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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

Imaginário e deslocamentos nas representações de brincadeiras*

 

Imaginary and displacements in the playing representations

 

Imaginario y desplazamientos en las representaciones de juegos

 

 

Renata Sieiro Fernandes**

Centro de Memória – Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa apresentar resultados de uma pesquisa de Mestrado que relacionam os conceitos de infância, cultura, imaginário e lúdico em atividades de brincar em um espaço de educação não-formal, a partir de representações do cotidiano por parte de crianças, jovens, educadores e pesquisadora. O método de análise baseou-se nas interpretações de desenhos e fotografias construídas e depoimentos dados no momento da pesquisa a partir de temas propostos para representação gráfica. Os referenciais teóricos utilizados basearam-se em autores da área da Sociologia da Educação e da Psicologia Sócio-interacionista, que tratam do tema do imaginário em representações gráficas ou em situações de brincadeiras infantis. As conclusões principais são que os imaginários de adultos, jovens e crianças têm suas particularidades, mas não são estanques, sofrendo influências entre si a partir das relações estabelecidas no cotidiano, afetando-se e podendo produzir mudanças e deslocamentos nos modos de imaginar e trabalhar com seus repertórios imagéticos.

Palavras-chave: Imaginário e lúdico, Educação não-formal e lúdico, Brincadeiras infantis e juvenis.


ABSTRACT

This article aims at presenting the results of a Master research that relates the concepts of childhood, culture, imaginary and playful/ludic in activities to play in an nonformal education set, from representations of the daily ones on the part of children, young, educators and researcher. The analysis method was based on the interpretations of drawings and constructed photographs and testimonies given at the moment of the research of subjects considered for graphical representation. The theoretical references used had been based on authors of the area of Sociology of Education and social-interactional Psychology, who deal with the subject of the imaginary in graphical representations or situations of infantile plays. The main conclusions are that the imaginary of adults, young and children have its particularities, but are not stanch, suffering influences between themselves of the relations established everyday, affecting themselves and being able to produce changes and displacements in the ways of imagining and working with its imaginative repertoires.

Keywords: Imaginary and playful/ludic, Non-formal education and playful/ludic, Infantile and youthful plays.


RESUMEN

Este artículo procura presentar resultados de una pesquisa de maestría que relacionan los conceptos de infancia, cultura, imaginario y lúdico en actividades de juegos en espacio de educación no-formal, a partir de representaciones del cotidiano por parte de niños, jóvenes, educadores y pesquisadora. El método de análisis tuvo como base las interpretaciones de dibujos y fotografías construídas, además de declaraciones dados en el momento de la pesquisa a partir de temas propuestos para representación gráfica. Los referenciales teóricos utilizados son del área de Sociología de la Educación y de Psicología Sociointeraccionista, que tratam del tema del imaginario en representaciones gráficas o en situaciones de juegos infantiles. Las conclusiones principales son que los imaginários de adultos, jóvenes y niños tienen sus particularidades, pero no son estancados, sufriendo influencias entre sí a partir de relaciones establecidas en el cotidiano, afectándose y produciendo cambios y desplazamientos en los modos de imaginar y trabajar con sus repertorios imagéticos.

Palabras clave: Imaginario y lúdico, Educación no-formal y lúdica, Juegos infantiles y juveniles.


 

 

As imagens, a imaginação e o imaginário

Imaginar é dar ao imaginário, um pedaço de real para roer (SARTRE) Significar é produzir relações entre coisas, sinais e eventos do mundo que nos rodeia e perpassa. Dar significado é uma característica que particulariza e identifica o ser humano por este ser, fundamentalmente, um ser histórico, social e cultural.

As percepções do mundo real ou do contexto social são registradas e conservadas na memória como imagens que são formadas a partir das experiências mantidas com o meio social e natural. Esse repertório de imagens vem a constituir o campo do imaginário individual e social.

A imaginação ou a fantasia formam-se dessas experiências com a realidade, porém não se prendem à ela, mas através da combinação de elementos retirados destas experiências compõem ou produzem novas realidades e significados que passam a interferir naquela realidade. É um processo de interinfluências que se dá no campo da cultura.

Nas palavras de Vygotsky (1991, p. 17), a imaginação está vinculada à realidade significativa e tal vinculação se dá por quatro formas básicas:

(1) toda elucubração se compõe de elementos extraídos da realidade, da experiência anterior do homem;

(2) a vinculação está entre produtos preparados da fantasia e determinados fenômenos complexos da realidade. Assim, a imaginação não se limita à reprodução de imagens historicamente constituídas, mas a partir delas cria novas combinações. São as experiências dos outros, as experiências históricas ou sociais, influindo na imaginação individual;

(3) o enlace emocional que determina a seleção de pensamentos, imagens e expressões;

(4) o edifício construído pela fantasia representa algo novo, não existente na experiência do homem, nem semelhante a algum objeto real.

Logo, quando se fala em imaginário está se falando também em simbólico, memória, imaginação ou fantasia e representação, todos elos da mesma cadeia, que não se podem desvencilhar e que fazem parte da cultura, mas que não são sinônimos.

Ao imaginário individual associa-se também o imaginário social que consubstancia as dimensões simbólicas da sociedade ou grupo social no qual a pessoa está inserida.

A moderna sociedade capitalista encontra-se permeada por mensagens e imagens, reveladas pelas técnicas de produção e difusão dos veículos de comunicação de massa. O simbólico domina esse mundo, transformando até as ações voltadas ao consumo, cuja compreensão é inseparável do tratamento dos apelos colados aos objetos e cuja lógica reside na sedução e no enredamento subjetivo dos agentes (ARRUDA, 1993, p. 46).

Esse imaginário social é composto de imagens propagadas pela mídia em geral: cinema, revistas, televisão, rádio, discos, jornais, Internet, e por outros meios institucionalizados como material religioso (dogmas, rituais), histórias (reais e inventadas), regulamento de espaços públicos e privados, conteúdos místicos e mágicos (superstições, lendas, mitos), repertórios tradicionais e convencionais de jogos e brincadeiras, agregados às imagens individuais.

Queiroz (1992) vem confirmar isso ao dizer que todas as produções humanas, todos os comportamentos e opiniões estão marcados pelo meio social do qual cada pessoa se origina, respeitando-se as diferenças e variedades dos grupos e contextos sócio-culturais. Vygotsky (1991, p. 38) também fala que, por mais individual que possa parecer, toda criação carrega sempre em si um componente social. “Neste sentido, não há inventos individuais no estrito sentido da palavra, em todos eles fica sempre uma colaboração anônima”.

É nessa intersecção de caminhos - da coletividade e do individual - que se encontram e se fundem essas duas faces do imaginário, o que não impede de estarem sujeitos a embates e conflitos entre si.

Para Castoriadis (1986, p. 142),

Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos (...), os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. As imagens que textos, desenhos, fotografias, filmes, histórias, narrativas evocam participam das representações mentais concentradas e registradas na memória. O ofício da memória não é lembrar, recompor o que houve e sim, reconstruir, relembrar através de uma recriação que, na arte ou fora dela, representa, isto é, traz como ficção o que em um tempo antes havia existido como um fato, um feixe real de acontecimentos, nunca mais pode reexistir como tal. E se assim: a lembrança é o caminho pelo qual a existência retorna como representação, a memória é apenas a matéria-prima de um processo de mimese (idem, ibidem, p. 7).

Para Leite (1997, p. 220), mais que matéria-prima,

O conhecimento prévio das questões representadas nas imagens cria uma rede de expectativas (que fundamentam hipóteses a serem verificadas ou anuladas). Essas expectativas influem na própria apreensão das imagens; por isso, é possível considerar que ver é comparar o que esperamos da mensagem com aquela que nosso aparelho visual recebe. Como a imagem nunca pode representar tudo, o espectador a utiliza como um quadro em que projeta seu sistema visual, sua imaginação e sua capacidade de organizar mensagens, para confrontá-las com as armazenadas na memória, sob formas esquemáticas que combinam, em diferentes doses, o reconhecimento e a rememoração.

O processo de percepção, de registro na memória, imaginação ou fantasia pode ser materializado ou expresso por representações de vários tipos que são recortes extraídos do cotidiano e que possuem funções simbólicas possíveis de serem interpretadas por indicarem significações dos modos de pensar e de se relacionar com esse cotidiano.

Toda representação é subjetiva e particular, mesmo ancorada no social, pois se forma pela experiência, pelo contato, pelos sentimentos e afetividade que cada pessoa estabelece com os objetos, demais pessoas, eventos e situações do meio social, porém como sujeito pertencente de um determinado grupo social (por raça, etnia, classe social, idade, gênero etc.) é representante da mentalidade deste (quando a afirma ou a nega).

As linguagens textuais (a partir das narrações) e imagéticas (pictórica e fotográfica), que serão apresentadas mais à frente neste artigo, não possuem um significado ímpar; elas são polissêmicas, o que, de acordo com o verbete do dicionário1, indica uma propriedade da significação lingüística segundo a qual, uma forma pode abranger vasta gama de significações, se precisando cada uma delas dentro do contexto em que é usada. Logo, depreende-se desse material uma certa ambigüidade e uma ampla variação de entendimento, análise e interpretação sujeitas ao olhar específico daquele que se propõe a trabalhar com ele.

Para enfrentar o desafio de agir como intérprete da produção alheia é preciso

justamente de uma adequação entre as possibilidades de leitura e as intenções implicitamente manifestadas (que somente se tem acesso quando exteriorizadas ou verbalizadas pelo autor ou produtor) pela criança/ autora. Essa adequação é uma relação dialética (...) procurando a compatibilidade (da intenção do intérprete) com as intenções do autor (FERREIRA, 1996, p.120).

Sem deixar isso de lado, Certeau (1994, p. 266) aponta, quando acompanha as análises sobre a atividade de leitura, que

quer se trate do jornal ou de Proust, o texto só tem sentido graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se conforme códigos de percepção que lhe escapam. Torna-se texto somente na relação à exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de astúcias entre duas espécies de “expectativa” combinadas: a que organiza um espaço legível (uma lateralidade) e a que organiza uma démarche necessária para a efetuação da obra (uma leitura).

O desenho, a imagem fotográfica e as narrativas, como recursos que permitem serem interpretados, são transformados em significações pelas possibilidades de interpretação que suscitam.

Extrapolando a citação de Certeau acerca do texto para as imagens gráficas do tipo pictórica e fotográfica o mesmo pode se dar, pois os significados destes podem ser percebidos, apreendidos, construídos e partilhados levando-se em conta os dois lados envolvidos: o autor/produtor/narrador e o intérprete. Entretanto, cabe o esclarecimento de que toda interpretação é sempre subjetiva (embora tendo a preocupação de tornar-se objetiva), pois o olhar que se fixa sobre a produção marca e carrega consigo uma história de vida particular, da qual é impossível se eximir.

Considerando isso, quais seriam os recortes feito no cotidiano social, por crianças e jovens e como se mostram registrados sob a forma de desenho acerca do espaço destinado ao brincar em uma instituição de educação não-formal? Quais seriam os aspectos do cotidiano a serem selecionados e expressos como jogo ou brincadeira? Quais as possíveis interpretações das figurações produzidas e sua relação com o imaginário social, configurado pelas representações mentais associadas ao gênero e à idade? Quais as contribuições desse tipo de análises para a ampliação do conhecimento sobre a atividade de brincar?

 

O imaginário nas representações por desenhos

A escolha de “um símbolo não é nunca nem absolutamente inevitável, nem puramente aleatória” (CASTORIADIS, 1986, p. 144). O desenho, como figuração gráfica e expressão simbólica, é produto de uma intenção de se representar algo; portanto, é carregado de sentidos e significados que fornecem indícios do modo como a pessoa e o grupo social se relacionam com o ambiente natural e o sociocultural.

A análise dos símbolos, das representações, da imaginação ou da fantasia, não dá conta da compreensão do imaginário, mas pode ser um caminho para se tentar compreendê-lo. Sendo este um sistema de organização de idéias formadas pelo contato com o social (e que também o influencia) o que esteja ausente do visível ou da manifestação concreta não é passível de ser apreendido. Logo, o imaginário não se reduz àquilo que é materializado, mas engloba o conjunto das imagens elaboradas mentalmente.

Interpretando um determinado desenho da criança percebemos imediatamente um significado objetivo comum (...) Porém, o significado subjetivo da figuração só é possível ser revelado pela própria palavra daquele que a imagina. Subjetivamente, cada um de nós, ao interpelar o desenho como um todo, atribui um significado que pode ou não ser coincidente entre si e com aquele do autor (FERREIRA, 1996, p. 26).

Quando houver a possibilidade de se saber a intenção do autor, através da enunciação deste, faz-se necessário conhecê-la, pois ela apresenta aspectos da sua relação com o meio que podem ser combinados ou confrontados com a interpretação dada pelo outro.

Queiroz (1992, p. 12-13, citando Roger Bastide), aponta o cuidado a ser tomado no momento da tentativa de compreensão, análise e interpretação de uma produção, em relação às condições históricas, sociais e institucionais em que esta foi produzida. O autor (indivíduo ou grupo social) precisa ser conhecido em suas características particulares e sociais, por exemplo: o lugar que ele ocupa na sociedade, sua distribuição nas hierarquias sócio-econômicas, o gênero, a idade, enfim, a contextualização é de suma importância e validade.

A referida contextualização ajuda a fornecer pistas para a compreensão e entendimento das posturas, hábitos, crenças, valores que aparecem expressos nas condutas, gestos, falas, formas de se vestir, de encarar e de se relacionar com os sujeitos e os espaços (públicos e privados) freqüentados.

O desenho não apenas representa como também significa. Ele não é o campo da exatidão, mas das possibilidades e, como tal, oferece condições para os que desejam se aventurar no imaginário e na mentalidade da pessoa que o produziu e do grupo social ao qual ela pertença, procurando extrair indícios que possibilitem a compreensão dos sentidos dados àquilo que se representou.

Para tentar abarcar as tramas de relações que aconteciam em um espaço de educação diferente da escola, em horário oposto a freqüência desta, uma instituição pública, municipal, do tipo não-formal, chamada Projeto Sol, tendo como públicos crianças e jovens de 7 a 14 anos, de baixo poder aquisitivo, focando os universos socioculturais tanto desses públicos quanto dos adultos-educadores que orientavam aqueles grupos, as relações construídas e estabelecidas com o aspecto lúdico de brincar e com o espaço físico disponível na instituição2, usou-se a estratégia metodológica das representações sob a forma de imagens3.

Às crianças e jovens foi apresentada a proposta de registro sob a forma de desenho daquilo que mais gostavam de fazer e o que lhes dava mais prazer no Projeto Sol.

Todos os desenhos passaram por diversas alternativas de agrupamento e classificação de modo a proporcionar alguns entendimentos e relações sobre o rico e vasto material produzido.

As análises efetuadas indicam que, em sua maioria, os autores elegeram para registrar os momentos de brincar, os grupos de brincadeiras e demais atividades dirigidas (como: trabalhos manuais, higienização, dança) como sendo o que de mais prazeroso acontecia durante a estadia no Projeto Sol. Além disso, as crianças mais novas (7 a 10 anos) se dispuseram, com maior freqüência em relação às mais velhas (11 a 14 anos), a produzir as figurações mostrando- se mais à vontade para a atividade de desenho.

Não foi possível notar diferenças significativas nos elementos figurados em relação à questão de gênero, mas o mesmo não pôde ser afirmado em relação ao quesito idade, ou seja, houve diferenças marcantes entre as representações de crianças e jovens, o que vem demonstrar o imaginário subjacente a esses grupos que convivem cotidianamente.

De todo o conjunto de figurações apenas cinco não corresponderam ou se distanciaram, a princípio ou aparentemente, do que foi solicitado e serão apresentados e analisados posteriormente. Excetuando- se esses, todos os demais tiveram como representação as situações de brincadeiras ocorridas no espaço interno ou externo do Projeto, momentos de elaboração e preparo de trabalhos para festas comemorativas, como Festa Junina e aniversário, algumas atividades que faziam parte da estrutura do trabalho pedagógico como: desenhar, assistir filme no vídeo, dançar, participar da roda de conversa no início ou fim do período, e momentos de higienização como escovar os dentes.

Essa amostragem vem indicar que a rotina de trabalhos e atividades cotidianas propostas, na sua amplitude, causavam interesse nos jovens e crianças e puderam adquirir uma conotação lúdica, o que reforça a impressão positiva que o Projeto Sol, como espaço educacional não-formal, provocava nos grupos em questão, apesar dos momentos oscilarem entre prazerosos e desprazerosos ou de encontros e choques. Entretanto, a quantidade de vezes que os momentos de brincar e os grupos de brincadeiras apareceram superaram, em muito, as demais situações, na proporção de 58 para 22.

Entre as brincadeiras e jogos figurados aparecem: pular corda, jogar bétis, jogar bolinha de gude, jogo de basquete, jogo de futebol, pular amarelinha e caracol, correr atrás de outros, brincar de casinha e boneca, briga entre formigas, pular pneu, pular metro, pular elástico, brincar na grama.

As brincadeiras e jogos “permitidos” pelos adultos - em geral, tradicionais - se misturaram a outras formas de brincar voluntárias, que envolviam a imaginação criativa em maior grau do que aquelas regradas.

Vindo mostrar a importância do espaço físico para as possibilidades e qualidades dos jogos e das brincadeiras, 40 desenhos representaram grupos de brincadeiras ou atividades desenvolvidas na parte externa da construção e apenas quatro representaram os espaços internos. A área verde do Projeto Sol, apesar de contar com poucas árvores e ter ausência de qualquer tipo de brinquedo de grandes ou médias dimensões do tipo dos usados em parques, ainda assim se tornava mais agradável para estar e passar o dia, ou no caso, a manhã.

Um único adulto apareceu representado em uma figuração em desvantagem com as demais figurações em que prevaleceu a maioria absoluta de crianças mais novas e mais velhas. O autor desse desenho era um garoto do grupo dos mais novos, com a idade de oito anos e o adulto representado só foi possível ser identificado como sendo uma das educadoras pela verbalização da própria criança.

Essa figuração confrontada com as outras sugere que “aquilo que era mais gostoso de se fazer no Projeto Sol, o que era mais prazeroso” foi a possibilidade de socialização, de estar em grupo - e também sozinho - em um local agradável e com o qual se identificavam, com a ocorrência de trocas, onde o brincar e o lúdico estavam presentes, porém, representando um universo estritamente infanto-juvenil.

Isso pôde ser confrontado com as observações feitas durante longos meses e que permitem afirmar que, no entanto, a presença dos adultos é constante e que os grupos os solicitavam muito - às vezes em demasia - para a tomada de decisões e resoluções de problemas. Na verdade, poucas vezes eles tomaram parte como integrantes da brincadeira ou jogo, agindo mais como árbitros ou supervisores. Ou seja, na representação simbólica, o espaço do Projeto Sol era o lugar de brincadeiras também, desenvolvidas por jovens e crianças, enquanto o empírico veio mostrar a forte influência e presença dos adultos no universo infanto-juvenil como figuras nem sempre desejáveis, porém necessárias. Para frisar isso, poder-seia dizer que esse desenho pôde ser revelador do desejo de ausência do adulto e que, pela impossibilidade de eliminá-lo de fato, usouse o recurso do isolamento e redução do espaço onde ele se encontrava ou, pelo menos, procurava-se mantê-lo imobilizado.

Voltando ao desenho, apesar desse adulto estar representado graficamente ocupando o mesmo espaço com seus pares ou trios de crianças enquanto brincavam de pular corda e jogar bétis, esse mesmo adulto estava isolado desses grupos por um quadrado que o circunscrevia, mas mesmo estando cercado lançava olhares para aqueles que continuavam brincando, supervisionando-os.

Aqui, conforme as observações empíricas, o adulto-educador do Projeto Sol aparece desempenhando um dos papéis ao qual se dispunha: o de supervisionar os grupos, principalmente o dos menores, que ainda não haviam incorporado ou interiorizado a figura simbólica do adulto e educador e as regras tanto quanto os mais velhos que, por isso, podiam passar mais tempo sozinhos entre si.

Como a presença desses adultos era muito forte essa figuração mostrou a possibilidade da “fuga” a essa cristalização, tão peculiar do comportamento adulto e nas atitudes pensadas como pedagógicas pelas educadoras, através de uma tática de resistência infantil aos valores e condutas destes.

Os adultos fazem uso de estratégias para tentar garantir a sujeição e a incorporação das regras pelas crianças; estas usam de táticas ao buscar formas de resistir ou de fugir daquelas tentativas (CERTEAU, 1994). Os desenhos em que a fala e a figuração não corresponderam entre si também puderam indicar uma forma de “fuga” através da imaginação. Como o pedido do registro foi feito por uma pessoa que não possui o status do educador - no caso, a pesquisadora - e que estava naquele ambiente por um determinado período de tempo, houve a possibilidade de se usar o espaço em branco da folha de papel como oportunidade para a criação já que as atividades que aconteciam ali eram dirigidas. Entretanto, como foi feita uma cobrança de teor específico, ou seja, havia uma proposta definida para ser registrada, no momento da enunciação o autor buscou referendar sua figuração com um discurso que se aliasse ao que a pesquisadora havia pedido.

Agrupando-se por intervalos de idade (ou seja, os mais novos - 7 a 10 anos - e os mais velhos - de 11 a 14 anos), apareceu uma produção quantitativamente assimétrica de desenhos. A maioria desses foi da autoria do grupo dos mais novos, na proporção de 61 para 14.

As figurações relacionadas ao brincar mostraram brincadeiras ou jogos acontecendo em grupos, em trios, em duplas e solitariamente; indicaram os brinquedos e suas marcas ou riscas no espaço físico que davam suporte para o brincar, com a presença do local onde isso acontecia, como: o gramado do futebol, a área de basquete, o espaço da amarelinha ou do caracol, o interior da arena etc.

A característica mais significativa das produções desse grupo de crianças menores foi a variedade de brincadeiras e formas de brincar que elas elencaram: corda, basquete, futebol, caracol, amarelinha, brincar na grama, pular elástico, casinha, Barbie, correr atrás dos outros, gude, pular pneu, briga de formiga, bétis.

As brincadeiras e jogos tradicionais se mesclaram a outras espontâneas e voluntárias. Aquelas faziam parte do rol das “permitidas”, estimuladas e, muitas vezes, organizadas pelo adulto-educador, e estas eram as que aconteciam independentemente da autorização deste e em momentos que, por vezes, não eram previstos para isso, por parte do adulto, como idas ao banheiro, fugas das salas de atividades, intervalos entre início e fim de trabalhos etc. O que não indica que eram sempre recriminadas - tampouco incentivadas - por ele já que nem sempre as percebia.

Não apenas a intencionalidade do adulto, assumida como postura pedagógica, no ato de incentivar ou impedir a ocorrência desse tipo de brincadeira implicou em uma aprendizagem sócio-cultural de comportamentos e atitudes; também acabavam soando como positivas essas “brechas” que crianças e jovens encontravam e foram reconhecidas como tal por maneiras diferentes pelas educadoras, dependendo de como encaravam o brincar e da importância que atribuíam a ele. Isso foi matizado pelas experiências anteriores vivenciadas na infância, pelos contatos mantidos com o universo infanto-juvenil - através da maternidade, mas não necessariamente - e pela formação acadêmica-profissional.

Fora do campo de visão do adulto e, portanto, não sujeito à sua aceitação e controle, muitas oportunidades de aprendizagem ocorreram e, por causa disso mesmo, os adultos-educadores - sem tomar conhecimento - terminaram por proporcionar e garantir espaços e possibilidades para que esses momentos acontecessem aquém e apesar dele, “incentivando” situações de troca de experiências e combinação de pontos de vista divergentes e convergentes, a circularidade de repertórios individuais e sociais de jogos e brincadeiras - tradicionais e inventados - e a produção e recriação de significados e sentidos que a interação social estimula.

O grupo dos mais velhos, nas produções sobre o brincar, especificamente referido aos jogos e brincadeiras, representou apenas jogos tradicionais que possuem como característica a presença de regras convencionadas e, pouca diversidade de modalidades, no caso: os jogos de futebol, basquete e bétis. Isso ajuda a demonstrar a tese de que introjetaram mais fortemente o condicionamento das regras, não apenas dos jogos, no caso, mas possivelmente também as do social.

Apenas duas figurações focalizaram o momento da dança e puderam ser enquadradas no caráter do lúdico, que se refere ao aspecto dos jogos, brincadeiras, brinquedos e divertimentos.

Das 11 figurações de jogos feitas seis representaram o jogo de futebol. A forte presença desse jogo percebida a partir das figurações foi reforçada pelo fato empírico de que, durante as observações feitas em campo, ficou marcante o interesse demonstrado pelos jovens por esse tipo de atividade - muito mais do que os mais novos - e o incentivo dos adultos por esse tipo de jogo.

Tanto o grupo dos mais velhos quanto o grupo dos mais novos representou brincadeiras e jogos de diferentes maneiras: individualizados, em dupla e em grupo, muitas vezes para as mesmas brincadeiras e jogos o que indicou as possíveis variações nas modalidades de se brincar, ou seja, aqueles não estavam estanques mas puderam ser adaptados - embora dentro de certos limites impostos pelas regras e segundo as condições da situação - de acordo com a necessidade e o interesse. É o que Castoriadis (1986, p. 152) chama de “interstícios e graus de liberdade”, possibilitados pelo mundo simbólico.

O fato de não ter havido nenhuma representação do brincar por parte do grupo dos mais velhos, relacionado às ações voluntárias que supõem, em maior grau, a existência da fantasia, do faz-de-conta, como se viu nas representações dos mais novos, pôde indicar a inter-relação de três pontos:

• ou os mais velhos não percebiam que atividades em que a criatividade e a fantasia se sobressaem podiam ser tidas também como brincadeiras e não apenas os jogos e brincadeiras tradicionais (nos quais as regras e o conteúdo são mais conhecidos e conservados);

• e/ou a valorização maior dos jogos e brincadeiras regradas tradicionais por parte do meio social sobre o grupo dos mais velhos acabou não inviabilizando, mas desestimulando as possibilidades de se exercitar esse lado mais imaginativo do caráter lúdico;

• as regras estavam muito interiorizadas.

Quando foram agrupados os desenhos pela categoria de gênero, os resultados das análises não mostraram diferenças cruciais, tanto quanto aquelas apresentadas em relação à categoria idade. Apenas algumas brincadeiras e jogos foram mais específicos a um determinado gênero, embora não excluíssem totalmente o sexo oposto que, eventualmente, pôde participar do jogo ou da brincadeira. Entretanto, a sugestão do jogo ou da brincadeira partiu sempre de um grupo particular de gênero, isto é, no caso da dança, de pular elástico, da casinha e da Barbie; quem propunha e organizava os modos de brincar eram sempre as meninas e, no caso de jogar bolinha de gude, pular pneu e briga de formiga, os responsáveis eram os meninos, embora isso não permita afirmar que esta ou aquela brincadeira e/ou jogo restringiam-se a este ou aquele gênero. O que, talvez, seja possível dizer é que as escolhas são feitas com graus de liberdade e não de liberdade total.

Quanto às demais brincadeiras e jogos que apareceram representados comumente pelos dois sexos, pôde-se entender que atenderam ou coincidiram com os interesse de ambos os sexos e, embora pudessem ser praticados, mormente por um determinado gênero não terminaram por discriminar o sujeito do sexo oposto. Foi o caso de pular corda e pular metro, do basquete, do futebol, da amarelinha e do caracol, do bétis etc.

Ao se cruzarem as categorias de gênero e idade, algumas peculiaridades apareceram, por exemplo: o grupo de meninas de 7 a 10 anos representou graficamente mais brincadeiras que os meninos do mesmo intervalo de idade, porém o repertório de ambos é bastante variado contendo mais jogos e brincadeiras em que as regras são mais flexíveis e provisórias e o faz-de-conta está mais presente, do que a brincadeira ou jogo com regras convencionais, tradicionais e, portanto, mais rígidas, como o futebol e o basquete. Há que se ressalvar que o envolvimento das crianças nos jogos e brincadeiras e que o compromisso e a cobrança às regras em relação a elas mesmas e aos outros, varia enormemente em relação à idade. A particularidade é que, para o grupo dos mais novos, mesmo conhecendo- se as regras que orientavam as ações em jogos e brincadeiras tradicionais, aquelas não limitaram tanto as ações podendo, inclusive, ser burladas ou adaptadas (mas não modificadas totalmente na essência, a qual continuou garantida), logo, no jogo e/ou na brincadeira a criação e a imaginação adquiriram maior liberdade.

Um outro exemplo ainda seria o do grupo de meninas maiores de 11 anos que representou tantas brincadeiras e jogos quantos foram registrados pelos meninos da mesma faixa etária, com exceção do jogo de bétis que foi escolhido apenas pelos meninos para ser figurado. Realmente, em nenhum momento das observações em campo foram presenciadas meninas participando desse jogo, porém, não é possível afirmar que esse era um jogo com predominância masculina, pois ao se indagarem algumas meninas sobre esse fato, responderam que desenvolviam esse tipo de atividade. Entretanto, há que levar em conta e tomar cuidado com as respostas enunciadas, pois essas são dadas baseadas em fins – nem sempre conscientes – da imagem que se quer passar para o ouvinte. Logo, talvez seja possível dizer, apenas, que em tal brincadeira havia predominância masculina.

As figurações desse grupo variaram apenas entre três jogos: o futebol, o basquete e o bétis, que se caracterizam pela maior condição de subordinação das ações às regras convencionais que devem ser observadas. Isso ajuda a demonstrar a grande presença das regras no universo desse grupo social que não deriva de uma força natural, mas sócio-cultural enfatizada pelo discurso e pela cobrança por parte dos adultos e que não provoca a geração de maiores espaços para formas de brincar mais imaginativas e fantasiosas.

Em suma, as diferenças entre os grupos só se tornaram marcantes quando se cruzaram as categorias etárias e de gênero. Apesar de utilizar segmentos etários nas análises, isso não significa que os grupos brincassem separadamente todo o tempo. Algumas vezes, os adultos estabeleceram grupos de brincadeiras com faixas etárias próximas (por entender que os interesses deles eram semelhantes e que, esse modo facilitava o trabalho pedagógico para o educador), outras vezes, o adulto aceitava grupos formados com mesclas de idades de acordo com a iniciativa da criança e/ou do jovem frente ao interesse pela brincadeira ou jogo.

As diferenças demonstraram universos sociais e culturais peculiares aos jovens e às crianças e também relacionadas à tipicidade masculina e feminina para os meninos e as meninas. Ambos os universos foram afetados e matizados pela trama de relações mantidas com o meio social e isso implicou em interferências e especificidades nos modos de constituição da atividade lúdica.

Um terceiro agrupamento dos desenhos mostrou algumas figurações que não se encontraram relacionadas diretamente à proposta feita pela pesquisadora, entretanto, não foram descartadas e também passaram por tentativas de interpretação. Tanto meninos quanto meninas de ambos os intervalos de idade (7 a 10 anos e acima de 11 anos) produziram tais tipos de desenhos aparentemente relacionados aos desejos, curiosidades, reproduções de repertórios da própria realidade e, possivelmente, de mídia (propaganda, televisão, jornal, grupos de música etc.), o que pode indicar tentativas de reelaboraçao das informações que recebiam e/ou extraíam do cotidiano para possível formulação de significados e de construção da identidade, através da relação emocional com determinados conteúdos e elementos.

Tais conteúdos participam tanto do imaginário social quanto do individual e, neste caso, referiam-se, possivelmente, a comportamentos ditados pela moda, às questões de violência na rua e de agressividade de grupos, à motivação de desejos incentivados pela propaganda, e que puderam ser exteriorizados sob a forma simbólica de desenhos.

Um exemplo foi um dos desenhos, feito por uma garota de 10 anos, que mostrou um ambiente cercado por árvores e palmeiras, um casebre, montanhas, mar, pôr-do-sol e duas mulheres saindo da água de biquínis, referendado pela sua fala: “são mulheres de fiodental numa ilha”. Outro exemplo foi uma figuração produzida por um garoto de oito anos, em que apareceu uma pessoa no canto esquerdo do papel seguida por um tanque de guerra militar que atirava para o lado direito; tais identificações foram possibilitadas pela sua fala: “é a guerra no Matão”, bairro conhecido por sua violência e por problemas com a polícia, no qual o garoto morava e onde devia presenciar tais circunstâncias e/ou ouvir histórias sobre.

As últimas três figurações mostraram uma caveira e personagens de uma marca de roupa do tipo “surfwear” conhecida por “Bad Boy”; foram colocadas juntas devido à caracterização com certo tipo de agressividade e rebeldia, comportamentos associados a alguns tipos de roupas, grupos de músicas e de afinidades e pessoas/ personagens de apelo da mídia e, por esse motivo, estavam fortemente presentes no imaginário social e individual.

Ao término dessas análises, pôde-se dizer a respeito da constituição do brincar registrado sob a forma de desenhos o mesmo que Rocha (1994, p. 156) constatou em sua tese através de observações em campo. A autora constatou um fato que questiona e ao mesmo tempo amplia as bases do modelo teórico sócio-histórico com o qual trabalhou suas análises e que servem às afirmativas feitas acima. O que essa autora percebeu em relação à constituição do brincar foi que:

o declínio do jogo de papéis se torna uma rota plenamente possível, facilitada, e até desejada, pelo outro. A professora não impede, apenas contribui para suprimir o desejo de jogar na esfera do faz-de-conta. Parece possível pensar que o jogo de papéis não declina como resultado de um processo”natural”, como resultado de uma lei de desenvolvimento - (esse é o ponto que contraria a base teórica assumida) -; antes, é declinado, através do jogo de forças sociais, dentre as quais se destacam, neste estudo, as de origem na educação pré-escolar.

Tal qual a autora, o que se deduz da prática cotidiana do Projeto Sol, que envolveu adultos-educadores e jovens e crianças, do ponto de vista do brincar, é que a ênfase que recaiu sobre os jogos e brincadeiras tradicionais em detrimento do incentivo ao faz-de-conta, da imaginação criativa do brincar voluntário, foi fruto de interferências pedagógicas - por parte do educador - e sociais - por parte do adulto -, ou seja, a promoção de formas mais regradas de brincar em relação às demais formas de jogos e brincadeiras. Isso também demonstra e reafirma que os motivos de tais condutas se devem a facilidade de se lidar com os jogos e brincadeiras regradas, muito mais do que com as do tipo imaginativas, criativas, fantasiosas, pelo fato daquelas condicionarem as atitudes e proporcionarem pequenas margens de situações imprevistas, requisitos com os quais o professor ou educador (muitas vezes sem se dar conta) se molda. Além do que, do outro modo o controle está mais garantido – e o controle é característica de espaços institucionais, que se ocupam do processo de socialização.

Ampliar a experiência da criança e do jovem é proporcionar uma base suficientemente sólida para a atividade criadora, do que se depreende uma postura educativa e pedagógica. Segundo Vigotsky (1991, p. 18), “quanto mais veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e assimile, quanto mais elementos reais disponha em sua experiência, tanto mais considerável e produtiva será (...) a atividade de sua imaginação”.

 

O imaginário nas representações fotográficas

A imagem criada pelo homem surgiu através do desenho e da pintura e, ao se desenvolver, incorporou a gravura e a fotografia. Ambos, incluindo a escrita, funcionam como suportes de comunicação e expressão. Por serem atos humanos envolvem subjetividades, ou seja, são formas e recursos utilizados para representarem-se aspectos do real sempre do ponto de vista daquela pessoa. Para Sontag (1986, p. 16), “embora, num certo sentido, a câmara, não só interprete, mas capte de fato a realidade, as fotografias são tanto uma interpretação do mundo como as pinturas ou os desenhos” (p. 16). Embora fotografar seja um ato consciente e subjetivo, quem fotografa e quem vê ou interpreta uma imagem fotográfica, não se pode deixar levar pela crença de que a máquina é neutra e não interfere na representação do real. Sempre o olhar daquele que fotografa se adequa ao formato e limites da câmara, mesmo quando esta possibilita maior participação daquele quanto à focagem, regulagem de velocidade e abertura de diafragma para maior ou menor entrada de luz, que as câmaras manuais proporcionam. Essa máquina sempre media o olhar sobre uma parte do real e, de certa forma, molda-o quando o registra. Isso se dá por pelo menos dois limites inerentes à máquina: o enquadramento sempre retangular e a perspectiva de um olho apenas que se ajusta no visor.

Sontag (1986, p. 34) diz que “fotografar é conferir importância” e, ainda, que “a vida não é feita de detalhes significativos subitamente iluminados e fixados para sempre. A fotografia sim” (p. 79). Os recortes que se fazem do cotidiano são momentos elegidos como relevantes para serem registrados e fixados no suporte de papel e isso pode indicar as maneiras pelas quais as pessoas que fotografam encaram e lidam com seu cotidiano, através de suas representações.

O recurso fotográfico, como os demais meios de expressão, possibilita infinitas representações do real e dessa maneira que ele pode ser entendido e tratado em um processo de pesquisa, sem preocupação com comprovações, mas como instrumento que permite tentativas de interpretações e percepção de indícios do imaginário de quem ou do grupo que faz uso dele. Desse modo, tentou-se conjugar os dois procedimentos (desenho e fotografia), as duas atividades, como recursos completares de análise das representações do imaginário.

Os motivos que levaram à idéia da inclusão do recurso fotográfico, posteriormente ao uso do desenho foram: o interesse de saber se os grupos envolvidos na pesquisa registrariam não somente os momentos agradáveis do jogo e/ou da brincadeira, mas inclusive os momentos desagradáveis que também fazem parte dessa atividade com choros, brigas, desentendimentos etc; se seriam registradas brincadeiras ocorridas sem o consentimento do adulto apesar deste estar presente, porém não atento a isso; a possibilidade de oferecer participação a todos os envolvidos na pesquisa (crianças, jovens, educadoras e pesquisadora) e a relativização do olhar da pesquisadora sobre o assunto e os sujeitos pesquisados.

Depois das fotos feitas, a idéia foi trabalhar com as fotos produzidas pelos três grupos tentando relacioná-las e extrair delas possíveis interpretações que pudessem revelar aspectos importantes sobre a atividade lúdica do brincar e deslocamentos nos modos de vê-la e entendê-la, baseando-se nos pontos de vista de indivíduos com idades diversificadas, de ambos os sexos, com experiências de vida variadas e que mantiveram relações assimétricas de poder. Foi importante estar a par, na medida do possível, das razões e critérios que motivaram os recortes feitos a partir da realidade para que se pudesse tentar captar e entender o imaginário que permeava as representações fotográficas e, então, buscou-se conhecer e identificar o autor de cada foto feita, bem como de solicitar uma legenda que contasse o que havia sido registrado e/ou as intenções de registro. Segundo Samain (1996, p. 5) “as fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos. Precisam de um narrador para desdobrar seus segredos”.

Olhar para as fotos e apreciá-las nas suas mais variadas formas de registros e de tentativas de “aprisionar” a realidade compondo algo particularmente significativo provocou suscitações no imaginário da pesquisadora, levantando curiosidades e desejos de conhecer melhor o que as fotos deixavam entrever naquilo que mostravam, a partir de um repertório de imagens que se renovava a cada manuseio do material.

As análises centraram-se em pontos mais evidentes que tocaram o imaginário do observador: naqueles que fotografaram, nos seus referentes e nas sensações e percepções que provocaram no espectador que tentava interpretá-las.

A partir disso foi possível notar que as fotografias permitiram análises interpretativas do imaginário individual e social dos grupos pesquisados (crianças, jovens e adultos), principalmente relacionado ao ato de brincar e as pessoas envolvidas nele, bem como mostraram uma cultura de imagens veiculadas e propagandeadas pelos diversos meios de comunicação, que nos torna suscetíveis à esse repertório e permeia nosso imaginário, mas também as possibilidades de produção criativa, ao inovar, por exemplo, nas intenções, na forma e no conteúdo a ser registrado.

O contato e manuseio das máquinas fotográficas, principalmente para o grupo das crianças e jovens – instrumentos que têm presença variável no seu meio social –, permitiu uma possibilidade de vivência lúdica tanto com o instrumento quanto com a atividade, além de envolver um processo educativo e a construção de um olhar fotográfico – e de maneira similar aconteceu entre os adultos envolvidos.

As produções, apesar da inexperiência de alguns e da relativa experiência dos demais, revelaram-se bastante atraentes e com “veios” artísticos e olhares poéticos. Sobre esse fato, Sontag (1986, p. 97) comenta:

Mas, é hoje claro que não existe um conflito inerente entre o uso mecânico ou ingénuo da câmara e um elevado grau de beleza formal, nem nenhum género de fotografias em que essa beleza não possa surgir: um instantâneo despretensioso e funcional pode ser visualmente tão interessante, eloquente e belo como as mais famosas fotografias artísticas.

Ao falar isso, a autora inclui aquelas fotos mal iluminadas, compostas assimetricamente – segundo os padrões convencionais – etc. Não se vincular a essas normas – o que leva a uma libertação –, por vezes, opressivas, “abre a possibilidade de um gosto global, em que nenhum tema (ou ausência de tema), nenhuma técnica (ou ausência de técnica) é suficiente para desqualificar uma fotografia” (Sontag, 1986, p. 123).

Após a feitura das fotografias, pediu-se ao grupo das crianças e jovens que separassem suas produções em dois blocos, as que representavam brincadeiras e as não representativas dessas, pois selecionaram outras situações para registrar. Isso revelou uma “autonomia” de alguns autores diante da proposta.

Pelos critérios usados por eles, pertenciam a esse bloco, por exemplo, as fotos feitas de árvores circunscritas ao terreno do Projeto Sol, dos carros das educadoras no estacionamento, de pessoas e automóveis que circulavam do lado de fora do Projeto Sol e vistos através da cerca de arame, da torneira que matava a sede, do refeitório onde se alimentavam, da arena como local de reunião para a discussão de assuntos e planejamento e atividades e brincadeiras, de maquetes produzidas e guardadas no armário, do lixo seletivo, das faxineiras que cuidavam da limpeza diária do local, das cozinheiras que preparavam os alimentos e do caseiro que tomava conta do local, das educadoras em momentos descontraídos, da pesquisadora. Esses foram critérios unânimes para o grupo, ou seja, não variaram.

A fala de uma das meninas faz-se importante mencionar; para um registro de garotos simulando uma briga, e que poderia estar dentro da categoria “representações de jogos e/ou brincadeiras”, essa garota disse: “briga não é brincadeira no Projeto”, o que veio reforçar as impressões sentidas na prática durante as observações feitas no Projeto Sol pela pesquisadora acerca do incômodo que tal tipo de brincadeira – de conteúdo mais agressivo – provocava nos adultos-educadores. Essa garota incorporou o critério dos adultoseducadores para uma determinada forma de brincar não aceita no espaço do Projeto Sol.

Entretanto, ainda dentro da categoria “não representações de jogos e/ou brincadeiras” alguns critérios usados pelos grupos de crianças e jovens para a seleção, divergiram, ou seja, não houve consenso. Isso aconteceu com os registros de poses, com o ato de fotografar, com a preparação ou finalização de brincadeiras, com situações não evidentes do ato de brincar – na fala de uma das meninas: “não dá pra ver que está brincando”. Dentro dessa categoria, os registros mostraram que nenhum dos grupos freqüentadores do Projeto Sol foi esquecido, bem como os espaços e dependências físicas do local. Todas as turmas produziram fotos de adultos, jovens e crianças apanhados de surpresa ou fazendo poses para o fotógrafo, incluindo-se nessas, a “foto da foto” e o registro dos fotógrafos em ação. Evidentemente, o número de crianças e jovens representados supera o dos adultos porque aqueles eram em número superior a esses. Todos apareceram fotografados muitas vezes; exceção feita à monitora que trabalhava lá em dois dias na semana e que apareceu uma vez registrada, e à diretora que apareceu registrada uma única vez e de longe. Pode-se dizer que não seguiram a hierarquia de poder representada pelos papéis institucionais, mas a lógica das escolhas para os registros baseou-se na relação afetiva mantida com essas pessoas.

Dentre os registros selecionados como representações de jogos e/ ou brincadeiras apareceram as atividades geralmente ocorridas em ambiente externo, poucas fotos foram realizadas em ambientes internos. Dois pontos puderam ser observados: como também apareceu nos desenhos, o espaço físico aberto, ao ar livre, era o mais propício para as atividades de brincar, embora estas também ocorressem dentro das salas e, decorreu disso, o maior volume de registros externos.

Apareceram jogos e/ou brincadeiras dirigidas pelos adultos: salto em distância (há fotos da fila, dos saltos e das medições), skicolchão, bétis, corda, vôlei, queimada, rouba-bandeira e lencinho, dança, jogos de tabuleiro (por exemplo: dama), desenhar, futebol; apareceram jogos e/ou brincadeiras de iniciativa dos meninos e meninas como: corrida em direção à algum lugar, dardo, elástico, amarelinha e caracol, paradas-de-mão, atirar avião de papel, corpoa- corpo, fazer “chifrinho” em alguém etc.

Apareceram ainda, riscos no chão como suportes para os jogos e brincadeiras, rostos dos meninos e meninas, cenas posadas, participação ou observação dos adultos, preparação de jogos e/ou brincadeiras, o desenrolar dessas e a finalização, seqüências de situações (por exemplo: a ida para o campo de futebol, a montagem de times, o público, o desenrolar). Isso ajudou a demonstrar que o brincar não envolveu unicamente aquilo que se costuma ter como brincadeira e jogo de fato; a criança e o jovem já se encontravam envolvidos com o brincar e vivenciavam-no desde o momento em que se sentiam motivados para realizá-lo, e isso incluía o desejo, as idas até o local pensado e escolhido, as variedades de repertório, a escolha dos parceiros e adversários, a busca da água para saciar a sede e o cansaço, a volta para guardar a bola no armário, a figurinha na sacola e a bolinha de gude nos bolsos. Isso implicou nos tipos de recortes feitos do real e nas explicações dadas pelos autores dos registros.

De todas as fotos feitas, inclusive as legendadas como sendo representativas da atividade de brincar, a grande maioria foi de autoria dos meninos, e isso se deveu ao fato de a freqüência ao Projeto Sol ter sido, preferencialmente, de meninos naquele período de trabalho, em uma proporção de 71,5% de meninos para 28% de meninas. Isso impediu a tentativa de interpretação da produção segundo o critério do gênero.

A imagem fotográfica, como meio de comunicação socialmente instituído e, portanto, suscetível de provocar interpretações, pressupõe a existência de uma série de níveis de seleção, combinação, comparação etc. Tanto o olhar de quem fotografa quanto o de quem vê as fotos sofre um processo seletivo. A apreciação e a reflexão sobre essas produções, com o intuito de interpretá-las, envolve a formação cultural e intelectual daquele que as vê, são os “óculos” com os quais a pessoa está imbuída, embora seja possível buscar relativizar o olhar que é, a princípio, tendencioso. O contato com tais imagens produzidas pelo grupo de meninos e meninas de 7 a 14 anos proporcionou um refinamento e um deslocamento da posição inicial e do olhar da pesquisadora no processo de análise dessas.

Leite (1993, p. 54-55) diz o seguinte sobre essa atividade à qual o pesquisador se dispõe:

o leitor da fotografia permanece insensível a alguns elementos importantes e para outros recolhe e cataloga o que sua percepção e sensibilidade conseguiu abstrair do conjunto apresentado. Essa originalidade de recepção da mensagem é um resultado de muitos mecanismos culturais e mentais. Enquanto existe um padrão de linguagem das imagens que é conhecida (dentro da mesma cultura), pelo menos em seus caracteres essenciais, a variabilidade de recepção e interpretação pode ser introduzida pela idade, sexo, grau de escolaridade, nível social e até pela capacidade adquirida de decifrar mensagens icônicas mais complexas. Acrescente-se que essa capacidade pode ser desenvolvida ou inibida pelo contexto em que a foto está sendo decifrada.

Nessa tentativa de aproximação com as produções fotográficas de crianças e jovens, duas formas de abordagem foram tentadas: pelo conteúdo e pela forma. A partir do conteúdo, notou-se o prevalecimento do espaço físico externo do Projeto Sol para as atividades de brincar, o registro de suportes do jogo e/ou da brincadeira através dos riscos no chão e de objetos e brinquedos, as relações entre pessoas e dessas com os diferentes objetos e, as representações de pessoas e situações estáticas ou “dinâmicas” (preocupação com o movimento); muitos desses aspectos puderam ser observados nos registros de desenhos também. Poucas contribuições foram trazidas quando da tentativa de interpretar os conteúdos registrados de acordo com o quesito idade; uma delas foi a ênfase no registro do futebol, realizado por todas as turmas, fato que reforça a visão de tal jogo no imaginário social; outra contribuição foi percebida pela preferência dada pelos menores ao registro de crianças. Todos atribuíram a mesma importância aos momentos de relação adulto-criança; os mais novos enfatizaram o aparecimento de crianças em suas fotos.

Tanto os adultos quanto as crianças apareceram registrados em retratos e poses. A preparação para a foto mostra uma posição nãonatural da pessoa, ciente do ato de que participa, preocupada em parecer fotogênica e com o resultado final da impressão da sua imagem no papel. Indica o modo como gostaria de se ver e de ser vista, no geral, de forma atraente.

As reações de recusa e satisfação de alguns jovens com o resultado de algumas fotos foram provocadas quando viram a si mesmos representados nas imagens feitas do Projeto Sol; isso ajuda a entender a influência e a pressão que a fotografia opera nas pessoas pela divulgação de determinados padrões de beleza, interferindo na construção de suas imagens próprias, de modo consciente ou não.

As fotografias se mostraram tão representativas do ato de brincar no cotidiano quanto as figurações, não foram redundantes e ainda puderam ampliar e deslocar os significados dos conteúdos registrados através da variação nas formas de representação de aspectos do real. Ambas as linguagens contribuíram de maneira fundamental para a aproximação com o imaginário e repertórios culturais individuais e grupais dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

O quesito “forma” mostrou maiores possibilidades de análise. A forma utilizada pelas crianças e jovens abarcou os seguintes pontos: angulação ascendente, descendente ou linear da câmera, plano horizontal e vertical e diagonal (que mostrou uma certa inovação nos modos de uso da câmera e de registro de elementos do real), e enquadramento centralizado ou descentralizado.

Nesse caso, mais particularmente, ao primeiro ponto soma-se o segundo, pois ambos decorrem de um mesmo princípio, o hábito de se olhar para o ambiente a partir da altura dos olhos, que vai ao encontro da linha do horizonte e, a forma da câmera que se amolda a essa particularidade humana. O que as crianças e jovens basicamente produziram foram fotos com ângulo linear e no plano horizontal o que permite dizer que isso deriva e é uma intersecção de: uma proximidade com o olhar cotidiano que lançam ao redor quando não mediado pela máquina, de uma predisposição do próprio formato da máquina (embora não seja limitante), de um padrão cultural, veiculado através da mídia, que produz mais fotos no plano horizontal (jornais, outdoors) e de uma intenção para se registrar um campo maior de visão, facilitado, sem dúvida, pelo plano horizontal ao invés do plano vertical.

Quanto ao enquadramento, o que chamou a atenção, pelo inusitado e não pela quantidade de representações, foi o deslocamento da situação do centro da foto. Existe, um padrão cultural que segue a linha da centralização, embora existam fotógrafos que desafiem essa tradição, e isso não apenas no que concerne a fotografia, envolvendo a pintura e o cinema. Quem a produziu não a classifica como “erro” e não a abandona de lado, entretanto, para o outro que a vê, é preciso estar ciente do contexto em que a foto foi feita e das intenções do produtor, através de uma complementação oral por parte desse. Mas, para o produtor, sua imagem é auto-suficiente, supostamente “falando por si mesma”.

O que fica registrado na imagem é um detalhe da situação ou a intenção daquele que a produziu, já que o instante “fugiu” e somente foi possível registrar um fragmento dele. Então, quando se olha para a foto o que se tem é a lembrança que a imagem provoca daquele momento. Pode-se arriscar dizer que tais imagens foram as mais “realistas”, pois o presente é sempre fugidio e o fotógrafo não se “rendeu” às limitações da máquina, ou seja, não fez o “real” caber no retângulo do visor. A originalidade desse tipo de produção encontra- se aí.

Diz Gombrich (1983) que: quando nos é dada a impressão geral de uma cena, temos capacidade, nós mesmos, de acrescentar os detalhes complementares (p. 351). (...) Num momento qualquer, só conseguimos focalizar um ponto com nossos olhos, e tudo o mais nos parece um amálgama de formas desconexas. Podemos saber o que são, mas não as vemos (p. 410).

Sobre as representações dos adultos (incluindo as educadoras e a pesquisadora) as análises se relacionaram também aos conteúdos, as intenções que nortearam o que foi e o que não foi fotografado e como fizeram as fotos.

Começando pelas educadoras, algumas fotos foram feitas no interior das salas de atividades, porém, em sua grande maioria, mostraram situações ocorridas no exterior do Projeto Sol, sempre em dias de sol ou nublados, sem chuva. As próprias falas delas, ao manusearam as fotos feitas, mostraram seus interesses no momento do registro: “que legal que pegou (o chute) no ar!”, “ficou tão longe (o plano), pensei que fosse ficar mais perto. Devia ter ido mais perto”, “quis pegar o gol e a tacada (do futebol e do bétis)”, “apareceu a preparação da brincadeira”, “ficou desfocada (por causa da tentativa de pegar o movimento ou um close)”, “gosto tanto de corda”, “queria pegar no ar (o pulo das crianças sobre a corda)”. Além desses interesses apareceu também a preocupação de registrar a participação do adulto no momento do jogo e/ou da brincadeira, como supervisor ou participante mesmo e, momentos de afetividade corpo-a-corpo entre adultos e crianças e atividades de jogos e brincadeiras de regras.

Quanto à forma, apareceram fotos feitas em ângulos lineares (em sua grande maioria), descendentes e ascendentes (poucas tentativas). A produção de registros no plano horizontal superou e muito aqueles feitos sob o plano vertical. Apenas uma das educadoras não efetuou registros em plano vertical. O uso do plano horizontal amplia as possibilidades de se recortar maiores partes do real, cabendo mais pessoas e o todo da situação, através de um afastamento do fotógrafo em relação ao seu intento. Ele atém-se mais especialmente em aspectos gerais das situações e dos fotografados. O plano vertical facilita tomadas de detalhes e mostra a preocupação do fotógrafo em registrar as cenas mais significativas para si, com isso, reduz o campo de amplitude mas revela preocupação com pormenores, com cenas particulares, através de uma aproximação do fotógrafo com a situação. Todas as fotos seguiram o enquadramento padrão, centralizado.

Comparando as produções dos adultos-educadores apareceram algumas particularidades relacionadas à busca de padrões estéticos diferentes por cada uma delas, à maior ou menor experimentação de composições técnicas, à maior ou menor complexidade formal, revelando diferentes gostos e estilos individuais (a cultura de imagens que permeia o imaginário).

As fotos produzidas pelo adulto-pesquisador, no que diz respeito ao conteúdo, mostraram a preocupação de apresentar o decorrer ou o engendrar de alguns jogos e/ou brincadeiras através do recurso da seqüência de cenas e, por meio disso, mostrar situações paralelas ou que ocorriam durante o desenrolar de um jogo e/ou brincadeira, ao mesmo tempo, porém não envolvendo todos os participantes, o que acabaria rompendo com a situação imaginária que permeia o jogo e/ou a brincadeira. Além disso, foram registradas as brincadeiras de iniciativa da própria criança ou jovem como: atirar aviãozinho, empinar capucheta, paradas-de-mão, briguinhas de mentira, desenhos com giz no chão e nos tijolos etc. Houve a preocupação em não registrar apenas os momentos felizes que acompanharam o brincar, como os sorrisos e as comemorações de gols, pontos e vitórias; mas também os desapontamentos com os erros, com a perda do gol, com a demora para a chegada da vez, os conflitos na fila de espera etc. Apareceram meninos e meninas de diferentes idades interrelacionando-se e os adultos-educadores coordenando os grupos.

Quanto à forma, pode-se dizer que prevaleceu o ângulo linear e descendente e, o plano horizontal prevaleceu ao plano vertical, embora possa-se dizer ainda, que existia uma predileção pelos recortes de detalhes e situações e pelos closes. Não houve experimentação de composição quanto ao recurso do enquadramento, limitando-se ao enquadramento padrão, centralizado.

Pode-se dizer, então, que os adultos, os jovens e as crianças viram a atividade de brincar de maneiras diferentes, o que possibilitou formas de registros diferenciados, mas pode-se dizer ainda, que as possibilidades oferecidas pela máquina fotográfica influenciaram aquilo que se pretendeu representar a partir dessa linguagem.

Os adultos seguiram padrões culturalmente bem definidos de construção da foto – o que mostra a sua internalização e relação maior com o imaginário instituído social e culturalmente – embora os olhares fossem diversos. A pesquisadora produziu fotos com base em objetivos e interesses claros e a partir de um referencial teórico anterior sustentado pelo contato com leituras bibliográficas sobre o tema. Os jovens e as crianças, apesar do consumo cultural de imagens via meios de comunicação, e pela falta de oportunidade de agirem, freqüentemente, como produtores de imagens fotográficas, realizaram fotos mais ousadas, inusitadas e inesperadas – diante do padrão -, buscando o fugidio e o efêmero, mostrando combinar elementos de maneira imaginativa e criadora.

Três aspectos podem ser salientados como reveladores dessas diferenças: a maior ou menor familiaridade e manuseio do instrumento fotográfico e de suas técnicas de produção imagética, o tempo de socialização que cada um possui e que influencia o processo de internalização de hábitos, posturas e condutas mais aceitos socialmente, e as possibilidades maiores de criação com elementos do real pela atividade de imaginação diante dos conteúdos já instituídos pelo imaginário.

Essa variedade de produções e, logo, de formas de ver, lidar e representar o real mostra como os universos de adultos, jovens e crianças têm suas particularidades, mas não são estanques, sofrendo influências entre si, afetando-se e podendo produzir mudanças nos modos de ambos.

 

Imaginário e deslocamentos

Deslocamento implica em movimento, em sair do lugar, em experimentar novas posições, novos estados de ser, em novas direções. É um meio de se abrirem portas e percepções, logo, de possibilidades de aprendizados. Podem envolver deslocamentos físicos, emocionais, culturais etc. (KREMER, 2003, p. 26-27). E os deslocamentos podem provocar mudanças nas formas de apreensão do real – do universo físico e social – e, portanto, nos modos de significação compostos por repertórios do universo das imagens mentais. E as representações do imaginário nas suas formas de expressão podem dar indícios de tais mudanças e deslocamentos, tanto em nível individual quanto social.

Os deslocamentos são as possibilidades de se escapar aos sentidos fixos. É como a experiência do nômade que se deixa atravessar pelo habitual e pelo inusitado e, portanto, pelo múltiplo e pelo móvel (SANTOS, 2002, p. 21). Se entendermos, momentaneamente, o sentido do deslocamento como o de desterritorialização – segundo o pensamento de Deleuze e Guattari –, sua função “é o movimento pelo qual ‘se’ abandona o território. É a operação da linha de fuga” (p. 99).

Os deslocamentos provocados nesta pesquisa aconteceram para os diversos sujeitos envolvidos nela, durante o processo de sua realização e, posteriormente, quando do retorno ou da devolutiva das análises, após um período de distanciamento. Necessariamente, os sujeitos passaram a ocupar outros lugares, a ver e a perceber o entorno, o real, de outros jeitos, pela socialização dos diferentes conteúdos e formas de representá-lo a partir dos conteúdos do imaginário de sujeitos em condições variadas de idade, gênero, classe social e momentos de vida.

Para as educadoras os deslocamentos se deram sob a forma de relativização nos modos de ver, encarar, lidar, entender, interpretar as relações sociais, pedagógicas, educativas, intergeracionais, principalmente focando a atividade de brincar.

Para a pesquisadora a relativização ampliou, inclusive, o saber inicial sobre o assunto do brincar entre crianças e jovens e mostrou aspectos que não eram considerados como indícios dessa atividade lúdica. O contato com as representações imaginárias de outros grupos evidenciou aspectos que eram desconhecidos. Dessa forma, essa mudança de lugar e de ponto de vista contribuíram para que se saísse do lugar comum.

Para as crianças e jovens, os deslocamentos e inevitáveis mudanças se deram ao tomar conhecimento de diferentes formas de representação do cotidiano e dos conteúdos selecionados por seus pares. Mais especialmente, no uso do instrumento fotográfico, um efeito provocado por ele e chamado de paralax – que provoca o não alinhamento do visor da câmera e o obturador –, fez com que necessariamente se deslocassem os pontos de vista e as intenções de registro e seus resultados finais.

Como intenção maior, este artigo procura provocar deslocamentos também nos leitores, a partir da externalização de modos de representação do imaginário a partir do real, com uso de recursos gráficos e verbais, por diferentes grupos etários e localizados em um ambiente educativo, porém não-escolar, acerca do tema do brincar como atividade lúdica.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: rsieirof@hotmail.com

Recebido em 05/05/2006
Aceito em 17/08/2006

 

 

* Este artigo, reformulado, compõe parte da minha dissertação de Mestrado, defendida em 1998, na Faculdade de Educação – Unicamp, sob orientação da profa. Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simson, intitulada “Entre nós, o Sol: relações entre infância, cultura, imaginário e lúdico nas atividades de brincadeira em contexto de educação não-formal”. Foi publicada em formato de livro no ano de 2001, com patrocínio da Fapesp ** Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Educação – Unicamp, pesquisadora do Centro de Memória – Unicamp e professora de Ensino Fundamental
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Segundo o Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, vol. v, elaborado por Antenor Nascentes. Bloch Editores, Rio de Janeiro, p. 76 2 Texto retirado do link: Aim of the BODY WORLDS exhibition, no site: www.bodyworlds .com
2 Esse espaço institucional não-formal localizado na cidade de Paulínia, após 18 anos de funcionamento, foi extinto em meados de 2001De março à setembro de 2003, em Busan - Coréia, por exemplo, foram registrados 1.117.769 visitantes. No mesmo ano, também expôs em Stuttgart, no mês de março, com 106.393 visitantes e em Munique, de fevereiro à agosto, com 860.382 visitantes
3 Às crianças e jovens foram oferecidas possibilidades de registro sob a forma de imagens (pictórica e fotográfica) como instrumentos de representação do imaginário a partir de situações do cotidiano. Para os/as educadores/as foram oferecidas duas possibilidades, o registro fotográfico e as narrativas biográficas. Este último aspecto não será contemplado neste artigo

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