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Imaginário

Print version ISSN 1413-666X

Imaginario vol.12 no.13 São Paulo Dec. 2006

 

 

 

O imaginário nos conflitos sociais: sagrado versus profano*

 

The imaginary in social conflicts: sacred versus profane

 

El imaginario en los conflictos sociales: sagrado versus profano

 

 

Claricia Otto**

Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva demonstrar que para o conhecimento de determinadas realidades, neste específico, os municípios de Rio dos Cedros, Ascurra e Rodeio no Estado de Santa Catarina, é necessário considerar os sujeitos e os significados atribuídos aos discursos da hierarquia católica local. Igualmente, é preciso levar em conta suas representações e simbologias, ou ainda, suas estratégias de combate ao “outro”, tido como adversário. Além disso, busca compreender a construção dos pares antitéticos “nós” versus “outros”, em torno das representações e dos discursos sobre o atentado a bomba contra os padres, em Rio dos Cedros no ano de 1911. Como método de análise utilizam-se fontes orais - entrevistas gravadas e transcritas -, pesquisa em jornais da época e o referencial teórico acerca do imaginário na perspectiva de Lucian Boia, Bronislaw Baczko e Nilda Teves. Por fim, conclui-se, que vinculado àqueles imaginários esteve subjacente um processo de elaboração e de sacralização de saberes, os quais visaram o reconhecimento do poder de autoridade.

Palavras-chave: Imaginário, Atentado a bomba, Hierarquia católica, Santa Catarina.


ABSTRACT

This article aims at demonstrating that to know certain realities, specifically this one, the municipal districts of Rio dos Cedros, Ascurra and Rodeio in the State of Santa Catarina, it is necessary to take into consideration the subjects and the meanings attributed to the speeches of the local Catholic hierarchy. Likewise, it is necessary to take into account their representations and symbologies or even their strategies of combat against the “other one”, taken as an opponent. Furthermore, this article looks up the comprehension regarding the construction of the antithetical pair “us” versus “other” around the representations and the speeches about the bomb attack against the priests in Rio dos Cedros in the year of 1911. The analysis method uses oral sources - recorded and transcribed interviews -, researches in newspapers from that epoch and the theoretical references concerning the imaginary, according to Lucian Boia’s, Bronislaw Baczko’s and Nilda Teves’ points of view. Finally, it was concluded that linked to that imaginary, there has been an underlying process of elaboration and consecration of knowledge, which have sought the recognition of the authority power.

Keywords: Imaginary, Bomb attack, Catholic hierarchy, Santa Catarina.


RESUMEN

Este artículo tiene el objetivo de demostrar que para conocer determinadas realidades, y especificamente, los municipios de Río de los Cedros, Ascurra e Rodeio, en el Estado de Santa Catarina, es necesario considerar los sujetos y los significados adjudicados a los discursos de jerarquía católica local. Igualmente, es necesario considerar sus representaciones y simbologías, o inclusive, sus estrategias de combate al “otro”, visto como adversario. Además, busca comprender la construcción de pares antitéticos “nosotros” versus “otros”, alrededor de representaciones y discursos sobre el atentado bomba contra los padres, en Río de los Cedros en 1911. Como método de análisis se utilizam fuentes orales - entrevistas gravadas y transcritas -, pesquisa en periódicos de la época y el referencial teórico sobre imaginario en la perspectiva de Lucian Boia, Bronislaw Baczko y Nilda Teves. Finalmente, se concluye, que vinculado a los imaginarios anteriormente mencionados estuvo subyacente un proceso de elaboración y sacralización de saberes, los mismos que buscaban el reconocimiento del poder de la autoridad.

Palabras clave: Imaginario, Atentado bomba, Jerarquía católica, Santa Catarina.


 

 

A vinda de frades da Ordem Franciscana da Província Santa Cruz da Saxônia, Alemanha, para Santa Catarina, em 1891, está interconectada à política católica ultramontana, a qual foi assumida pelo episcopado brasileiro em meados do século XIX. Esse movimento de reforma da Igreja Católica objetivava rever, principalmente, a atuação do clero nacional, que até a década de 1870 não se distinguia, com raras exceções, por qualquer demonstração de ortodoxia. A lealdade das ordens religiosas européias às diretrizes da Sé Romana, foi decisiva para a produção de sujeitos católicos obedientes às autoridades e voltados à prática sacramental.

Desse modo, os franciscanos alemães em Rio dos Cedros, Ascurra e Rodeio localidades de imigrantes italianos, defrontaram-se com o ofício de firmar uma religião que comportasse os valores então professados pelo catolicismo da romanização e que garantisse a salvação das almas. Entretanto, desejosos de manter a sua autoridade, no encontro com o “Outro”, com o diferente, encontraram dificuldades, ou seja, as tentativas para estabelecer uma ordem significativa se deram em meio a resistências de uma fração dos imigrantes. Os cronistas registram detalhadamente os conflitos havidos entre os franciscanos e um grupo de italianísssimos. Segundo esses registros, tomados aqui como representações dos franciscanos, os italianíssimos eram os italianos nacionalistas, simpatizantes do movimento de unificação da Itália. Associado a essas representações cria-se um imaginário em torno do “outro”, o qual precisa ser combatido por representar o perigo anarquista, sinônimo de desordem, desobediência, o caos, a anomia.1 Nesse sentido, conforme Boia (1998), a conexão entre o Nós e os Outros se exprime por meio de um complexo jogo de alteridades, da diferença mínima à alteridade radical, a ponto de conduzir o “outro” a uma zona próxima da animalidade ou do divino.

Ao analisar uma certa tradição intelectual do século XIX, Baczko afirma tratar-se de “uma tendência cientista e ‘realista’ que pretendia separar na trama histórica, nas acções e comportamentos dos agentes sociais, o ‘verdadeiro’ e o ‘real’ daquilo que era ‘ilusório’ e ‘quimérico’” (BACZKO, 1984, p. 297). Ao se interrogar acerca de mecanismos e estruturas criadas no convívio social, e ao verificar a intervenção de representações e de símbolos nas práticas dos sujeitos históricos, levam-se em consideração as múltiplas funções do imaginário. “O imaginário reúne os compartimentos que a visão racionalista tendeu a dividir”. (BOIA, 1998, p. 37). Tanto o imaginário como as representações são referenciais que possibilitam uma variedade de interpretações. Assim, o “sentido do que aparece não está no sujeito que conhece nem na coisa conhecida, mas nos efeitos de sentidos que vão se constituindo no processo de conhecimento” (TEVES, 1992, p. 13 - 15).

O cotidiano revela-se como um espaço privilegiado de lutas, e a linguagem utilizada pelos sujeitos é de fundamental importância: “quando se fala, imagina-se, pressupõe-se que o Outro está nos entendendo, mais ainda, esperam-se dele, certas respostas. A nossa expectativa em relação aos Outros se funda nas idéias, nas crenças que temos em relação a Nós” (idem, p. 18).

O desejo do clero e também dos italianos e cônsules, por meio das numerosas cartas enviadas e/ou recebidas, era o de serem entendidos. Mais do que isso, eles ansiavam por respostas aos seus questionamentos. O anseio por respostas pode ser traduzido pela inquietação e, ao mesmo tempo, receio diante do outro, como indica a carta do padre Giacomo Vicenzi: “Teria interesse em saber o que o Senhor pensa a respeito do Largura e das diferentes sociedades italianas”.2

Assim, os discursos passam por esta interpretação do imaginário “seja pela deformação de um protótipo real, seja pela confabulação pura”. (BOIA, 1998: 33). Esses frades haviam adquirido uma autodesignação assentada em elementos de valores simbólicos e estratégicos; respaldo alimentado pela memória, construída e articulada com as crenças no aparato institucional, por meio de um conjunto de símbolos e significações sempre retomadas nos discursos, quer orais quer escritos e de suas representações sobre os imigrantes renitentes. Ao abordar as dificuldades de integração do estrangeiro em qualquer sociedade, Teves argumenta que possivelmente essa dificuldade se deva ao fato de que,

Ele é o Outro do qual não sabemos bem como irá se comportar em relação a Nós. Estabelecemos com isso uma uma “tela invisível”, interdictus, que inviabiliza as aproximações tão necessárias à comunicação. Crenças, fantasias, mitos são retomados fortalecendo esses interdictus (TEVES, 1992, p. 18).

Há ainda a propagação de uma imagem desvalorizada do “outro”, tido como adversário. Se por um lado se procura invalidar a legitimidade do outro, concomitantemente se procura “exaltar através de representações engrandecedoras o poder cuja causa defendiam e para a qual pretendiam obter o maior número de adesões” (BACZKO, 1984, p. 300).

Assim, além dos frades mencionados, outras pessoas passam a partilhar do mesmo imaginário, no que se refere à imagem construída sobre o outro. Acerca de Ermembergo Pellizzetti e do episódio de uma bomba que foi colocada debaixo da casa paroquial em Rio dos Cedros, em 1911, Victor Lucas afirma: “Pellizzetti era revolucionário, ele era contra o domínio dos padres. A bomba foi colocada pelo Pellizzetti”.3

Também para os redatores do jornal Blumenauer Zeitung, esse acontecimento passou a ser notícia e reforçou o imaginário acerca do iminente perigo anarquista. Esse jornal noticiou e comentou o hediondo crime contra os freis Modestino e Policarpo, como se vê nos três fragmentos dessas matérias jornalísticas. O primeiro deles diz que em Rio dos Cedros foi cometido

um crime que faz lembrar os perfídios atentados da Mão Negra. A ação criminosa foi dirigida contra um padre católico, o Frei Modestino Oechtering, membro da Ordem Franciscana, que exercia a função de pároco. [...] Pelas 11 horas da noite, quando todos os moradores da casa haviam se deitado, explodiu a bomba, que fora detonada por meio de um pavio. O efeito foi horrível. O assoalho do quarto foi arrancado e a cama, na qual o padre dormia, foi arremessada até o teto. [...] Também no quarto ao lado dormia Frei Policarpo Schuhen, superior do Convento de Rodeio, que havia vindo ao Cedro pra auxiliar o pároco. [...] Esperamos que sobre o ato criminoso e seus motivos as investigações policiais venham trazer completos esclarecimentos. 4

O segundo artigo não se limita somente a informar, mas já apresenta os possíveis suspeitos e associa-os ao fanatismo anticlerical.

Como nos foi afirmado de não existirem motivos de ordem pessoais contra o Frei Modestino, só nos resta a suposição que haja um fanatismo anticlerical metido em tudo isso. Entre os italianos de Rio dos Cedros existem vários partidos que se hostilizam no campo eclesiástico. Alguns preferem um frade provindo da Ordem Conventual, outros querem um sacerdote secular e ainda outros combatem a classe clerical em geral. Esta agitação poderia talvez ter causado num cérebro atordoado o surgimento do plano de assassinato.5

O terceiro artigo do Blumenauer Zeitung acerca do atentado baseiase num artigo do L’Amico, que havia publicado um extenso relato sobre a tentativa de assassinato ocorrido em Rio dos Cedros.

A bomba de dinamite colocada debaixo da casa paroquial explodiu no dia 29 de abril, na noite de sábado para domingo. Para aquele domingo estava marcada a Primeira Comunhão de cerca de 180 crianças. O jornal L’Amico supõe que os criminosos pretendiam, com o assassinato de ambos os padres, que dormiam na casa paroquial, obstar a realização do ato religioso. Com isso evidencia-se incontestavelmente a tendência anticlerical do ato criminoso. Conforme supõe o citado jornal, o ato deveria ser, ao mesmo tempo, uma espécie de prelúdio à comemoração do dia 1º de Maio, dia de festa universal, consagrada por socialistas e anarquistas. A agitação anticlerical entre os italianos foi fomentada, ainda, com a propagação do pasquim anarquista L’Asino cujo redator, outrora, instigara os anticlericais de Blumenau a expulsarem os padres franciscanos intrusos. L’Amico cita até nominalmente duas pessoas, acusadas pela boca do povo como autores do atentado. Dizem que ambos, na noite anterior, compraram dinamite na casa de negócio do senhor Henrique Klug e um deles, ao que consta, dissera: “os padres prepararam tudo para a cerimônia da primeira comunhão, porém não chegarão a realizá-la”.6

Diversas versões e opiniões sobre esse atentado povoaram e povoam o imaginário da população nessas localidades. Frei Modestino, uma das vítimas do atentado descreve longamente e em detalhes os antecedentes e o atentado, bem como emite opiniões sobre esse episódio. Para Modestino tratava-se de inimigos, os quais queriam liquidar com ele, com frei Policarpo ou com ambos. Interroga sobre a possibilidade de a bomba ter sido lançada somente para frei Policarpo, hipótese descartada pelo fato de ele (Modestino) defender as mesmas doutrinas de frei Policarpo.

Descreve que durante a quaresma havia ficado sozinho em Rio dos Cedros, realizado todas as cerimônias da semana santa com o máximo concurso dos fiéis, tanto de Rio dos Cedros como das capelas de Pomeranos e do Caminho dos Tiroleses; de eventual conspiração não havia suspeita alguma.

Diz que em Rio dos Cedros viviam pessoas que há alguns anos haviam sido totalmente descristianizadas por Giovanni Rossi. Cita Carlos Dorigatti, Andrea Largura e Lensi, entre outros residentes no Caminho dos Tiroleses. Segundo Modestino, o mais imoral de todos era Carlos Dorigatti, o qual trouxera da Itália duas parteiras para trabalhar em Rio dos Cedros. A bomba, segundo frei Modestino, teria sido trazida da Europa pelo Dorigati.

Os detalhes dessa descrição são numerosos, mas deduz-se que, na opinião de frei Modestino, o referido senhor e as moças, juntamente com outros companheiros, planejavam abrir um bordel, mas diante das investidas contrárias levadas a cabo por ele e pelo frei Policarpo, esses, resolveram matá-los com a ajuda de um italiano anarquista chamado Angelo Dalangelo que, no Rio Grande do Sul, tentara assassinar os freis capuchinhos. Descreve que Angelo Dalangelo na véspera do atentado havia chegado em Rio dos Cedros. Ao ver os preparativos para a Primeira Comunhão ele havia perguntado: “o que é isto?” Ao receber a resposta de que haveria a cerimônia de Primeira Comunhão, retrucou: “Esta os padres não farão”. Frei Modestino, no entanto, não se limitou às suspeitas dos indivíduos mencionados. Diz que o professor Virgílio Campestrini teria dito: “Se a polícia tivesse vindo, eu teria me escondido no mato”. Para Modestino, Virgílio Campestrini tinha conhecimento do atentado, e seu irmão Silvio, chefe da cooperativa em Rio dos Cedros, provavelmente era cúmplice, estava entre os envolvidos. Giovanni Longo, proprietário do hotel em Rio dos Cedros, também sabia do atentado, pois um de seus filhos tinha visto quando a bomba fora colocada debaixo da casa paroquial. Os autores do atentado ameaçaram matá-lo caso contasse aos padres. Antes de sua morte, Longo havia revelado tal segredo a um dos frades. Modestino salienta que o fundamento mais profundo e verdadeiro disso tudo era ódio contra a religião, contra os padres, pelo fato de eles denunciarem a imoralidade dos citados senhores.

Lembra ainda que, há muitos anos, frei Lucínio Korte, então pároco de Rodeio e de Rio dos Cedros, teria vencido moralmente o Dr. Giovanni Rossi. Todavia, em muitas pessoas de Rodeio e de Ascurra ainda reinavam as idéias de Rossi e manifestavam-se como livres- pensadores e anticlericais.

Relata que Angelo Dalangelo, algum tempo depois da ocorrência do atentado, fora preso em Blumenau acusado de roubo no Hotel Holetz. Após ter cumprido uma pena de nove meses em Florianópolis, Modestino diz que o encontrou em Nova Trento. Dalangelo ao vê-lo teria dito: “Se padre Modestino não morreu em Rio dos Cedros, então ele morrerá aqui, pois ainda tenho para ele uma bala”. Segundo Modestino, tal ameaça provocou um grande alvoroço entre os italianos de Nova Trento. Padre Cybeo, ao saber das intenções de Dalangelo, mandou chamar a polícia e incumbiu-a de não permitir que Dalangelo partisse de Nova Trento antes de frei Modestino.7

Ainda, no relatório ao Núncio Aversa, os franciscanos comentam que as divergências na questão escolar para Pellizzetti e seus companheiros em Ascurra e em Rio dos Cedros eram motivo para que se lutasse contra os padres, mais abertamente também no que diz respeito a assuntos eclesiásticos. Consta no relatório que os “anarquistas haviam pedido ajuda para o jornaleco L’Asino”, enviado de Florianópolis a diversos colonos de Rodeio. Sobre o atentado a bomba diz que:

considerando tais incitamentos e agitações, não causa grande surpresa o horrendo delito cometido contra os religiosos do Cedro. […] este crime nunca visto na região, causou no povo uma profunda impressão; porém as investigações da polícia para encontrar os autores do delito permaneceram - como já se esperava - sem resultado algum, ainda que o povo falasse em público alguns nomes. O mais suspeito, um tal falso Dr. Delfonso, pouco tempo depois foi condenado a um ou dois anos de prisão por furto grave.8

Os entrevistados são portadores de imagens acerca desse atentado, imagens essas que remetem um passado fabulizado ou a uma espécie de mito, compreendido como “experiência cotidiana, o imaginário vivido, o modo das relações dos homens consigo mesmos, com o mundo e com o outro [...] a linguagem mítica constituise num elemento essencial do controle social e sua transformação na estratégia dos grupos rivais” (ANSART, 1978: 23 e 29).

Com referência a esse passado fabulizado e/ou vivido, destaca-se ainda outro viés, conseqüência do atentado e partilhado pela maior parte dos entrevistados: “Rio dos Cedros não vai para frente porque os padres deram uma maldição até a sétima geração”.9 De Boni e Costa salientam que o padre concentrava “a auréola dos poderes sobrenaturais da religião; por isso, sua palavra, mesmo em assuntos profanos, tornava-se geralmente decisiva, e suas bênçãos e maldições ainda hoje são tidas como bênçãos e maldições proferidas por Deus” (DE BONI; COSTA, 1984, p. 116). O entrevistado Luciano Moser, porém, disse que muito tempo depois da bomba, um padre, em visita à capela Nossa Senhora das Dores, falou que os padres não lançaram nenhuma maldição à localidade, que isso é invenção de algumas pessoas. Esse entrevistado, no entanto, parecendo não estar convicto do discurso desse padre, concluiu: “mas o pessoal, ainda hoje, diz que eles amaldiçoaram sim”.10

É em torno das idéias do passado que se vão formando fantasias, crenças, que o “Outro” e o “Nós” são criados, “são determinações históricas que definem espaços políticos mediante um sistema simbólico, mantendo os grupos coesos ou em intermitentes conflitos” (TEVES, 1992, p. 19 -20). Desse modo, o mito “não é uma história falsa ou inventada; é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por uma cultura” (PORTELLI, 1996, p. 21).

Esse elemento pode ser verificado na carta de um colono pomerano, publicada no jornal de Trento, Voce Cattolica, em 1886.

até agora, a maior parte dos colonos de nossas valadas estão apegados aos princípios antigos de nossa ainda amada diocese de Trento, mas aqui também não faltam os apóstolos de satanaz e, infelizmente, o indiferentismo e o liberalismo religioso crescem a passo de gigante (BERRI, 1988, p. 164-165).

Conforme o relatório dos devotíssimos servidores, descrevendo as condições da Paróquia de Rodeio no tempo passado e no presente, encontra-se a seguinte informação:

a primeira discórdia foi semeada por um tal de Dr. Giovanni Rossi, de Pisa, mandado em 1895 pelo governo brasileiro como diretor de uma Estação Agronômica, em Cedros. Ele era um perfeito ateu e socialista ativo. Fingindo uma tal amizade com os religiosos, ele enquanto isso, espalhava ocultamente entre o povo simples as suas doutrinas perversas. Ainda que os fiéis avisados em tempo pelo sacerdote, em geral não dessem grande importância àqueles ensinamentos perigosos, foram infectados pelo mal e se fizeram propagadores de tais idéias em outros lugares, em particular na comunidade de Ascurra, já bastante inclinada a tal discórdia.11

Nesse mesmo relatório, o líder Ermmembergo Pellizzetti recebeu os seguintes adjetivos:

o Dr. Rossi chamou da Itália ainda um outro companheiro, um tal Pellizzetti, talvez mais perigoso, porque era mais familiar com os colonos. Depois da partida do Rossi, se estabeleceu em Ascurra onde mora ainda, em concubinato apenas, o primeiro que lá deu esse mau exemplo. Ele tinha pego um seguidor prosélito, o agrimensor Landriani, conhecido por todos também por causa de seus discursos imorais. Que mal causaram estas duas pessoas entre a população, sobretudo entre a juventude, não se pode calcular. Propagaram entre os colonos jornais péssimos, como L’Asino, L’Avanti, Il Leme e similares e enquanto isso se faziam representantes do consulado italiano, inspetores das escolas.12

Também os relatos de Jamundá demonstram a existência de um imaginário sobre o perigo que representava a utilização do termo anarquista. Esse entrevistado residiu durante cerca de 20 anos em Indaial e, em suas memórias, relembra o dia em que chegou a essa localidade: “o fiscal da Prefeitura, Nicolau Bona, veio me avisar dizendo: ‘É... lá em Rio dos Cedros existiu um homem perigoso’... porém nem me disse que era anarquista. Eles punham um mistério e nem pronunciavam essa palavra, pois tinham medo”.13

Os entrevistados apresentaram-se receosos, amedrontados, envoltos talvez, em alguns momentos, por uma amnésia proposital: “eu sei disso porque meus pais falavam, mas eu não sei se isso foi verdade”.14 Todos detêm, no entanto, o conhecimento acerca dos conflitos do início do século entre os padres franciscanos e os imigrantes, e ressaltam a explosão da bomba como o desfecho de uma série de conflitos havidos entre eles. Como autores do atentado, cada qual aponta diferentes nomes, a começar pelo próprio frei Modestino. O entrevistado padre João Batista Delsale narrou alguns depoimentos que ouviu de antigos moradores. Um deles lhe falou que Giovanni Rossi, o diretor da Estação Agronômica, era o autor da explosão da bomba: no dia do atentado, durante a tarde, Rossi passou perto da casa paroquial e falou para a funcionária: “hoje à noite os padres irão fazer a barba sem navalha”.15 Convém ressaltar, no entanto, que em 1911, ano do atentado, Giovanni Rossi se encontrava na Itália, e de modo algum passou perto da casa paroquial em Rio dos Cedros.

Moser teceu comentários a respeito da morte dos dois indivíduos, responsáveis pelo atentado: “os dois caras que colocaram a bomba tiveram uma morte horrível”. Mas então eles morreram, e soubese quem foi? perguntou a entrevistadora, ao que ele respondeu: “Não, não, o nome não se sabe, mas eles morreram. Um deles morreu num chiqueiro de porco e o outro arrastado. É, foi isso!”16

Desse modo prosseguem os infindáveis relatos, suscitando mais perguntas do que respostas. Verifica-se que, no imaginário, não existem somente suspeitos mandantes ou assassinos, mas também o castigo pelo mal praticado. O poder do clero, na opinião de Jamundá, prevaleceu na região, pois a maioria dos imigrantes, ao sair da Itália, era de católicos. Alguns deles vinham com a promessa de construir uma igreja, empresa que era levada a efeito, independentemente das dificuldades que aqui encontrassem.

Veja a força do poder católico. [...] O único respaldo dessas criaturas que embarcaram para cá foi a Igreja. De que modo teria Dr. Rossi, sendo anarquista e por anarquista, materialista, e por materialista, ateu, apoio de uma comunidade eminentemente católica? Católica capaz de comprar até cadeira no céu.17

Nessa linha de pensamento também se expressa Victor Lucas: “a Igreja tinha um poder fabuloso, eles [os padres] dominavam tudo, nada se fazia se não fosse lá, beijar os pés do padre”.18 Nesse sentido, Orlando Berri, ao referir-se à atuação do clero no Médio Vale do Itajaí-Açu, revela que eles dominavam, tinham a hegemonia. O que um padre falava na igreja era levado a sério. Grande parte dos colonos obedecia ao padre cegamente; eram católicos inocentes, sinceros, pois, se o padre falou, era como se Jesus Cristo tivesse falado.19 Esses entrevistados indicam que, obviamente, nem todos os imigrantes católicos não teriam afinidade com os propagandistas em favor da influência italiana, alguns deles anticlericais, como, por exemplo, Giovanni Rossi. Esses imigrantes, envoltos num imaginário sobre o perigo dos anticlericais permaneciam fiéis à sua fé, à religião.

Em um universo de significações, criar um mundo, dar um nome, definir identidades, faz parte da relação com a alteridade em que os significados são produzidos e defendidos pela hierarquia católica. Há que se considerar que tanto a hierarquia católica como também uma parcela dos imigrantes, agiram conforme a apreensão da realidade segundo as representações das relações estabelecidas com os outros sujeitos e com o mundo, conforme seu sentir e seu olhar, sendo que este é socialmente desenvolvido. Esses sujeitos devem ser vistos para além da apreensão meramente racional, que coloca em oposição o que é real e o que é imaginário; o que realmente existe e o que é fantasia, e que impõe uma única alternativa: de que a realidade esgota-se mediante o primado da razão. Os sujeitos dessa trama histórica são “concretos, cognocentes sim, mas também desejosos, imaginativos, sonhadores, capazes de fabular, de simbolizar o real existente e o real possível” (TEVES, 1992, p. 6-9).

Os frades, como porta-vozes da Igreja, tentavam imprimir nos imigrantes um dever e, assim, constituir identidades. Utilizavam-se de vários meios para asseverar a legitimidade da instituição a que pertenciam. Esse investimento do clero só teria sentido se fosse assumido por todos os imigrantes. Insere-se, nesse aspecto, outro elemento do imaginário em sua transformação histórica, a unidade, que procura submeter

o mundo a um princípio unificador. O homem aspira viver em um universo homogêneo e inteligível. As religiões, o pensamento mágico, as filosofias, as ciências, as interpretações da história, as ideologias, se empenham, cada uma de sua maneira, em conferir um máximo de coerência à diversidade dos fenômenos. [...] A unidade se manifesta em todos os níveis, tanto no sentido cósmico (leis que regem o Universo, integração do homem na Criação, correspondência entre o microcosmos e o macrocosmos), quanto na escala das comunidades humanas das quais toda uma série de mitos e ritos devem assegurar a coerência (BOIA, 1998, p. 34).

Esse aspecto é de fundamental importância, pois intermedeia a constituição do imaginário social, o qual depende da incorporação simbólica realizada pela sociedade e, como tal, aceita e defendida por ela. Assim, as representações associadas ao ser anarquista foram e são símbolos de forte conotação social, presentes na memória da sociedade rio-cedrense, ascurrense e rodeiense, que ainda convive com a construção do “outro” reputado como estranho. O discurso o construiu ser diferente, associando-o ao terror, ao caos, à desordem, ao ateísmo; enfim, como instrui Berger (1985), à anomia. Uma vez apontada pelo discurso da Igreja, fugir à anomia tornava-se uma questão vital e, para tal empreendimento, fez-se necessário combater o “outro”, constituído perigoso, não credenciálo aos estatutos das verdades, lançando mão de estratégias para manter o imaginário acerbamente construído.

 

Bibliografia

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BACZKO, B. Imaginação social. In: Enciclopédia einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.        [ Links ]

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BERRI, A. A igreja na colonização italiana no Médio Vale do Itajaí. Blumenau: Casa Dr. Blumenau, 1988. p. 164-165.        [ Links ]

BOIA, L. Pour une histoire de L’imaginaire. Paris: Les Belles Lettres, 1998.

DE BONI, L. A.; COSTA, R. Os italianos no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; Correio Riograndense, 1984. p. 116.         [ Links ]

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TEVES, N. O imaginário na configuração da realidade social. In: _____. (Coord.). Imaginário social e educação. Rio de Janeiro: Gryphus; Faculdade de Educação da UFRJ, 1992.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail:clariciaotto@yahoo.com.br

Recebido em 18/07/2006
Aceito em 05/09/2006

 

 

* Este artigo é parte das discussões do capítulo três da tese de doutorado em História, defendida na Universidade Federal de Santa Catarina em fevereiro de 2005, sob a orientação do Prof. Dr. Artur Cesar Isaia e publicada em 2006 sob o título: Catolicidades e italianidades: tramas e poder em Santa Catarina (1875 - 1930), pela editora Insular, Florianópolis
** Professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)
1
O contrário do nomos é a anomia - perda de valores, um mundo sem referenciais
2 Carta do padre Giacomo Vicenzi ao Frei Lucínio Korte. Rio de Janeiro, 26/07/1904
3 Entrevista com Victor Lucas. Rio do Sul, 02/11/1999. Arquivo da Autora (A/A)
4 “Um atentado a dinamite”. In: Blumenauer Zeitung. Blumenau, 02/05/1911. Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS). Ressalta-se que ao contrário do que diz o artigo do jornal, em 1911 o pároco era frei Polycarpo, pois nesse ano Rio dos Cedros era capela sob a jurisdição da paróquia de Rodeio
5 Com referência ao “atentado a dinamite em Rio dos Cedros”. In: Blumenauer Zeitung. Blumenau, 05/05/1911. (AHJFS)
6 Sobre o “atentado a dinamite em Rio dos Cedros”. In: Blumenauer Zeitung. Blumenau, 09/05/1911 (AHJFS)
7 “Memórias de frei Modestino Oechtering”. In: Documento avulso. [195 - ?], p. 5 - 8. Arquivo da Província Imaculada Conceição - São Paulo (APICSP)
8 “Relatório dos franciscanos ao Núncio Apostólico Monsenhor Aversa”. Rodeio, 1913. (CFR). Aléssio Berri descreve uma versão parecida sobre esse acontecimento, com base na tradução dos registros em latim, feitos pelo frei Lucínio, In Nomine Domini. Destaca-se que nesse material, utilizado por Berri, há acréscimos como o de que frei Lucínio escreveu reclamando a respeito da indiferença do povo rio-cedrense relativamente ao atentado
9 Entrevistas com Albano Vicenzi, Lino Vicenzi e Luciano Moser. Rio dos Cedros (Pomeranos), 02/05/2002. (A/A)
10 Entrevista com Luciano Moser. Rio dos Cedros (Pomeranos), 02/05/2001 (A/A)
11 Relatório dos franciscanos ao Núncio Apostólico Monsenhor Aversa. Rodeio, 1913 (CFR)
12 Relatório dos franciscanos ao Núncio Apostólico Monsenhor Aversa. Rodeio, 1913 (CFR)
13 Entrevista com Theobaldo Costa Jamundá. Blumenau, 18/05/2000. (A/A). O nome do homem perigoso a quem Bona se referia era Giovanni Rossi
14 Entrevista com Albano Vicenzi. Rio dos Cedros (Pomeranos), 02/05/2001 (A/A)
15 Entrevista com o padre João Batista Delsale. Rio dos Cedros, 03/05/2001 (A/A)
16 Entrevista com Luciano Moser. Rio dos Cedros (Pomeranos), 02/05/2001 (A/A)
17 Entrevista com Theobaldo Costa Jamundá. Blumenau, 18/05/2000. (A/A). Com a expressão comprar até cadeira no céu, Jamundá refere-se às campanhas que os franciscanos faziam em Blumenau, a fim de angariar fundos para a ampliação e construção de igrejas. Diz que do púlpito o padre dizia: ‘quem ofertar um valor x, compra uma cadeira no céu; com o valor y, duas’, e assim sucessivamente
18 Entrevista com Victor Lucas. Rio do Sul, 02/11/1999 (A/A)
19 Entrevista com Orlando Berri. Florianópolis, 03/08/ 2000 (A/A)

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