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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

As imagens do deslocamento nos espaços e os espaços para o deslocamento nas imagens*

 

The images of dislocations in spaces and the spaces for dilocations in images

 

Imágenes del desplazamiento en los espacios y los espacios para el desplazamiento en las imágenes

 

 

André Mendes**

HIMMA – Estudos em psicologia Imaginal Clínica-oficina Kairós

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na psicologia analítica formulada por Jung mostrase evidente, embora nem sempre reconhecida, a relação entre o homem, seu tempo e a sociedade. No entanto, no tocante às coletividades humanas, essa relação refere-se, em geral, a condições abrangentes. Preocupados em avaliar essa relação num campo mais restrito, circunscrito à realidade brasileira, gostaríamos de apresentar uma pesquisa que buscou considerar o campo em sua manifestação concreta e específica por meio da observação participante, realizada junto à Pastoral dos Migrantes da comunidade Nossa Senhora das Graças, localizada na periferia da cidade de São Paulo. Tomando como principal fonte de dados os diários de campo e apoiados no referencial da psicologia arquetípica, tecemos reflexões sobre as imagens do espaço e do deslocamento. Essas experiências foram concebidas de forma não-literal e analisadas com base no emprego da linguagem metafórica. Acreditamos que os resultados obtidos apontam para a íntima relação entre as ocorrências de campo e a dinâmica psicológica, relativizando a divisão entre mundo externo e mundo interno, e, alternativamente, propõem que a atividade psíquica ocorre no encontro concreto entre o indivíduo e o espaço que ocupa; adicionalmente, sugerem que a relação de pesquisa está apoiada na possibilidade de acolhimento e experimentação de uma identidade submetida a processos recorrentes de construção, desconstrução e reconstrução.

Palavras-chave: Psicologia analítica, Deslocamento, Espaço, Identidade, Pesquisa participante.


ABSTRACT

In the analytical psychology formulated by Jung, the relation between man, his time and society is evident, if not always recognized. Nonetheless, as far as human collectivities are concerned, this relation usually involves widesweeping elements. Eager to evaluate this relationship in a more restricted sphere related to Brazilian reality, we would like to present a research that set out to investigate the concrete, specific manifestation of the field through the participative observation of the Immigrants Pastoral of the Nossa Senhora das Graças community located on the outskirts of the city of São Paulo. Using field diaries as our principal source of data and relying on the framework of archetypal psychology, we reflect on the images of space and displacement. These experiences were conceived in a non-literal fashion and our analysis was based on the use of metaphorical language. We believe that the results obtained point to the close relationship between the field occurrences and the psychological dynamics, thus making the division between the outside and inside world a relative matter. Alternatively, the results propose that the psychic activity takes place in the concrete encounter between individuals and the space they occupy, as well as suggest that the research is based on the possibility of accepting and experimenting an identity submitted to recurrent processes of construction, deconstruction and reconstruction.

Keywords: Analytic psychology, Displacement, Space, Identity, Participant research.


RESUMEN

De acuerdo con la Psicología analítica formulada por Jung se muestra evidente, a pesar de no ser siempre reconocida, la relación entre el hombre, su tiempo y la sociedad. Sin embargo, en lo que concierne a las colectividades humanas, esa relação se refiere, em general, a condiciones más amplias. Preocupados en evaluar esa relación en un campo mais restricto, circunscrito a la realidad brasileña, presentamos una pesquisa que buscó considerar el campo en su manifestación concreta y específica por medio de la observación participante, realizada en la Pastoral de los Migrantes de la comunidad Nossa Senhora das Graças, ubicada en la periferia de la ciudad de São Paulo. Tomando como principal fuente de datos los diarios de campo y apoyados en el referencial de la psicología arquetípica, tejemos reflexiones sobre las imágenes del espacio y del desplazamiento. Esas experiencias fueron concebidas de forma no-literal y analisadas con base en el uso del lenguaje metafórico. Creemos que los resultados obtenidos apuntan para la íntima relación entre los hechos ocurridos en el campo y la dinámica psicológica, relativizando la división entre mundo externo y mundo interno, y de forma alternativa, proponen que la actividad psíquica ocurre en el encuentro concreto entre el individuo y el espacio que ocupa; por añadidura, sugieren que la relación de pesquisa está apoyada en la posibilidad de acogida y experimentación de una identidad sometida a processos de construcción, desconstrucción y reconstrucción que se repiten.

Palabras clave: Psicología analítica, Desplazamiento, Espacio, Identidad, Pesquisa participante.


 

 

Introdução

A despeito dos esforços empreendidos, esta é uma produção que solicita de sua audiência um esforço peculiar de leitura, já que não apresenta todas as suas idéias na forma de um raciocínio estritamente linear. Aqui serão encontradas repetições, lacunas, pontos de interseção apenas insinuados, insights não aprofundados, entre outras condições próprias de uma pesquisa em desenvolvimento. Enfim, trata-se de uma narrativa errante, algumas vezes migrante, recheada de movimentos de ida e volta. Uma circuambulação1 em torno das imagens de espaço e do deslocamento.

Nossa pesquisa foi orientada por um movimento que, em consonância com os elementos apresentados, fosse capaz de perfazer um diálogo com o material encontrado em campo. Assim, a adoção de uma perspectiva psicológica, a descrição densa e a metáfora são procedimentos, formas de relação desenvolvidas ao longo desta pesquisa. É com base nessa consideração que apresentaremos a forma como os dados serão analisados.

Buscamos, como pesquisador, participar das atividades da Pastoral dos Migrantes no Jardim Elba – bairro periférico da Zona Leste da cidade de São Paulo – como membro da mesma, registrando-as em diários de campo. Do material de campo recolhido2, serão apresentados os episódios que consideramos mais prevalentes e pregnantes em nossa dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2005.

 

O deslocamento e as imagens arquetípicas

O verdadeiro tresloucar (das Verrückte) consiste na impossibilidade de deslocar (Unverrückbarkeit), na incapacidade do pensamento de atingir essa negatividade em que consiste, diferentemente do juízo consolidado, o verdadeiro pensamento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 181).

A linguagem psicológica, para descrever a psique, revela-se repleta de palavras ligadas ao espaço: o deslocamento, na psicanálise; o centro da psique, na psicologia analítica; psicologia profunda, termo cunhado por Bleuler; figura-fundo, na Gestalt; desvio, na psiquiatria; e termos de uso geral, como lunático, distanciado, fora de si, nas nuvens, pra baixo, deprimido e uma série de outras expressões que, de tão visitadas, descolaram do lugar-comum e passaram a designar novas paisagens. Freqüentemente, utilizamos expressões espaciais para apresentar a psique e a produção psíquica se apresenta ligada aos lugares.

O trabalho da psicologia, trabalho da alma, é notoriamente muito fechado, enclausurado numa sala de consultório, duas pessoas sentadas muito acima da rua, nem mesmo o telefone interrompe. Ainda assim, é precisamente a rua aquilo que adentra o consultório: a próspera mãe preocupada com suas plantas, a matrona suburbana deprimida, o delinqüente, o fugitivo, o viciado, o executivo obcecado pelo sucesso, correndo entre aeroportos, perseguido pela idéia de suicídio. Nosso trabalho é com pessoas da cidade, e a cidade está na alma de nossos clientes, de forma que, claro, você nos encontra, analistas, nas grandes cidades. Você não vai encontrar muitos de nós em Cheyenne ou Bismarck. Os fundadores de nosso campo de trabalho tiveram suas escolas nomeadas a partir de suas cidades: Paris, Nancy, Viena, Zurique, como que para confirmar que o trabalho com a alma pertence à cultura da cidade (HILLMAN, 1993, p. 37).

Mesmo que alguns psicólogos busquem uma psicologia de validade universal, portanto aplicável em todos os lugares e, muitas vezes, justamente por isso, fora do lugar, observamos que o espaço invade a prática psicológica. Por outro lado, uma psicologia que não reconhece suas raízes, não pode ou não sente a necessidade de falar da especificidade dos lugares. Nesses casos, podemos observar que o refúgio da psicologia pode ser localizado fora do mundo, ou, mais precisamente, no chamado mundo interno, o reino dos estados subjetivos:

Por exemplo, quando me perguntam: “Como foi o passeio de ônibus?” Respondo: “Deplorável, terrível, desesperador”. Mas essas palavras representam a mim, meus sentimentos, minha experiência, não o passeio de ônibus que foi acidentado, estava abarrotado, insalubre, atrasado. Mesmo que eu reparasse no ônibus e na viagem, minha linguagem transferiu essa atenção para noções acerca de mim mesmo. O “eu” engoliu o ônibus, e meu conhecimento do mundo exterior passou a ser um relatório subjetivo dos meus sentimentos (HILLMAN, 1993, p. 21-22).

Ao longo de sua obra, Jung busca superar a separação entre mundo interno e mundo externo, objetivismo e subjetivismo, ou, dito de outra forma, não pretende operar com essas categorias.

Jung afirma que o ponto de vista psicológico – do ser na alma3 – é a pedra angular na qual estão fundamentadas todas as nossas experiências, pois qualquer relação do indivíduo com o mundo e consigo mesmo será uma relação mediada pela psique4:

Não tenho a pretensão de contestar a validez relativa do ponto de vista, a do esse in re [do ser real], nem do ponto de vista idealista, do esse in intellectu solo [do ser apenas no intelecto]; gostaria apenas de unir estes opostos extremos através do esse in anima [do ser na alma] que é justamente o ponto de vista psicológico. Vivemos imediatamente apenas no mundo das imagens (JUNG, 1984, p. 337).

Apoiado em Jung, Hillman (1995) aponta que esse in anima – o ser na alma – deve ser considerado o elemento fundamental para a psicologia. Isso significa dizer que nossa experiência do mundo e de nós mesmos está irremediavelmente ligada às manifestações espontâneas da psique, que invariavelmente possibilitarão nossa sensação de consciência.

Se as imagens arquetípicas são os fundamentos das fantasias, elas são os meios através dos quais o mundo é imaginado, e então elas serão os modos pelos quais todo conhecimento, toda e qualquer experiência se tornam possíveis. “[...] Todo o processo psíquico é uma imagem e um ‘imaginar’; de outra forma, a consciência não pode existir” (JUNG, 1988, citado por Hilmann, 1995, p. 34).

Tomando como referência os estudos de Henry Corbin (1903/1978), filósofo francês conhecido principalmente pela interpretação do pensamento islâmico, Hillman descreve a imaginação como função produtora, criadora, e não a considera como estritamente reprodutora ou mesmo representativa. Encontramos, nos escritos poéticos de Bachelard (1988), uma aproximação: “A imagem poética – uma simples imagem! – torna-se assim, simplesmente, uma origem absoluta, uma origem da consciência”.

Do ponto de vista fenomenológico, resumidamente, imagem arquetípica é aquilo que nos afeta, que nos coloca fora do lugar costumeiro, algo que depois de vivido não consegue passar desapercebido, uma espécie de evento traumático – agradável ou, muitas vezes, desagradável – que demanda atenção e revisitação, mais do que interpretação.

Do ponto de vista didático – não gostaríamos de nos deter muito nesse ponto, embora uma certa localização pareça necessária –, a imagem arquetípica não se reduz a qualquer registro do campo das percepções dos órgãos dos sentidos ou a uma memória ou pósimagem advinda do contato com objetos externos.

Imagem arquetípica refere-se àquilo que constitui a experiência psíquica, mais precisamente, àquilo que é capaz de transformar, por meio da linguagem metafórica e poética, eventos em experiências. Adicionalmente, Hillman (1995), apoiado em Jung (1988), considera que o arquetípico5 não é uma categoria, mas simplesmente uma consideração – uma operação que pode se realizar com qualquer imagem. Segundo Adams (2002, p. 113, grifo do autor):

O arquetípico é “um movimento que se faz mais do que uma coisa que é”. Considerar uma imagem arquetípica é julgá-la como tal, de uma certa perspectiva, dotá-la de operacionalidade e tipicidade – ou, como Hillman prefere dizer, de valor.

A psicologia, logos da psique, segundo Hillman (1995, p. 46), significa o discurso, a narrativa ou a verdadeira fala da alma. Dessa forma, a psicologia na perspectiva arquetípica, estaria, desde suas raízes – inclusive etimológicas –, ligada ao conceito de alma e comprometida com um determinado estilo discursivo, a metáfora. Como nos conta Hillman (p. 46), “[...] o logos da alma, isto é, seu verdadeiro discurso, será num estilo imagético, [...] que é totalmente metafórico”.

A metáfora não deve aqui ser entendida como simples resultado de esforços apoiados na lingüística, na sociolingüística ou em outra forma de produção de conhecimento embasada na linguagem que podem operar com a metáfora, mas não constituem a esfera produtora desta. Não se trata, portanto, de tomar a metáfora como mera ocorrência lingüística realizada por meio do jogo de palavras; esse procedimento – na perspectiva da experiência psicológica – descreve a metáfora de maneira literal, ou seja, não-metafórica. Podemos dizer que a metáfora não está limitada a um conjunto de expressões lingüísticas formadas pela junção de diferentes palavras; pelo contrário, acreditamos que as próprias palavras podem ser consideradas, antes de tudo, metáforas. Parafraseando Jung (1988, citado por López-Pedraza, 1999, p. 30) – “fazer Mercúrio com Mercúrio” –, façamos metáforas com metáforas.

É particularmente relevante apontar que o emprego da metáfora não visa a amortecer ou minimizar o impacto ou a importância dos fenômenos; não se trata de um procedimento de esquiva ou de maquiagem. A linguagem metafórica não é uma fuga, mas a assunção de uma realidade premente, a qual pode ser igualmente ou, por vezes, mais efetiva e presente em nossas vidas do que qualquer outra “realidade”.

A força ou especificidade da metáfora reside na sua relação com o sentido, o que provoca seu descolamento de formulações preconcebidas e forma, de maneira virtualmente inesgotável, novas ligações. A metáfora nos insere no domínio do virtual, “ver como”, nas palavras de Gauthier (2004, p. 132), ou “psicologizar ou enxergar através”, segundo Hillman (1995, p. 43), descrevendo, portanto, um movimento que permite ver além, enxergar além do factual, e impossibilitando o trabalho reiterado de literalização dos sentidos na forma daquilo que conhecemos.

A metáfora, assim, é uma manifestação concreta – e não-literal –, uma injunção entre o eu e o não-eu. Podemos, utilizando a linguagem literária, ilustrar isso de forma muito mais eloqüente, nas palavras de Bosi (1993, p. 114, grifo do autor): “Determinações múltiplas e contrárias, o não-ser e o ser, o tempo e a eternidade, o mundo e o eu, vão crescendo junto com o significado da palavra. ‘Concreto’ quer dizer, precisamente: que cresceu junto”.

A relação com a metáfora busca aprofundar o campo psíquico, não limitando a vida ao literal. No fim do século XIX, apoiado nas falas de suas pacientes histéricas, Freud dava voz à história de um abuso que não encontrava apoio no factual, mas que paradoxalmente havia acontecido. Jung, por sua vez, considerava o delírio de seus pacientes esquizofrênicos como se fossem fatos reais. Aqui a ficção encontra a alma e a alma cria ficção, e realidade e ficção não encontram distinção.

Paradoxalmente, embora a linguagem metafórica – na qual as diferentes psicologias podem encontrar apoio e expressão – apresente sua especificidade, esta não pode ser identificada ou retida em nenhum campo determinado, já que não é factível reduzi-la à fisiologia cerebral, à estrutura da linguagem, à organização da sociedade ou a qualquer outro domínio. Embora não se identifique de maneira redutiva a nenhum desses campos, a metáfora não escusa utilizar-se livremente dos diversos conteúdos presentes nas diferentes estratégias discursivas, materializando-se por meio da pilhagem e da subversão de reservas de sentido alheias.

 

Campo de pesquisa, campo de trabalho, campo de batalha, campo de força...

Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro [...] (MERLEAU-PONTY, 1980 citado por GONÇALVES FILHO, 2001)

A escolha pelo trabalho de campo foi pautada pela observação da complexidade do fenômeno estudado e pelo desejo de avaliá-lo em profundidade. Essa orientação foi o que também motivou a utilização da observação participante. A pesquisa de campo tem como objetivo a obtenção de dados na situação e no contexto em que as relações ocorrem. No entanto, esses “dados” não estão simplesmente à disposição da observação do pesquisador. Mais do que se localizar em ponto privilegiado à observação, nos diz Gonçalves Filho (2001)6, o pesquisador empenhado na realização da observação participante deve adotar um procedimento metódico: a imersão no campo em que se dá a aparição do fenômeno.

Segundo Gonçalves Filho (2001), a observação participante é informada fundamentalmente por duas grandes influências: a gestaltista e a etnográfica. Da psicologia da forma, pela consideração dos fatos em relacionamento recíproco, não pontualmente, mas segundo sua situação estrutural. Do método etnológico, pela caracterização do que Geertz (1989) apresenta – tomando de empréstimo uma noção de Gilbert Ryle – como descrição densa.

Com seu diário, o pesquisador não deve atuar como um decifrador de códigos; sua atividade deve parecer-se muito mais com a do crítico literário. Assim, a interpretação de um fenômeno – mediado pelo acesso ao que Geertz chama de diferentes estruturas de significação – não supõe um procedimento meramente intelectual tomado à distância, mas alguma inserção do intérprete ele mesmo no próprio campo vivo do fenômeno estruturado; “de um pesquisador exige-se alguma forma de engajamento radical no mundo dos outros” (GONÇALVES FILHO, 2001, p. 15).

Devemos, para tanto, empreender um deslocamento, uma migração para as condições em que a experiência se dá. Mais do que uma mudança física, trata-se de uma postura de abertura à alteridade, experiência que deve ressoar profundamente no observador. Na condução adequada da pesquisa de campo cuja modalidade seja a da observação participante, o pesquisador deve sentir-se interrogado pelo objeto de pesquisa, partilhar com ele uma condição pela qual possa estabelecer uma convivência, alguma comunicação, algum engajamento:

E ela [a pesquisa] será tanto mais válida se o observador não fizer excursões saltuárias na situação do observado, mas participar de sua vida. A expressão ‘observador participante’ pode dar origem a interpretações apressadas. Não basta a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto da pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum, na convivência, nas condições de vida muito semelhantes. Não bastaria trabalhar alguns meses numa linha de montagem para conhecer a condição operária (BOSI, 1979, p. 2).

Tampouco basta, como ingenuamente podemos supor, a tentativa de identificarmo-nos com os outros, apagando nossas diferenças, “tornarmo-nos aquilo que não somos”. O que se pretende é estabelecer um campo de comunicação no qual será baseada a pesquisa, esse campo nem sempre fácil, nem sempre disponível, nem sempre confortável. O desejo de nos comunicarmos de maneira igualitária deverá pautar a postura do pesquisador; no entanto, considerando a realidade brasileira, marcada por profundas desigualdades de classe, poucas propostas podem parecer tão difíceis. Assim, deverão nos interessar da mesma forma os momentos de comunicação impedida, como as horas de troca livre e horizontal (GONÇALVES FILHO, 2001).

Situarmo-nos no centro da vivência de um outro, inserindo-nos no miolo vital de seu mundo, é esforço insaciável, sempre parcialmente bem-sucedido: eis no que consiste, diz-nos Geertz, a pesquisa como experiência pessoal.[...] O que pretendemos é colocarmo-nos em posição de nos comunicarmos com o outro sem nos substituirmos a ele, mas deixando-nos interpelar vivamente por ele e por seu mundo. Nosso objetivo é o alargamento do discurso acerca do outro e acerca de nós mesmos. Desejamos falar do sofrimento e da humanidade dos outros, não como pretendendo substituir nossa palavra à deles mas imantando nossa experiência e discurso pelo diálogo vivo com seu sofrimento e com sua humanidade (GONÇALVES FILHO, 2001, p. 18-19).

Claro que a humilhação social ou mesmo a diferença de classe não precisam necessariamente figurar como o tema principal de toda e qualquer pesquisa em ciências humanas, mas não devemos subestimar as interferências que fatores como esses exercem em nossas pesquisas, muitas vezes dificultando ou falsamente facilitando a interação entre pesquisador e pesquisado.

Dessa forma, por exemplo, numa observação participante, as ações do pesquisador afetam as ações do(s) pesquisado(s), instauram e muitas vezes reeditam formas de relação assimétricas e marcadas pela dominação presente em nossa sociedade7.

Desta forma, não se espera do pesquisador em campo, com base em observações espontâneas da qual pessoalmente fez parte, narrativas egóticas – realizadas no isolamento, incapazes de estabelecer comunicação com os outros e com o campo – nem tampouco descrições gerais ou abstratas, mas que ele possa identificar, no contato e na conversa com os outros, episódios e palavras que lhe parecem certeiramente descrever suas experiências (GONÇALVES FILHO, 2001).

Como mostraremos a seguir, acreditamos que na pesquisa de campo não se pode qualificar uma atividade como mais importante do que outra; toda participação é importante, a mais longa tanto quanto a mais curta, a mais antiga tanto quanto a mais recente. Essa foi uma evidência que só pôde ser compreendida no envolvimento com a atividade de campo e com os dados por ela engendrados. Assim como, na prática clínica, um único sonho revisitado, por vezes, pode condensar, “orientar” ou “resumir” todo um processo percorrido por anos. Há sonhos que, como os mitos, são inesgotáveis em suas associações. Isso também ocorre na pesquisa de campo, na qual o registro e a experiência de um dia não cessam de convocar uma revisitação, o que torna o processo de análise circular, mais do que linear. Nas palavras de Barcellos (1995, p. 11, grifo do autor):

Nossa incapacidade de experimentar e vivenciar a simultaneidade de significados de cada imagem vem da necessidade de transformá-las em história, em temporalidade: uma coisa por vez, uma coisa depois da outra. Aqui, como sempre, o mito do desenvolvimento: nossa abordagem fortemente evolutiva dos eventos nos faz ver primeiro o desenvolvimento. Mas no reino do imaginal, todos os processos que pertencem a uma imagem são inerentes a ela e estão presentes ao mesmo tempo, todo o tempo.

Acreditamos que o conjunto formado pelo agrupamento dos dados de campo pode ser visto analogamente à montagem de um mosaico, no qual cada uma das peças compõe, em conjunto com as demais, uma estrutura; entre cada uma delas há inúmeras diferenças e o conjunto, por vezes, pode apresentar algumas lacunas. Analisados separadamente, cada um dos registros de campo pode engendrar a observação de uma estrutura própria. A junção ou síntese dos diferentes episódios – atividade proposta nesse trabalho – é, assim, um artifício, um trabalho de interpretação, uma ficção8. Trata-se de uma atividade que não pode ignorar a participação do pesquisador, que, em analogia à figura do artesão, escolhe as peças e a disposição que comporão uma paisagem mais ou menos nítida de determinado contexto.

Dessa forma, o pesquisador é duplamente co-responsável, tanto pela produção dos diários – as peças do mosaico – quanto pela junção destes que, esperamos, produzirá algo mais do que a soma das partes.

Essa composição não pretende, portanto, revelar a verdade sobre a Pastoral dos Migrantes, nem sobre o Jardim Elba. Ela é uma verdade dentre outras possíveis, uma perspectiva, uma figura num caleidoscópio – para utilizar outra metáfora visual – a qual, a despeito da aparente fugacidade e instabilidade, pode ser retida, fixada, observada, e nesse processo oferecer como meio para o aprofundamento dos eventos retratados.

 

As imagens do campo

Sapopemba é uma região afastada do centro da cidade e, além da distância espacial, que não pode ser ignorada, há outras formas de distanciamento que nos mantêm longe da experiência desse local. Como região periférica do município de São Paulo, diferenciase muito de outras partes da cidade; vejamos como essa região aparece em um noticiário jornalístico de Penteado (2004, da reportagem local):

SEGURANÇA

Moradores da periferia, espancados, dizem que policiais chegaram a se negar a ir até o local; delegado nega contato.

Polícia demora, e favela vive 6 h de arrastão

Na Zona Leste de São Paulo, mas em uma paisagem urbana bem diferente dos condomínios no Alto da Mooca e no Jardim Avelino, moradores da favela Elba, em Sapopemba, também foram vítimas de arrastão. Por seis horas, entre a noite de anteontem e a madrugada de ontem, eles foram roubados e espancados em plena rua.

Mas, ao contrário das vítimas dos dois prédios de alto padrão, os habitantes da favela afirmam que conseguiram ligar para a polícia a tempo. Só que o pedido de socorro, segundo eles, não foi atendido. Policiais de dois distritos – do 69º DP (Teotônio Vilela) e do 70º DP (Sapopemba) – teriam se negado a ir ao local.

A Polícia Militar, também segundo os moradores, teria demorado horas para passar pela favela e permaneceu poucos minutos. O arrastão teria recomeçado logo depois da saída dos pms.

No assalto ao prédio no Alto da Mooca, a PM compareceu logo depois do chamado dos moradores. Seis policiais preservaram o local até a chegada dos peritos.

Em Sapopemba, três homens armados e usando capuzes chegaram a pé à favela por volta das 22h de anteontem. Eles assaltaram e agrediram dezenas de moradores, de acordo com o padre Cláudio de Oliveira, da paróquia Nossa Senhora das Graças.

O padre foi acordado à 1h30 pelo telefonema de um morador relatando o arrastão. Ao contrário do roubo nos prédios, os valores foram baixos. A maior quantia – R$ 600,00 – foi levada do dono de um bar. O tratamento às vítimas também não foi o mesmo dado no prédio no Alto da Mooca, onde os criminosos ofereceram lanches e refrigerantes para os reféns.

Pelo menos cinco moradores da favela foram agredidos, segundo o padre. “Isso nunca ocorreu aqui. Criminosos locais não fariam isso com a gente daqui.”

O número de vítimas de roubo pode chegar a 30, segundo a advogada Valdênia Paulino, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Sapopemba. “Os ladrões usavam capuzes, mas muitos moradores dizem que, pelo jeito de falar e pela forma de abordagem, eles podem ser policiais”, afirma.

Em um dos casos, um jovem disse à entidade que, durante o espancamento, um dos homens disse que esse era o castigo pelos moradores não delatarem criminosos. “Que ladrão comum faria isso?”, questiona a advogada.

Um morador disse à Folha, sem se identificar, que ele e a família ligaram mais de seis vezes para o telefone de atendimento da PM, o 190, a partir da 0h de ontem. Em todas as ligações, os pms teriam dito que já estavam a caminho. A resposta dos distritos teria sido mais direta: policiais do 69º DP teriam dito que não tinham carro e os do 70º DP, que não tinham pessoal.

A assessoria da Secretaria da Segurança Pública afirmou que, pelos registros da PM, o primeiro chamado ocorreu à 1h43 e os pms chegaram ao local às 2h30. Também segundo a assessoria, foram feitas patrulhas até o amanhecer.

O delegado Luis Carlos do Carmo, titular do 8ª Delegacia Seccional, afirma que policiais dos dois dps negaram ter recebido qualquer chamado telefônico. “Se há possibilidade de serem policiais [os autores do arrastão], a polícia tem interesse em limpar a própria polícia. Só que a população precisa acreditar nela e colaborar”, diz.

Ele questionou o fato de os moradores não terem feito o boletim de ocorrência. Segundo Valdênia Paulino, os moradores estavam com medo, mas iriam ao 70º DP hoje pela manhã (PENTEADO, 2004).

Cenas como essa, infelizmente, são relativamente comuns em Sapopemba; o episódio acima ocorreu na região do Jardim Elba, local em que a pesquisa foi realizada.

Não é raro que algumas regiões da cidade ganhem notoriedade devido a casos como esses; em geral, esses locais recebem uma denominação comum de periferia, algumas vezes, até, utilizada de maneira banalizada, tautológica. “Tecnicamente” podemos descrever periferia da seguinte forma:

Desde os anos de 1970, a sociologia brasileira tem analisado intensamente a pobreza urbana. Espaços urbanos ocupados por grupos sociais foram caracterizados como “periferias” – espaços socialmente homogêneos, esquecidos pelas políticas públicas estatais, e localizados tipicamente nas extremidades da área metropolitana. Tais espaços são constituídos predominantemente em um loteamento irregular ou ilegal de grandes propriedades sem o cumprimento de exigências para a aprovação do assentamento no município (TORRES et. al., 2003, p. 98).

O uso comum do termo “periferia” porta consigo um sentido implícito: o de negação. Em especial porque periferia faz uma alusão direta àquilo que não se é. As áreas periféricas são regiões em que não há saúde, não há segurança, não há educação, não há lazer, não há transporte digno, não há trabalho suficiente, enfim, lugar de exclusão – fora do centro – e de excluídos. Lugar marginal, em que nada se encontra, ou tudo se encontra fora do lugar.

O uso da palavra “periferia” denota uma distinção espacial, uma espécie de separação entre diferentes lugares, como assinalam algumas letras de rap. Muitas vezes esses espaços periféricos podem ser valorizados; outras, entretanto, aparecem como oposição a outra região da cidade, talvez mais central.

[...] aspecto interessante que se observa em letras de rap de São Paulo é a clara separação entre os habitantes da periferia e os habitantes dos bairros mais centrais. Aparecem aí como dois mundos diferentes, que não convivem e, além disso, podem entrar em choque ao se cruzarem. Há uma tensão entre as pessoas das camadas mais pobres da população e as das camadas mais privilegiadas financeiramente. Tensão essa nem sempre vista com maus olhos pelos rappers (SCANDIUCCI, 2005, p. 95-96).

Como aponta Scandiucci (2005), algumas letras de rap apresentam uma divisão da cidade entre áreas periféricas e não-periféricas, descrita pela expressão “da ponte pra cá”:

“Da ponte pra cá” é uma expressão comum nas letras de rap da cidade de São Paulo. É uma alusão à periferia, ao lado mais pobre da cidade. Expressão semelhante e igualmente freqüente é “o outro lado da ponte”. Significa o lado mais privilegiado da cidade, onde moram aqueles que têm maior poder aquisitivo. Creio que se refere às pontes das marginais dos rios Pinheiros 0 e Tietê, pois, embora não seja regra, muitas vezes um lado de uma de suas margens é significativamente mais pobre que o outro. Contudo, essas expressões tornaram-se espécies de metáforas para se distinguir classes sociais a partir dos espaços delimitados na cidade (SCANDIUCCI, 2005, p. 96).

Para além daquilo que poderíamos apontar como distinção, a distribuição espacial surge como uma forma de segregação funcionalmente – atuando como um instrumento –, pois mantém separadas determinadas regiões, revelando – como um espelho – posturas de atenção e desatenção a determinados aspectos, pessoas e locais da cidade.

Em Sapopemba, curiosamente, conseguimos presenciar uma espécie de deslocamento entre essas representações; por vezes sentíamos que a distância geográfica que separa esse de outros locais da cidade tornava-se virtual, ou seja, a distância e os contrastes não apareciam tão nitidamente demarcados. Essa foi uma experiência que se mostrou presente desde as primeiras participações em campo – embora soubéssemos, graças à colaboração anterior numa pesquisa (COELHO, 2004), que a distância a ser vencida para chegar a Sapopemba, em especial partindo do centro da cidade, muitas vezes parece interminável. O diário de campo em que registramos nossa segunda participação nas atividades em Sapopemba aponta a seguinte situação9:

A ida à Sapopemba foi bastante cansativa, tinha saído por volta das 11h30 da manhã de casa, para ir ao evento que iria começar às 14 horas. Durante o caminho pensei várias vezes em como Sapopemba fica distante do centro da cidade, mais distante ainda de minha casa. A idéia da distância me incomodava; como algumas pessoas – eu, inclusive – conseguiam passar horas, deslocando-se de um lugar para o outro?

Por volta de 14h30, bastante cansado e um pouco afobado cheguei à igreja Nossa Senhora de Fátima. Ao lado do estacionamento, no subsolo estavam sendo empossados os representantes dos conselhos gestores de unidades de saúde [evento que motivou minha ida até lá]. Logo notei a presença de muitas pessoas, o salão estava cheio, creio que estavam no local cerca de 200 pessoas. Foi uma surpresa, encontrar tanta gente ligada ao movimento da saúde nesse evento.

As pessoas que fariam parte da mesa estavam sendo chamadas: a nova diretora do distrito de saúde de Sapopemba, cujo nome não lembro; Aninha, representando o movimento de saúde da região Sudeste; Sr. Antônio, representando o segmento da população do distrito de Sapopemba; o ex-secretário da Saúde do governo Luíza Erundina; diretores de unidades de saúde; alguns assessores e vereadores do município; representantes dos movimentos sociais e do Conselho Municipal de Saúde; algumas pessoas que eu não consegui identificar e outras de que não me lembro.

Quando as primeiras falas foram sendo feitas, um insight me tomou repentinamente – novamente a questão da distância; inesperadamente pensei que aquelas pessoas estavam diminuindo as distâncias, reduzindo o campo que separa os representantes eleitos da população. Naquele momento não eram as pessoas da periferia que se deslocavam para o centro, mas o centro que ia à periferia.

Ao fim desse evento fiquei pensando sobre como as pessoas que ali se encontravam apresentavam a palavra periferia com um sentido muito particular. Isso não significa que elas negassem a localização do bairro, distante do centro, mas a região central parecia menos central na vida daquelas pessoas. De certa forma, aquele local tinha relativa autonomia em relação ao centro. A impressão é a de que Sapopemba poderia se afirmar independentemente de outro lugar (Diário de campo de 28 de março de 2003).

A distância aparece como algo passível de superação, menos pelo deslocamento literal – mas também dependendo dele – e mais pelo trânsito de identidades. Sapopemba não surge como sinônimo de região periférica entendida como um não-lugar, mas admite a associação e apresentação de um novo conjunto de aspectos.

Sapopemba aqui não aparece como uma região deserta, tampouco é a negação ou o reverso do centro da cidade. O bairro assume um estatuto de importância talvez central para as pessoas que ali moram e, eventualmente, para pessoas de outras regiões da cidade. Padre Júlio Lancelloti, por exemplo, nos contou10 que fez questão de comparecer à entrega do IV Prêmio de Direitos Humanos de Sapopemba ao invés de receber, na mesma data e horário, uma homenagem dos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo.

É claro que as pessoas que freqüentam, visitam e moram em Sapopemba não negam a realidade muitas vezes dura ali apresentada. No entanto, eventualmente, mostram-se capazes de deslocar uma série de representações fixadas sobre esse lugar.

 

Onde fica o centro?

São necessários, para se chegar a Sapopemba, em média 90 minutos de ônibus, partindo do centro da cidade de São Paulo. Na época da realização da pesquisa, o deslocamento foi realizado predominantemente por meio do transporte público, utilizando ônibus entre diferentes zonas da cidade, com maior freqüência entre as regiões Sul e Leste. Nesse itinerário éramos obrigados a ir até o centro da cidade, região em que estão localizados os terminais de ônibus. Ou seja, para se deslocar entre regiões afastadas do centro e igualmente distantes entre si era preciso passar pelo centro da cidade de São Paulo, fato que demostra a organização geocêntrica do transporte no município.

Para aqueles que partem do centro, Sapopemba apresenta-se como uma região distante, mas não isolada, já que passamos por inúmeros bairros antes de chegarmos até lá.

Durante muito tempo, encontramos na região central da cidade um acúmulo dos serviços referentes a todo o município. Os meios de transporte e alguns serviços hospitalares públicos – como os hospitais de especialidades –, por exemplo, seguiam o modelo de organização centro-periferia, no qual há uma concentração de oferta na região central e uma rarefação de recursos nas regiões periféricas.

Durante anos, a comparação entre centro e periferia apareceu como a melhor possibilidade de análise da configuração da cidade, dadas as discrepâncias nas condições de vida nesses diferentes locais. Embora revele aspectos dessa relação, a adoção dessa perspectiva dicotômica centro-periferia nem sempre apresenta a variedade e a complexidade das diferentes regiões da cidade.

O centro como o “ponto para onde convergem as coisas” apresenta dois lugares distintos: o centro e o não-centro, o primeiro deles ocupando em geral uma condição diferenciada. Esse emprego pressupõe uma comparação, uma atividade que implica a existência de dois elementos diferentes a serem confrontados, um em relação ao outro. O centro coloca-se, em relação a outros espaços: ao nãocentro, à periferia, ao excêntrico.

Essa denominação dual da cidade revela-se capaz de apagar a especificidade e a heterogeneidade de cada um dos elementos contrapostos, como nos conta Bachelard (1988, p. 7): “toda comparação diminui os valores de expressão dos termos comparados”.

Geralmente, a segregação nas cidades brasileiras é semelhante, com a pobreza tendendo a ser altamente concentrada em termos espaciais. No entanto, no Brasil a ênfase da literatura sempre esteve mais na existência de desigualdades e injustiças na distribuição da renda e dos serviços públicos do que na separação dos grupos sociais. Estes dois elementos estão obviamente associados empiricamente, assim como se imbricam nos processos que produzem o espaço urbano, mas enquanto na literatura internacional há uma forte ênfase na questão da análise da homogeneidade de cada espaço em particular, no caso nacional essa dimensão está praticamente ausente, sendo o foco centrado nas desigualdades (TORRES et. al., 2003, p. 100).

Não é nossa pretensão ignorar as desigualdades regionais ou mesmo locais, em especial considerando a realidade brasileira. Gostaríamos apenas de propor um ponto de observação alternativo, do qual talvez seja possível conceber o mesmo relevo de outra forma. Há pouco tempo, acreditava-se que a configuração urbana poderia ser adequadamente descrita segundo um modelo radialconcêntrico.

Em outras palavras, seria possível argumentar que esse modo de entender a forma urbana seria “dual”, contrastando fortemente o centro rico com as periferias muito pobres e com piores serviços públicos. Entretanto, essas características de homogeneidade e localização das periferias têm sido ultimamente questionadas de vários modos (TORRES, et. al., 2003, p. 98).

Desta forma, alguns recentes estudos urbanos (TORRES, et. al., 2003) têm apontado que na região metropolitana da cidade de São Paulo a complexificação e a heterogeneidade dos espaços estão associadas a três fatores: o surgimento de vários e novos empreendimentos fechados em locais distantes do centro geográfico, em geral de padrão mais elevado do que o entorno; um processo de disseminação da pobreza por toda a cidade; e a presença maior do poder público nas periferias, com um aumento significativo de vários indicadores sociais.

O último dos fatores apontados acima surge como resultado de um processo vivido nas duas últimas décadas que envolveram tanto a população local como o poder público. Assim, paralelamente, podemos observar uma:

(...) intensa pressão dos movimentos sociais urbanos durante o processo de mobilização política que marcou a sociedade brasileira na década de 1980. Entretanto, essas periferias foram também objeto de várias políticas dinamizadas pelo aparelho estatal durante as décadas de 1980 e 1990 (...). É muito provável que os dois processos tenham reforçado um ao outro (TORRES, et. al., 2003, p. 99).

No caso específico da Zona Leste, alguns movimentos organizados – por exemplo, os movimentos populares de saúde – buscaram estimular a autonomia e a participação nas decisões coletivas locais, ou seja, tentando promover um movimento de descentralização, condição em que o centro geográfico da cidade deixa de coincidir com o centro político do bairro.

Desse modo, podemos observar a manifestação de diferentes interesses insurgentes, capazes de gerar novos centros ou de deslocar os antigos de suas posições costumeiras.

 

Nossa Sapopemba

A questão “onde?” não tem idade; transitiva, ela dá como essencial a relação com o lugar, com a morada, com o semlugar, e recusa por sua própria função o pensamento em sua relação de compreensão do objeto. A verdade está no movimento que a descobre e no rastro que a nomeia. Trata-se menos de definir, de explicar, de compreender, que de medir-se com o objeto pensado descobrindo nesse enfrentamento o território no qual a questão se inscreve; sua justeza. (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 52)

Não é nossa intenção apresentar um estudo em profundidade da história dos movimentos populares em Sapopemba, embora não pretendamos ignorá-la. Este trabalho não se pretende uma análise sociológica, arquitetônica ou urbanística das cidades brasileiras. Tampouco se trata de uma interpretação “junguiana” da periferia. Não nos sentimos aptos ou inclinados a fazer qualquer uma das análises acima. No entanto, não nos escusamos das implicações que este trabalho pode estabelecer com determinantes históricos, culturais, sociais e políticos específicos.

Nas atividades que acompanhamos em Sapopemba foi possível perceber que, gradativamente, um envolvimento com esse distrito estava sendo construído. Assim, alternativamente à atividade de descrição de processos inovadores de participação, divisão de poder e decisão, muitas vezes – mas nem sempre – numa organização popular horizontal ou democrática, apresentaremos a narrativa de uma experiência concreta com determinada região da cidade. Eventos que moldam, constroem e reconstroem uma experiência psíquica em determinado local.

São nessas experiências que cada local adquire densidade, consistência, de forma que não admitem simplesmente uma definição genérica e apresentam sua face particular e específica; esses locais solicitam uma denominação que os descreva propriamente:

O cotidiano, neste cenário, manifesta uma certa resistência cultural, pelo uso, seja das palavras ou de coisas, de maneira própria, carregando significados ao mesmo tempo gerais e particulares. Como na linguagem, respeitamos sua lógica, sua sintaxe, embora a cada momento a recriemos, pela experiência vivida, e a retomemos numa nova ordem. São as metáforas e metonímias do sistema de significação que temos à nossa disposição, na mítica origem de nossa existência (FERNANDES, 2004, p. 77).

Nossa experiência em Sapopemba proporcionou o contato com inúmeros aspectos relacionados ao espaço, alguns deles até divergentes, o que não poucas vezes nos fez pensar que seria mais adequado falarmos em Sapopembas – no plural –, ao invés de Sapopemba:

Tanto na ida quanto na volta um fato chamou minha atenção: em algumas ruas, determinadas casas apresentavam um acabamento muito bonito, fachadas pintadas, telhados de inverno apresentando linhas curvas, feitos com telhas de cerâmica colorida em vez das comuns e menos bonitas telhas de fibra de cimento ondulado ou das lajes de concreto. Além disso, algumas casas apresentavam portões de ferro elaborados. Nada suntuoso, no entanto essas casas ou ruas inteiras contrastavam com outras, vizinhas, localizadas no mesmo bairro. Lembrei-me de que Zeca11 descreve que a maioria das construções em determinados bairros proletários são marcadas, muitas vezes, pelo aspecto inacabado, obras que não chegam a sua conclusão, esperam uma finalização que, por vezes, nunca chega. Esse contraste também foi sentido, de maneira sensível, na primeira visita que realizamos, entre a casa da pessoa que nos guiou no bairro e a da entrevistada – localizadas uma em frente a outra. Naquela podíamos observar detalhes no acabamento, nesta o ambiente mal servia como dormitório, pouco ornamentada, quase não lembrava uma casa, embora fosse uma construção relativamente sólida. Essa diferença equipara-se às considerações que dirigimos para um depósito e para um quarto: o primeiro, mera organização de paredes, no qual objetos – quando existem – são simplesmente organizados; o segundo, um espaço ocupado por humanos, no qual os objetos demostram que esse é efetivamente um espaço habitado (Diário de campo de 30 de agosto de 2003).

Há muito tempo sabíamos que Sapopemba é um distrito enorme formado por diferentes bairros, em que vivem, segundo o documento elaborado por moradores, denominado “A cara de Sapopemba12”, cerca de 300 mil pessoas.

Mesmo numa região muito pequena de Sapopemba como a paróquia Nossa Senhora das Graças – local em que realizamos esta pesquisa –, pudemos perceber que há diferenças entre as comunidades, os bairros, as ruas e, por vezes, as quadras. Desta forma, em nossa experiência gradativamente foram configurando-se os bairros: Jardim São Roberto, Jardim Elba, Mascarenhas de Moraes, cada um deles com aspectos peculiares.

A aproximação faz com que os sentidos possam ser ressignificados, adquirindo especificidade; da denominação genérica e abrangente Sapopemba podemos descrever mais profundamente locais específicos como o Jardim Elba e o Jardim São Roberto. Mesmo que essas denominações revelem aspectos contraditórios ou ambivalentes, ainda assim apresentam esses locais com propriedade.

Hillman aponta que para a psicologia voltar-se ao mundo é preciso reencontrar a alma nas coisas, o espaço na concretude destas, em sua face, em seus adjetivos:

A apreciação da anima mundi requer advérbios e adjetivos que imaginem precisamente os acontecimentos particulares do mundo em imagens particulares, tanto quando os deuses antigos ficaram conhecidos através de epítetos adverbiais e adjetivais – Atena de olhos cinzentos, Marte do rosto corado, a virgem e ágil Ártemis. Perceber o valor das coisas e as virtudes nelas presentes requer uma linguagem de valores e virtudes, um retorno das qualidades secundárias das coisas – cores, texturas, sabores” (HILLMAN, 1993, p. 22).

A atenção aos detalhes não significa um materialismo exacerbado, uma fixação no material. Mesmo os objetos não experimentados diretamente pelos órgãos dos sentidos, por exemplo, os sonhos, são também imagens e, portanto, nos afetam.

Na perspectiva da psicologia analítica, os espaços psicológicos, oferecem algo mais do que um olhar literal. As imagens arquetípicas não devem ser reificadas, apresentam-se como “animais” ou “amigos” (HILLMAN, 1977). Estes não demandam interpretação ou um tratamento redutivo, mas freqüentemente solicitam compreensão e aproximação. Não conseguimos definir a essência de um animal de estimação ou de uma pessoa, e o mesmo se aplica às imagens. Gostaria de estender essa forma de aproximação a determinadas imagens ou experiências com determinados lugares, considerando- as como capazes de provocar uma resposta estética:

(...) por reação estética não me refiro ao embelezamento. Não quero dizer plantar árvores e ir a galerias. Não quero dizer nobreza, música de fundo suave, jardins bem cuidados – esse uso sanitário e desodorizado da palavra estética que a destituiu de seus dentes, língua e dedos. Beleza, feiúra e arte não são nem a essência pura nem a base verdadeira da estética. Na interpretação neoplatônica, a beleza é simplesmente manifestação, a exposição de fenômenos, a apresentação de uma anima mundi; não houvesse beleza, Deuses, virtudes e formas não poderiam ser revelados. A beleza é uma necessidade epistemológica; aisthesis é como conhecemos o mundo (HILLMAN, 1993, p. 20-21).

Por meio da reação estética somos convocados pela matéria a tomar parte de uma experiência capaz de levá-la em conta. Os espaços são capazes de nos suscitar experiências e fazem parte de nossas experiências, não são molduras inertes, puros objetos cenográficos. O “mundo externo”, nessa perspectiva, deixa de ser concebido apenas como um imenso receptáculo ou resultado de nossas projeções aleatórias e desconexas.

Os espaços em que a psique encontra manifestação não podem ser determinados de maneira conceitual; no entanto, estes não deixam de apresentar alguns aspectos marcantes, capazes de revelar contexto, volume e contorno. Essa consideração evita que a imagem não apresente precisão e especificidade ou que seja considerada de maneira superficial. Nas palavras de Hillman (1993, p. 24):

A reação estética nunca é um panteísmo vago, uma adoração generalizada da natureza ou mesmo da cidade. Em vez disso, ela é aquela vigilância agradável de detalhes, aquela intimidade de um com outro, como os amantes conhecem.

Isso é o que permitiu ao padre Júlio Lancelloti13, por exemplo, depois de um longo convívio em Sapopemba, denominar essa região da cidade como: “a República Socialista de Sapopemba”. Não conseguimos conceber uma definição mais metaforicamente concreta. Não será preciso dizer que Sapopemba não é, em sentido literal, uma república, muito menos socialista, mas, paradoxalmente, não podemos deixar de denominá-la concretamente e de maneira adequada como “a República Socialista de Sapopemba”. Essa é a maneira como Sapopemba afeta o padre Júlio Lancelloti, uma reação à experiência de Sapopemba por Júlio Lancelloti. Uma afirmação que encontra comunicação com a experiência de outras pessoas14 e que é capaz de se contrapor às falas freqüentes de que “Sapopemba só é notícia quando é coisa ruim15”.

É em experiências como essas que descobrimos novos bairros, novas formas de habitar, uma alma local (FERNANDES, 2004, p. 71, grifo do autor): “Uma cidade para além do espaço do território que a delimita, migrante, em trânsito, ou metafórica, que se insinua no texto claro da cidade planificada e legível”.

A cidade deixa de ser vista de uma única perspectiva; mais do que falar da cidade, passamos a considerar de que lugar, de que parte, de que região, de que perspectiva e, fundamentalmente, apoiados em qual experiência estamos falando.

Assim, para tratarmos de maneira rigidamente homogênea a cidade, seria necessário um artifício que ignorasse simultaneamente as manifestações físicas e as pessoas concretamente: uma cidade desabitada, uma cidade fora do tempo, do espaço e da experiência.

Sapopemba, nesta pesquisa, adquire um novo aspecto, não admite – para ser descrita como um espaço habitado por pessoas – uma definição qualquer; assim, não estamos mais falando exclusivamente do distrito de Sapopemba, mas de “nossa” Sapopemba, da imagem arquetípica de Sapopemba. De forma análoga, os alquimistas, ao tratarem de um elemento – por exemplo, o mercúrio – não estavam se referindo apenas às propriedades físicas do elemento químico Hg, descrito como mercúrio vulgar, mas às experiências suscitadas pelo contato com aquilo que chamavam de Mercurius philosophicus – mercúrio filosófico:

Sem dúvida, já se tratava do metal mercúrio, mas de um mercúrio, o “nosso” Mercurius, algo que está por detrás ou dentro, algo úmido ou a essência ou o princípio do mercúrio – o inapreensível, fascinante, irritante e fugidio, inerente a uma projeção inconsciente. O mercúrio “filosófico” este “servus fugitivus” (escravo fugitivo), ou então, cervus fugitivus (cervo fugitivo) é um conteúdo inconsciente pleno de significado (...)” (JUNG, 2003, p. 206).

“Nosso mercúrio” ou “nossa Sapopemba” não se referem às manifestações químicas, passíveis de serem determinadas por um espectrômetro, ou às aparições físicas decodificáveis por um registro cartográfico, respectivamente, ou seja, não são produtos de processos de análise instrumental, separados da interferência humana16.

Tampouco “nosso(a)” é exclusivamente produto de projeções inconscientes, já que, como aponta Jung (2003), “sem dúvida, já se trata do metal mercúrio”, portanto não falamos de um conceito metafísico, mas de uma realidade referida à experiência concreta, uma concretude que engloba o psíquico e a aparição física, duas realidades que não se encontram separadas.

“Nosso(a)” aqui se refere à “imagem do mercúrio”, da experiência com um Mercúrio e com uma Sapopemba nos quais se mostra atuante o “conteúdo das projeções inconscientes plenas de significado”.

Embora a qualidade do elemento seja indicada por um pronome possessivo – nosso(a) –, esse índice não sugere a posse por parte do sujeito, mas alude à qualidade que transcende o aspecto meramente físico e não se limita a uma transposição do eu sobre o objeto (JUNG, 2003, p. 208): “algo como ‘nostra anima’ em que o ‘nossa’ não significa ‘nossa’ psique mas indica uma substância arcana”17. A psique aqui se apresenta como maior que a consciência do eu, as experiências psíquicas não são vistas como meras ocorrências interiores, estados subjetivos, mas se tornam fenômenos de todo inapreensíveis, nos quais somos inseridos. Apoiados em Jung, poderíamos dizer que estamos na psique e não ela em nós.

 

O campo e as imagens

Durante o mestrado, muitas vezes nos confrontamos com a necessidade de conversar com alguma pessoa sobre a atividade de campo, uma experiência que não se mostrou fácil e que se tornou possível poucas vezes. A vivência dessa dificuldade encontra aqui uma espécie de reedição; como será possível apresentar Sapopemba, ou melhor, o Jardim Elba, para pessoas que não o conhecem? Vejamos como isso pôde aparecer no diário de campo:

No dia 21/08 encontrei casualmente, na saída da biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, uma exsupervisora. Ela também realiza um trabalho em Sapopemba, em um local chamado Fazenda da Juta, próximo à Avenida Sapopemba.

Nesse encontro conversamos sobre nossas atividades fora do Instituto de Psicologia. Foi muito bom conseguir encontrar identificação, proximidade em nossos trabalhos. Nossas realidades de pesquisa são semelhantes e confesso que dentro da USP parece muito difícil descrever o que faço em campo. Muitas vezes, parece haver um campo – é interessante notar que essa mesma palavra é usada por mim tanto no sentido de campo de relações que se estabelece e permitem a aproximação, quanto no sentido inverso, ou seja, como um campo de afastamento, campo de isolamento, campo de força – que impede a troca de experiência, uma espécie de conversa entre estrangeiros. Será que falamos grego na USP? (Diário de campo, 19 e 21 de agosto de 2003).

Ainda nessa época experimentei uma enorme dificuldade na tentativa de estabelecer comunicação com pessoas de “locais diferentes”, trabalho hercúleo, impossível de ser realizado sozinho. Por exemplo, as experiências vividas em locais afastados da Universidade de São Paulo – distantes geograficamente e do seu cotidiano de relações – pareciam não ganhar realidade no espaço acadêmico, não conseguiam aprofundar-se num diálogo, não encontravam lugar, receptividade, não atingiam nenhuma repercussão. Na linguagem da psicologia arquetípica, diríamos que esse impedimento adquiriu estatuto de imagem arquetípica.

Como um lugar tão familiar, a Universidade de São Paulo, freqüentado quase diariamente durante sete anos, pode se tornar um ambiente estranho? O que é o estranho? Quem é o estrangeiro? A experiência da língua estrangeira da USP aqui, é claro, precisa ser observada como metáfora; conforme aponta Derrida, as diferenças podem se apresentar sob múltiplas formas e não estão ligadas apenas ao idioma: Seja dito de passagem: sem falar a mesma língua nacional, qualquer um pode me parecer menos “estrangeiro” se ele partilha comigo uma cultura – por exemplo, um modo de vida ligado a uma certa cultura, etc. – que tal ou qual concidadão ou compatriota pertencente ao que se chamava ainda ontem (...) uma outra “classe social”. Sob determinados aspectos, posso ter mais em comum com um burguês intelectual palestino, cuja língua eu não falo, do que com um determinado francês que, por tal ou qual razão social, econômica ou outra, me parecerá, sob tal ou qual relação, mais estrangeiro (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 115-117).

A diferença e o desencontro são avaliados, em sua positividade, como eventos que nos convidam ao aprofundamento, que carregam um valor psíquico, não sendo considerados, a priori, benéficos ou ruins. Consideramos, por exemplo, que uma atividade de campo adequadamente realizada solicita do pesquisador uma migração, um relativo intercâmbio de papéis e, portanto, um questionamento, mesmo que involuntário, de identidades – condição que foi gradativamente experimentada ao longo do mestrado e para além desse período.

É justamente no enfrentamento dessa dificuldade que apoiamos boa parte de nosso trabalho de campo. Ao trabalhar como pesquisador na Pastoral dos Migrantes em Sapopemba consideramo-nos como migrante, embora factualmente tenhamos morado na cidade de São Paulo desde o nascimento.

Aqui a possibilidade de acolher o estrangeiro como metáfora – e não simplesmente como aquele que não se encontra, temporária ou permanentemente, em seu local de nascimento – já antecipa umas das questões que procuraremos desenvolver: de que forma podemos receber aquilo que nos parece estranho? Como podemos nos relacionar com aquilo que vem de fora? Como é possível acolher esse estrangeiro não-estrangeiro que nos habita? Gostaria de distender, aumentar o volume, ultrapassar certas fronteiras – um tanto subversivamente – dos sentidos rigidamente atribuídos, um tanto já aprisionados, como atesta e critica Derrida:

Hoje em dia, uma reflexão sobre hospitalidade pressupõe, entre outras coisas, a possibilidade de uma delimitação rigorosa das soleiras ou fronteiras: entre o familiar e o não-familiar, entre o estrangeiro e o não-estrangeiro, entre o cidadão e o nãocidadão (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 43).

Quem é o estrangeiro? Quando escolhemos alguém habilitado a responder a essa pergunta supomos uma relação, um conhecimento de causa com a migração ou com o migrante. Algumas vezes, no entanto, podemos subverter essa lógica:

Está bem. Mas antes de ser uma questão a ser tratada, antes de designar um conceito, um tema, a questão do estrangeiro é uma questão de estrangeiro, uma questão vinda do estrangeiro, e uma questão ao estrangeiro, dirigida ao estrangeiro. Como se o estrangeiro fosse, primeiramente, aquele que coloca a questão ou aquele a quem se endereça a primeira questão. Como se o estrangeiro fosse o ser-em-questão, a própria questão do serem- questão, o ser-questão ou o ser-em-questão da questão. Mas também aquele que, ao colocar a primeira questão, me questiona (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 5, grifo do autor).

Quem é o estrangeiro? Quando oferecemos uma reposta para essa questão, quando assumimos que essa pode não ser uma pergunta endereçada apenas a outrem, deixamos de promover o enquadramento de um objeto ou pessoa na categoria do migrante e passamos também a nos questionar.

 

Quem é o estrangeiro?

Gonçalves Filho (1998) descreve que a experiência da exclusão nos ambientes urbanos ocorre, por vezes, mesmo sem impedimentos físicos aparentes, mas paradoxalmente pela possibilidade de circulação na cidade e da apreciação de sua aparição estética. Espetáculos aparentemente agradáveis podem parecer assustadores, graças à exclusão social manifesta na cidade:

A última vez que Natil e Rose18 vieram a minha casa, dezembro, decidimos jantar fora. No caminho, passamos pela Faria Lima e, diante do shopping Iguatemi, avistamos as grandes árvores com troncos e galhos inteiramente cobertos por minúsculas lampadinhas, jabuticabas de luz branca, como se o brilho viesse de dentro. Ficaram como duas meninazinhas trêmulas e de olhar arregalado. Caindo em compaixão, dispararam a lembrar um sem número de amigos e familiares que precisavam estar ali: “Ah! Mas o Renato devia estar aqui!”, “A Penha tinha que ver isso”, “Por que que a gente não carregou a Roseli?!” Aos poucos – como se fosse um espetáculo demasiadamente reservado, vedado aos companheiros e aos irmãos – a fruição daquelas árvores “ensolaradas” foi se tornando sombria. O sabor, a alegria, misturaram-se ao fel da desigualdade, ao sentimento de que a cidade é fechada aos pobres” (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 35).

A interdição do trânsito, embora possa ser sensivelmente experimentada, algumas vezes não chega a ser visível ou facilmente identificável, revelando-se em locais inusitados e de maneira inesperada. Esse impedimento é uma realidade na cidade, embora possamos julgar ingenuamente que esta se coloca de maneira democrática à livre circulação. A cidade não está disponível a todas as pessoas da mesma forma. A desigualdade entre os homens, muitas vezes velada, se reproduz nos espaços da cidade denunciando, quando os cidadãos encontram-se “fora” de seus lugares, que mesmo os espaços públicos devem ser privilégio e propriedade de poucos19.

De forma surpreendente, no período que compreendia as atividades de campo realizadas, muitas vezes não era possível encontrar reconhecimento em locais tidos como familiares. Como é possível sentir-se um estranho, deslocado na casa em que moramos desde a infância ou nas ruas do próprio bairro?

Experiências como essas derivavam quase sempre dos momentos em que tentávamos narrar determinados acontecimentos em locais diferentes daqueles em que a ação havia ocorrido. Uma das ocasiões que consideramos paradigmática foi vivida após a participação em um evento na cidade de Campo Limpo Paulista – dias 20 e 21 de setembro de 2003 – e em Sapopemba – dia 22 de setembro de 2003. Na primeira atividade, algumas pessoas ligadas às comunidades do setor20 Sapopemba 1, foram convidadas a participar de um retiro promovido por esse setor e pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS).

O tema desse encontro era: “Mística e cidadania – alternativas para a superação da violência”. No sábado, dia 20, data marcada para a viagem do retiro, as atividades tiveram início pela manhã, em Sapopemba, com a realização de uma oitiva21. Na época, algumas pessoas ligadas à comunidade estavam sofrendo ameaças de morte e, além disso, alguns adolescentes e jovens que participavam das atividades do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan, em Sapopemba, tinham sido assassinados recentemente. Havia a suspeita do envolvimento de policiais militares nesse episódio.

Embora não tenhamos participado da oitiva, pudemos notar a importância dessa atividade no caminho em direção à cidade de Campo Limpo Paulista, no mesmo dia à tarde:

Maria22 comentou sobre a fala de José e sobre as ameaças que ele estava recebendo nas últimas semanas. Já tinha ouvido alguns comentários a respeito desse fato, mas não tinha dimensão da gravidade do assunto.

Na oitiva – fundamentalmente um espaço público – José contou sobre as ameaças de morte que estava recebendo. Outras pessoas como ele também fizeram uso do espaço para realizar denúncias graves e concretas sobre situações de violência e ameaças sofridas em Sapopemba; somente aos poucos – e esse era apenas o momento inicial do retiro – pude perceber que essa atividade não poderia ocorrer em melhor hora (Diário de campo de 20 e 21 de setembro de 2003).

Algumas pessoas que falaram na oitiva, no sábado pela manhã, também participaram do retiro realizado em Campo Limpo Paulista:

À medida que as pessoas apresentavam-se, desenhava-se o compromisso destas com a comunidade de Sapopemba. Várias delas possuíam muitos anos de luta ou caminhada e mesmo as muito jovens, embora não tivessem tanta experiência, demostravam um enorme engajamento. A violência para algumas delas era mais do que um tema abstrato ou mesmo uma possibilidade, apresentava-se como uma experiência vivida na forma de ameaças e da morte violenta de parentes ou amigos próximos.

Um desses relatos chamou muito minha atenção; uma das pessoas estava sendo ameaçada de morte por proteger meninos – suposta ou efetivamente – envolvidos com o tráfico de drogas e por denunciar essas ameaças.

A participação dessa pessoa ocorria simultaneamente a sua entrada num programa de proteção a testemunhas, já que as ameaças de morte pareciam cada vez mais sérias. Sua presença no retiro, bem como seu paradeiro depois dessa atividade, eram sigilosos. De certa forma, o retiro aproximava-se de sua retirada – mesmo que provisória – de Sapopemba (Diário de campo de 20 e 21 de setembro de 2003).

Durante o retiro questões como a superação da violência foram tratadas de maneira ativa, pensando em formas de alcançar a justiça e o direito à vida sem resignar-se com a injustiça.

Depois de retornar a São Paulo no fim do domingo, dia 21, voltei a Sapopemba na segunda-feira, dia 22, e soube então que uma das pessoas que participavam da oitiva no sábado, dia 20, pela manhã, havia sido assassinada no mesmo dia à noite.

Somente quando comecei a conversar com Joana consegui perceber o que estava se passando. O jovem que havia se pronunciado na oitiva realizada no sábado, dia 20 de setembro, pela manhã, fora assassinado no mesmo dia à noite. Maria participou da oitiva e na tarde de sábado, assim com eu, viajou para a cidade de Campo Limpo Paulista para participar do retiro.

Nenhuma das pessoas presentes no retiro sabia da ocorrência desse assassinato, essa era uma notícia realmente assustadora. Durante o retiro tinha ficado com a sensação de que as pessoas estavam oferecendo alguma reação às práticas violentas. No entanto, a despeito desse esforço, a violência continuava a se manifestar e agora talvez até de maneira mais intensa, já que esse último assassinato vinha na forma de punição exemplar (Diário de campo de 22 de setembro de 2003).

Esse episódio por si só foi muito marcante; durante alguns meses – e especialmente naqueles dias – foi possível acompanhar de perto a manifestação da violência e a tentativa de reação por parte de algumas pessoas de Sapopemba. Com o testemunho desses fatos, uma nova experiência, proporcionada no momento em que voltávamos de Sapopemba, somava-se às anteriores intensificando ainda mais o que havia ocorrido até então:

Emocionalmente falando, o retorno para casa nesse dia foi uma atividade intensa. No caminho de volta, entre Sapopemba e a estação Belém do Metrô, encontrei oito viaturas da Policia Militar, todas elas com as luzes acessas, anunciando sua presença de forma clara. Parecia evidente que alguma coisa havia acontecido ou estava acontecendo em Sapopemba.

Como disse antes, apesar das viaturas minha sensação era de insegurança e medo, apesar da presença desses policiais ou talvez exatamente por isso, já que há a possibilidade de que aqueles que perpetraram os atos de violência recente tenham ligações com a PM (Diário de campo de 22 de setembro de 2003).

Paras as pessoas que sabiam o que estava ocorrendo em Sapopemba o clima era bastante tenso. No entanto, sair de lá não parecia uma alternativa eficaz e agradável. A experiência vivida em Sapopemba parecia impregnada ao corpo e nos acompanhava aonde quer que fôssemos:

Depois de retornar de Sapopemba e andando pelas ruas da Vila Madalena, notei como parecia difícil “chegar” de volta – chegar é algo mais do que estar presente fisicamente, depende de uma presença psíquica, igualmente, e talvez até de algo mais. O deslocamento provoca algo como um jet-lag23.

Muitas vezes, há uma demora para conseguir se conectar, reconectar ou desconectar dos lugares de onde se sai ou para onde se vai. Isso ocorreu desde o começo da pesquisa de campo, mesmo antes de efetivamente iniciar-se, aliás, mas somente hoje, dada a intensidade, essa experiência se torna consciente. Havia sentido, durante muito tempo, que estava fora de lugar; havia experiências vividas em determinados lugares que não conseguiam ganhar sentido fora de onde originalmente ocorreram.

Faltava comunicação, troca, interação entre espaços e vivências tão diferentes.

Neste dia, por exemplo, sair de Sapopemba, por mais aliviante que pudesse parecer, foi de certa forma difícil – a sensação era de abandonar, e não simplesmente de deixar Sapopemba. Fico com a pergunta que as pessoas fizeram no sábado, durante o retiro: “Como posso não estar em Sapopemba?” (Diário de campo de 22 de setembro de 2003).

Algumas vezes, durante a pesquisa de campo, era muito difícil encontrar tranqüilidade nos locais em que estávamos. Permanecer nos lugares familiares era incômodo, sair desses locais para novos ambientes – como os da pesquisa de campo – era igualmente difícil. Parecia que havia uma defasagem na presença “psíquica” com relação aos ambientes em que estava, o que gerava uma sensação de estar fora do lugar.

Durante a pesquisa de campo foi possível fazer parte de uma experiência cujos resultados e implicações eram quase que desconhecidos. Em alguns aspectos essa experiência guarda comunicação com as realizadas pelo alquimista que, em contato com o material, participa de um processo de transformação cujos resultados eram sentidos também pelo artífice. Na alquimia as transformações sofridas pela matéria são análogas às sofridas pelos alquimistas: o modo alquímico de fazer ciência mantinha a lei das semelhanças entre todos os participantes – incluindo a matéria – em qualquer atividade: o trabalho, o modo de se trabalhar e o trabalhador.

Por exemplo, para que alguma substância entre na fase da nigredo e se torne preta, as operações devem ser escuras, e são chamadas na linguagem alquímica: mortficatio, putrefactio, calcinatio, iteratio, etc. Ou seja, o modus operandi é vagaroso, repetitivo, difícil, dissecador, severo, adstringente, esforçado, coagulante e/ou pulverizante. Enquanto isso, o trabalhador entra no estado de nigredo: deprimido, confuso, constrangido, angustiado e sujeito a idéias pessimistas, ou até mesmo paranóicas, de doença, de fracasso e de morte (HILLMAN, 1997, p. 6).

Uma vez envolvidos em determinadas experiências – em conjunto com outras pessoas igualmente responsáveis por ela –, não basta abandonar os locais em que essas operações ocorreram para que nos vejamos livres de seus efeitos. Não é possível abandonar a opus. Os resultados dessas experiências permanecem conosco, perseveram, mantêm-se impregnados, saímos alterados portando um indício, às vezes incômodo, de nossa participação. E essas são as feridas pelas quais a alma encontra manifestação.

Sair desses espaços ao mesmo tempo em que carregamos conosco parte desse ambiente é uma atividade bastante difícil, especialmente se a transição entre lugares e estados psíquicos não encontra condições adequadas para ocorrer. Algumas vezes, numa mesma semana, às vezes no mesmo dia, no intervalo de algumas horas, passava por locais completamente distintos: Universidade de São Paulo, Jardim Elba, centro da cidade de São Paulo, Santo Amaro, Vila Madalena. Aportar em locais em que não se encontra comunicação, em que aquilo que vivemos é totalmente estranho e sem lugar é uma experiência extremamente caótica, dissonante, traumática, anômica – experiência relativamente freqüente na vida de migrantes.

Os acontecimentos ocorridos em Sapopemba – ameaças a pessoas da comunidade, entrada de moradores no programa de proteção a testemunhas – haviam sido noticiados num telejornal de abrangência nacional em horário nobre no sábado 20 de setembro. O mesmo havia acontecido na segunda-feira 22 de setembro, dessa vez noticiando o assassinato do jovem que havia participado da oitiva no sábado. Dessa forma, podemos dizer que essas notícias pelo menos haviam alcançado alguma divulgação. No entanto, isso não foi suficiente para abrandar a sensação de que os fatos ocorridos em Sapopemba, embora fossem de conhecimento público, pouco diziam às pessoas.

Pelo menos pragmaticamente, o Brasil, naquela noite e naquele fim de semana, poderia saber o que se passava em Sapopemba – saber, como é sabido, no entanto, não significa posicionamento, estabelecimento de comunicação ou engajamento.

A despeito da visibilidade, não sentia que conseguia ainda encontrar comunicação. Nada mais visível que uma criança de rua a pedir dinheiro ou comida e isso, no entanto, não significa que ela ganhe presença diante de nós. De forma surpreendente, muitas vezes é exatamente o contrário que observamos: quanto mais estranho e degradante, menos visível; quanto maior a distância e a diferença, maior a invisibilidade e a indiferença (Diário de campo de 22 de setembro de 2003).

Nas condições em que essa mudança ocorre, de maneira abrupta, repentina, um estado de confusão e esgotamento são pressentidos sem que uma causa aparente possa ser detectada, em especial quando acreditamos que os espaços são homogêneos. Como podia haver espaços em que a violência vivida em Sapopemba não existia ou cuja ocorrência não fazia a menor diferença? Onde colocar então as experiências vividas nesses lugares? De que forma podemos ultrapassar esses impedimentos?

Sem que possamos responder individualmente e no isolamento, essas e outras perguntas, chegamos ao fim deste artigo com um convite. Subversivamente, gostaríamos que essa leitura tenha possibilitado uma viagem, encontros e o atravessamento de algumas fronteiras por meio das imagens do espaço e do deslocamento. Como parada final, embora não definitiva, tomamos de empréstimo a poética descrição de Ítalo Calvino, esperando que as sutilezas e os detalhes das imagens das cidades – invisíveis e visíveis – possam se comunicar e nos afetar por meio da imaginação:

Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continuara a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que qualquer outro de seus enviados ou exploradores. Existe um momento na vida dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de vazio que surge ao calar da noite com o odor dos elefantes após a chuva e das cinzas de sândalo que se resfriam nos braseiros, uma vertigem que faz estremecer os rios e as montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos planisférios, enrolando um depois do outro os despachos que anunciam o aniquilamento dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais nunca se ouviu falar e que imploram a proteção das nossas armadas avançadas em troca de impostos anuais de metais preciosos, peles curtidas e cascos de tartarugas: é o desesperado momento em que descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins (CALVINO, 1990, p. 9-10).

A cada leitor uma obra e a cada leitura um novo leitor. Esse é o convite aqui posto. Um convite e um risco, uma provocação, já que o leitor deverá considerar a possibilidade de deslocar-se para entrar nessas imagens.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: andmendes@uol.com.br

Recebido em 28/07/2006
Aceito em 23/09/2006

 

 

* Texto baseado na dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2005 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (MENDES, 2005)
** Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, psicólogo clínico, professor universitário, membro do grupo HIMMA – Estudos em psicologia Imaginal – e da clínica-oficina Kairós.
1 “O ‘aproximar-se circulando’ ou ‘circumambulatio’ exprimese, em nosso texto, através da idéia de ‘circulação’. Esta última não significa apenas o movimento em círculo, mas a delimitação de uma área sagrada por um lado e, por outro, a idéia de fixação e concentração (...)” (JUNG; WILHELM, 1983, p. 41).João F. R. Wachelke
2 Foram realizadas – entre março de 2003 e dezembro de 2003 – 22 participações em campo, todas elas registradas em diário de campo
3 Jung e Freud foram dois autores que deliberadamente utilizaram o termo alma em seus escritos. Nas palavras de Bettelheim (2002, p. 93): “Por ‘alma’ ou ‘psique’ entende Freud aquilo que é de valor supremo no homem enquanto está vivo.”
4 Psique aqui será considerada como sinônimo de alma
5 Segundo Adams (2002, p. 113): “A escola arquetípica rejeita o nome arquétipo, muito embora mantenha o adjetivo arquétipo. Para Hillman, a distinção entre arquétipos e imagens arquetípicas, que Jung considera comparáveis, respectivamente, aos números e aos fenômenos kantianos, é insustentável. Para ele, tudo que os indivíduos confrontam psiquicamente são imagens – isto é, fenômenos. Hillman é um fenomenólogo ou imagista: ‘Estou simplesmente seguindo o caminho imagístico, fenomenológico, assumindo uma coisa pelo que é e deixá- la falar’. Para a escola arquetípica não existem arquétipos como tal – categorias neokantistas, ou números. Existem apenas fenômenos, ou imagens, que podem ser arquetípicas”
6 A citação tem como fonte a apostila elaborada pelo prof. dr. José Moura Gonçalves Filho como orientação para a realização do trabalho de campo na disciplina de Psicologia Social II do Instituto de Psicologia da USP, em 2001
7 Uma formulação semelhante é proposta por Bourdieu (1999, p. 695): “Ainda que a relação de pesquisa se distinga da maioria das trocas de existência comum, já que tem por fim o mero conhecimento, ela continua, apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos (variáveis segundo diferentes parâmetros que a podem afetar) sobre os resultados obtidos”
8 Segundo Geertz (1989, p. 25-25), mesmo os melhores trabalhos etnográficos não passam de ficção: “Resumindo, os textos antropológicos [eu diria, não só eles] são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio –, não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimento de pensamento”
9 Os diários de campo serão transcritos integralmente em sua própria linguagem, contando apenas com algumas correções que visam a deixar o texto compreensível
10 Esse comentário foi feito no evento de entrega do IV Prêmio de Direitos Humanos de Sapopemba, realizado em Sapopemba, no dia 10 de dezembro de 2004
11 A passagem referida é a seguinte (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 16): No bairro pobre, menos de ruína, o espetáculo mais parece feito de interrupção – as linhas e as formas estão incompletas, não puderam se perfazer. Os meios, os recursos, sobre os quais o homo faber investe o seu poder inventivo, foram perdidos ou nunca foram alcançados: o resultado destas carências e frustrações é que os poderes mesmos da fabricação humana ficam perdidos ou nunca são alcançados – lançamse em situações sem suporte, gastam-se no ar, são neutralizados. Faltam os instrumentos, faltam os materiais que suportariam o trabalho humano para a configuração de um mundo, para a fisionomia de uma cultura. Gradualmente, chega a faltar o animus faber
12 Compilação e análise de dados elaborada pelos membros do Conselho Gestor de Saúde de Sapopemba apresentado como trabalho de conclusão do curso de capacitação de conselheiros, ministrado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
13 Fala realizada no evento de entrega do IV Prêmio de Direitos Humanos de Sapopemba, realizado em Sapopemba no dia 10 de dezembro de 2004
14 Várias iniciativas em Sapopemba encaminham para a valorização do bairro, dos moradores e de suas histórias, procurando mostrar, com isso, um outro lado do distrito – por exemplo, o vídeo Reciclando Esperanças, de Paulo Baruokh, a criação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Sapopemba e do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan, as Pastorais da Igreja Católica, entre outras
15 Pude ouvir essas palavras de várias pessoas: D. Graça, Irmã Lourdes, Sr. Patrício, entre outras
16 De acordo com Becker (1999, p. 19): “Seria excessivamente extremo dizer que os metodólogos gostariam de transformar a pesquisa sociológica [eu diria não só ela como as demais pesquisas em ciências humanas] em algo que uma máquina pudesse fazer? Acho que não, pois os procedimentos que eles recomendam têm todos em comum a redução da área em que o julgamento humano pode operar, substituindo este julgamento pela aplicação inflexível de alguma regra de procedimento”
17 Segundo o dicionário Houaiss (HOUAISS, 2001, p. 278), arcano abrange as seguintes descrições: “1. que ou o que é profundamente secreto, misterioso, enigmático (...). 2. que ou o que é incompreensível não se pode desvendar (...) 4. um dos supostos grandes segredos da natureza, que os alquimistas procuravam desvendar. 5. remédio maravilhoso, panacéia universal, elixir”
18 Moradoras da Vila Joanisa, bairro proletário da Zona Sul da cidade de São Paulo
19 Conforme nos conta Gonçalves Filho (1998) acerca do passeio realizado com as moradoras da Vila Joanisa ao Teatro Municipal
20 Setor é o nome dado ao conjunto formado pela reunião de várias paróquias vizinhas
21 Espaço em que um representante do poder público – um ouvidor – encontra cidadãos que desejam lhe transmitir uma informação ou expor uma denúncia
22 Os nomes dos membros da comunidade descritos nesse episódio foram alterados
23 Segundo o dicionário Houaiss (HOUAISS, 2001, p. 1682) jet-lag significa: “alteração do ritmo biológico de 24 horas consecutivas, que ocorre após a mudança do fuso horário em longas viagens de avião, caracterizada por problemas físicos e psicológicos (...)”.

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