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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

100% negro, camisetas, insígnias e utopias sociais*

 

100% black, t-shirts, insignia and social utopia

 

100% negro, camisetas, insignias y utopías sociales

 

 

Luiz C. Borges**

Programa de Pós- Graduação em Museologia e Patrimônio (MAST/UNIRIO)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A luta histórica da população negra no Brasil por sua emancipação, visando superar as condições sociais assimétricas a que continua sendo submetida, assume diversos posicionamentos político-ideológicos e apresenta, como desdobramento, diferentes níveis de fragmentação e enfrentamentos tanto inter quanto intra-étnicos. Este trabalho objetiva, por meio do aparato teórico-metodológico da análise de discurso, examinar o enunciado “100% negro”, enquanto um discurso fundacional. Em meio a uma complexa trama discursiva, marcada por afetos e ideologizações, tem chamado a atenção uma tendência recente a radicalizar essa luta mediante a mitificação fetichizada da herança genética e cultural africana. Os efeitos políticos dessa nova tendência mostram- se na desvinculação da luta emancipatória da fração negra daquela empreendida por outros segmentos igualmente desfavorecidos da sociedade brasileira (índios, lavradores, sem terra etc.). A hipótese central aqui proposta considera que essa tendência radicalizada, representada pelo “100% negro”, a despeito de sua aparente afirmatividade, propende a fechar o movimento negro em um ideal fetichizado de pureza racial ou cultural e, conseqüentemente, termina por reforçar o racismo que, supostamente, deveria erradicar.

Palavras-chave: Emancipação, Movimento negro, Utopia, Imaginário, Discurso.


ABSTRACT

The historical struggle of the black population towards emancipation in Brazil, aiming to surpass the asymmetric social conditions to which it continues to be the subject, takes several forms of political-ideological stands, and therefore, displays different levels of fragmentation and both inter and intra ethnic confrontations. The objective of this paper is to examine the statement “100% black”, taken as a foundational discourse by means of the discursive analysis of the theoretical apparatus. Amongst a complex discursive network characterized by ideological and emotive attitudes, the “100% black” discourse stands out as a mythologized and fetishistic understanding of the genetic and cultural African heritage. The political effects of this emerging radical tendency are perceived as the emancipating struggle of the black segment of the Brazilian population that becomes detached from the political endeavors of other equally ill-favored fragments of the Brazilian society, such as the indigenous people, peasants, landless, etc. The central hypothesis proposed herein considers that this outstanding tendency, discursively represented by “100% black”, tends to enclose the black movement in a fetishistic ideal of racial or cultural pureness which reinforces the racism it was supposed to eradicate.

Keywords: Emancipation, Black movement, Utopia, Imaginary, Discourse.


RESUMEN

La lucha histórica de la población negra en Brasil por su emancipación, con el objetivo de superar las condiciones sociales asimétricas a las que continúa siendo sometida, asume diversas posturas político-ideológicas y presenta, como despliegue, diferentes niveles de fragmentación y enfrentamientos tanto inter como intra-étnicos. Este trabajo tiene el objetivo de, por medio del aparato teóricometodológico del análisis de discurso, examinar el enunciado “100% negro”, como um discurso fundacional. Dentro de una compleja trama discursiva, marcada por afectos e ideologizaciones, llama la atención una tendencia reciente a radicalizar esa lucha mediante la mitificación fetichista de la herencia genética y cultural africana. Los efectos políticos de esa nueva tendencia se muestran en la separación de la lucha emancipatoria de la fracción negra de la que fue iniciada por otros segmentos igualmente desfavorecidos de la sociedad brasileña (indios, campesinos, sin tierra etc.). La hipótesis central aquí propuesta considera que esa tendencia radical, representada por “100% negro”, a pesar de su aparente afirmatividad, propende a encerrar el movimiento negro en un ideal fetichista de pureza racial o cultural y, consecuentemente, termina reforzando el racismo que, supuestamente, debería erradicar.

Palabras clave: Emancipación, Movimiento negro, Utopía, Imaginario, Discurso.


 

 

1. Um cenário de insígnias discursivas

Ao nosso redor existe um sem número de fatos a demandar sentido. A todo instante deparamo-nos com eventos que nos estimulam a interpretá-los. É bastante comum, em zona urbana ou rural, depararmo- nos com uma profusão de anúncios publicitários, seja de partidos e candidatos, de instituições públicas ou privadas, de produtos industriais, de marcas comerciais, seja ainda de indivíduos anunciando suas paixões e fetiches, em claro exemplo de evasão de privacidade. Diante dessa profusão de espetáculos, podemos, seguindo Debord (1972), e sem esquecer que há uma relação inalienável entre a mercadorização do mundo contemporâneo e seu processo de espetacularização, constatar que o que a sociedade espetacular enaltece são as paixões fetichizadas de um ser social igualmente reificado e fetichizado na e pela mercadoria. Trata-se de um processo de inculturação que encarna a realização plena da razão mercantil, qual seja, tornar-se o “devir-mundo mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo” (p. 57).

Dentre esses anúncios e seus suportes, as camisetas que, desde o fim dos anos 1950, início dos anos 1960, passaram a ser utilizadas com inscrições as mais diversificadas, destacam-se como o suporte mais popular no qual se inscrevem insígnias e anúncios de todos os tipos, gerando, nas ruas, um efeito discursivo que podemos qualificar de polifônico.

Outra característica deste tipo de espetáculo é que o indivíduo que porta uma camiseta-insígnia igualmente atua como suporte para este tipo de anúncio ambulante. Neste caso, devemos atentar que, na maioria das vezes, o indivíduo-suporte não se dá conta das implicações políticas ou ideológicas do discurso que ele, com seu corpo, suporta.

Outro fato que também se imbrica à camiseta-discurso é o uso generalizado da expressão 100%. O enunciado 100% afirma uma totalidade acerca de alguma coisa ou propriedade; em suma, anuncia um todo auto-suficiente. Em termos discursivos, diríamos que este tipo de enunciado remete a um efeito em que predomina uma posição enunciativa que tende à impermeabilidade ou à irreversibilidade. Trata-se de um recurso bastante utilizado em publicidade para dar maior credibilidade aos produtos que anuncia. Assim, um produto 100% orgânico carrega a imagem de que se trata de um produto cujo manejo é isento de defensivos químicos. O mesmo vale para atestar a origem de um produto, quando dele se diz, por exemplo, que é 100% importado, e assim por diante.

Dentre a grande variedade de camisetas em que lemos a inscrição 100%, a partir das quais podemos constatar relativas posições enunciativas, tais como 100% deus, 100% carioca, 100% brasileiro, chamou-nos a atenção aquelas que trazem o slogan “100% negro”.

Trata-se de uma insígnia que identifica um posicionamento político singular no estado atual da luta da população negra frente à sociedade brasileira. Para analisar este enunciado, utilizamos os procedimentos teórico-metodológicos da Análise de Discurso (ORLANDI, 1999; PÊCHEUX, 1988), mediante os quais os enunciados são submetidos à crítica a fim de compreendermos a formação histórico- ideológica que os sustenta, e a partir da qual produzem seus efeitos de sentido. Afinal, para a Análise de Discurso que praticamos, falar em discurso é falar de efeitos de sentido entre locutores (ORLANDI, 1998), o que é o mesmo que falar na formação histórico- ideológica e nas posições e papéis, na cena discursiva, que sujeitos interlocutores desempenham. Em outros termos, analisar as práticas discursivas de um sujeito significa enfrentar a complexa questão das formações imaginárias que perpassam e cimentam o conjunto da sociedade. Essas formações imaginárias sustentam, refletindo e refratando, na forma do já-dito ou do interdito, o processo sociohistórico, a totalidade do que é dito e, simultaneamente, do não-dito, de maneira que tanto o dizer como a interdição (não) o dizer fazem parte da produção e dos efeitos de sentido.

É justamente por isso que os sentidos efetivamente produzidos não dependem, para sua efetividade, da intenção enunciativa do falante (expressa em enunciados do tipo: “eu quis dizer...”, “não é isso que eu quero dizer” etc.), ou da “intenção” interpretativa do ouvinte (“eu entendi isso”, “eu não entendi assim” etc.). Mas sim de sua filiação a redes de sentido e das posições que o sujeito (falante/ ouvinte) assume nessas redes. Deve, pois, ficar claro que todo discurso é, além de constitutivamente incompleto, contraditório, uma vez que ao dizer “x” também se diz “y”, mesmo que os sentidos de “y” não tenham sido intencionados ou sequer sejam desejáveis. Dito de outro modo, há constitutivamente em todo discurso ditos e interditos, por sua vez associados a redes já estabelecidas de sentidos.

Antes de passarmos a analisar o enunciado 100% negro e suas implicações político-ideológicas, gostaríamos de apontar algumas dentre as razões que, em nosso entendimento, levaram à generalização da exposição exibicionista de slogans, etiquetas de marcas e de outros signos inscritos em camisetas. Dentre as muitas hipóteses, podemos aventar as que se referem à espetacularização do social, pela qual o privado deve tornar-se público, e à fetichização do mercado, ambas relacionadas, por sua vez, à estetização da vida social e ao autocentramento de que se encontra investido o processo atual de construção da subjetividade, como nos mostram Debord (1972), Bauman (1998) e Birman (2001). Acrescente-se, ainda, segundo Bourdieu (2003), e ainda no cenário do espetáculo social e do mercado fetichizado, marcado pela tensão constitutiva entre consumidores bem e malsucedidos, a necessidade de traçar fronteiras simbólicas que demarquem a posição/situação do sujeito consumidor em uma sociedade espetacularizada. Por outro lado, não podemos esquecer que o autocentramento pode ser relacionado a uma postura política fragmentadora, considerando-se que os sujeitos coletivos tendem a voltar-se para a satisfação de seu aparato desejante, estabelecendo uma relação narcísica entre o eu e seu objeto desejado. É também o que diz Edelman (1977), ao mostrar que discursos que apelam em favor de interesses coletivos, em geral mascaram interesses particulares de grupos ou frações de grupos que, narcisicamente, se apresentam simbolicamente como valores universais. Com isso, em termos sociopolíticos, os setores da sociedade civil que se organizam em torno desse tipo de objeto tornam-se autocentrados, ficando impermeáveis aos movimentos reivindicatórios e emancipatórios de outros segmentos sociais.

1.1. Razões e contradições

As raízes da luta por uma efetiva emancipação negra, como consciência de si, de suas potencialidades históricas, políticas e culturais, apesar de remontarem ao período colonial, encontram-se firmadas no século XIX. O movimento negro, como desdobramento das lutas pelo fim da escravidão, tem-se notabilizado pelo esforço em busca da autodeterminação étnica, do reconhecimento do negro como sujeito de sua história, uma condição que se encontra em processo, uma vez que a supressão da escravidão, como é facilmente percebido, não redundou na elevação do sujeito negro à condição plena de cidadania.

Conforme Uemori (2004), é a idéia de uma nação homogênea que mobiliza intelectuais e estadistas brasileiros das mais variadas tendências, no século XIX, sendo, portanto, neste cenário discursivo que a escravidão negra é reavaliada e lhe são atribuídos sentidos que ainda estão presentes na formação imaginária brasileira. Mas é também a busca dessa homogeneidade que leva a uma estratégia de encobrimento étnico e físico do negro em várias práticas discursivas que também são encontradas na sociedade brasileira. Esse encobrimento, por seu lado, deixa marcas que permitem compreender a contra-estratégia de afirmação do corpo que, a partir dos anos 1960/70, visava preencher este tipo de ausência (social, estética, política e discursiva) a que os negros haviam sido reduzidos. Daí a ênfase na valorização da aparência, como insígnia de uma afirmação corpóreo-estética, igualmente autocentrada.

Do ponto de vista sociopolítico, o movimento negro no Brasil é, em termos de orientação político-ideológica, formado por um conjunto heterogêneo de frações em disputa, cada uma delas com interesses e diretrizes particulares. Ademais, em decorrência da adesão de algumas dessas frações à política etnocentrada do “primeiro a raça”, como estratégia de luta emancipatória, o movimento negro passa a configurar-se como um movimento dos negros. Essa característica explica porque, usualmente, parte da potencialidade transformadora do movimento negro seja dirigida ao protesto simbólico, ao fetichismo e ao autocentramento da cultura afro-brasileira, como aponta Hanchard (2001).

Discursivamente, ao estampar 100% negro, que efeitos são deflagrados: 100% racial, biologicamente puro (pureza de sangue)?, 100% culturalmente negro, sem influência de outras culturas (pureza cultural)?, 100% política e socialmente negro, propugnando um ideal de sociedade racialmente hegemônica (pureza ideológica étnico-nacional)? É neste sentido que vemos nesses emblemas a reprodução de modelos de hegemonização, travestida discursivamente em necessidade, legítima e historicamente chancelada, de defesa e reparação. Este modo de proceder leva os militantes negros a reagir com preconceito à prática do preconceito de que são vítimas, reforçando-a em ambas as direções. É o que inferimos da declaração de Martinho da Vila, para quem o que “hoje difere o branco do negro não é a cor da pele, mas a atitude política. São negros os que lutam contra a exclusão – sejam eles brancos ou pardos. Negro não engajado, branco é” (citado por MARINHO & CEZIMBRA, 2004, p. 25). Ora, se o que distingue o negro do branco é a atitude política, isto é, se ser negro (não importando a cor da pele) define-se pelo engajamento político nas causas raciais, segue-se que o preconceito tão-somente transfere-se da cor da pele para a postura política. Aplica-se sobre o preconceito vigente, calcado na concepção de que tudo que é branco é positivo e tudo que é negro é negativo, uma inversão valorativa pela qual tudo que é branco vira negativo e o que é negro torna-se positivo. Daí proceder a advertência de Adorno e Horkheimer (1985, p. 181), em relação à tendência de minorias oprimidas à reprodução absolutizada de modelos de subalternização ou, retornando a Edelman (1977), a investir na radicalização da estratégia de subsumir valores universais àqueles que são eminentemente particulares.

A despeito desse tipo de autocentramento, o que melhor caracteriza o movimento negro vem sendo a alternância entre luta de movimento e de posição visando emancipar (política, econômica e culturalmente) a população negra da condição de viver em sociedades cujo domínio ainda é exercido pelo segmento branco1; situação que podemos, com Hanchard (2001), caracterizar como tendendo à hegemonia racial. Uma grande parte deste tipo de luta emancipatória incide sobre o direito de ser diferente, de ver aceito e legitimado um modo negro de ser. A esta pauta reivindicatória corresponde o direito de manter hábitos gastronômicos próprios, formas dialetais, vestuário, comportamento, mediante os quais essa população resiste, recusando em graus variados, ao paradigma cultural imposto pela hegemonia branco- européia.

Um outro aspecto relevante do movimento negro concerne a seu alcance mundial, mediante o qual ele pode ser descrito como transnacional e trans-classe social. Aliás, histórica e geograficamente, esse movimento se institucionaliza a partir da concatenação de várias ações deflagradas em diversos setores da sociedade através de diferentes formas de atuação. Dois desses momentos se destacam no século XX. De uma parte, temos os movimentos políticos de libertação e desmantelamento do aparato colonial, especialmente em território africano. De outra, ainda que com diferentes formas, temos, por exemplo, nos Estados Unidos dos anos 1960, a luta da população negra contra a segregação, a favor de seus direitos civis e plena afirmação do ser negro. A frase-slogan “black is beautiful” sintetiza, nesse período, a luta político-estética dos negros visando, simultaneamente, uma reivindicação político-social e afirmação do corpo e da cor negros.

Esse movimento, entretanto, não se restringiu ao campo político ou bélico, as artes também se tornaram um campo de militância com vistas à afirmação mundial da estética e da consciência negra. A negritude, como expressão ética, estética e política da valorização da cultura de matriz africana, invadiu a literatura (inclusive em línguas africanas não-européias), a música, as artes plásticas e cênicas. No continente americano, o poema martinicano de Aimé Césaire é considerado um dos mais literariamente engajados quando se trata da afirmação (política e poética) da negritude. A afirmação do ethos negro também se inscreveu em algumas variantes de religiões africanas, tomadas como base de identidade, nacionalidade e marca cultural distintiva, como foi o caso do vodu no Haiti.

Atualmente, o movimento negro brasileiro caracteriza-se, a despeito de suas particularizações, por engajar-se em ações afirmativas, frente às formas de injustiça sócio-racial, o que, por sua vez, leva à conscientização e ao orgulho de assumir a cor da pele. Por isso mesmo, o 100% negro, como elemento motivador de movimentos de reivindicação (e mesmo partidário, em sentido gramsciano), ultrapassa a agenda das ações afirmativas. Uma militância afirmativa calcada no 100% negro tende a enveredar por uma linha etnocentrada de ação que, eventualmente, pode levar à mistificação étnica. Exemplos de mistificação étnica ocorrem em invocações rememorativas da terra ancestral (em enunciados do tipo “afro-x”, por exemplo), ou da identidade de sangue (por exemplo, afro-x 100% negro), ou ainda, em reivindicações de reparação histórica. É neste campo discursivo que o significante 100% negro remete reativamente ao interdiscurso (ou à rede de sentidos) do racismo, uma vez que “é sempre interpelado a referir-se a si na oposição fixada – racismo/ não racismo” (SOUZA, 2000, p. 69), o que, por sua vez, leva à constatação que, neste processo, a formação subjetiva do negro não se autonomiza em relação à identidade-raiz na qual a diferença/ desigualdade se acha cristalizada. É então como parte dessa heteronomia constitutiva que a consciência negra fetichizada opera como recurso, individual ou coletivo, para tentar superar as formas, explícitas ou não, de estigmatização racial e social a que os negros estão submetidos.

 

2. Mão e contramão

O quadro resumido acima é necessário para analisarmos o momento atual em que se encontra o movimento negro no Brasil. E, se o fulcro da questão histórica ideologicamente nos remete ao racismo, devemos lembrar, como Politzer (1978) adverte, que o racismo, assim como qualquer outra racionalização ideologizada, só pode ser efetivamente compreendido e superado quando referido historicamente às relações sociais em que vige. Para efeito da análise que propomos, este momento pode ser resumido na frase 100% negro que se estampa em camisetas, cartazes e paredes, como síntese programática, ou estratégia política, de uma fração do movimento negro.

Veremos que, neste momento, seja de forma consciente, isto é, como tomada de posição na arena de luta; ou inconsciente, ou seja, sem levar em conta as implicações histórico-ideológicas da síntese programática expressa no enunciado 100% negro e, especialmente, as conseqüências enquanto utopia sociopolítica visando a construção de novas relações de sociabilidade. Neste sentido, o discurso 100% negro, além de veicular uma afirmação de igualdade e liberdade, também produz efeitos de sentidos ligados à (nova) desigualdade e ao revanchismo.

O revanchismo, em essência, corresponde a um desejo de trocar de papéis entre sujeitos desiguais, isto é, a um mero rodízio de posições sem, contudo, avançar na superação das condições e das razões que levam à dominação e à subalternização de grupos étnicos ou de segmentos sociais. Em suas diversas modalidades, mais ou menos explícitas, mais ou menos violentas, o revanchismo pode ser expresso por um enunciado do tipo “agora é a nossa vez”, e os exemplos são muitos2.

Para além de revanchista, uma agenda 100% negro implica a filiação a uma posição discursiva que, em termos de formação histórico-ideológica, se associa a fases históricas e a programas políticos que podem ser melhor descritos como desfavoráveis à autonomia.

Em primeiro lugar, afirmar-se 100% negro é evidenciar uma posição discursiva de irreversibilidade, uma vez que esta assunção político- ideológica remete a uma representação de si como ente social pleno e fechado. O enunciado 100% negro faz-se, então, um discurso autoritário porque tende a barrar a conciliação de interesses entre os que são puramente (seja física, seja culturalmente) negros e os demais segmentos étnicos de que uma sociedade pluricultural e plurilingüística, como a brasileira, se compõe. Um sintoma bastante evidente disso pode ser encontrado no sistema de cotas estabelecidas para ingresso de negros em universidades. E, mais sintomático ainda, é a reivindicação de alguns líderes do movimento negro (como, por exemplo, Frei David Raimundo dos Santos, diretor-executivo da Educafro3), de que só devem beneficiar- se dessas cotas aqueles que são negros de pele, ou seja, os que são negros puros (de cor).

Em segundo lugar, afirmar-se 100% negro é reivindicar uma etnicidade totalizada, mas, ao mesmo tempo, significa, por esta mesma razão, fragmentar a luta política em geral, uma vez que para o 100 % negro, para o 100 % mulher, ou para o 100 % índio, as questões são postas fragmentariamente, comprometendo a conjunção de amplas forças sociais (e culturalmente diversas) visando um bem comum. Como conseqüência disso, os movimentos sociais estruturados em torno de uma política 100%-x fortalecem o aparato do estado que, assim, pode atender a reivindicações isoladas e, desta forma, deixar intocadas as questões essenciais que, postas em marcha, poderiam beneficiar a sociedade como um todo. É o que pode ser depreendido da afirmação de Ivanir dos Santos, segundo quem:

(...) a maioria das pessoas do movimento negro só os discute em termos de sua negritude, da cor de sua pele, e não do significado de suas posturas políticas e da importância dessas posturas para as pessoas negras. Muitos se interessam apenas pelo simbolismo (citada por HANCHARD, 2001, p. 105).

Em terceiro, ostentar-se 100% negro implica uma impermeabilidade frente à diversidade étnica, uma vez que, em sua hipótese forte, ser 100% negro significa pureza racial. Com isto, observamos a retomada (pelos negros) de um conceito largamente utilizado para colocar os negros, índios, asiáticos, ou seja, os nãobrancos, na categoria de objeto. O mais interessante é que esta afirmação afeta inclusive aqueles que participam do movimento negro, como pode ser deduzido da posição assumida por Frei David dos Santos4. Neste caso, como em outros, o 100% negro discursivamente (em termos de efeitos de sentido e de filiação à determinada rede interdiscursiva) se coaduna perfeitamente com o 100% branco.

Em quarto, reivindicar uma posição política e social baseada na primazia racial é igualar-se a posições políticas excludentes igualmente baseadas em ideais de pureza racial. Neste sentido, afirmarse 100% negro assemelha-se, em termos de formação históricoideológica, e a despeito de enormes diferenças de forma e momento histórico entre os segmentos em conflito, ao afirmar-se 100% branco, uma vez que ambos significam a partir de um ideal fetichizado de pureza racial.

Ao reivindicar uma “pureza” racial, os militantes da causa negra fortalecem o programa político cuja meta é substituir a nação, como processo histórico-social, pelo ideário da raça, isto é, pela formação de uma comunidade de pessoas de mesma pureza de sangue, ou que compartilham uma mesma tradição cultural (POLITZER, 1978). Ora, a ênfase na fórmula política do “primeiro a raça” pode transformar-se, através de inúmeros fatores, em coadjuvante de um tipo de reducionismo ideológico, degringolando-se em uma reedição caricata da hegemonia do sangue, cujo alvo preferencial é a diversidade étnica5.

É por essa razão que o mote 100% negro, com a invocação mítica da afrodescendência, afigura-se como uma contra-corrente ao ideal do movimento negro, em sua justa luta por libertação. Uma contra- corrente que, além de fracionar a luta e, com isso, pôr-se a serviço do sistema dominante, adere a formas de reacionarismo, seja pelo revanchismo, seja por submeter-se a benefícios imediatistas, economicistas ou educacionais, seja ainda pelo apelo do tipo sangue e terra.

Conquanto a relação nação-classe-raça, além de seus matizes históricos, seja bastante motivada por fatores psicológicos, é necessário recolocá-la em termos de relações sociais, descolando-a da discussão que envolva a herança genética ou as singularidades culturais. Daí que, em qualquer sociedade de classe, a raça passa a ser um forte componente da luta de classes e, neste sentido, a luta pela hegemonia negra, enquanto proposta de luta sociopolítica, apenas reproduz ideologicamente a hegemonia branca, ou qualquer outra hegemonia de caráter racial, justamente porque, como historicamente pode-se verificar, muitas sociedades (a grande maioria apresentando formas diversas de racismo) se constituíram tendo a raça por matriz. Ao analisar a questão do negro na sociedade brasileira, e pensando na constituição de uma matriz civilizatória, expurgada de todas as formas de hegemonia racial, verifico que a política do “primeiro a raça”, que orienta a atual fase de alguns segmentos do movimento negro, revela-se um claro equívoco político-filosófico e um lugar de reprodução ideológica (HANCHARD, 2001, citado por LÖWY, 2000; POLITZER, 1978; UEMORI, 2004). Aponto este como o lugar discursivo em que o enunciado 100% negro sintomatiza a discrepância constitutiva entre os slogans e os fatos, a política de reparação e a crítica auto-emancipadora.

Afinal, é no processo de auto-emancipação, como práxis libertadora, que a população negra poderá libertar-se da opressão, superando a consciência alienada e conscientizando-se do seu papel libertário, contribuindo para que a sociedade como um todo também se liberte de seus preconceitos e irracionalidades. Para tanto, a luta deve ser travada congregando todas as forças sociais, e cujo ideal seja a libertação e a superação de todos, na construção de um mesmo projeto de sociedade em que não haja lugar para a exploração e a dominação e, portanto, para apartheids de quaisquer espécies. E isso não ocorrerá se cada classe, cada segmento ou fração de classe isolar-se em reivindicações do tipo 100%-x, uma vez que nenhum movimento social conseguirá manter-se crítico se estiver fundado em um princípio que tenda ao fundamentalismo étnico. Afinal, a justificação biológica usada para reivindicar direitos políticos é a mesma que justifica o genocídio interétnico.

 

3. Em busca da utopia

O modelo capitalista – não apenas como dimensão político-econômica, mas igualmente como potência civilizatória, marcada também por um processo de racionalização, cristalização e administração tecnoburocrática do estado sobre a sociedade civil – tem levado ao açodamento das desigualdades sociais, expressas na dessimetria entre um percentual mínimo de cidadãos-consumidores bem-sucedidos e uma larga maioria de consumidores frustrados ou malsucedidos. Uma das conseqüências disso é o debilitamento dos movimentos sociais e uma subseqüente pulverização e realinhamento das causas sociopolíticas em frentes fragmentadas que centram seu foco em questões particularizantes (ainda que tomadas como um valor em si), dentre as quais destacamos as questões étnicas, de gênero, ecológicas, classistas, corporativas etc. Trata-se de um processo globalizante de fracionamento social e político também destacado por Eagleton (1997), e de que derivam diversas formas atuais de tribalismo. Em larga escala, essa nova configuração do espectro social aponta para “a perda de legitimidade de instituições duramente atacadas pelos efeitos conjugados da desregulamentação, das privatizações (...) e da mundialização” (BENSAÏDE, 2000a, p. 103), um dos fatores que leva à constituição de novas formas de legitimidade, baseadas em novas raízes fundacionais, sejam elas etnográficas ou arqueológicas. Isso, por sua vez, tem levado, da parte de oprimidos e de opressores, a um frágil equilíbrio entre pressão e cessão, especialmente na forma de políticas públicas proativas e localizadas.

Somam-se a esse processo de autonomização das frações, pautas reivindicatórias baseadas em um princípio perverso segundo o qual, de acordo com Renan (citado por BENSAÏDE, 2000a) o direito dos mortos e das raças se sobrepõe ao dos vivos e das nações. Esse direito tem sido usado como justificativa para políticas de resgate de dívidas históricas, assim como para revanchismos de fundo ideológico. É neste contexto sociohistórico marcado pela exarcebação tribal, que devemos territorializar uma atitude 100% negra. Em que pesem as alegadas justificativas históricas, devemos, entretanto, considerar que “a infame divisão da humanidade em raças não pode levar se não a guerras de extermínio”, uma vez que a “raça é, politicamente falando, não o começo da humanidade, mas seu fim; não a origem dos povos, mas sua decadência; não o nascimento natural do homem, mas sua morte anti-natural” (citado por BENSAÏDE, 2000a, p. 106-108, respectivamente de Renan e Arendt). Em vista dessas advertências, o investimento político na mitificação África, como espaço simbólico fetichizado de origem e retorno, remete, em nossa perspectiva, a uma ideologia afrocêntrica que, por seu caráter mistificante, não conduz à superação, mas à manutenção de ideais segregacionistas, assimilados à política do primeiro a raça.

Daí porque considerarmos enunciados em que encontramos a absolutização do negro como práticas discursivas que apontam para a cristalização e o fracionamento político do segmento social negro, definido e definindo-se pela matriz ideológica sangue e terra e, como tal, recaindo em reificação, ao tomar o negro (raça/cor) como um valor em si mesmo. O que nos leva à constatação de que, mesmo que por contraposição às atitudes preconceituosas e opressoras da fração branca da classe dominante, da absolutização político-social do negro decorre um reforço do preconceito, ainda que dissimulado em ações afirmativas. Um claro exemplo de preconceito às avessas, ou positivo, é a afirmação da colunista do jornal O Dia, em sua edição de 21-11-2004, Narcisa Tamborindeguy, de que “nosso país deve tudo [grifo meu] aos negros: a alegria, o samba, o misticismo e a beleza única”.

Partindo do deslocamento político que ocorre nos discursos sobre a ordem social (EAGLETON, 1997; ORLANDI, 1998), devemos notar que se instaura uma nova ordem discursiva em que se faz largo uso de termos como diferença, pluralismo e marginalização, mas silencia-se sobre a luta (ideológica) de classes ou sobre a acumulação capitalista. Destarte, longe de ser evasiva, a nova formação discursiva é incisiva e, contudo, divercionista, funcionando como uma espécie de pára-brisas ideológico, estruturado na forma de silêncio local (ORLANDI, 1992) que, sendo censura, realiza-se, por conseguinte, como o lugar do inter-dito. Na qualidade de “uma nova forma individualista de politização” (SOUZA, 2000, p. 71) esta forma de luta enraíza-se justamente no terreno que lhe é franqueado pela sociedade. Sendo assim, o discurso do negro individualmente politizado não deixa de ser uma paráfrase da formação ideológica dominante. A nova prática discursiva do movimento negro se caracteriza melhor como um neolalismo (GRAMSCI, 1978), isto é, como resultado da fragmentação do discurso em suas individualidades políticas, étnicas, éticas e estéticas, e idiossincrasias arbitrárias, bem característico do momento atual. Argumentando a partir de Eagleton (1997, p. 153), vê-se que esta nova postura não procura localizar- se “nas contradições do sistema, nos lugares onde ele não é idêntico a si mesmo [grifos meus] para elaborar a partir deles uma lógica política que, por fim, pode transformar o sistema de poder como um todo” mas, ao esgueirar-se por dentro, territorializa-se nos lugares em que o sistema se estrutura e, agindo sobre seus sintomas, termina por tornar-se sustentáculo da ordem vigente.

Em vista disso, e diferentemente de Souza (2000), não estou convencido de que esse tipo de ativismo afirmativo efetivamente rompa com a ideologia dominante, ainda que reconhecendo a emergência de uma nova postura afirmativa, com seus óbvios ganhos sociais, políticos e econômicos. Antes, analiso-o como uma forma de afirmação da negritude que: a) despolitiza-a exatamente por silenciar acerca da dicotomia dominante/dominado e, neste sentido, reivindica, paralelamente à hegemonia branca, sua própria hegemonização particular no território semântico e político do negro (seja por etnocentrismo ou por narcisismo coletivo); b) insere-se, outrossim, no deslocamento sociopolítico-discursivo em que o sujeito político se transforma em sujeito consumidor. É justamente neste terreno que o ativismo negro é seduzido (etnocêntrica e narcisicamente) pelo status recém-outorgado de consumidor pleno.

De todo modo, o neotribalismo evoca a representação de uma sociedade fundada em políticas e em ordenamentos socioculturais que têm por base a autonomia de frações cada vez mais pulverizadas em seus interesses, inconciliáveis com os de outras tribos, de modo a romper e a dificultar a coesão político-social. Portanto, investir em (re)desenhar um projeto de nacionalidade – sem, por outro lado, recair em nacionalismos chauvinistas e em opressões inter-frações sociais – tem o sentido de construir uma nação (re)conciliada consigo mesma, cuja homogeneidade não signifique uniformidade ou reordenações ideológicas afetadas pelo binômio terra e sangue. Mas, para que isso ocorra, é necessário (evitando, ao mesmo tempo, recair em becos sem saída de um nacionalismo fetichizado) estabelecer, de acordo com Bensaïde (2000b, p. 40) a “primazia da cidadania sobre a nacionalidade; direito à autodeterminação e livre associação (subsidiaridade); garantia de direitos às minorias (lingüísticas, escolares, culturais)”, especialmente num país como o Brasil, cuja história tem sido igualmente marcada pela escravidão, exclusão e desqualificação social, quando não o extermínio, de índios, negros e outras minoria étnicas ou políticas, como efeito da barbárie planejada e administrada da civilização (LÖWY, 2000).

De todo modo, uma classe, um segmento de classe ou um grupo de resistência não pode libertar-se, libertando, por sua vez, o todo social, se o magma das significações, no qual o projeto de uma sociedade futura investe-se de sentido, nutre-se de ideais e princípios amesquinhados, satisfazendo-se no gozo revanchista. Um projeto emancipatório com essas características produz um efeito de horizonte de curto prazo. Revelando-se um projeto sociopolítico pseudocrítico, uma vez que a luta emancipatória proposta não consegue avançar além do egoísmo e da ilusão de classe ou raça. E, neste sentido, trata-se efetivamente de uma luta de posição conservadora, com tendência a se tornar reacionária, considerando que “a razão não pode tornar-se, ela mesma, transparente enquanto os homens agem como membros de um organismo irracional” (HORKHEIMER, 1980, p. 131), todo movimento social fundado numa irracionalidade, como é o caso da afirmação, ou reivindicação, 100% negro, termina por reproduzir (consciente ou inconscientemente) a irracionalidade de que se originou.

O que ocorre neste tipo de situação histórico-ideológica é o rodízio de posições e função entre opressor e oprimido. Ou seja, no processo histórico marcado por resistência: revolta – revolução – não esquecendo que todo processo de dominação produz, como constitutivo de suas contradições, formas de resistência, assim como em toda hegemonia são encontradas correntes contra-hegemônicas (PÊCHEUX, 1990) – o lema-programa 100% negro constitui uma forma de retransmissão e reterritorialização da ideologia dominante e, portanto, como agente contra-revolucionário que, por suas próprias características e contradições no interior do movimento negro, em geral, atua como freio ideológico, pelo qual a prática discursiva de seus militantes e organizações encobre uma estratégia de luta que não é capaz de superar a barreira da revolta: resistência - contra-resistência, um verdadeiro círculo vicioso, em que se reproduz incessantemente, no âmbito da ideologia dominada, a força da ideologia dominante. Ora, a consciência de si e de classe, como forma de superar as ilusões e seduções da ideologia dominante, é ela mesma um efeito da libertação que, por sua vez, remete a dois pressupostos orientadores:

il n’a de domination sans résistence: primat pratique de la lutte des classes, signifiant qu’il faut “oser se révolter”; nul ne peut penser à la place de qui que ce soit: primat pratique de l’inconscient, signifiant qu’il faut supporter ce qui vient à se penser, c’est-à-dire qu’il faut “oser penser par soi-même” (PÊCHEUX, 1988, p. 272 ).

 

4. Na arena ideológica do discurso

O debate em torno da relação direitos de minorias (historicamente negados ou simplesmente negligenciados)/políticas públicas (reparadoras e/ou proativas) é indubitavelmente marcado por uma complexa trama discursiva de afetos e ideologizações, como deve ter ficado claro pelo jogo discursivo dos múltiplos enunciados e posições assumidas pelos interlocutores. Em relação à trama ideológica que sustenta esse debate, o que me preocupa são os reducionismos ideológicos e os processos discursivos de silenciamento (detectados nos diversos atores que atuam nesse cenário), por meio dos quais oblitera-se justamente a arena de luta. Essa obliteração encontra-se também materializada na insistência em autonominizar e radicalizar aspectos particulares do complexo sociopolítico instituinte da sociedade brasileira6, a despeito de sua importância histórica, particularmente para aqueles que são visceralmente afetados por um perverso processo de exclusão e por suas conseqüências.

Parto do princípio que, ideológica e socialmente, estabelecer políticas públicas baseadas na fragmentação social, para atender ao imediatismo dos reclamos de frações organizadas da sociedade, apesar de seus efeitos profiláticos, termina por dissimular o fato de que o controle coercitivo por parte do estado atua fortemente no sentido de neutralizar qualquer ação crítico-reflexiva que vise transformar, pela base, a sociedade. É neste sentido que evoco a advertência de Politzer, segundo a qual:

precisamente porque a nação é o povo, uma política verdadeiramente nacional não poderia ter por condição medidas antisociais. É contra a própria nação que uma medida anti-social se dirige, e é a nação que se enfraquece com semelhante política (POLITZER, 1978, p. 74-76).

Diante desse quadro, a pergunta que devemos nos fazer é se esse tipo de estratégia pseudo-emancipatória não pode simplesmente reproduzir, em outros níveis, as injustiças já cristalizadas no aparato sócio-estatal e no imaginário social?

Deste ponto de vista, para serem realmente efetivas, as políticas públicas efetivamente emancipatórias devem beneficiar o conjunto da população que, em termos de Bauman (1998), foram relegados, graças, principalmente, à lógica da eficiência e do lucro da sociedade do capital, à condição de cidadãos-consumidores frustrados. Isto é, trata-se de não perder de vista que, a despeito de todas as formas de opressão e desigualdade que, em graus variados, negros, índios e outras frações étnicas e/ou sociais historicamente sofreram e continuam sofrendo, a questão central ultrapassa os particularismos e enraíza-se na arena ideológica da luta de classes. Ou, ainda, fazendo coro com Vila (2004), a utopia que move nossa ação crítico-reflexiva deve remeter-nos ao dia em que movimentos fracionados de segmentos populacionais lutando, exclusiva e necessariamente, por seus interesses particulares, enredados por uma espécie de narcisismo político, tornem-se obsoletos.

É, pois, em termos da cristalização de um imaginário deslocado no qual o fantasma (sempre atualizado) da pureza racial encontra-se subsumido, que me preocupam enunciados (e formas de luta emancipatória) como o 100% negro. O deslocamento anunciado por esse tipo de posicionamento discursivo tende a confundir “o direito à diferença, eixo central da democracia” com uma “associação espúria entre raça e cultura” (ZARUR, 2006, p. 7). No que respeita à questão da cor dos brasileiros, Mattos (2006) alerta-nos para uma histórica ética do silêncio que recai sobre esse assunto. Trata-se de uma questão que não pode ser negligenciada, especialmente frente à ostensiva ideologia branqueadora que domina o imaginário social brasileiro. A autora defende uma estratégia emancipatória baseada na discussão acerca da “raça/cor de cada um” como “o caminho certo para construir uma sociedade melhor para todos, porque mais justa e menos marcada por tensões raciais”. Seus argumentos, que remetem a um “quadro de desigualdade racial ” e de políticas afirmativas consubstanciadas em “estatuto de igualdade racial ” (MATTOS, 2006, p. 7, grifos do autor), em termos discursivos, filiam-se a uma formação histórico-ideológica cuja centralidade é ocupada pelas matrizes de raça e cor.

Ora, em primeiro lugar, não é politicamente óbvia, nem tampouco sustentável, a existência de uma relação substantiva entre a afirmação étnica ou racial de cada cidadão e a construção de uma sociedade justa; em segundo, a centralidade da matriz ideológica raça/cor implica em uma unidimensionalização do ser social, reduzido a sua filogênese, condição da qual estão excluídos outros importantes componentes formadores do sujeito; em terceiro, reduzir toda a complexidade da questão social à afirmação (individual ou coletiva) da raça/cor, além de se constituir em uma conscientização que está longe de ser banal na realidade brasileira, significa, em termos políticos, no mínimo, desviar-se da discussão acerca das graves distorções econômico-sociais que caracterizam a sociedade brasileira. Ao contrário do que supõe Mattos, essas distorções tendem a agravar-se, justamente por enfatizar a igualdade racial em detrimento da igualdade social. Além disso, investir fortemente no componente racial como determinante para a construção social, pode (re)produzir, como alerta Ahmad (1999), novas formas de outridade e de dominação.

Esta advertência de Ahmad remete-me à atual arena ideológica na qual estão em disputa valores semânticos atribuídos ao termo <negro>, na qual destaca-se a inversão semântico-política de valores proposta por Martinho da Vila, segunda a qual os termos negro e branco distinguem atitudes políticas e não a cor da pele. A partir da inversão propugnada por Martinho da Vila, teríamos, então, no que se refere aos argumentos semântico-políticos dos termos <branco> e <negro>, os seguintes esquemas de valor sociopoliticamente atribuídos: a) esquema preconceitual vigente, no qual o termo <branco> aparece histórica e culturalmente marcado como: gente, belo, superior, positivo, enquanto o termo <negro> vem opositivamente marcado como: não-gente, feio, inferior, negativo; b) esquema preconceitual reformulado, no qual ao termo <negro> deveria ser atribuído como valores, positivo, avançado, engajado, libertador, ao passo que <branco> passaria a ser marcado como negativo, retrógrado, alienado, aprisionador, independentemente da herança onto ou filogenética do indivíduo.

No que concerne, entretanto, à contribuição visando a formação de um novo imaginário social, o esquema de valores proposto por Martinho da Vila não se descola da rede de sentidos instituída, antes a reforça, pois mantém a dicotomia sociopolítica baseada na oposição branco/negro que, mesmo recorrendo ao artifício de inverter os seus valores semântico-políticos, inequivocamente conserva, no imaginário social e, portanto, na formação subjetiva e na discursividade, o traço fundador da exclusão. Em termos discursivos, um enunciado do tipo 100% negro, por filiar-se a uma rede interdiscursiva cujo lugar de predominância e, portanto, de significação, encontra- se ocupado pelo eugenismo (seja este interpretado pela predominância do binômio cor/sangue, como em Frei David dos Santos; seja pelo binômio cor/posição política, como em Martinho da Vila), explicita uma formação histórico-ideológica centrada na diferença como suporte de desigualdades.

De todo modo, qualquer política governamental baseada em critérios étnicos ou claramente raciais “tende a enfatizar a separação de culturas dentro de espaços nacionais e a privilegiar a etnicidade na construção” desse espaço simbólico-político, gerando um relativismo cultural em que cada grupo cultural passa a atuar, na condição de etnia separada em seus interesses, muitas vezes conflitantes com os de outras etnias, na constituição da identidade nacional. Esse tipo de relativismo, por levar à obliteração das relações historicamente estabelecidas, tende a produzir novas formas de subalternização, pelas quais, cedo ou tarde, “todos se tornam o ‘outro’ de alguém e, pela mesma razão, membros de uma minoria” (AHMAD, 1999, p. 119-118). Se, por fim, considerarmos, com Marx e Engels (1975), que fricções e disputas em torno de direitos e emancipações de grupos étnico-sociais, bem como as respostas a elas pelo estado, também refletem as lutas efetivas das classes e frações de classe entre si, temos motivos suficientes para atribuir às políticas proativas, tais quais vêm sendo propostas, um valor negativo no que concerne às lutas, no campo político-ideológico, em prol da emancipação e da reestruturação político-socioeconômica da sociedade brasileira. ,

Devemos, igualmente, considerar que, à semelhança do que Castoriadis (1987) comenta a respeito do deslimite instituinte da trangressão, a fragmentação neotribalizada do tecido social tende necessariamente a adensar-se, sob pena de não mais se realizar enquanto tal, em uma espécie de série inacabável de perversão/ mutilação narcísica, visto que o discurso que sustenta a autonomização da diferença mostra-se enredado na armadilha ideológica da dominação, ou melhor, da formação histórico-ideológica dominante, a qual é caricaturalmente reproduzida e reapropriada. Em vista do exposto acima, não é difícil constatar que a questão do negro no Brasil não pode ficar reduzida à dimensão subjetivista e demagógico-chauvinista da reafirmação étnica ou à prova da cor da pele. Trata-se, antes, de um componente incontornável da luta de classes e de um projeto político-social de caráter nacional. Neste sentido é admissível, a depender conjunturalmente das frentes de lutas, que o ideário 100% negro sirva como trincheira, mas não como fundamento, e menos ainda como o em-si dos processos político-sociais complexos com vistas à autonomia. Seja histórica, ideológica e discursivamente, seja, enfim, por suas características fetichizantes, filiadas a uma formação histórico-ideológica centrada em uma heteronomia instituinte, não creio ser politicamente viável sustentar a auto-emancipação da população negra em um ideário etnocentrado tal qual o 100% negro.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: lcborges@mast.br

Recebido em 29/08/2006
Aceito em 25/09/2006

 

 

* Agradeço à socióloga Luciana Maria Gondim Harrington pela leitura crítica deste texto e pela revisão e notável melhoria do abstract
** Pesquisador associado do Museu de Astronomia e Ciências Afins/MAST-MCT e professor do Programa de Pós- Graduação em Museologia e Patrimônio (MAST/UNIRIO)
1 Não é fácil, especialmente em sociedades colonizadas e miscigenadas, falar em dominação baseada somente em critérios étnicos. Contudo, a dicotomia negro/branco que domina o debate interétnico no Brasil (com o eventual apagamento dos índios, por exemplo) ressalta mais a herança cultural-ideológica do que propriamente a cor da pele, ainda que esta seja relevante
2 Como exemplo de revanchismo de gênero, podemos citar: “se eles podem ser galinhas, eu também posso”, declaração de uma estudante, 18 anos, ao jornal Folha de S. Paulo, edição de 24-10-2004, caderno Cotidiano (C5), em matéria referente ao comportamento sexual da juventude.
3 Rede de cursos pré-vestibulares para negros e pobres, no Rio de Janeiro
4 O conceito de ser negro, em Frei David (herança genética = pureza negra) e em Martinho da Vila (posição política = negritude ideológica) ilustra bem a diversidade ideológica do movimento negro
5 Não esqueçamos que, no período colonial, um dos objetivos da política de conversão era, precisamente, ordenar (unificar) a profusão de povos, línguas e costumes que havia no Brasil
6 O Estatuto da Igualdade racial prevê, em seus artigos 12, 17 e 18, que raça/cor e gênero devem constar dos prontuários do Sistema Único de Saúde, nos documentos da Seguridade Social e nas certidões de nascimento, o mesmo devendo ocorrer nos registros de funcionários públicos e privados.

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