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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

O hospício e a cidade: novas possibilidades de circulação do louco

 

The asylum and the town: new circulation possibilities for the insane

 

El hospicio y la ciudad: nuevas posibilidades de circulación del loco

 

 

Audrey Rossi Weyler*

Universidade Ibirapuera

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, fruto de uma pesquisa de mestrado, tem como objetivo realizar uma análise crítica sobre a construção das passagens do manicômio para as residências terapêuticas, atentando para as possibilidades e impossibilidades de deslocamentos do “louco” pelos espaços da cidade. Durante oito meses, com apoio no referencial teórico de Kaës, Bleger e Pichon-Rivière, foram realizadas semanalmente observações participantes de duas residências, no município de Campinas, no interior de São Paulo. Algumas questões nortearam a pesquisa: como dar conta da passagem do hospício para as residências de modo que o indivíduo não fique ocupando o mesmo lugar instituído do “doente” e do “louco”? O desafio colocado, no cotidiano das residências terapêuticas, refere-se, entre outras coisas, à construção de diferentes espaços de circulação para o louco ou para a loucura na vida da cidade. Trata-se aqui da possibilidade de construção de novas formações intermediárias que assegurariam a continuidade e a articulação psíquica entre os expacientes psiquiátricos e os outros habitantes da cidade, com os diferentes códigos e valores culturais e sociais.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Desenraizamento, Circulação, Intermediário.


ABSTRACT

The present work aims at detailing the discussions about therapeutic residences, starting with a critical analysis of the construction of transitions from asylums to residences, and considering the circulation possibilities and impossibilities for the insane into town´s spaces. During eight months, with theoretical assumptions of Kaës, Bleger and Pichon-Rivière, weekly participative observations were performed in two therapeutic residences, in the city of Campinas. Some reflections guided the research: how is it possible to guarantee the inclusion of insane people into the residences, without remaining in the previous institutional positions of “sick” and “insane”? The challenge we find in the daily life of those therapeutic residences involving, among other things, the creation of different spaces of circulation in the city life for the insane people or for insanity itself. How can one create transitions that can support transformations? We are talking here about the possibility of creating new intermediary formations that would be able to ensure the continuity and the psychic articulation between former psychiatric patients and other city residents, with their different social-cultural codes and values.

Keywords: Psychiatric reform, Unrooting, circulation, Intermediary.


RESUMEN

Este artículo, resultado de una investigación de maestría, tiene el objetivo de realizar un análisis crítico sobre la construcción del tránsito del manicomio para las residencias terapeuticas, apuntando para las posibilidades e imposibilidades de desplazamientos del “loco” por los espacios de la ciudad. Durante ocho meses, con apoyo en el referencial teórico de Kaës, Bleger y Pichon-Rivière, fueron realizadas semanalmente observaciones participantes de dos residencias, en el municipio de Campinas interior de São Paulo. Algunas interrogantes condujeron la pesquisa: Cómo conseguir realizar el tránsito del hospicio para las residencias de modo que el individuo no ocupe el lugar instituído de “enfermo” y de “loco”? El desafío cotidiano de las residencias terapeuticas consiste, entre otras cosas, en la construcción de diferentes espacios de circulación para el loco o para la locura en la vida de la ciudad. Tratamos aquí de la posibilidad de construcción de nuevas formaciones intermediarias que asegurarían la continuidad y la articulación psíquica entre los expacientes psiquiátricos y los otros habitantes de la ciudad, con los diferentes códigos y valores culturales y sociales.

Palabras clave: Reforma psiquiátrica, Desarraigamiento, Circulación, Intermediario.


 

 

“O espaço se produz, de tempos em tempos, como estrutura arquitetônica, como representação cultural, como metáfora da experiência, como dimensão psicológica ou como possibilidade terapêutica. O espaço, de fato, é uma realidade complexa de interações, de representações, de cenas e de retro-cenas, sociais e pessoais” (VENTURINI).1

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado sobre as propostas de residências terapêuticas para ex-pacientes psiquiátricos no Brasil. O objetivo desse artigo é refletir sobre a construção da passagem do hospício para as casas, atentando para as possibilidades e impossibilidades de deslocamentos do “louco” pelos espaços da cidade.

Nesse ponto, abordamos, inevitavelmente, a íntima articulação entre a vida social das cidades e a história da psiquiatria no Brasil. A atribuição ao “louco” do estatuto de “doente mental” coincide com o momento histórico em que o saber médico foi convocado a participar do processo de re-ordenamento dos espaços urbanos, na passagem do século XIX para o século XX.

A emergência do regime republicano no país foi acompanhada por uma série de mudanças sociais e econômicas que exigiram medidas rigorosas e eficientes de controle social, de modo a ordenar o crescimento das cidades e das populações. O reconhecimento e o gerenciamento de tais mudanças envolveram a articulação de diferentes disciplinas. A medicina, em associação ao urbanismo e à engenharia, começou a tomar o espaço urbano como propiciador de epidemias e contágios, assumindo progressivamente o caráter de intervenção sobre o corpo social. Os cuidados dirigidos, sobretudo, à saúde dos cidadãos ampliaram-se para a cidade e para a regulamentação de diferentes usos do espaço urbano. Os temas referentes à cidade constituíam-se como centrais, a multidão trazia consigo o sério risco de propagar diferentes epidemias, inclusive, de ordem psíquica. Cabia, então, aos médicos alienistas a tarefa de identificar e isolar os indivíduos tidos como nocivos e degenerados passíveis de contaminar todo o corpo social com o vírus da desordem. Era preciso expulsar o louco das ruas e do convívio da cidade como uma medida sanitária para a manutenção da ordem social.

Apoiado em uma promessa de saúde do corpo social, o internamento nos hospícios contrapunha-se à temível imagem da desordem urbana, da sujeira e da subversão dos valores mais caros às elites pela imposição de uma versão higiênica, disciplinada, pacífica, capaz de restaurar no próprio mundo do desatino a imagem da ordem almejada. Foi, neste contexto e apoiada sobre esses ideais, que a psiquiatria se instituiu, no Brasil, e os hospícios e as colônias para alienados, enquanto instituições médicas, surgiram como promessa de um mundo regulado (CUNHA, 1990).

É importante considerar, entretanto, que o hospício, ou manicômio, como uma “morada” voltada, nos dois últimos séculos, para os “loucos” não pode ser pensado simplesmente como um espaço à parte da cidade e de suas relações. Essa instituição funda-se apoiada em um conjunto de representações e de “saberes supostamente neutros e científicos” que confirmam o louco como perigoso, incapaz e, também, sobre alianças e pactos2 excludentes estabelecidos entre diversos atores sociais que pressupõem a retirada do louco do convívio social e cotidiano. O hospital psiquiátrico procura cumprir a função psíquica e social de manter a todos, os “bons e retos” habitantes da cidade, “sãos e salvos” da loucura, de seus perigos e vertigem.

De acordo com Martins, há, na matriz brasileira de relações sociais, a predominância da lógica desumana do “estranho”, onde estão presentes enormes dificuldades no reconhecimento do outro, na sua aceitação como diferente e igual. As interações sociais aparecem profundamente marcadas pela estigmatização e estereotipia que lançam grupos e modalidades sociais distintas em uma mesma “vala comum”, homogeneizando, sob um estigma3, a pluralidade e a diversidade humana. Há, aqui, a lógica da inclusividade operando sobre uma base hierarquizante, um processo que se desenvolve a partir de uma interação excludente. Estão presentes na sociedade brasileira características como pluralidade, tranversalidade, policulturalismo que se relacionam, entretanto, sobre o fundamento das desigualdades sociais, em que a diferença provoca interações de rejeição e hostilidade (MARTINS, 1997, citado por ESCOREL, 1999).

De acordo com Fernandes,

toda cultura comporta necessariamente um dispositivo de autorepresentação, que implica a representação daquilo que ela não é (KAËS, 1997), daquilo que lhe é estrangeiro ou daquilo que lhe é atribuído, de fora. Neste sentido podemos pensar que a cultura (e nela as formas do morar) se constrói a partir “de dentro” mas também “de fora”, através do efeito exercido sobre ela pelo trabalho de representação, que forma a figura do estrangeiro. A diferença está no coração da formação da cultura, como elemento essencial. Trabalhamos, aqui, com a hipótese de que formações psíquicas que permitam estabelecer as ligações, os elos, estariam na base da trama psíquica da experiência cultural. Tais formações se construiriam, se testariam e se validariam nas diversas maneiras de ligação e de agrupamento que formam a cultura e a cidade (FERNANDES, 2004, p. 83-85).

Como, então, dentre essas diversas maneiras de ligação e de agrupamento, garantir o caráter estrangeiro, o diverso e, como escapar do ser estrangeiro e ser expulso do espaço urbano? Como dar conta da passagem do hospício para as residências de modo que o indivíduo não fique ocupando o mesmo lugar instituído do “doente” e do “louco” que ocupava antes nos hospitais psiquiátricos? Qual seria o conjunto de representações acionado na população da cidade, nos trabalhadores em saúde mental e nos próprios ex-internos a partir dessa nova possibilidade de convívio com o “estrangeiro”?

Possibilidades distintas de moradas e de circulação para os loucos apóiam-se em um complexo conjunto de fatores, como a retomada de direitos fundamentais desse grupo social, o rompimento com os paradigmas, práticas e funções da psiquiatria moderna que legitimam a invalidação social desses indivíduos, além da construção de outros e novos pactos que favoreçam transformações dos lugares tradicionalmente instituídos para o “louco”.

A implementação dos serviços substitutivos aos manicômios, no âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira, tem acontecido com maior intensidade nas duas últimas décadas. Neste contexto, houve o crescimento, principalmente no início dos anos 1990, do número de propostas de residências terapêuticas, oficialmente denominadas de Serviços Residenciais Terapêuticos. As passagens do hospital para as residências transitam e envolvem diferentes níveis, planos e atores. Há de se levar em conta o plano político que define um conjunto de políticas públicas que preconiza saída do hospital para as casas no sentido de “reinserção social” dos ex-pacientes psiquiátricos; o plano institucional que implica a eliminação e a transformação dos manicômios em dispositivos substitutivos em saúde mental com propostas particulares de acompanhamento de seus usuários; e o plano dos sujeitos envolvidos que têm, nesta situação, novas exigências e outras funções psíquicas requeridas para a construção de novas ligações (vínculos).

A proposta de reinserção social dos diversos Serviços Residenciais Terapêuticos é significativamente complexa e engloba muitos aspectos além da “simples retirada da população interna dos manicômios” para a nova morada e circulação pela cidade. Transitamos todo o tempo pelo delicado e ambíguo terreno da dialética inclusão/ exclusão social que nos impõe como desafio captar o enigma da coesão social sob a lógica da exclusão social, econômica, subjetiva, física e mental.

É preciso considerar, antes de mais nada, ao acompanharmos as histórias de vida de ex-pacientes psiquiátricos, trajetórias profundamente marcadas pelo desenraizamento. A errância se faz, muitas vezes, presente antes e entre as internações. Expulsos de seus núcleos familiares ou de suas comunidades de origem, os indivíduos tomados como “loucos” passam a perambular entre um espaço e outro, encontrando poucas condições para se fixarem. As trajetórias seguem por becos, vielas, delegacias, albergues, hospitais públicos, manicômios, iniciando assim, muitas vezes, o que pode ser considerado como uma “carreira psiquiátrica”. Muito se perde com essas tantas mudanças: documentos, objetos pessoais, contatos, lembranças. A cidade com suas pedras, curvas, ruas e a casa com seus cantos e contos perdem sua potência como suportes da memória. A marca principal acaba sendo os deslocamentos e as transferências.

A cidade para onde os ex-pacientes psiquiátricos retornam, dessa forma, dificilmente será a mesma, seja do ponto de vista de sua localização geográfica, seja a partir de suas novas configurações espaciais ou de outras formas diferenciadas de relacionamentos e encontros sociais. Muitas vezes, esses indivíduos não voltam para suas cidades de origem, e mesmo quando o fazem, encontram um lugar conhecido/desconhecido, organizado a partir de Bibliografia espaço temporais bastante distintas do período anterior às longas internações. Esses “novos moradores da cidade” devem se deparar com um espaço “aberto e livre” que se apresenta, muitas vezes, de maneira hostil, repleto de ritmos variados, imprevisíveis e até enigmáticos.

Trata-se de uma importante problemática que nos remete à questão do enraizamento e seus estreitos laços com a historicidade desses sujeitos e suas experiências de perda dos suportes materiais da memória tendo em vista as muitas expulsões e mudanças sofridas pelas configurações urbanas.

Fernandes (2004) ressalta que a cidade tem “afogado” as pessoas. São novas as exigências, os contatos e os lugares que a cidade oferece aos seus moradores. Mas, quais são os lugares possíveis e ofertados para um ex-morador psiquiátrico que volta a circular pelo espaço urbano? Quais são as possibilidades de enraizamento e de apego à cidade?

De acordo com a autora, há que se ter uma certa fisionomia e uma anulação da biografia, para se entrar na cidade. As histórias de vida, no geral, devem ser tecidas com outros fios, que não chegaram a passar pelos muros dos manicômios. O desafio é procurar saber como a cidade constrói seus lugares, não mais revestidos da qualidade segregadora e “excludente” dos manicômios. É possível construir caminhos de volta? É possível construir outros caminhos dentro da cidade? Quais são as condições que a cidade, a casa, essa nova inserção têm tido para assegurar a continuidade da existência desses indivíduos que viveram tantos anos em uma instituição fechada e total?

Apoiado em Winnicott, Kaës (1979) afirma que a continuidade está assegurada, dentre outras coisas, pela herança cultural. Esta, como uma extensão entre o indivíduo e seu entorno, articula o código psíquico pessoal com o código social. A experiência de ruptura denuncia que a herança cultural não se encontra, então, em condições de assegurar a continuidade da existência. Esta ruptura é vivida, por exemplo, pelo migrante, pelo camponês e, poderíamos sugerir também, pelos pacientes egressos de hospitais psiquiátricos que vão viver na cidade e que encontram dificuldades no uso deste “espaço potencial”. Este indivíduo, em passagem, pode perder, pela falta de suporte do código que já não metaboliza nenhuma significação, a possibilidade de articular e comunicar sua subjetividade com uma cultura e uma sociabilidade.Trata-se de um momento de acentuada desorganização que constitui uma dolorosa experiência de despojamento e perda.

Podemos pensar que esta experiência de perda da confiabilidade dos laços de pertencimento a um grupo e a uma forma comum de sociabilidade é, muitas vezes, vivida pelo indivíduo quando é retirado de seu meio social e internado em um manicômio. Nesta passagem, perde-se a possibilidade de se construir uma ponte, um espaço de ligação que possa manter a experiência de continuidade psíquica. Nos espaços do manicômio, as experiências e representações dos pacientes, seus elos com a família, com a cidade e com a cultura sofrem severos ataques pela “terapêutica” proposta. O princípio fundamental do isolamento cria um terreno bastante árido e inóspito para experiências tão importantes como o “re-memorar”. O elo, com a ligação paradoxal da formação intermediária4, é atacado. A reunião, através de uma ponte entre partes heterogêneas, sem abolir as propriedades dos elementos ligados, não pode se estabelecer. No manicômio, as representações psíquicas trazidas pelos internos acerca de suas experiências sobre o morar, por exemplo, não encontram campo fértil para se atualizarem e entrarem em circulação com os pacientes, equipe técnica, regras da instituição etc.

Na construção da passagem do hospital para as casas, por sua vez, outras funções intermediárias de ligação e mediação são requeridas. É preciso que se construa uma ponte entre as funções psíquicas cumpridas pelo manicômio e aquelas requeridas pelo novo serviço das moradias para os diferentes sujeitos envolvidos. A descontinuidade (explicitada na experiência de ruptura e implicada nesta passagem) não pode ser anulada. É preciso que os dois lados (as memórias e experiências nos manicômios e aquelas referentes à casa e à cidade) estejam paradoxalmente presentes para que a nova ligação seja construída e o trabalho psíquico requerido propicie transformação.

Mayol aponta que o delicado processo de (re)apropriação do espaço urbano, implica um conjunto de ações que recomponham o ambiente urbano a partir do investimento dos sujeitos. Tal processo, segundo o autor, ganha em complexidade à medida em que se estabeleça uma contínua repetição do engajamento do corpo do morador com o bairro e com a cidade, com: conhecimento dos lugares, trajetos cotidianos, relações de vizinhança, relações com comerciantes, sentimentos difusos de estar no próprio território, “tudo isso como indícios cuja acumulação e combinação produzem, e mais tarde organizam o dispositivo social e cultural, segundo o qual o espaço urbano se torna não somente o objeto de um conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento” (MAYOL, 2000, p. 45).

No bairro, a proximidade e a coexistência concreta em um mesmo espaço urbano favorecem o costume recíproco da vizinhança e os processos de identificação e reconhecimento. Nos encontros estabelecidos entre os habitantes da cidade e os indivíduos tomados como loucos, quais podem ser as possibilidades de reconhecimento mútuo?

Outros pactos devem ser construídos para que não se reitere uma experiência de “inserção marginal” ou de falsa “aceitação positiva” do louco na cidade. Os pactos estabelecidos anteriormente supunham a exclusão deste segmento social e a formação de novos arranjos é muito importante para que haja a possibilidades de transformações. Trata-se da possibilidade de construção de novas formações intermediárias que assegurariam a continuidade e a articulação psíquica entre os ex-pacientes psiquiátricos e os outros habitantes da cidade, com os diferentes códigos e valores culturais e sociais. Essas formações psíquicas comuns aos sujeitos em sua singularidade e ao conjunto grupal assegurariam as mediações entre os espaços intrapsíquicos, intersubjetivos e transubjetivos (KAËS, 1997).

Fernandes (2004) nos alerta para a importância de serem realizadas análises que relacionem a modernidade e a metropolização, a mundialização e a fragmentação do espaço urbano de forma a facilitar o diálogo entre os projetos para a construção dos espaços para a cidade, os projetos da cidade (saúde, educação, urbanismo, cultura) e os projetos de vida de seus habitantes.

Segundo Kaës (2003), aquilo que chamamos de “pós-modernidade” generalizou as experiências da transplantação, do exílio e do desenraizamento, acentuando a violência. Nessa experiência, de acordo com o autor, nós somos confrontados não somente com o que há de estrangeiro no outro, mas primeiramente e, sobretudo, ao que surge em nós de desconhecido, de indiferenciado e de estranhamento inquietante. O contexto social torna-se, então, incoerente, incompreensível e sem garantias. As regras que governam a interdependência grupal não são mais reconhecidas. As produções culturais, as maneiras próprias de viver, de morar e de pensar, apoiadas nessas regras, fragmentam-se.

Na construção de projetos de vida dos ex-pacientes psiquiátricos, pensamos ser muito importante que esses experimentem a impressão de suas marcas próprias no espaço urbano, encontrando, com isso, possibilidades para estabelecerem ligações entre o eu/não eu, entre o passado, o presente e o futuro.

O encontro com subjetividades que, historicamente, aparecem associadas ao caos e à desordem urbana implica, entre outras coisas, o alargamento do “mundo comum” pela possibilidade de algum diálogo entre diferentes narrativas, memórias, histórias, tradições e sonhos em uma cidade que muitas vezes tende a se fechar em espaços homogêneos e excludentes5.

A construção de um outro lugar social para a loucura que não seja o da doença, da anormalidade, da periculosidade, da incompetência e do erro implica, entre outras coisas, uma detalhada revisão do conjunto de representações que atravessam a sociedade e que acompanham os indivíduos tomados como loucos. As novas tecnologias atreladas às recentes políticas públicas na área de saúde mental não podem ser pensadas e abordadas sem que se leve em consideração as atuais gerações de práticas e imaginários sociais que envolvem a loucura (FERNANDES, 1999).

A abertura de casas para pessoas tomadas como loucas e que passaram por inúmeras e longas internações psiquiátricas traz no cerne de sua proposta implicações que tangem, sobretudo, a questão dos direitos civis, sociais e políticos desse segmento da população. A retomada de experiências que sofreram graves ataques nos hospitais psiquiátricos através de uma “arqueologia virtual” do presente, em busca de fragmentos de informações, de marcas históricas e psíquicas que entreguem, novamente, a esses indivíduos uma possibilidade de vida e trajetória próprias, toca, entre outras coisas, na relação do louco com a cidade. A problemática dos direitos sociais está presente nas contínuas transformações da cidade. É nela que se constrói e se garantem a identidade do cidadão e de sua história pessoal e coletiva, pois nada há de pessoal que não conserve as marcas do que o antecedeu. As pedras da cidade servem, de acordo com Bosi (2003), como apoios privilegiados para a memória e nos dão um assentimento à nossa posição no mundo.

Torna-se, então, imprescindível que se considere que a memória da cidade também se encontra apoiada nos manicômios e nas experiências que tantas pessoas fizeram durante o período em que ficaram internadas. Há um caminho de volta a ser construído, há um grande conjunto de lembranças, de marcas físicas e subjetivas e de relações que não pode novamente ser abandonado ou deixado de lado nesta passagem para a “nova morada”. A violência da internação em hospitais psiquiátricos não pode ser esquecida. Quando, apenas negada, há o risco de sua reprodução cotidiana em práticas mais sutis de controle, opressão e estigmatização.

As instituições psiquiátricas são relativamente recentes, existem há menos de três séculos, e têm, segundo, Saraceno (1999), entre seus eixos centrais o movimento de se estabelecer como “residências para os indivíduos tomados como loucos”. Os manicômios configuraram-se, ao longo da história da psiquiatria, como “residências coagidas”, construídas a partir de um projeto total e controlado, onde a possibilidade dos indivíduos habitarem esse espaço sofreu diferentes medidas de aprisionamento. O morar, no entanto, transcende e antecede as instituições psiquiátricas. Ele não se restringe apenas aos aspectos assistenciais e terapêuticos dos diferentes dispositivos de saúde. Esta transcendência deve também ser levada em conta na implantação das várias propostas de residências para os indivíduos acometidos por sofrimento psíquico. O morar diz respeito a uma das experiências mais fundamentais do ser humano, relaciona-se com a possibilidade de uma ligação profunda com o ambiente ou com uma pessoa que fornece acolhida, proteção e suporte. A relação da casa com o que poderia ser entendido como uma função, sobretudo, materna, está presente já nos hieróglifos egípcios, onde “casa” ou “cidade” poderiam surgir também como símbolos de “mãe” (MUNFORD,1998). O morar relaciona-se com a casa, com a cidade e com o trânsito fundamental entre essas duas dimensões.

A loucura, enquanto modalidade de experiência subjetiva, não é um assusto estrito das práticas médicas e psicológicas. Da mesma forma, que o habitar a casa e a cidade está para além das práticas e dispositivos de controle. Trata-se da construção de espaços outros para o louco e para a loucura na vida da cidade.

Na construção de um outro lugar social para a loucura, talvez seja fundamental aderirmos à proposta ética e política do arquiteto Michellucci de transformar e reinventar o espaço, com o objetivo de favorecer a passagem de espaços controlados pela razão burguesa para lugares onde se experimentam a liberdade e seus riscos (SARACENO, 1999).

 

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Endereço para correspondência
E-mail: dreyrw@uol.com.br

Recebido em 18/07/2006
Aceito em 04/10/2006

 

 

* Professor de Literatura Brasileira e Literatura Infantojuvenil (graduação e pós-graduação) no Centro Universitário Nove de Julho (UNINOVE); pós-doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
1
In AMARANTE, 2001, p. 359
2 A questão dos pactos sociais e da sua ruptura ou permanência por diferentes grupos é muito densa. Fernandes ressalta que as noções de contratos, de pactos e de leis estão no coração da intersubjetividade e da sociabilidade. É preciso ressaltar, no entanto, que “a noção de pactos, contratos e alianças, para a Psicanálise, é constituída sobre outra base”. Não se refere à salvaguarda dos direitos individuais, mas às condições constitutivas do sujeito do inconsciente. Os Pactos, as Alianças Inconscientes, tópicas do inconsciente, reúnem sob essa denominação os acordos inconscientes estabelecidos entre vários sujeitos. “Elas se formam nessa conjunção que não é aquela do coletivo, mas da intersubjetividade. As alianças inconscientes são formações de uma aparelhagem psíquica dos sujeitos de um conjunto intersubjetivo: casal, grupo, família, instituição. Elas determinam as modalidades de ligação (vínculo) entre os sujeitos e o espaço psíquico do conjunto através deles” (Kaës,1993, p. 278). “Aliança Inconsciente é pensada como uma formação psíquica intersubjetiva construída pelos sujeitos de um vínculo para reforçar, em cada um deles, certos processos, certas funções, ou certas estruturas das quais eles tiram um benefício tal que a ligação que os mantêm junto, toma para sua vida psíquica um valor decisivo” (FERNANDES, 2004, p. 108-109)
3 Scarcelli, a partir das contribuições de Goffman afirma que “o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quanto um processo de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são pessoas e, sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtudes de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro” (GOFFMAN, 1992, p. 148- 149 citado por SCARCELLI, 2002, p. 20)
4 De acordo com Kaës, o intermediário seria “una instancia de comunicación: aquello que pertence a A y a B por los elementos que poseen em común; entre dos términos separados, discontinuos, en la separación, lo intermedio es una mediación, una vinculación en lo mantenido- separado; por lo tanto es una instancia de articulación, de diferencia, un lugar de simbolización. Lo intermedio es, por último, una instancia de conflictualización: de oposición entre elementos antagónicos. Por obra de estos tres caracteres, lo intermedio asegura una función de puente sobre una ruptura sostenida: un pasaje, una reactualización.En cierta manera, la crisis se produce, desde el punto de vista del sujeto, por los fracasos de esta articulación” (KAËS, 1979, p. 18). O autor ressalta ainda que o espaço intermediário não se constitui como uma área vazia e sim como um espaço disposto pela articulação psicossocial, que contribui tanto para a formação das bases de nossa psique, como para o fundamento psíquico dos conjuntos sociais, ou seja, tratamse de formações que não pertencem exatamente nem ao sujeito singular nem ao agrupamento
5 Josephson discute a tendência de organização homogênea dos espaços urbanos a partir do exemplo dos condomínios fechados em grandes centros do país e suas repercussões para as formas de sociabilidade. Segundo a autora “é nesses lugares, separados por grades, guardas e muros, que os moradores do bairro passeiam, marcam encontros, conversam, praticam esportes e se divertem. Configura-se, assim, um tipo de sociabilidade dos espaços fechados, quer ela aconteça nos espaços privados da casa ou do condomínio, quer se dê nos espaços semipúblicos dos shoppings. (...) A desqualificação e o apagamento dos espaços públicos, e as conseqüências disso na avaliação dos espaços privados da casa, redundaram em valorização da privacidade e desinteresse pelo espaço urbano, qualificado como perigoso e moralmente inferior. Isto terá correspondência na atitude de indiferença em relação a questões de interesse coletivo e a vínculos associativos e de compromissos mútuos” (JOSEPHSON, 1997, p. 152).

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