos de raízes históricas, além de lhe mostrar, com base na visão deles, a realidade da reserva e da cidade, porque eles também escrevem sobre a gente. Em todas as atividades desenvolvidas pela A.J.I., sejam elas de biscuit ou de artesanato, de street dance ou truques circenses, o mais importante são as possibilidades que essa relação carrega. Conviver conosco permite-lhes nos observar, e, depois, nos digerir, numa antropofagia simbólica2. Portanto, ao pesquisar, estamos sendo pesquisados.

O trabalho com a coordenação das oficinas fez-nos compreender a importância de manter, no interior da equipe, uma relação interdisciplinar e de respeito pelo conhecimento das várias áreas em que os profissionais que trabalham conosco atuam, pois foi somente a com base no diálogo que conseguimos firmar, com os jovens indígenas, um laço de confiança. Esse momento foi de suma importância para desenvolvermos nosso objetivo principal, que é transformar a forma de relação mantida entre os grupos indígenas referidos e o ambiente urbano, ou seja, o “facilitar” o diálogo entre as pessoas da cidade, que têm um perfil formado sobre os indígenas, na maioria das vezes erigida pelo estigma do preconceito, e as da aldeia, que se colocam em um lugar inferior por pensarem que a cidade, e tudo o que ela oferece, é melhor do que o que existe e se pode construir dentro da Aldeia.

Foi necessário, para alcançarmos esse entendimento, inúmeras oficinas com os jovens e diversos debates com nossos colegas, pois conseguir estabelecer um “ponto” entre historiadores, psicólogos, antropólogos, geógrafos, terapeutas, fisioterapeutas e sociólogos parecia um grande “buraco negro” onde nenhum de nós se encontrava e, muito menos, entendia como seria possível desenvolver uma proposta de trabalho à RD com profissionais de tantas áreas.

Em várias ocasiões acreditávamos que o fio que nos levava ao “ponto” tivesse sido rompido e, por isso, nosso trabalho, ou melhor, nossa relação com jovens enfraquecia-se e, conseqüentemente nossos objetivos se perdiam. Realmente era isso o que acontecia, pois esse transpasse fazia parte de nosso crescimento e da relação entre nós e eles.

Por muitas vezes, nos sentíamos enfraquecidos a ponto de querer desistir de tudo e de simplificar tais relações. Esse sentimento de angústia era, na verdade, como ainda é, a prova de nossas conquistas, não somente como intelectuais, mas também como pessoas, um verdadeiro exercício de existência na diferença. Compreender isso só foi possível porque tínhamos cumplicidade com os jovens indígenas e construímos uma equipe que realmente presava pelas relações humanas e pela contribuição “concreta” que as ciências acadêmicas podem oferecer para transformar situações de extrema indiferença sociocultural em que vivem milhares de pessoas em nosso país.

Entendemos, desse modo, que não existem culpados e inocentes, violadores e violados. Existe sim a incapacidade das sociedades de compreender as relações e entender de que forma, na maioria das vezes, elas nos são impostas e nos impedem de conhecer a “nós” mesmos e aos “outros”, encarcerando-nos em um discurso medíocre que justifica a indiferença e a diferença sociocultural.

Assim, as nossas relações com jovens indígenas da Reserva de Dourados proporcionaram-nos, como a eles também, emergir dessa condição de conquistadores e conquistados, de brancos e índios, e fizeram-nos compreender que o maior ganho dessa relação é poder trocar experiências e crescer com elas, cada um utilizando as suas próprias estratégias de sobrevivência.

Todo pesquisador anseia por finalizar um trabalho, ou seja, alcançar seus objetivos. Diante dos argumentos descritos, percebe-se que nosso trabalho não é entendido somente como uma pesquisa ou como um trabalho de campo. Nosso compromisso com a comunidade em que trabalhamos vai além do entendimento acadêmico: ele é, além disso, um compromisso social entre “nós”, que tem como base as relações pessoais.

Não nos vemos dentro de um laboratório, testando ou identificando pessoas para afirmarmos e reafirmarmos as diferenças entre uns e outros, mesmo porque as diferenças são legítimas, existentes entre todos os grupos humanos. Fazemos parte de uma relação, que é como todos, subjetiva, constante e transitória. Por isso, em nosso trabalho-relação é tão difícil pontuar um objetivo ou finalizar uma atividade.

Enquanto permanecermos nos relacionando com jovens das aldeias de Dourados, teremos sempre novas experiências, novas surpresas, novos aprendizados e novas relações, que continuarão sendo guiadas pelo inesperado, pelo incerto e pela dúvida.

 

Bibliografia

GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
M. Sc Simone Anselmo Girão
E-mail: ernandes_ma@yahoo.com.br

Recebido em 10/10/2005
Aceito em 18/11/2005

 

 

Notas

* Historiadora e pesquisadora do LABI/NIME.
** Historiador e pesquisador do LABI/NIME.
1 Abreviação para Reserva indígena de Dourados.
2 ALCANTARA, M. L.B. Pesquisa de Campo uma discussão interdisciplinar. 2005 (Aula).

 

 

Bibliografia consultada

BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Casac&Naify, 2002.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP, 2000.

SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974.

__________. Aculturação Indígena. São Paulo: Edusp, 1980.