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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PARTE III

 

Hibridismo religioso na literatura brasileira

 

Religious hybridism in the Brazilian literature

 

 

Walnice Nogueira Galvão

Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória/Laboratório de Estudos do Imaginário, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presença do hibridismo religioso, mais apropriadamente chamado de sincretismo na tradição dos estudos antropológicos, é antiga na literatura brasileira. Desde seus primórdios, e até nossos dias, assistimos a uma constante mistura de elementos religiosos nos romances e nos contos, que tanto podem versar sobre a fusão de catolicismo com candomblé quanto sobre a sobrevivência de crenças indígenas, indissoluvelmente ligadas às lições dos missionários.

Palavras-chave: Religião, Sincretismo, Culto dos orixás, Catolicismo, Fusão.


ABSTRACT

Religious hybridism, or syncretism - as the mainstream of anthropological studies call it -, is a traditional presence in Brazilian literature. Since its beginnings as well in these days, our literature gives us a turmoil of heterogeneous religious elements. Our fiction may describe the fusion of Catholicism and Orisha cult, or else give a voice to the survival of Indian beliefs, amidst Christian practices learned from the missionaries.

Keywords: Religion, Syncretism, Orisha cult, Catholicism, Fusion.


 

 

Embora esteja na moda, agora que os países ricos vêem-se invadidos por forasteiros pobres, o hibridismo religioso é velho problema para os pensadores brasileiros e também para a literatura. Nosso pensamento social constituiu-se às voltas com nossa formação pluriétnica e com a mestiçagem, reflexão que se reconhece em seu próprio cerne. Por isso, a crítica literária brasileira vê-se, amiúde, obrigada a recorrer aos estudos de religião para não desfigurar seus objetos: poucas literaturas do mundo estarão tão impregnadas da presença de diferentes hibridismos religiosos.

Escritores de destaque atribuíram-lhes papel central em suas obras. São eles: Euclides da Cunha, em Os sertões (1902); Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas (1956); Jorge Amado, em muitos romances e contos, entre os quais Pastores da noite (1964) e Tenda dos milagres (1969); Antonio Callado, em Quarup (1967); e Darci Ribeiro, em Maíra (1976). O primeiro escreveu sobre uma insurreição religiosa, que resultou na Guerra de Canudos; o segundo, sobre a ubiqüidade de seitas e rituais que permeiam a sociedade brasileira; o terceiro, sobre o sincretismo entre o candomblé e o catolicismo; o quarto e o quinto, finalmente, trataram das crenças indígenas. Para analisar esses e outros autores, cabe atentar para a função que o hibridismo desempenha na estrutura da obra literária.

 

Cultura popular e literatura

Entretando, antes de ser assunto da literatura, o hibridismo religioso já se fazia sentir na cultura popular. Com efeito, o fenômeno foi detectado há mais tempo nas práticas de sociabilidade do povo (MONTEIRO, Marianna M. e SOUZA, Marina M., 2002), em que está vivo até hoje. Foi como curiosidades pitorescas que os primeiros cronistas e viajantes, ao falarem das peculiaridades do Novo Mundo, enfatizaram sua presença nos usos e costumes. Com o passar do tempo, haveria, em parte, um processo de laicização que desembocaria no carnaval, enquanto outra parte permaneceria na esfera do sagrado.

Por isso, o hibridismo religioso aparece, pela primeira vez, em nossa literatura sob a forma de observações, e mesmo descrições acuradas, das práticas da cultura popular. Essa inauguração dá-se num romance que, ao mesmo tempo, é o mais importante iniciador de uma certa tradição entre nós. O romance é Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida (1852-1853, em folhetins), e a tradição é a do protagonista Malandro.

Num contexto estético em que predominava o romance sentimental, esse livro é como uma lufada de ar fresco. Satírico, destilando senso de humor, sabendo aproveitar a graça e o ineditismo de focalizar as camadas menos afortunadas do Rio de Janeiro do tempo de D. João VI, entrou para o panteão como o primeiro romance tipicamente brasileiro bem realizado. Segundo Antônio Cândido, que lhe dedicou famoso ensaio, apanhou alguma coisa de muito sutil no funcionamento da sociedade brasileira, que chamou de “dialética da ordem e da desordem”. (CÂNDIDO, Antônio, 1993)

Com todas essas virtudes, é um romance encantador, sensível para com a cultura popular, dando-lhe lugar de destaque em sua construção. Todavia, patenteia alguma dificuldade em integrar os dois elementos estruturais – narração do entrecho e descrição de evento da cultura popular –, optando por solução mais ou menos canhestra. Esta consiste em alternar a narração e a descrição, de modo que o enredo avance intermitentemente, sendo interrompido a cada passo pela cena de um folguedo religioso ou profano (GALVÃO, Walnice N., 1976). Estão nessa categoria alguns dos mais difundidos costumes que já houve, e ainda há, no Brasil. Vêem-se em suas páginas, entre outros, a festa do Divino Espírito Santo, a intervenção de um Mestre de Rezas e a Procissão dos Ourives, com seu rancho de Baianas em trajes africanos, executando as danças do candomblé de seu culto, mas perfeitamente integradas numa procissão católica, em que o outro quadro mais instigante era o Sacrifício de Abraão. As Baianas, de trajes minuciosamente descritos, eram tão admiradas que as pessoas corriam de rua em rua para vê-las mais de uma vez, como narra Almeida:

“Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas, que caminhava adiante da procissão, atraindo, mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais desculpável.” (ALMEIDA, Manuel A., 1971: 53)

O Mestre de Rezas, cego e portador de uma palmatória, ia de casa em casa ensinando as preces e infligindo castigos a quem não as recitasse corretamente. Quanto à festa do Divino, é uma das efemérides mais espalhadas pelo território nacional. O caráter entre sagrado e profano de tais eventos é dado pela quadrinha que o livro traz:

 

“O Divino Espírito Santo

É um grande folião

Amigo de muita carne

Muito vinho e muito pão.”1

 

A primeira vez, portanto, em que os folguedos populares aparecem mais extensamente em nossa literatura, assim como ocorre em Memórias de um sargento de milícias, já revelam acentuado cunho de hibridismo.

 

Crônica de percurso

Uma tentativa de abordagem permitiria divisar, aproximadamente, quatro fases nessas representações do hibridismo religioso.

Na primeira, cronistas e viajantes anotam a bizarra ocorrência, que percebem, do convívio e da interpenetração de diferentes cultos. Condutas religiosas e profanas confundem-se, são uma e a mesma coisa, ou as duas faces da mesma moeda: os observadores, para efeito de análise, é que distinguem uma da outra.

Na segunda, a cultura popular aparece como fenômeno independente e exterior à literatura. Ambas andam separadas, e a anos-luz uma da outra, sobretudo porque a literatura é “culta”, apegando-se a modelos europeus e ignorando a realidade que a cerca.

Na terceira, a referida cultura surge dentro da ficção, mas em sequências alternadas, como vimos, e não integradas.

Na quarta, temos uma fase de plenitude, em que o hibridismo religioso surge entranhado nas obras literárias, sem maior distanciamento: mas é um ponto de chegada ao fim de um longo trajeto.

 

Sincretismo afro-cristão

Coube a Jorge Amado tornar sua marca registrada a tematização romanesca do sincretismo entre o culto africano dos orixás, devidamente aclimatado no Brasil, e o catolicismo. A aclimação decorreu da camuflagem desenvolvida pelos escravos para proteger seus rituais da repressão ordenada por senhores e autoridades. Na pena desse escritor, a tematização assumiu várias formas, ou antes percorreu uma gradação cheia de nuanças, que vão desde uma presença fortíssima da culinária afro-baiana, como criação de cor local e pano de fundo para os entrechos, até ficções em que um orixá pode ser personagem.

Nascido no sul da Bahia, em Ilhéus, essa zona rural de plantação de cacau daria-lhe assunto para os primeiros romances (nove: 1931-1946), sob o rótulo de “Ciclo do cacau”. Estreando em 1931 com O país do carnaval, filiou-se a uma poderosa corrente que então surgia e dominaria, por meio século, o panorama da literatura brasileira, o Regionalismo do romance de 30. Essa corrente, terceira vaga de uma tendência que vinha desde os tempos coloniais, traçaria quadros ficcionais da vida brasileira longe das cidades, e, por isso, seriam considerados típicos. A corrente, iniciada por José Américo de Almeida com A bagaceira em 1928, teria muitos representantes, como Rachel de Queiroz, Amando Fontes, José Lins do Rego, bem como em Graciliano Ramos, autor de Vidas secas, seu maior escritor. Embora surja também em outros rincões do país, e o melhor exemplo é Érico Veríssimo no Sul, dá voz, sobretudo, aos autores do Nordeste.

Após o “Ciclo do cacau”, a obra de Jorge Amado sofreria uma inflexão e passaria a concentrar-se nas camadas desfavorecidas e negras dos centros urbanos – primeiro, Ilhéus e, depois, Salvador –, quando se torna predominantemente a craveira picaresca. Estreando a nova maneira, da qual não mais se desprenderia, em Gabriela, cravo e canela (1958), inicia seu estrondoso êxito editorial, tanto no país quanto extrafronteiras, com traduções em 36 países e 46 idiomas. Até o advento de Paulo Coelho, seria o mais vendido autor brasileiro de ficção.

E é justamente nessa segunda fase que o autor descobre o sincretismo afro-brasileiro. À medida que aparece, varia. Embora sempre presente, como cor local e composição de cenário, pode, em certas circunstâncias, adquirir maior relevo, como veremos a seguir.

A primeira instância aqui examinada é o romance Tenda dos milagres (1969). O protagonista Miguel Archanjo é inspirado na figura histórica de Manuel Querino (1851-1923), pioneiro que pesquisou e publicou abundantemente em jornais e em livros suas descobertas sobre o folclore baiano, no qual a presença negra é inegável. Salvador, com Rio de Janeiro, foi e é um dos dois focos de concentração de população africana no Brasil e fora da África. Suas descobertas viriam a ser aproveitadas por todos os que, posteriormente, se debruçaram sobre a área, até mesmo Roger Bastide, autor do tratado que é As religiões africanas no Brasil – Para uma sociologia das interpenetrações de civilizações (BASTIDE,1960), livro incontornável, leitura obrigatória para quem trabalha com religião, e não só no âmbito de seu tema explícito.

Esse Manuel Querino esforçou-se por divulgar e, sobretudo, valorizar a contribuição de sua etnia para a cultura brasileira. Seus principais livros são A Bahia de outrora, vultos e fatos populares (1916) e Costumes africanos no Brasil (1938), póstumo. O romance de Jorge Amado, ao transformá-lo em personagem de ficção, coloca-o em constante luta pela aceitação dos negros e sua participação plena na sociedade brasileira. Miguel Archanjo denuncia e contesta abertamente o racismo latente, às vezes, manifesto, nessa sociedade, defendendo com fervor a valia do hibridismo religioso. Uma crescente aceitação revestiria o candomblé e a umbanda não só de igual dignidade e estatuto, quando comparados ao catolicismo, mas facultaria sua penetração nas camadas mais favorecidas e brancas. Anteriormente, os cultos afro foram perseguidos e objeto de execração; vistos como mera superstição, ou coisa pior, quando eram equiparados à feitiçaria. Apesar de não passar de um humilde negro, Miguel Archanjo assume o papel de um ativista contra o etnocídio e contra as teorias da supremacia ariana coevas, um campeão da miscigenação, um defensor ardente dos pretos e mulatos pobres. Torna-se, assim, um herói de seu povo:

“Foi a partir desse tempo, moço de 20 e poucos anos, que Pedro Archanjo deu na mania de anotar histórias, acontecidos, notícias, casos, nomes, datas, detalhes insignificantes, tudo quanto se referisse à vida popular. Não se devera, ao acaso, sua escolha, tão moderno ainda, para alto posto na casa de Xangô: levantado e consagrado Ojuobá, preferido entre tantos e tantos candidatos, velhos de respeito e sapiência. Coube-lhe, no entanto, o título, com os direitos e os deveres; não completara ainda 30 anos, quando o santo o escolheu e o declarou; não pudera haver maior acerto – Xangô sabe os porquês. Uma versão circula entre o povo dos terreiros, corre nas ruas da cidade: teria sido o próprio orixá quem ordenara a Archanjo tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Para isso fizera-o Ojuobá, os olhos de Xangô.” (AMADO, J. 1987: 104)

A outra instância verifica-se em Os pastores da noite (AMADO, J. 1964-1987), trazendo uma notável inovação, que é a elevação dos orixás, de mera anotação pitoresca para dar cor local, à personagens propriamente ditos. Recebem esse privilégio, em chave cômica, Ogum e Exu, este último tantas vezes assimilado ao Hermes da mitologia grega e ao Mercúrio da romana, por seus atributos de senhor dos caminhos, das encruzilhadas e dos ladrões. Como, aliás, indica o nome do mais prestigiado dentre eles, Exu Tranca-Ruas.

Outro orixá, Ogum da espada flamejante, senhor dos metais e da guerra, resolveu ser padrinho num batismo, o que é uma grande honra, ainda mais que essa praxe católica não existe no candomblé. Artur da Guima, renominado Antônio de Ogum na iniciação, é escolhido como cavalo-de-santo para a cerimônia na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Todavia, o encanecido e digno Artur, na hora, comporta-se de modo errático e debochado, mais condizente com Exu, e que todos estranham em Ogum, habitualmente cheio de majestade. É que Exu, de farra, de molecagem, ante o atraso de Ogum, ocupado com “ obrigações na Nigéria e uma festa de arromba em Santiago de Cuba”, baixa no padrinho humano. E Ogum, ao chegar, encontra seu cavalo ocupado. O que faz então?

“Ademais, não havia jeito nem escolha: Ogum entrou pela cabeça do padre Gomes. E, com mão forte e decidida, aplicou duas bofetadas em Exu para ele aprender a comportar-se. O rosto de Artur da Guima ficou vermelho com a marca dos tapas. Exu compreendeu ter chegado seu irmão, estar acabada a brincadeira. Fora divertido, estava vingado da galinha d´angola prometida e escamoteada. Rapidamente abandonou Artur, numa última gaitada, e foi-se esconder atrás do altar de São Benedito, santo de sua cor. Quanto a Ogum, tão depressa entrara, mais depressa saiu, largou o padre e ocupou seu antigo e conhecido cavalo, no qual devia ter chegado à igreja caso Exu não atrapalhasse: Artur da Guima.” (1964-1987: 186)

Assim é o hibridismo religioso tratado na obra de Jorge Amado, em especial nesses três modos: como cor local; como um protagonista atento à importância estratégica do hibridismo religioso e como personificações dos orixás.

 

Uma guerra camponesa

Os sertões, de Euclides da Cunha, diagnostica em Canudos a influênscia do “sebastianismo”, a forma própria que assumiu o messianismo em Portugal, dali emigrando para o Brasil. Quando, em 1578, o rei português D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, seguiu-se a perda da soberania e o jugo da Espanha, que duraria 40 anos. Só em 1640, a coroa portuguesa seria restaurada. A catástrofe daria origem à lenda de que D. Sebastião, cujo cadáver nunca foi encontrado, sobrevivera, para um dia reaparecer, reivindicando o trono e restaurando a grandeza da nação. Lembremos que isso ocorreu logo após o período de fastígio em que seu país liderou as grandes navegações e descobrimentos, entrando em decadência a seguir. Foi em sua homenagem que se batizou, em 1565, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Em território português logo surgiriam, sucessivamente, vários impostores, depois desmascarados, pretendendo ser D. Sebastião.

No Brasil, afora manifestações menores, um surto de sebastianismo deu-se no episódio de Pedra Bonita, no interior de Pernambuco, quando um grupo de crentes entregou-se à penitência para fazer D. Sebastião surgir de dentro de uma lage, à custa de sacrifícios humanos. O surto só seria debelado mediante a intervenção das forças armadas, em 1838.

A presença do sebastianismo em Canudos é mais discutível do que em Pedra Bonita. Embora Euclides da Cunha o afirme, não teve a oportunidade de discernir certas nuanças, por não ter lido um manuscrito com que foi presenteado, contendo os sermões de Antonio Conselheiro. Aos olhos deles, certamente verificaria que o beato não aspirava a tal papel. Mas boa parte de sua grei, se não toda, nele via D. Sebastião. Euclides fala dos folhetos e papéis dos canudenses, encontrados quando o arraial caiu, em muitos dos quais D. Sebastião está presente. O que é corroborado por outros autores e pelos jornais da época, sendo exemplificado em Os sertões:

 

'D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento.”2

 

A crença no advento de um messias é peça fundamental da religião judaica, mas não da cristã: nesta, ele já chegou na pessoa de Jesus Cristo. Euclides da Cunha interpretou-a como um acentuado pendor para o judaísmo, por via do messianismo, já que o advento do messias é um dogma vivo, mesmo hoje, dessa religião: “É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico.” Assim, na concepção de Euclides, Antonio Conselheiro “abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido.” (1985: 224)

Dos hábitos que atestam a sobrevivência de tradições indígenas e africanas, Euclides anotou alguns, assim como registrou que o médico de Canudos, Manuel Quadrado, o “tratador” do Conselheiro, era, na verdade, um curandeiro descendente de índios, que cuidava dos doentes com a terapêutica de sua etnia: “Na multidão suspeita, a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.” (1985: 268)

Presente na Guerra de Canudos, o catolicismo popular, ou catolicismo rústico, já é ele mesmo híbrido. Enquanto o cristianismo formal é monoteísta, o popular é politeísta e se apega ao culto dos santos. Isso cria inesperadas dificuldades para as religiões instituídas. Como se sabe, o Brasil é o maior país católico do mundo, mas não se pode dizer que o catolicismo seja a religião oficial, desde que a República, destronando a monarquia, separou Estado e Igreja, criando, assim, um dissídio que seria uma das causas da Guerra de Canudos. Antonio Conselheiro, e não só ele mas muita gente boa pelo país afora, desaprovou a medida que redundaria em perda de prestígio, e de poder, para a Igreja. O sacramento do matrimônio, até então seu monopólio, perdeu, no mesmo lance, o caráter sagrado, tornando-se civil e profano; os cemitérios também saíram da alçada dela. O governante deixou de ser um imperador de direito divino, e passou a ser qualquer um que fosse eleito. De tudo isso desgostou Antonio Conselheiro e seus prosélitos, como se pode constatar em seus sermões, nos quais ataca tanto a República quanto os ateus, os protestantes e os maçons, por serem inimigos da Igreja.

Examinemos algumas das supracitadas dificuldades, causadas pelas heterodoxias do catolicismo rústico. Há poucos anos, o Vaticano expurgou, de seu panteão, alguns santos sem existência histórica, portanto, lendários. Ora, no caso do Brasil, a medida foi de uma inabilidade sem paralelo, e o Vaticano não foi obedecido. Entre os atingidos pelo banimento, estavam alguns dos santos mais venerados do país. E, em primeiro lugar, São Benedito, que poderia ser uma criação brasileira, por ser um santo negro, suscitando devoções fervorosas desde os tempos da escravidão, quando era o predileto dos escravos e seu protetor. Comprovam-no as inúmeras confrarias e irmandades de São Benedito, congregando negros escravos e pretos forros nos tempos coloniais, quando só sua contraparte feminina, Nossa Senhora do Rosário, com ele rivalizava em prestígio:

 

“Meu São Benedito

É santo de preto

Ele toca viola

Ele ronca no peito.”

 

No entanto, conforme elucida Roger Bastide, no que diz respeito ao culto aos dois santos: “ Não sabemos exatamente quando se formou. Antonil, em 1711, já se refere às festas de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, nas capelas dos engenhos. São Benedito, morto em 1859, imediatamente depois de sua morte passa por taumaturgo e, por causa de sua cor, torna-se logo o protetor dos negros (embora seu culto permaneça à margem do catolicismo ortodoxo; não foi se quer autorizado pela Igreja posteriormente, em 1743; sua canonização data de 1807). O culto de Nossa Senhora do Rosário fora criado por São Domingos de Gusmão, mas estava fora de moda, sendo restabelecido justamente na época em que os dominicanos enviaram seus primeiros missionários para a África; daí, sua introdução e sua generalização progressiva no grupo dos negros escravizados. Esses fatos bem indicam que o culto de santos negros ou de Virgens negras foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da cristianização, bem como foi considerado pelo senhor branco como um meio de controle social, um instrumento de submissão para o escravo.” (BASTIDE, 1971: 163)

Em segundo lugar, o Vaticano baniu Sâo Jorge, quando qualquer brasileiro preveniria contra medida tão sacrílega. É que São Jorge, por sincretismo, identifica-se a Oxosse, um dos maiores orixás, senhor da caça e das florestas. São Jorge, o que nunca existiu, é usualmente representado como um guerreiro a cavalo, vestindo armadura e empunhando uma lança (sendo, às vezes, por isso identificado a Ogum, senhor da guerra), traspassando o dragão que é Satanás. Assim o vemos como padroeiro da Inglaterra, de Portugal, da Lituânia, da Geórgia, da cidade de Moscou e do Esporte Clube Corinthians. Além de ser um dos santos mais queridos do Brasil, encontrando-se por toda parte sua estampa pendurada na parede das casas humildes, e, sobretudo, de moradores negros. Era comum que a estátua de São Jorge tomasse parte em procissões, especialmente na de Corpus Christi, de armadura e lança em riste, montado num cavalo branco de verdade, todo ajaezado de prata, sendo ovacionado pela multidão. Uma lenda local de Ouro Preto relata que, certa vez, a estátua desequilibrou-se e sua lança cravou num circunstante, matando-o. A seguir, a estátua passou a pernoitar na cadeia até que o tribunal do júri a absolvesse da acusação de homicídio. Por aí vê-se que o banimento foi uma imprudência do Vaticano, porque, ao menos aqui, São Jorge existe.

Analisando o fenômeno do sincretismo, Roger Bastide observou: “Vimos que para poder subsistir durante todo o período escravista os deuses negros foram obrigados a dissimular-se por trás da figura de um santo ou de uma virgem católica. Esse foi o ponto de partida do casamento entre o cristianismo e a religião africana ...” (1971: 359)

E mais, acatando uma minuciosa explicação avançada pelos pais-de-santo, que mostram uma alta consciência do hibridismo, para dar conta dos desenvolvimentos pós-cativeiro:

“... enquanto o católico canoniza seus santos, o africano ignora a canonização; os orixás se manifestam, isto é, descem no corpo de seus fiéis originando o transe místico, ao passo que os padres proíbem as manifestações de seus santos. O espiritismo, por sua vez, é culto dos mortos, cujos espíritos entram nos médiuns para, por seu intermédio, falar aos fiéis; na religião africana, os Eguns (almas dos mortos) não manifestam-se no transe; ‘não descem, aparecem’, e surgem na forma de personagens disfarçadas que desempenham suas funções, ou melhor, ‘falam de fora’ e é a voz dos mortos que se faz ouvir na ilha de Itaparica.” (1971: 360)

 

Hibridismos religiosos e outros

Guimarães Rosa é um dedicado alquimista de hibridismos, e não só religiosos. Os de linguagem, por exemplo, quando mistura arcaísmos com neologismos de sua lavra.

Ou então hibridismo de gênero: uma de suas mais notáveis criações é a exploração que fez de um vetusto arquétipo, a Donzela-Guerreira, ou seja, a mulher vestida de homem que vai à guerra e é protagonista de seu romance Grande sertão: veredas.

Ou ainda hibridismo de etnias, evidenciado pelo cuidado com que trata os estrangeiros. Lá estão um árabe e um alemão em Grande sertão: veredas; o italiano de O cavalo que bebia cerveja; os dois frades capuchinhos, Frei Sinfrônio e Frei Florduardo, missionários franciscanos que entendem a língua de seu Olquiste, em “Recado do morro”, de Corpo de baile; o chinês de “Orientação” e os ciganos de quatro contos de Tutaméia - Terceiras estórias. Vê-se representada a própria realidade social brasileira, resultante de três troncos principais a que se agregaram muitos outros afluentes, como o italiano, o árabe, o espanhol, o japonês, o alemão. Há muito tempo, nossa literatura teve que tomar conhecimento deles e integrá-los.

Quanto ao hibridismo religioso, o escritor observa-o e realça-o em seus textos como característico tanto da diacronia quanto da sincronia da sociedade brasileira. Indo desde anotações esparsas até verdadeiras reflexões, chega a utilizar num de seus contos mais importantes, “A hora e vez de Augusto Matraga”, o recurso de mimetizar o modelo da hagiografia popular, como podemos encontrar nas narrativas pias e no folheto de cordel (por exemplo, em Roberto do Diabo): a do homem mau que a conversão transforma em santo e mártir. Esse é o conto que, segundo ele próprio percebeu, definiu seu estilo para sempre.

Disseminada pela obra toda, uma meditação mais detida sobre o hibridismo encontra-se no romance Grande sertão:veredas. Há mesmo um ponto básico a que volta-e-meia retorna o narrador, comentando o que vê pelo interior do Brasil, e que é o papel fundamental da religião – qualquer uma, e todas – para manter alguma sanidade no mundo: “ Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral, isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. (ROSA, 1963: 17)

E passa à exemplificação, tratando, após as generalidades, de casos concretos: “ Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!” (1963: 17-18)

Difícil imaginar quadro mais completo, embutido num romance, do(s) hibridismo(s) religioso(s) brasileiro(s).

 

Quanto aos índios

Finalmente, vejamos como aparecem os índios e suas crenças em nossa literatura. As primeiríssimas representações dos índios no Romantismo oitocentista falavam de um idealizado hibridismo étnico, mas não dedicavam atenção a sua religião. Esta não era levada a sério, foi considerada apenas como folclore, e ponto final: e, evidentemente, o cristianismo não estava em discussão. Salientam-se, à época, os romances de José de Alencar (O guarani, Iracema, Ubirajara) e a poesia de Gonçalves Dias (“I-Juca Pirama”, “Leito de folhas verdes” e o inconcluso “Os Timbiras”).

É bom lembrar que no Brasil nunca tivemos um pujante Indigenismo literário, como na América Hispânica, cabendo-nos apenas o Indianismo romântico. Por quase um século depois dele, enquanto o Indigenismo produzia uma notável safra de ficção por todo o continente, entre nós o tema não despertava o estro dos escritores.

Entretanto, na segunda metade do século XX surgiu um novo interesse, paralelo ao nascimento do movimento social reivindicatório nativo. Então, o leitor teria o prazer, e o desafio, de ler a respeito do índio como o representante da identidade nacional, ou da autêntica nacionalidade, ou da vera alma do Brasil profundo cuja busca empenhava a todos. Busca, no entanto, já ameaçada de desilusão e derrocada.

Nessa época, o índio foi posto bem no meio do mais importante romance escrito logo após o golpe militar de 1964. O romance é Quarup (1967), de Antonio Callado, e até seu título sinaliza a celebração dos mortos e os intrincados rituais de seus funerais, em festival sobrevivente no Parque Nacional do Xingu.

Neste livro, há uma demanda complexa da recôndita identidade e alma do Brasil, idealmente localizada nas entranhas do perímetro nacional, onde, por coincidência, os índios ainda vivem. E, segundo o romance, a instauração de uma utopia no país, a exemplo da que se viu nos Sete Povos de Missões, depende da compatibilização entre seus melhores, revolucionários e índios.

O romance é alegórico, é claro, implicando que não deveríamos procurar o futuro em terras estrangeiras, mas em nós e em nossa hinterlândia. E esta é a função dos índios no romance, construído em torno de um magnífico festival de Quarup, bem em seu centro. Não se trata aqui de folclore, como na literatura do Romantismo, mas de uma narrativa respeitosa de um belo ritual religioso, ainda sem hibridismo à vista.

Depois disso, e decorrido quase um decênio, tivemos Maíra (1976) e um tratamento original. De autoria do renomado antropólogo, político e educador Darci Ribeiro, que não se sabe como achava horas vagas para escrever romances, dá preeminência a uma personagem que encarna o maior e pior dilema do hibridismo religioso. Um índio, por nome Avá, nasceu como o novo senhor da guerra – o tuxauarã – da tribo Mairum, graças a sua linhagem e a seu destino imposto pela tradição.

Mas a tribo está em decadência, e, por isso, Avá é recolhido pelos missionários católicos e enviado a Roma para tornar-se padre, recebendo o muito cristão e muito profético nome de Isaías. A partir daí, seguem-se os inevitáveis e insolúveis conflitos: Avá nem mais é o senhor da guerra reconhecido por seu povo nem inteiramente um padre cristão, já que sua vida é a de alguém que é marginal tanto ao mundo indígena quanto ao mundo dos brancos. A pungência da personagem é inscrita em seu destino, pois ele, ao perder a fé em ambos os mundos, perde também o rumo.

É com base nessas linhas de força que a literatura brasileira tem lidado com os diferentes hibridismos religiosos, num processo em devir, longe de estar completado.

 

Bibliografia

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Bastide, Roger. As religiões africanas no Brasil – Para uma sociologia das interpenetrações de civilizações, trad. Maria Eloisa Capellato e Olívia Krahenbuhl, São Paulo: Pioneira/Edusp, 2 vols., 1971, (original francês 1960).

CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da malandragem”. In O discurso e a cidade, São Paulo: Duas Cidades, 1993.

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Galvão, Walnice Nogueira. “No tempo do rei”. In Saco de gatos, São Paulo: Duas Cidades, 1976.

Monteiro, Marianna Martins. Espetáculo e devoção: Burlesco e teologia política nas danças populares brasileiras, Tese de doutorado, São Paulo, FFLCH-USP, 2002 (policop.).         [ Links ]

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Souza, Marina de Mello. Os reis negros no Brasil escravista – História da festa de coração do Rei Congo, Belo Horizonte, UFMG, 2002.

 

 

Endereço para correspondência
Walnice Nogueira Galvão
E-mail: labi@usp.com.br

Recebido em 14/10/2005
Aceito em 28/11/2005

 

 

Notas

1 ALMEIDA, M. A. (1971: 60).
2 Cunha, Euclides. 1985: 250.