SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número13El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritualCorpo e imagem: excesses in displacement índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

Deslocamentos: uma proposta de integração por meio da arte

 

Dislocations: a proposal of integration through art

 

Desplazamientos: una propuesta de integración por intermedio del arte

 

 

Marie Ange Bordas*

Università degli Studi di Perugia

Endereço para correspondência

 

 

Aqueles que partiram e não retornaram às suas terras nem vivos nem mortos seguem errantes pelo mundo. E nós, que voltamos ou que nunca saímos, abrigados em nossos sofás, quem somos? Testemunhas oculares ou espectadores distantes? Fraternos ou indiferentes? Quem são esses que vagam pelo mundo? Outros? O que é o outro senão o espelho de nós mesmos?

 

Pela televisão assistimos, às vezes comovidos, ao êxodo de massas sem rosto, que nos parece tão distante. Refugiados de alguma guerra no continente africano; deslocados, vítimas de uma catástrofe natural na Ásia e imigrantes mexicanos arriscando a vida para cruzar a fronteira se misturam nas telas, em um emaranhado de informações vagas e desconexas. A mídia dominante promove uma pasteurização que tende a mascarar a sociedade e/ou descontextualizá-la.

 

Abordada a partir do ponto de vista do país receptor, o estrangeiro - imigrante - geralmente torna-se notícia quando se transforma em um problema; quando, de algum modo, perturba uma ilusória “normalidade” estabelecida na sociedade receptora. Pouco se fala do fato de que antes de ser Imigrante, o mesmo estrangeiro é Emigrante, ou seja, alguém com história e cultura próprias que deixa sua sociedade por motivos reais e concretos. Nesse contexto, dificilmente a empatia difusa que sentimos consegue se sobrepor a essa homogeneização que mascara o indivíduo negandolhe um lugar de fato no mundo; negando-lhe, acima de tudo, sua dignidade.

 

A dignidade de cada pessoa baseia- se, entre outras tantas coisas, no fato de que só ela vê o mundo como ela o vê , só e la guarda em seu olhar e em sua voz uma história única . Por isso é preciso encontrar o outro, ouvir o outro, ser também outro.

 

Como atribuir um contorno humano a esse tema sem rosto? Como ir além da homogeneização? Como diminuir a distância entre nosso sofá e a estrada duramente percorrida? Meu percurso enquanto cidadã no mundo e artista nesses últimos anos tem sido regido por esses questionamentos. Apesar de jornalista de formação, foi na arte que encontrei a resposta para minha inquietude de não só “estar no mundo” mas também de participar ativamente dele. Encontrei na arte um contraponto ao mundo achatado da mídia dominante, outra forma de comunicação que leva em conta o indivíduo, que possibilita abordar questões políticas resguardando-a escala humana. Essa "arte do encontro", integradora e transformadora, é também uma poderosa ferramenta de sensibilização e conscientização, pois tem o poder de conectar as pessoas por meio de sua subjetividade, por meio daquilo que é mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais coletivo que temos: nossa humanidade. Ao inventar novos códigos, novas linguagens, a arte expande pontos de vista e nos incita a olhar a realidade sob novos prismas.

 

As questões relativas a migração, deslocada “por opção”, me interessam há bastante tempo. Esse interesse - combinado à insatisfação pela maneira com que a mídia retratava, em particular, os refugiados - levou-me à realização do "Deslocamentos", um projeto multidisciplinar de arte participativa, de cujo processo artístico todos os agentes envolvidos, refugiados, artistas e público tomam parte. Pela realização de oficinas de fotografia, vídeo e som, pelo resgate de relatos orais e pela criação de exposições dentro e fora das comunidades, o projeto busca equipar seus participantes com recursos para que falem de si e resgatem, por meio da experiência criativa, um pouco dessa identidade conturbada pela mobilidade forçada. Entre 2001 e 2004, o projeto foi desenvolvido com refugiados que viviam em Johannesburg, na África do Sul, no Albergue de Massy, na França, e no Campo de Refugiados de Kakuma, no Quênia.

 

Mesmo na posição privilegiada de “deslocado por opção”, ninguém escapa indene do desterro. Cada partida deixa alguma cicatriz, uma ausência que carregamos para sempre; “viajar é perder gentes”, como bem diz o escritor angolano Agualusa.

 

O ponto de partida do projeto é sempre o convívio, quando partilho o dia-a-dia das comunidades, impregnando-me pouco a pouco de suas histórias. O segundo passo é a realização de oficinas multimídia - fotografia, vídeo e som -, momento de integração e de troca que busca inspirar processos criativos individuais e coletivos, assim como definir os temas a serem priorizados nas exposições que montamos. Nas três etapas realizadas até o momento, os temas abordados acabaram naturalmente seguindo o caminho percorrido pelos participantes: dos motivos da fuga e a perda do L AR em Johannesburg, passando pela espera dos papéis e pelas MUDANÇ A S radicais e não planejadas em suas vidas na França, à constante inquietação com o FUTURO no campo de refugiados no Quênia.

 

 

O terceiro passo é a montagem das exposições, momento em que o projeto promove uma comunicação intensiva e integradora em dois sentidos. Ao transportar as vozes e as criações dos refugiados para o espaço artístico, as reinserimos dentro da malha social de que elas estão muitas v e zes isoladas. Ao recontar, muitas vezes num tom desprovido de emoção, sua experiência de deslocamento, ao enumerar suas perdas e esperanças , essas vozes buscam ecoar no espaço do sensível de cada um de seus interlocutores. É essa troca de sensibilidades que aproxima o i ndivíduo do coletivo . Público e refugiados confundem-se em um espaço que instiga a troca e a atenção , u m espaço em que histórias pessoais conduzem para uma compreensão maior do fato social , sem distanciamentos, sem estereótipos , fraternalmente.

 

 

 

Marie Ange Bordas Artista, fotógrafa e educadora. Mestra em Imagem e Som pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com especialização em Fotografi a no International Center of Photography de Nova Iorque. Como artista, concentra-se na criação de projetos de arte participativa e em exposições multimídia que propõem uma participação mais interativa e sensorial do espectador. Seu trabalho foi exibido em diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e nos Estados Unidos, França, África do Sul, Quênia, Espanha, Áustria, Costa Rica e República Checa.

 

 

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: marieangeb@gmail.com

Creative Commons License