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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PARTE II

 

A percepção do tempo/memória entre os jovens indígenas da Reserva de Dourados

 

The perception of time/memory of the young Indians of Dourados reserve

 

 

Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória/Laboratório de Estudos do Imaginário, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse texto tem como principal objetivo fazer uma breve análise da representação de pertencimento que possuem os jovens indígenas da Reserva de Dourados. Vivendo perto da cidade de Dourados, a 10 km da Reserva eles têm como principal característica o estar em trânsito. É por meio do exame desse movimento que tentaremos compreender como eles constroem as suas identidades.

Palavras-chave: Jovens indígenas, Reserva de Dourados, Construção identitária.


ABSTRACT

This article aims to analyze briefly the representation of belonging of the young Indians of Dourados reserve. Living near Dourados, approximately 10 kilometers from the reserve, they have the main characteristic of being in transit. Through the analysis of this fact, we will try to understand how they construct their identities.

Keywords: Young indians, Dourados reserve, Construction of identity.


 

 

Introdução

Para analisarmos a situação atual dos jovens indígenas da Reserva de Dourados, temos de, irremediavelmente, nos reportar ao conceito de tempo1 e, portanto, de memória para podermos entender os lugares identitários construídos e negociados por eles tanto dentro quanto fora da Reserva de Dourados.

O material trabalhado é resultado de uma intensa convivência, fruto de um diálogo de mais de cinco anos com os jovens Guarani e Aruak sobre questões cotidianas, como: as dificuldades que enfrentam com seus amigos, parentes e os preconceitos sofridos tanto dentro quanto fora da Reserva. Descrita como uma realidade impossível de ser vivida, por ser repleta de violência e abandono, não vêem a possibilidade de um futuro melhor. A pergunta que fazemos é: como continuam vivendo?

Sabemos que o alto índice de suicídio é uma característica dessa reserva; no entanto, a maioria dos jovens opta por viver, mas como e por quê?

 

A realidade dos jovens da reserva de Dourados

Morando na RD2 mais populosa3 do Brasil, e distante somente 10 km da capital da soja, a cidade de Dourados, os jovens indígenas têm uma intensa circulação entre a Reserva e a cidade. Marcados, por um lado, pela discriminação dos não índios e, por outro, por uma convivência intensa com a cidade, esses jovens negociam, o tempo todo, suas identidades. Vivendo o in between como um local em que novas estratégias de negociação cultural estão sendo forjadas; como descreve Bhabha4, constroem e se reconstroem com vistas à sobrevivência cultural.

Para podermos entender esse local de negociação cultural, in between, necessitamos entender quais são as mudanças socioculturais que estão sendo negociadas.

 

O lugar dos jovens

Habitando uma reserva que abriga duas etnias, Aruak e Guarani, esses jovens têm como principais características o casamento entre eles, levando consigo toda a história de conflito entre as duas etnias, que marca essa reserva5, e o fato de estarem casando-se mais velhos, o que cria uma categoria social não existente, ou seja, a de jovens solteiros.

Ao tentarem negociar um lugar, esses jovens entram em conflito com os mais velhos e passam a ser culpados por tudo de ruim que acontece. Tornam-se o bode expiatório de todos os males e os responsáveis pelo fim dos tempos, segundo os anciões. Como podemos entender esse lugar?

Segundo a maioria dos trabalhos acadêmicos6, a causa desse intenso conflito de gerações é o resultado da perda das tradições e, conseqüentemente, da cultura. No entanto, como pode uma comunidade perder sua cultura?

Jamais poderemos dizer isso. O que ocorre é uma negociação cultural, na qual os símbolos ressemantizados geram um tipo diferente de vivenciar e expressar do grupo.

Convivendo e dialogando sobre seus problemas, pudemos perceber que a estratégia cultural negociada com a sociedade ocidental é marcada pelo mimetismo7, que evidencia uma recriação constante de identidades.

O fato de não praticarem os antigos rituais de passagem, recuperados e descritos pelas recentes etnografias, não significa perda cultural, fato absurdo, mas a constatação da ressemantização dos lugares de passagem: não é mais a perfuração dos lábios-tembete8 que caracteriza a passagem da criança para o adulto, mas sim, o fato de irem às usinas trabalhar no corte da cana-de-açúcar para ganhar seu próprio dinheiro e, assim, poder se casar. A constante falsificação de documentos é um índice desse ritual, pois querem ir às fazendas aos 13 anos, o que só é permitido a partir dos 18 anos, idade considerada adulta pelas leis brasileiras.

O sair da reserva para se empregar nas usinas já significa uma negociação cultural. O ir e vir desses jovens representa uma nova fase que precisa ser representada por meio de um certo tipo de condição que lhes atribua prestígio dentro da RD, pois, à medida que passam a ter dinheiro, conquistam um outro lugar social.

A primeira coisa que fazem quando voltam das usinas é parar na cidade de Dourados, onde compram todo o tipo de objetos de consumo, desde roupas até geladeira. Voltando geralmente de táxi9, demonstram quanto ganharam.

As festas que realizam, com as sobras do dinheiro, também são sinais de prestígio, pois convidam os amigos e a família para comer e beber. O grau de embriaguez é muito alto, o que resulta em tremendas brigas, que geralmente terminam em mortes. O grau de violência e tensão dentro da RD só vai se arrefecer quando vão novamente à usina.

A permanência por um longo período longe de suas famílias causa um certo desarranjo social em relação ao papel/lugar masculino. O vazio deixado faz as mulheres ocuparem postos dentro da reserva antes destinados aos homens, e, conseqüentemente a terem posições que lhes atribuem maior prestígio. Isso causa um conflito familiar, pois a esposa não cumpre mais, aos olhos do marido, os seus deveres domésticos.

A família indígena é caracterizada por ser extensa, na qual os papéis femininos e masculinos são bem definidos, para que a economia familiar, seja mantida. No entanto, quando temos uma nova forma econômica, na qual a economia da reciprocidade não é mais a única lógica, o que acontece com essa estrutura familiar?

A tendência a uma economia capitalista e, portanto, mais individualista, na qual o que se ganha não é mais repartido por todos, mas apenas à família nuclear, modifica e transforma as formas de viver; é na convivência com essas duas lógicas que se encontram os jovens, que são, ou não, casados, que ganham seu dinheiro fora da RD, voltam e gastam com o que bem lhes convier, independentemente do que necessita, ou não, a sua família extensa. Essa lógica do sistema capitalista está convivendo com uma organização em que a reciprocidade também tem seu lugar, principalmente em relação às mulheres, sem dinheiro e/ou marido para sustentá-las, que sobrevivem pela economia da reciprocidade. A convivência com esses tipos de lógicas não é pacífica; pelo contrário, acarreta muitos conflitos, em que os mais velhos não conseguem entender seus filhos. Eles reclamam que era hora de eles os ajudarem, mas, ao contrário, os abandonam. É muito freqüente encontrarmos na RD, num mesmo terreno, construções de dois tipos bem diversos, em que, geralmente, a moradia dos pais é de sapé ou, dependendo da situação financeira, de lona, enquanto, ao lado, há uma casa de tijolos construída pelo filho, onde mora.

Além do mais, as expectativas dos mais velhos em relação ao futuro dos filhos estão associadas à educação como a única possibilidade de poderem ter acesso ao mundo dos não-índios. A insistência de uma parte dos pais, em fazer que os filhos permaneçam na RD para estudar, proibindo-os de sair para o corte da cana, é uma constante. No entanto, os jovens acham que, com o estudo, a possibilidade de ganhar dinheiro é mínima, o que acarreta um entardecimento no processo de serem considerados adultos. Esse lugar de passagem não é reconhecido pelos mais velhos, fato que causa uma grande tensão entre os familiares e os mais jovens e que chegou a acarretar alguns suicídios. O último foi o filho de um cacique, que falsificou sua carteira de identidade para poder trabalhar na usina e, cujo pai o proibiu de ir.

São poucos os jovens que vêem o estudo como alternativa de vida fora da RD. Constatam que, mesmo tendo cursado a escola primária e a secundária, não conseguem trabalhar na reserva, muito menos na cidade. Sempre colocam a desigualdade da qualidade do ensino formal nas escolas indígenas e nas escolas da cidade, constatando a inviabilidade de poderem concorrer aos empregos oferecidos na cidade. “Além de sermos índios, não sabemos nem lidar com o computador. Como vão empregar a gente?”

Comparativamente, as jovens indígenas não têm muitas alternativas: ou vão trabalhar na cidade como empregadas domésticas (na maioria, Terena), ou arranjam um emprego dentro da reserva.

O casamento é uma possibilidade de mudança socioeconômica, mas, nas condições em que está ocorrendo, caracteriza uma fragilidade social, ao qual os laços de pertencimento tornam-se transitórios e, portanto, extremamente frágeis.

Quando os jovens resolviam casar-se, geralmente o marido ia morar na casa da família da mulher. Hoje, o local da moradia dependerá da condição econômica das famílias. No caso do jovem que construiu sua casa no terreno de seu pai, a mulher vai morar com ele. Todavia, quando o recém-marido volta ao trabalho na usina, a jovem esposa passa a depender da boa vontade da sogra, pois ele parte sem deixar alimento algum. Diante disso, instaura-se o conflito familiar, pois os pais não aceitam sustentar as noras. Uma vez que o filho não os ajuda em nada, passam a maltratá-las, o que as leva a abandonar o local e voltar para a casa materna.

A fragilidade desse núcleo familiar tem várias conseqüências, entre elas a violência que sofrem por parte das sogras, a rejeição das mães, que na maioria das vezes, não aceitam o retorno da filha, e o abandono do jovem marido, que quando volta, não a procura, pensando ter sido ela que o abandonou por outro. Diante dessa truncada comunicação entre as relações sociais, os jovens indígenas sofrem profundas desilusões emocionais, chegando, em vários casos, a cometer suicídio, pois sentem-se alheios a qualquer vínculo familiar.

A freqüência de jovens sem companheiros é muito alta, algo jamais visto pelos mais velhos, apresentando um comportamento que os colocam em uma posição de liminariedade, o que pode ameaçar a ordem social.

Recriando espaços que se tornam lugares de pertencimentos efêmeros, eles são depositários de críticas extremas, tanto dentro da RD, por parte dos mais velhos, quanto pelos acadêmicos, que os consideram um prejuízo à manutenção da cultura tradicional indígena.

 

Nossas conversas

Os jovens indígenas, na sua grande maioria, procuram-nos para conversar como forma de pedido de ajuda; não são aceitos pela família e/ou são rejeitados por seus parceiros, isso é levado tão a sério que, na maioria das vezes, torna-se uma das causas do suicídio, conforme dizem as famílias.

Essa ruptura de um pertencimento parece ser de importância ímpar para esses jovens. Por quê?

Com vivências diferentes das de seus pais, passam a pôr em questão saberes/experiências dos mais velhos. Começam a questionar a pobreza em que vivem, a falta de trabalho e o preconceito; tentam arrumar formas de ter “uma vida melhor”.

No entanto, a rejeição, pelo preconceito, é a marca deixada pela cidade de Dourados nessa população. Diante disso, a constatação de várias formas de desprezos e violência por parte da população dos não-índios, na maioria das vezes, transforma-se em uma forte apatia causada por tentativas frustradas de inserção social. Enquanto as vivências dentro da Reserva, local “potencial” de pertencimento e, portanto, de aceitação, mostram-se de forma ambígua, por meio de experiências fracassadas de relacionamento social, os jovens ocupam um lugar no qual são responsáveis pelos males da RD.

A brutalidade com que são tratados, e tratam os outros, é uma constante. Várias vezes presenciei jovens muito machucados pelos familiares e amigos. No entanto, a rejeição deles, em particular, para com a família não existe. Sempre vêm conversar para que possamos ajudá-los a encontrar alguma forma de reconciliação.

Em relação aos namoros, a circulação de homens e mulheres é intensa e poderíamos presumir que seria um paradoxo pensar que eles podem suicidar-se pelo fim de um relacionamento. No entanto, esta leitura da ruptura associa-se ao feitiço. Muito mais do que o fim de uma relação amorosa, a acusação de feitiçaria torna-se insuperável.

Poderíamos dizer que o feitiço, nesses casos, opera uma chave de entendimento, pela qual qualquer ruptura relacional é resultado de sua eficácia simbólica, que como bem sabemos faz parte de uma trama social, na qual o enfeitiçado torna-se uma ameaça à ordem social; sua acusação vai além das redes sociais da vítima para inserir-se em todo o contexto das relações sociais da RD.

Quando pergunto se não podem desfazê-lo, geralmente justificam: “é macumba feita lá na cidade, não temos força e, além do mais, custa muito caro.” O perigo vindo de fora torna-se quase impossível de ser enfrentado e a resignação é a única possibilidade de futuro.

O relacionamento entre os jovens é de uma fragilidade e brutalidade ímpar. Grupos são formados e desfeitos com muita rapidez, e cada momento de ruptura é marcado por muitas brigas, que resultam sempre em agressões físicas, e são justificadas, por eles, como resultado de alta dose alcoólica ingerida – “a bebida retira-nos da realidade, transforma a gente em outra.” Assim, explicam a inconsciência e, portanto, a falta de responsabilidade pelos atos realizados, tendo, na maioria das vezes, o perdão da comunidade.

Quando conversamos sobre os efeitos das bebidas alcoólicas, contam que: “bebemos porque não tem nada para fazer na reserva e a bebida deixa a gente num outro mundo, nem sentimos dor!”

O não-sentir dor está associado à tristeza, estado que descrevem como doentio, já que está associada ao feitiço e que, na maioria das vezes, pode levar ao suicídio. Esse tipo de doença é esquecido a partir do momento em que bebem – “não tenho medo e passo a enfrentar qualquer um.”

O estado de embriaguez, segundo o relato dos jovens, provoca perda da consciência e, com isso, o corpo é abandonado, o que os deixa expostos à entrada de qualquer espírito, nesse caso, ao anhã, espírito do mal, pelo qual assumem uma outra identidade, que, ao mesmo tempo, é temida é desejada porque o transforma em uma pessoa diferente, sem dor e corajosa. Em muitos casos de suicídios, os jovens estavam bêbados. Segundo eles, “é necessário beber para que tenhamos coragem de nos matar.”

Cumprindo o papel de um ritual, em que a suspensão da ordem faz com que se rearrange a ordem social, poderíamos dizer que esse cenário torna-se um ritual individualizado? Sendo assim, poderíamos argumentar que as bebidas têm o significado semelhante às drogas nos rituais? Nesse ritual, o mito fundador aparece de forma hibridizada?

A memória desses jovens em relação à história de seus grupos é muito fragmentada, mesmo aqueles mais ligados à cultura Guarani-Kaiowá/Ñandeva não possuem a narrativa mítica completa, muito menos acreditam na eficácia simbólica dos rituais. Um grande exemplo disso é o neto de uma rezadora Ñandeva, que participa dos rituais com toda a família – “eu gosto muito de dançar e cantar, mas sem acreditar no que minha avó faz.” Disse-me que quando participava, escondido, dos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus, podia realmente conversar com Jesus por meio dos cantos, – “pois é só cantar que a gente via e falava com Jesus. Com a minha avó nunca vi nada, a gente só dança. As pessoas acreditam nela, mas comigo ela nunca me curou. Um ritual vazio de mito fundador?”

Muito embora a narrativa mítica esteja incompleta, o feitiço é um símbolo cultural que permanece no imaginário dos jovens indígenas com tal força que todas as desgraças vêm dele.

Poderíamos parafrasear CUNHA & CASTRO (1985: 75) quando definem a memória Tupinambá como a da vingança: a vingança é a forma e o conteúdo da memória? Como isso acontece quando o inimigo é, em potencial, o próprio grupo social? Ou seja, é tudo e pode ser todos? A memória aparecerá como o meio e o lugar, por excelência, da efetuação do social. Se pensarmos que o feitiço opera um sistema de padrões de acusações que permite identificar as tensões sociais do grupo estudado, isso leva-nos à conclusão de que o conflito social é iminente, porque as relações sociais são mantidas pela constante ameaça de ruptura, por ser, o outro, um potencial inimigo. Podemos dizer que as fragilidades das redes sociais são conseqüência desse modelo social?

Diante desse quadro, como podemos compreender esses jovens?

É muito freqüente falarmos do presente, no que está acontecendo com eles, no entanto, quando conversamos sobre o futuro, as respostas são totalmente inexistentes ou evasivas, de uma apatia assustadora.

A memória em relação aos ascendentes familiares chega até aos avós paternos e maternos. Quando perguntamos o que lembram, passam a falar das pessoas que morreram e como, na maioria das vezes, por brigas ou feitiço.

O passado está repleto de histórias de brigas, de rupturas familiares e amorosas; o presente é a vivificação desse passado, pois as brigas e as vinganças jamais são esquecidas. Como ambos carregam o futuro?

Histórias de pertencimentos instáveis e frustrações fazem o futuro repetir o passado. Nessa dinâmica, a conjugação do verbo no futuro jamais poderia ser descrita por meio do olhar ocidental. Vivenciando o aqui e agora por meio do par desconstrução/construção, os jovens indígenas representam um tempo futuro que vai ser determinado pela história da duração das redes de relacionamentos sociais.

 

Tentativas de criação de pertencimentos

A falta de crença no modo de viver dos mais velhos é uma constatação, pois não acreditam em seus conselhos e passam a procurar um modo de vida que seja mais compatível com o dos não índios. Costumam dizer que, na cidade, não tem tanta briga e que as famílias são mais unidas porque os pais realmente cuidam dos filhos.

Quando conversamos com um grupo de jovens de 12 a 15 anos que freqüentam a cidade, eles são enfáticos em dizer que lá é muito melhor do que na RD, mesmo as pessoas não gostando deles, pois é muito mais segura e iluminada – “lá podemos nos divertir: escutamos música no parque e sempre arranjamos alguma comida, mesmo que seja no lixo. O lixo aqui é muito rico!”

Nesse aspecto, a cidade torna-se um lugar de sobrevivência garantida; mapeiam-na com lugares que se tornam referências identitárias. Geralmente quando brigam com os pais, principalmente os meninos de 8 a 11 anos, vão para cidade procurar o que comer.

No entanto, sabem que não podem permanecer ali por muito tempo, pois a Delegacia de Menores passa a persegui-los. Nesse trânsito físico e simbólico, constroem as estratégias de vivências híbridas, conseqüência da liminaridade em que estão vivendo.

No entanto, a liminaridade é marcada por ser transitória, mas, à medida que se torna permanente, como no caso da maioria dos jovens indígenas, a negociação cultural passa a ser construída de forma acentuadamente assimétrica. A desqualificação de sua cultura coloca-os num não-lugar permanente.

É nesse momento que a cidade torna-se o lugar de uma possibilidade preenchida pela conjugação verbal guarani chamada Negação do Futuro Próximo10: eles têm consciência de que não são aceitos pelos não índios pelo fato de serem índios, mas isso não representa uma anulação do fato; pelo contrário, freqüentem a cidade construindo um lugar caracterizado pelo constante trânsito – “não estamos nem lá e nem aqui, ninguém quer a gente.”

A opção pela morte, na maioria das vezes, não chega a ser desejada, mas torna-se uma das possibilidades da conjugação verbal da negação futuro simples ou negação do futuro próximo.

 

Bibliografia

Cunha, Carneiro da, M. & Castro Viveiros de, E. “Vingança e Temporalidade: Os Tu-pinambá”. Journal de la Société des Américanistes, 1985. 71: 129-208.

Meliá, B. & outros. El Guarani a su Alcance. CEPAG, Asunción. 1997.        [ Links ]

Taussig, Michael (1993). Mimeses and Alterity. Routledge: Nova Iorque/Londres. 1993.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria de Lourdes Beldi de Alcântara
E-mail: loubeldi@uol.com.br

Recebido em 10/10/2005
Aceito em 18/11/2005

 

 

Notas

1 Espaço/tempo e lugar/memória são categorias de entendimento que necessariamente criam os pertencimentos, nesse caso, os jovens indígenas em que o tempo/memória é representado pelos conflitos que carregam um futuro preenchido de frustrações e fracassos e onde o espaço/lugar passa a ser trânsito, a concepção da morte e, conseqüentemente, do suicídio configura-se diferentemente, é um lugar de permanência/pertencimento.
2 De agora em diante, nomearei a Reserva de Dourados como RD.
3 São aproximadamente 15.000 hb por 3.500 hectares.
4Bhabha, Homo (1998). UFMG, Belo Horizonte, MG.
5 Ver toda a bibliografia que trata do assunto em BRANDT, ALMEIDA e MELIÁ. Brand, Antonio. O impacto da Perda da Terra Sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra. Tese de Doutoramento, novembro PUC/RS, Curso de Pos-Graduação em História.
Almeida, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitario à mobilização política. O Projeto kaiowa-Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro, Contra capa: Melia, Bartolomeu. 2001.
6 Idem nota 5.
7 Taussig (1993).
8 Ritual de passagem da criança masculina para a fase adulta. É a perfuração dos lábios.
9 Sinal de prestígio.
10 Meliá, B. & outros (1997).