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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Permanências e mudanças no imaginário francês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII)

 

Permanences and changes in french imagery about Brazil (XVI to XVIII centuries)

 

Permanencia y cambios en el imaginario francés sobre Brasil (siglos XVI a XVIII)

 

Carmen Licia Palazzo*

Centro Universitário de Brasília, UniCeub

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo analisa os olhares franceses sobre o Brasil, do século XVI ao XVIII, objetivando detectar permanências e transformações em um estudo que privilegia a longa duração. O enfoque teórico adotado foi o da História Cultural com ênfase no estudo da formação de imagens do Outro. Como premissa básica foi aceito que os cortes cronológicos tradicionais da historiografia não correspondem às mudanças nas mentalidades, que se transformam muito lentamente. Levantou-se então a hipótese de que, nos relatos dos viajantes dos séculos XVI e XVII, dificilmente poder-se-ia encontrar uma forte evidência da chamada Idade Moderna. Durante todo o século XVI e até meados do XVII, os olhares sobre o Brasil estiveram largamente vinculados ao imaginário medieval. Só a partir do século XVIII é que se pode, então, observar uma ruptura com modificações significativas nas mentalidades. Altera-se, pois, a maneira de ver o Outro sob influência da História Natural e da Razão Iluminista, rompendo- se com a visão medieval de mundo, mas, por outro lado, abandonando um rico imaginário que muitas vezes havia sido a chave para melhor captar a diferença.

Palavras-chave: Viajantes, Imaginário medieval, Iluminismo, Alteridade.


ABSTRACT

This article addresses the French views of Brazil from the XVI to XVIII centuries, aiming at detecting permanences and transformations within the context of a study that favors the long duration. The theoretical focus adopted is that of Cultural History, with an emphasis on the study of the formation of images of Otherness. It was taken as a basic premise that the traditional chronological sections of historiography do not correspond to the changes in mentalities, which are very slowly transformed. A hypothesis was then established that in voyagers’ accounts of the XVI and XVII centuries, a strong evidence for the so-called Modern Age could hardly be found. All along the XVI century and until the middle of the XVII century, the views of Brazil were largely tied to the Medieval imaginary. It was only from the XVIII century onwards that a break could be seen, with significant changes in mentalities. The way of looking at Otherness is then changed under the influence of Natural History and the Reason of the Enlightenment, breaking with the Medieval view of world but, on the downside, letting go a rich imagery that had oftentimes been the key to a better understanding of the difference.

Keywords: Voyagers, Medieval imagery, Enlightenment, Otherness.


RESUMEN

Este artículo analiza las visiones francesas sobre Brasil, del siglo XVI al XVIII, con el objetivo de detectar permanencias y transformaciones en un estudio que privilegia la larga duración. El enfoque teórico adoptado fue el de la Historia Cultural con énfasis en el estudio de la formación de imágenes del Otro. Como premisa básica se acepta que los cortes cronológicos tradicionales de la historiografía no corresponden a los cambios en las mentalidades, que se transforman muy lentamente. Se levantó la hipótesis de que, en los relatos de los viajantes de los siglos XVI y XVII, difícilmente se podría encontrar una fuerte evidencia de la llamada Edad Moderna. Durante todo el siglo XVI y hasta mediados del XVII, la visión sobre Brasil estuvo ampliamente vinculada al imaginario medieval. Sólo a partir del siglo XVIII se puede, observar una ruptura con modificaciones significativas en las mentalidades. Se altera, así, la manera de ver el Otro bajo influencia de la Historia Natural y de la Razón Iluminista, rompiendo con la visión medieval de mundo, no en tanto, por otro lado, se abandona un rico imaginario que en muchas oportunidades fue vital para captar mejor la diferencia.

Palabras clave: Viajantes, Imaginario medieval, Iluminismo, Alteridad.


 

 

Analisar os de relatos de viajantes franceses sobre o Brasil, abordados na longa duração pode fornecer informações importantes sobre olhares que foram se transformando, mas nem sempre de acordo com os cortes cronológicos tradicionais que dividem a História em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Afirmar que os viajantes do século XVI e das primeiras décadas do século XVII já traziam em sua bagagem cultural as novas imagens que estariam sendo construídas pelo Renascimento é desconsiderar a força da permanência de mitos e maravilhas do período medieval e sua longa presença nas mentalidades européias. Trabalhamos, pois, com o questionamento da afirmação de que o século XVI e as chamadas Grandes Navegações se constituem no marco fundador da modernidade. Jacques Le Goff está entre os que contestam firmemente a noção de ruptura renascentista1, ao afirmar que

O passado respinga, sem dúvida, quando pretendemos sujeitálo e domá-lo com periodizações. Certas divisões são, contudo, mais destituídas de fundamento que outras para assinalar a mudança. Aquela a que se deu o nome de Renascimento não me parece pertinente (LE GOFF, 1994, p. 21).

Os relatos de viajantes dos séculos XVI e XVII se constituem em fonte privilegiada para o estudo das permanências do imaginário medieval em pleno período denominado moderno. Mitos e maravilhas são parte integrante da mentalidade daqueles que partem, sem dúvida fascinados pelas possibilidades de riquezas e de conquistas, mas também influenciados por antigas lendas e por obras como as de Jean de Mandeville e Marco Polo, entre outras. Pela possibilidade, enfim, do encontro com o fantástico.

A Europa, durante grande parte da Idade Média, produziu um significativo conjunto de relatos de viagens, tanto reais quanto imaginários. Os deslocamentos freqüentes associados a peregrinações, cruzadas e comércio marcaram as mentalidades e resultaram em um corpus importante de descrições do Outro. Fundação de santuários à beira-mar, descendência lendária de certas famílias que se pretendiam herdeiras de casamentos entre cavaleiros e mulheres--sereias, canções de trovadores galegos atribuindo sentidos simbólicos ao oceano, cultura de navegação transmitida e intercambiada entre moçárabes, genoveses e catalães2, todo esse contexto se imbricava num mundo para o qual o movimento e o fazer-se ao mar era uma realidade.

O imaginário europeu se abastecia também de relatos sobre a Rota da Seda, que mergulhava suas raízes na Antigüidade, mas cujo auge havia transcorrido durante o período medieval, quando multiplicaram-se não apenas o comércio mas também as lendas e os contos fantásticos3. Um pouco mais tarde, quando os navegantes avançam pelo Atlântico para contornar a África, estarão presentes todos os componentes de um imaginário complexo que associa a viagem à aventura, aos lucros mas também ao maravilhoso. Antonio Carlos Diegues, analisando o simbólico na psicologia e na antropologia e referindo-se, entre outros, a Jung, Chevalier e Gheerbrant, lembra que existe uma ligação entre as viagens dos heróis e os perigos a que eles estão expostos, perigos que são simbolizados “pelos monstros que surgem do fundo [do mar]” (DIEGUES, 1998, p. 25). O oceano era o grande desafio e também o mais desconhecido. O Atlântico foi enfrentado pela primeira vez não pelos homens da modernidade mas por aqueles que, no século XV, traziam consigo os mitos e as utopias medievais.4 Não há dúvida de que foram muitos os fatores econômicos e políticos que levaram os europeus às chamadas Grandes Navegações. No entanto, uma parte significativa do entusiasmo com o qual os marinheiros lançavam-se à aventura pode ser explicada pela busca do fantástico, incluindo o mítico País de Cocanha e as tão desejadas terras repletas de maravilhas e de animais exóticos do Grande Khan, descritas por Marco Pólo (1982) no século XIII. Vasco da Gama, quando partiu pela segunda vez para a Índia, em 1502, levou como leitura uma tradução portuguesa do livro de Polo.5

Gomes Eanes de Zurara (1978), cronista da Corte portuguesa, deixou o registro de que, em 1442, D. Henrique de Coimbra solicitou informações a seus navegantes acerca das terras do Preste João, reino mítico e cristão que se acreditava existir, primeiro no Oriente e depois, a partir do século XV, na África.6 Deslocavam-se, assim, as coordenadas geográficas do imaginário, mas não se extinguiam as buscas que confundiam o real e o fantástico.

No período que se convencionou denominar Idade Moderna estavam presentes, portanto, comportamentos e idéias que se constituíam numa prolongação do mundo medieval. Os animais descritos nos bestiários povoavam a imaginação da Cristandade, muito presentes nas esculturas das grandes catedrais mas também evocados nos textos dos viajantes. Nossa pesquisa aponta, assim, para uma ruptura nas mentalidades somente a partir do século XVIII, com o surgimento da História Natural de Buffon e a afirmação da razão iluminista. A análise dos relatos de viajantes franceses que estiveram no Brasil no decorrer daqueles três séculos bem como a dos textos do naturalista Buffon permite-nos desenvolver com maior detalhe toda essa problemática.

 

André Thevet e a França Antártica

Desde o início do século XVI os franceses interessaram-se pela costa brasileira, e foram várias as tentativas de aproximação e de contato com os indígenas7 visando principalmente a obtenção do pau-brasil, matéria-prima importante para o tingimento na indústria têxtil de Ruão. Em 1555, porém, esse interesse tomou uma forma mais organizada pela expedição de Nicolau Durand de Villegagnon, que fundou a França Antártica. A aventura foi breve, mas dela se originaram duas obras que marcaram profundamente o imaginário europeu: Les Singularitez de la France Antarctique, autrement nommée Amerique & de plusieurs terres & isles decouvertes, de André Thevet, publicada pela primeira vez em 1557, e a Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite de l’Amerique, de Jean de Léry, cuja primeira edição data de 1558.8

O franciscano André Thevet demonstrou sempre um grande interesse pelas viagens. Sua qualificação em termos de conhecimentos geográficos e sua curiosidade por terras distantes, associadas a bons relacionamentos no ambiente clerical dominante, foram elementos que, conjugados, permitiram que integrasse a expedição de Villegagnon na qualidade de capelão. Mais adiante, de regresso à França, foi nomeado cosmógrafo da Corte dos Valois. O Brasil aparece, na obra de Thevet, de forma significativa não apenas em Singularidades [...] mas também na Cosmographie Universelle, editada pela primeira vez em 1575 e nos Vrais Pourtraicts, de 1584. A parte inicial de Singularidades [...] descreve todo o caminho percorrido pela expedição de Villegagnon, incluindo diversos comentários sobre a África. Thevet não titubeia em acrescentar dragões aos animais que enumera como sendo encontrados na altura da Mauritânia.

(...) em algumas partes, porém, taes lugares são quasi como uns desertos, quer devido ao seu excessivo calor, que constrange os povos a andar seminus, (…) quer por motivo da esterilidade dos campos arenosos. Outra razão da existência de desertos é o número dos animaes ferozes, – os leões, os tigres, os dragões, os leopardos, os búfalos, as hyenas, as panteras e tantos outros. Receosos desses animaes, as gentes do país vão aos seus negocios sempre aos grupos, armados de arcos, flechas9 (THEVET, 1944, p. 63)

Não transparece, portanto, nenhuma dúvida com relação à existência de animais míticos que passaram à literatura e até mesmo a certas manifestações religiosas, extrapolando o período medieval. Thevet inicia sua descrição do Brasil com o desembarque em Cabo Frio, já então deslumbrado com a fartura. Sobre os peixes, escreve que os “bargos e os mugens são realmente tantos que, quando estive no Cabo Frio, vi um selvagem pescar mais de mil delles, com um laço só de rede” (THEVET, 1944, p.157).

O século XVI trazia em seu bojo uma forte herança da mentalidade medieval, que acreditava ser possível, algum dia, encontrar o País de Cocanha, cuja principal característica era a fartura da alimentação obtida na total ociosidade. Cantado em versos na tradição oral da Idade Média, o mito da Cocanha se difunde muito além do século XIII, época provável de seu primeiro registro escrito. Na França, ele foi amplamente divulgado também nos séculos XVI e XVII, conforme esclarece Franco Jr. (1992, p. 46), lembrando que naquele país chegaram a ser conhecidas doze variantes em relação ao conteúdo inicial do século XIII. Le Goff (1994, p. 51) destaca que esse mito se constitui numa criação totalmente característica da Idade Média e representa o “mundo às avessas”, “um mundo ao contrário”, no qual será possível compensar as carências da realidade. A busca da abundância, o sonho da fartura e o desejo de uma vida menos trabalhosa faziam parte também da bagagem daqueles que partiam para o Novo Mundo, na esperança de encontrar um lugar no qual os homens estivessem livres da dura labuta nos campos, atividade essencial à sobrevivência dos europeus.

Thevet, seguindo com a expedição de Villegagnon do Cabo Frio até a baía de Guanabara, continua maravilhado com o que vê: “Quanto às suas terras, é a America fertilissima em arvores de excellentes fructos. Produzem os campos sem lavoura, nem semeaduras” (THEVET, 1944, p.175). Semelhante, pois, ao fabliau da Cocanha, que revela um lugar no qual:

(…) Sem oposição e sem proibição Cada um pega tudo o que seu coração deseja. Uns peixe, outros carne; (…) Basta pegar a seu bel-prazer; (FRANCO JR., 1998, p. 29)

Quanto ao índio de Thevet, ele também parecia viver em Cocanha, pois atirando uma só vez a rede, havia, conforme o relato, pescado mais de mil bargos! O olhar do franciscano sobre a fauna brasileira reflete não apenas a admiração pela quantidade e diversidade de animais desconhecidos para os europeus mas também a possibilidade de apresentar a seus leitores, de modo fantástico, o haüt, o bichopreguiça, que sobreviveria alimentando-se apenas de vento:

O animal de que falo é, em poucas palavras, tão disforme quanto seria possível crer ou imaginar. Chamam-lhe de haüt ou haüthi. Tem o tamanho de uma bugia grande da Africa e o ventre quasi arrastando por terra. A cabeça assemelha-se muito à de uma criança (THEVET, 1944, p. 307).

Outra coisa digna de memória é que ninguem jàmais viu comer a esse animal, muito embora os selvagens, conforme me affirmaram, o tenham tido sob observação por longo tempo (idem, p. 308).

Em seguida, tenta confirmar que efetivamente o haüt não precisava se alimentar e, tendo sido presenteado com um deles, observa:

(…) que esta não quis comer ou beber por espaço de vinte e seis dias, permanecendo sempre no mesmo estado, quando afinal, foi estrangulada por alguns dos nossos cães, que os franceses tinham levado para a América (idem, p. 308).

Procurando, ainda, dar total credibilidade à sua longa e detalhada descrição do bicho-preguiça, volta ao assunto e conclui comparando- o aos camaleões que viu na Turquia por ocasião de uma viagem ao Oriente:

Tive, a proposito do assumpto, occasião de ver, em Constantinopla, certos camaleões engaiolados ; affirmava-se que viviam exclusivamente do ar. Motivo pelo qual penso ser verdade o que dizem os selvagens a respeito do haüt. Demais, aconteceu que o animal permanecesse noite e dia ao vento e à chuva (à qual esta região está sempre sujeita), conservando-se, todavia, sempre enxuto, como dantes (idem, p. 310).

Observa-se a marca do fantástico e do diferente, que se enquadra na lógica do século XVI, quando ainda é forte a presença do imaginário medieval. O texto dá grande destaque ao maravilhoso, descrevendo a possibilidade de o bicho-preguiça viver apenas de ar. Seres como os dragões ou mesmo como o haüt, que segundo a descrição irreal de Thevet viveria de vento, não se constituíam em algo totalmente absurdo para uma Europa que tinha na memória os estranhos animais que povoavam um vasto corpus de inúmeros bestiários.10

Na Cosmographie Universelle, o Brasil ocupa também um lugar privilegiado e continua presente a mesma ênfase no maravilhoso enraizado na mentalidade medieval. Não concordamos com a afirmação de Lestringant (1991, p. 53) na qual o autor, analisando a obra de Thevet, diz que, ao escolher o paradigma cosmográfico, o franciscano estaria dando as costas ao período medieval, recuperando um modelo da Antigüidade renovado pelo Renascimento. Em nosso entendimento, uma leitura detalhada de André Thevet deixa bem evidente que não há, de modo algum, rompimento com o universo mental da Idade Média. O próprio Lestringant, não sem certa contradição com o que ele próprio havia afirmado, aponta, no mesmo livro, inúmeros traços do maravilhoso presentes tanto nas Singularidades […] quanto na Cosmographie Universelle. E, no que diz respeito a uma efetiva filiação de Thevet a autores da Antigüidade, algumas vezes citados em seus relatos, é ainda Lestringant quem alerta para a fragilidade dessa base, já que o franciscano demonstrava um “conhecimento superficial” dos Antigos, lendo-os “através de compilações da Antigüidade tardia, de Pomponio Mela a Solino” (LESTRINGANT, 1991, p. 27).

Procurar o apoio e a justificativa de certas afirmações por meio do recurso da citação ou da simples referência à Bíblia e aos clássicos da Antigüidade é, sem dúvida, um hábito freqüente nos escritos medievais e muito presente nos textos de Thevet. Tanto as Singularidades […] quanto a Cosmographie Universelle apresentam inúmeras passagens nas quais o exemplo bíblico ou os autores romanos atuam como um reforço importante aos argumentos do viajante franciscano. Em nenhum momento, porém, isso representa uma ruptura importante em relação ao universo mental dos séculos anteriores que pudesse indicar uma recuperação renascentista dos antigos.

 

Jean de Léry: o olhar de um huguenote

A França Antártica, administrada com mão de ferro por Villegagnon, foi durante um pequeno espaço de tempo um local privilegiado para a convivência entre católicos e protestantes. Embora cavaleiro de Malta, o vice-almirante da Bretanha apresentava-se inicialmente tolerante com os huguenotes, chegando a manter relações de amizade com Calvino, que lhe forneceria um contingente de colonos para povoar a terra conquistada. Jean de Léry viajou para o Brasil como integrante de um grupo enviado justamente pelo líder genebrino em 1558. No decorrer daquele ano, porém, as disputas entre católicos e protestantes na França Antártica tornaram-se muito violentas, culminando com a impossibilidade de uma convivência pacífica, o que levou Léry e seus companheiros a deixarem a ilha passando a viver junto aos indígenas, durante dois meses, até a chegada de um navio que os conduziu de volta à Europa11.

Ao contrário de Thevet, que publicou as Singularidades […] em 1557 – logo após, portanto, o seu retorno da França Antártica –, a Viagem à Terra do Brasil de Léry só veio à luz em 1578, já que seu autor, não sendo cartógrafo nem cosmógrafo, estudando teologia e preparando- se para se tornar pastor, não tinha como prioridade editar o seu relato. Ao que tudo indica, foram o acirramento das lutas entre protestantes e católicos na Europa e também sua indignação com diversos comentários feitos por Thevet contra os huguenotes, principalmente na Cosmographie Universelle (publicada em 1575), que levam Léry, após várias peripécias de perda do manuscrito iniciado em 1563, a reescrevê-lo e publicá-lo pela primeira vez em 1577, dezenove anos após o seu retorno do Brasil.

As referências tanto de Thevet quanto de Léry sobre a longevidade dos índios brasileiros evocam o que Hilário Franco Jr., ao tratar do fabliau da Cocanha, chama de “imaginário da perfeição social” (FRANCO JR., 1998, p. 21). Para Thevet, “dispõem os índios das mais variadas fructas, proporcionadas pela natureza. Vivem longos annos, sãos e dispostos” (THEVET, 1994, p.188).

Para Léry, ainda mais afirmativamente com relação a uma quase impossível duração de vida, os índios: “alcançam a idade cem ou cento e vinte anos (…) (todos eles bebendo verdadeiramente à fonte da Juventude)” (LÉRY, 1975, p. 95). Referindo-se à fauna marinha, o viajante huguenote não endossava totalmente, mas não descartava a possibilidade da existência de monstros com forma humana. Relatando o que lhe haviam contado os índios, descreve com detalhes:

(…) numa de suas barcas de casca de árvore bastante avançada no mar, surgiu um grande peixe, o qual, tomando-a pela borda com as garras, em sua opinião, procurando virá-la ou meter-se dentro. Vendo isto, dizia, eu lhe cortei de pronto a mão com uma foice, a qual caiu e permaneceu em nossa embarcação, não apenas vimos que ela tinha cinco dedos, como a de um homem, mas também que a dor que sentiu este peixe, mostrando, fora d’água, uma cabeça que tinha aproximadamente forma humana, ele soltou um pequeno grito. Sobre este relato, bastante estranho deste americano, eu deixo o leitor a filosofar, se, seguindo a opinião comum de que há no mar todas as espécies que se vêem na terra, e especialmente que alguns escreveram sobre Tritões e Sereias: a saber se não será esta ou esse, ou então um macaco ou mico marinho, a quem este selvagem afirmava ter cortado a mão. De qualquer forma, sem julgar o que seria de tais coisas, eu diria livremente que tanto nos nove meses em que estive em pleno mar sem pôr pé na terra mais que uma vez, quanto em todas as navegações que fiz freqüentemente nos litorais, nada vi assim (…) (LÉRY, 1975, p. 169-170).

O texto demonstra com bastante clareza a presença do maravilhoso também no discurso de um protestante. Embora os calvinistas criticassem a falta de sobriedade nas crenças dos católicos, não seria a condição de reformado que excluiria Léry da mentalidade de sua época, fortemente impregnada pelo fantástico. A visão do Brasil que deixou registrada em seus relatos foi sem dúvida nenhuma influenciada pelas informações de Thevet. Sua descrição do bichopreguiça está muito próxima da que se encontra nas páginas de Singularidades […] e da Cosmographie Universelle: “Mas (coisa que parecerá realmente fabulosa) (…) que jamais homem, nem no campo, nem em casa, tenha visto este animal comer: tanto que alguns estimam que ele viva de vento” (LÉRY, 1975, p. 146).

Léry também participa da mentalidade da época, que aceita o fantástico e espera encontrá-lo nas novas terras. Sua descrição da anta refere-se a um animal estranho, uma “semi-vaca” ou “semiasno”, o qual:

(…) tendo o pelo avermelhado, e mais ou menos longo, e quase do tamanho e peso de uma vaca: porém não tendo chifres, tendo o pescoço mais curto, as orelhas mais compridas e pendentes, as pernas mais secas e esbeltas, o pé não partido, tal qual a própria forma do de um asno, pode-se dizer que participando de um e de outro é semi-vaca e semi-asno (LÉRY, 1975, p. 133-134).

Na iconografia do relato de Léry encontra-se, desde a primeira edição, de 1578, uma gravura (LÉRY, 1975, p. 235) na qual se distinguem diversas representações do fantástico, tais como dragões, demônios atacando os seres humanos e, bem caracterizando as novas terras, um enorme bicho-preguiça. Até mesmo os peixes voadores assumem proporções irreais em relação aos demais elementos da cena (ver figura que segue).

 

 

Mitos, lendas e relatos bíblicos podiam ser vistos em inúmeras obras da arquitetura de toda a Europa e foram recuperados também pelos relatos de viajantes. Se Thevet afirmava que existiam dragões na África, Léry, por seu lado, descrevia um lagarto brasileiro como um animal monstruoso, muito próximo às imagens do fantástico:

(…) vendo sobre a encosta um lagarto muito maior que o corpo de um homem, e longo de seis a sete pés, o qual parecia coberto de escamas esbranquiçadas, ásperas e rugosas como conchas de ostras, uma das patas à frente, a cabeça erguida e os olhos cintilantes, parou imediatamente para nos observar. Vendo isto e não tendo nenhum de nossos arcabuzes nem pistolas, mas somente nossas espadas e, ao modo dos selvagens, cada um arco e flechas na mão (armas que não nos seriam muito úteis contra este furioso animal tão bem armado) temendo também se fugíssemos que ele corresse mais que nós, e que tendo- nos alcançado ele nos abocanhasse e devorasse: muito espantados que ficamos olhando-nos, permanecemos assim embasbacados no lugar. Assim após que esse monstruoso e temível lagarto abrindo a boca, e por causa do grande calor que fazia (pois o sol brilhava à altura de meio-dia) respirando tão forte que o ouvíamos facilmente, nos tivesse contemplado por perto de um quarto de hora, virando-se de repente, e fazendo maior barulho e estalido de folhas e de ramos por onde passava, que um cervo correndo numa floresta, fugiu pelo monte. (…) Pensei depois, seguindo a opinião dos que dizem que o lagarto se deleita à vista do rosto humano, que esse deve ter tido mais prazer em nos contemplar que tivéramos pavor em contemplálo (LÉRY, 1975, p. 142-143).

A crença em animais aparentados a dragões dos relatos míticos, em lagartos monstruosos e em serpentes com poderes estranhos estava ainda muito presente no período quinhentista. Le Goff (1994) refere-se a um “corpus de mirabilia”, apresentando um texto de Gervásio de Tilbury, do início do século XIII,12 e deixando claro ainda que existe, na Idade Média, uma certa naturalidade na maneira de aceitar o imaginário.

Poderíamos dizer, então, com relação ao século XVI, que os relatos circulavam e os enredos estavam de certa forma inseridos nas ações do dia-a-dia. Seres estranhos surgiam sem alarde, eram aceitos e viviam integrados ao mundo real. O fabuloso e o cotidiano não estavam separados de forma intransponível.

 

Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux, missionários no Maranhão

A colonização efetiva das capitanias do Nordeste do Brasil levada a efeito pelos portugueses – especialmente nos territórios que correspondem aos atuais estados da Paraíba, Ceará e Maranhão – foi lenta e difícil, enfrentando a reação dos indígenas que se insurgiam contra os apresamentos que os destinavam ao trabalho nos engenhos de açúcar. A presença de comerciantes franceses na região reforçava a idéia de que os inimigos eram os portugueses, que agiam com violência, e os amigos, aqueles que vinham da França para a extração de produtos naturais e não de escravos. Apesar do insucesso da França Antártica, os franceses não abandonaram as incursões pela costa brasileira, e a instalação da França Equinocial representou uma tentativa de juntar em uma mesma empresa três componentes distintos que estavam presentes no início do século XVII: os interesses comerciais de particulares, as missões de catequese e o desejo de prestígio da Coroa, que desde o século anterior pretendia disputar com os ibéricos o testamento de Adão.13

A expedição de colonização chefiada por Daniel de la Touche, Senhor de La Ravardière, e por François de Rasilly, Senhor de Aumelles, no Maranhão durou apenas três anos, de meados de 1612 a novembro de 1615, quando o forte de São Luís foi entregue pelos franceses aos portugueses. La Ravardière já havia participado de uma viagem ao litoral da Guiana e da Amazônia, em 1604, motivado pela descrição das terras do Maranhão feita principalmente por De Vaux, que havia permanecido algum tempo junto aos índios. Após essa viagem, continuou mantendo seu interesse pela região e explorou-a a pedido de Henrique IV novamente em 160714.

O rei, no entanto, foi assassinado antes que se concretizasse a colonização, sendo, pois, necessário buscar o apoio da regente Maria de Médicis, que não demonstrou grande interesse pela aventura, levando La Ravardière a procurar outras personalidades que se constituíssem em fontes de financiamento e de incentivo, entre elas o barão normando Sancy e François de Rasilly. Os três afinal encabeçaram o projeto e partiram juntos para o Brasil no ano de 1612, desta vez já organizados em torno do objetivo de estabelecer a colônia francesa. A expedição contava também com a presença de outros nobres e de frades capuchinhos que se encarregariam de empreender a conversão dos indígenas. Os capuchinhos, ordem pertencente aos frades menores franciscanos, surgem no século XVI, contemporaneamente aos jesuítas, e, como eles, entregam-se com grande zelo à catequese. Imbuídos também do espírito da Contra-Reforma que dominava o catolicismo europeu, eram veementes em suas pregações e rapidamente ganhavam terreno ampliando o número de conventos e de adeptos.

A estada de Claude d’Abbeville no Brasil foi de aproximadamente quatro meses, entre a segunda metade e o final de 1612. Embora curta, deu origem a um relato muito detalhado da região maranhense onde se haviam instalado os franceses. É bastante provável que Abbeville tenha utilizado informações recolhidas com intérpretes que já viviam há mais tempo entre os índios, o que era comum na época. O texto do capuchinho deixa muito clara sua condição de missionário, com inúmeros exempla que ilustram, do mesmo modo como havia sido hábito na Idade Média, os riscos para aqueles que viessem a cair em pecado. Jacques Le Goff (1994, p. 123), que estudou detalhadamente o uso dos exempla, define-os como sendo narrativas breves, muito em voga durante o período medieval, semelhantes a pequenos contos ou fábulas, mas de conteúdo persuasivo, cujo caráter de “exortação” visava a convencer os ouvintes com uma lição salutar. Para que fosse efetivo como técnica de persuasão, o episódio narrado deveria ser plausível e ter ocorrido no tempo recente, próximo ao narrador. Abbeville, em seu relato, faz uso dos exempla com a habilidade da sua condição de pregador, o que é bastante evidente na passagem que segue e que se refere a um pequeno índio de quatro anos que agonizava:

Já o considerava morto sua mãe, e o chorava. Perguntou-lhe o Paí se ela queria que o filho fôsse batizado, a fim que se salvasse pelo menos a alma. Respondeu ela que sim e que lhe suplicava mesmo insistentemente fazê-lo. Imediatamente batizou-o o Paí, e apenas realizado o ato recobrou a palavra o pequeno; e também a saúde, tão perfeita, como nunca tivera. Isso causou grande admiração aos índios, bem como aos franceses que se achavam presentes, e aumentou entre os índios o desejo de serem batizados.

Tais são os efeitos dos sacramentos; têm o poder de dar vida à alma e também, querendo-o Deus, saúde ao corpo. Assim é que Constantino se viu milagrosamente curado da lepra que tinha no corpo, ao mesmo tempo que o era da lepra espiritual que tinha na alma, e isso por meio do santo sacramento do batismo (ABBEVILE, 1975, p. 119).

Encontram-se presentes no texto todos os elementos de um exemplum medieval: a narração breve e persuasiva, o tempo recente e a experiência do narrador – no caso, a experiência visual, já que ele próprio presenciou o fato. No relato do missionário francês, as “lições exemplares” referem-se em geral a situações que ocorrem em virtude da conversão ou da obediência dos indígenas, que são recompensados de alguma forma, material ou espiritualmente.

As imagens fortes – fossem elas verbais ou iconográficas – faziam parte da bagagem dos missionários e eram especialmente adotadas pelos frades pregadores das ordens menores. A veemência das pregações franciscanas era conhecida desde a Idade Média, e os capuchinhos, um ramo mais recente dessa ordem, se destacaram ao utilizar recursos de grande apelo popular. Suas missões, quando realizadas na Europa, tinham como objetivo conter a heresia calvinista e trazer de volta ao rebanho católico as ovelhas desgarradas que haviam aderido à Igreja Reformada. Os frades mendicantes combatiam as heresias principalmente por meio da catequese, mas, embora a estendessem aos índios, eles não se enquadravam na definição de heréticos, já que eram considerados “pecadores” pelo desconhecimento da “verdadeira fé” e não por “erro deliberado”.

São fortes também as imagens evocadas quando Abbeville se refere aos peixes voadores que observou na altura dos trópicos, durante a viagem de travessia da França ao Maranhão:

Não sei se devo comparar êsses peixes à alma do mundano ou à do justo, pois é o verdadeiro simbolo de ambas. Claro está que se assemelha perfeitamente à do mundano dado a tôda espécie de vícios e disso fazendo alarde. Mergulhado no mar dos prazeres, delícias e volúpias, feito de riqueza, de gulodice e de libertinagem, nunca se sente tranqüilo, mas contìnuamente desconfiado, temeroso, angustiado, empanturrado de remorsos pungentes, dos quais procura libertar-se elevando-se até Deus, mas aos quais logo se vê reconduzido pelo Diabo (ABBEVILLE, 1975, p. 33).

No relato, a comparação dos peixes – que saltam para fora do mar e nele voltam a mergulhar – com a alma do homem mundano, que mergulha ele também nos vícios, é deliberadamente exagerada. O que se buscava, na época, com esse tipo de discurso era reforçar os ensinamentos da Igreja, fixando uma imagem forte e assustadora, mas, sobretudo, uma imagem verbal que pudesse ser facilmente associada a um cenário, à evocação de uma iconografia que tivesse caráter pedagógico, como ocorria em tantos casos na arte da Idade Média. No entanto Abbeville, assim como Thevet e Léry, não condena os comportamentos que desaprova nos índios como sendo resultado de vícios deliberados e intrínsecos a eles próprios. As críticas estão sempre ancoradas em descrições de tentações do demônio, e, comparativamente com os europeus, há certa valorização dos habitantes do Brasil.

A dança é o primeiro e principal exercício dos maranhenses que são, a meu ver, os maiores dançarinos dêste mundo. Não se passa um só dia sem que para isso se reúnam nas suas aldeias, mas as danças entre êsses selvagens não são tão vergonhosas como entre os cristãos. Raparigas e mulheres não dançam nunca com os homens, a não ser durante a cauinagem; mesmo assim, estão longe as suas danças da loucura, da desonestidade e da licenciosidade comum às nossas danças; as mulheres colocam sòmente as mãos sôbre os ombros de seus maridos e porisso não se vêem aí os escândalos e as desgraças que aqui ocorrem nos bailes em virtude da lubricidade e da lascívia.

Dançam sem trejeitos, nem saltos, nem requebros e rodeios; colocam-se todos em círculo, muito perto uns dos outros, sem entretanto tocar nem falar; quase sem sair do lugar (ABBEVILLE, 1975, p. 236).

Se, por um lado, a importância da atividade missionária, da conversão ao catolicismo, está muito presente em todo o relato de Claude d’Abbeville, por outro a Europa como modelo civilizatório e paradigma de comportamento racional não é evidente para o frade capuchinho nem mesmo para André Thevet ou Jean de Léry.

Yves d’Evreux, um missionário capuchinho que foi companheiro de Abbeville, esteve também no Maranhão. Sua estada durou dois anos, entre 1612 e 1614. Elaborou um relato bastante revelador do engajamento na catequese, porém, sob diversos aspectos, mais realista, deixando bastante clara sua intenção de incentivar a empresa colonizadora. Poderíamos dizer, portanto, que já se tratava de um relato de transição, mais voltado para interesses concretos e menos tributário fantástico. Mas, acompanhando o fervor missionário, a presença de Satanás também é forte em sua obra. Descrevendo as atividades de um “feiticeiro” indígena que organizava procissões aspergindo os participantes com ramos de palmeiras molhadas, o frade alerta para:

(…) o quanto este astucioso Satã sabe, como um macaco, imitar as cerimônias da Igreja para intronizar sua superstição e manter em sua corrente as almas infiéis. Podeis vê-lo por essa procissão de palmas, essa aspersão d’água, esse sopro de fumaça comunicando seu espírito (EVREUX, 1985, p. 136).

De acordo com Delumeau (1989, p. 239), a Europa do Renascimento herdou da Idade Média “conceitos e imagens demoníacos” que se difundiram largamente no período moderno. Delumeau, aliás, contesta a visão otimista que Jacob Buckhardt tem do Renascimento, lembrando, ainda, que o início da Modernidade conviveu com a violência espalhada por toda a Europa e com o medo de Satã, “um Satã todo-poderoso” (1989, p. 259). Imerso nessa mesma mentalidade, o capuchinho d’Evreux insiste no que chama de sinais evidentes do reino do diabo no Maranhão:

(...) os barbeiros têm um modo particular de comunicar seu espírito aos outros, e é por meio da erva de fumo. Tendo posto esta erva em uma vara de junco, estes feiticeiros aspiram sua fumaça e depois a expelem sobre os assistentes, ou então sopram diretamente da vara sobre eles, exortando-os a receber seu espírito e sua virtude (…) donde teriam esses barbeiros tirado essa cerimônia satânica, se o diabo não a lhes tivesse ensinado? (EVREUX, 1985, p. 233-234).

Mas é importante salientar que, no que diz respeito à imagem das terras do Maranhão, Yves d’Evreux descreve a natureza e os índios com bastante realismo e, sem chegar a grandes manifestações acerca de qualidades paradisíacas da região, afirma que:

(…) esta terra seria adequada à natureza do francês tanto quanto a França, se ela fosse cultivada e provida dos víveres necessários ao natural francês, tais como o pão e o vinho; pois quanto à carne, peixe, legumes e raízes, há uma tamanha abundância que não é possível acreditar, sendo apenas preciso tomá-los e plantá-los (EVREUX, 1985, p. 188).

Mas, diferentemente de Thevet e Léry, ironiza diretamente o mito da Cocanha que havia estado tão presente nos relatos do século XVI.

Pois se alguém pensasse que as árvores levassem os passarinhos todos assados, que os arbustos estivessem carregados de paletas de carneiro recém-tiradas do espeto, o ar cheio de cotovias ajeitadas entre duas talas e bem cozidas, de modo que fosse preciso apenas abrir a boca para refestelar-se, enganarse- ia (EVREUX, 1985, p. 188).

E conclui essas considerações de forma muito objetiva: “E eu não lhe aconselharia a ir a essa região coberto por estas fantasias, pois ele se arrependeria” (EVREUX, 1985, p. 188). O capítulo intitulado “Instruction pour ceux qui nouvellement vont aux Indes” é um exemplo de pragmatismo, contendo indicações preciosas, assim introduzidas:

Se nossos franceses soubessem bem antes de partir para as Índias o que eles sabem agora, teriam provido melhor às suas necessidades e não teriam suportado tantos incômodos. Que aquele, portanto, que decidiu ir nessas regiões pense consigo mesmo quanto tempo pretende ficar, e que acrescente uma vez tanto a esse tempo, pois a possibilidade não se encontra sempre de retornar quando se quer.

Que faça sua provisão para todo este tempo, e de dois tipos: uma para si, a outra para os selvagens a fim de obter deles víveres e mercadorias (EVREUX, 1985, p. 193-194).

O Yves d’Evreux produz um relato que, de certa forma, anuncia uma transição entre a mentalidade marcadamente medieval e aquela que começa a permear o imaginário europeu a partir de novas influências, originadas de transformações políticas, econômicas e culturais do período moderno.

 

A história natural e a razão iluminista nas novas visões do outro

O século XVIII é, na Europa, um período de políticas externas agressivas e de afirmação dos Estados nacionais. O expansionismo colonial setecentista, embora diferente nos seus métodos do que viria a caracterizar o imperialismo do período seguinte, nem por isso era menos efetivo do que o seu sucessor. A revolução científica, normalmente datada do século XVII, não se deu de modo linear e não atingiu rapidamente toda a Europa. O desenvolvimento da astronomia e a explicação matemática do universo foram avanços que se tornaram mais conhecidos apenas a partir das últimas décadas do seiscentos e, com maior amplitude, no decorrer do século XVIII.15

As transformações administrativas e políticas que ocorrem no século XVIII vão alterar também o sentido das viagens e, com as mudanças de ordem econômica e social, compõem um novo quadro mental, que modificará, por sua vez, as maneiras de ver o Outro. As potências colonizadoras passavam a lançar um olhar pragmático sobre os territórios do além-mar. No Brasil, a descoberta de ouro acendia um novo interesse e, ainda que a França não pretendesse mais se lançar à conquista territorial direta, nem por isso deixava de se informar sobre as possibilidades de riqueza que estavam se abrindo. Jean-François Labourdette, analisando as instruções da Coroa francesa a seus embaixadores em Portugal no século XVIII, destaca que era desejo da França usufruir de vantagens no comércio com o Brasil e cita uma dessas instruções, que justamente se referia às novas perspectivas advindas dos sucessos da mineração:

(...) o comércio com o Brasil é objeto de infinita relevância para os franceses com relação à quantidade de ouro abundante nas minas do país e à grande quantidade que se pode trazer como retorno das mercadorias que os franceses enviarão (...) (LABOURDETTE, 1998, p. 255).

Quando Carelli (1993, p. 39) refere-se ao fato de que, no século XVIII, o Brasil já não se faz presente com a mesma força do passado no imaginário francês, ele aponta para a tradicional explicação de que Portugal havia fechado sua colônia a toda e qualquer presença estrangeira a não ser a da Inglaterra, o que limitaria bastante as possíveis incursões francesas, ainda que não visassem à conquista. Muito embora essa interpretação possa ter fundamento, é importante também destacar que o desinteresse francês possuía razões próprias e que o Brasil não se apresentava como o destino mais cobiçado num século no qual, além da conquista colonial, o intercâmbio científico era um dos motivos importantes para as viagens. Nesse contexto, o Oriente, e em especial a China, se constituía num objetivo prioritário em termos de comércio altamente lucrativo e de intercâmbio entre saberes. Sobre uma expedição que se destinava ao reino do Sião e que enviava cientistas jesuítas também à Indochina e à China, escreveu um de seus integrantes, o padre Tachard, que o motivo da viagem, no que dizia respeito ao império chinês, era de “obter todas as observações de astronomia e todos os conhecimentos de artes e de ciências desta nação” (TACHARD citado por FROSTIN, 1983, p. 44) e também de: “fazer a ligação de uma espécie de comércio, em favor das ciências, entre os dois mais poderosos soberanos do mundo e os dois maiores protetores das ciências” (idem). No caso, os dois soberanos referidos eram Luís XIV e o imperador K’ang-Hsi (Kangxi), da China. Com relação ao programa da viagem, segue Tachard escrevendo que os cientistas da Academia:

(...) tendo se comprometido a nos fazer participar de suas luzes (...) nós nos comprometemos reciprocamente a lhes enviar nossas observações, a fim de que, agindo em concerto e se constituindo em um mesmo corpo de acadêmicos, uns na França e outros na China, nós trabalhássemos para o crescimento e o aperfeiçoamento das ciências (...) (TACHARD citado por FROSTIN, 1983, p. 45).

É visível a abertura de novas possibilidades na Ásia, com relação a benefícios tanto de ordem econômica quanto de novas aquisições no campo da ciência. O Brasil tornava-se assim bem menos atraente para a Coroa francesa. As perspectivas de intercâmbio científico no século XVIII com a colônia portuguesa eram quase nulas, o tempo das maravilhas e do interesse pelo fantástico já havia ficado para trás e, no que dizia respeito a importações e exportações, as melhores perspectivas para a França estavam no Oriente.16 Evidentemente, o comércio não só com o Brasil mas também com a América hispânica continuava a existir e não era desprezível. No entanto, outras prioridades e mudanças significativas de mentalidade eclipsavam, de certa forma, o Novo Mundo.

Imagens que haviam sido construídas a partir do deslumbramento com a exuberância da floresta e com a fauna brasileira, tão presente nos relatos de viajantes franceses dos séculos XVI e XVII, cediam espaço, no século XVIII, aos comentários críticos de naturalistas, como Buffon, que insistia sobre a debilidade da natureza americana. Buffon foi, sem dúvida, ao lado do sueco Lineu, a personificação de uma nova maneira de olhar a natureza e o próprio homem nela integrado. A História Natural despontava como ciência autônoma e encontrava apoio não apenas junto à restrita elite intelectual mas também aos segmentos não necessariamente cultos de grande parte da burguesia setecentista e da nobreza. Muitos se apressavam em conhecer, ainda que de modo imperfeito, os fundamentos de saberes novos por meio das atraentes publicações, que alcançavam grande sucesso.17 Além dos livros, uma verdadeira moda de coleções de curiosidades se apoderava da Europa, e, na França, os chamados Cabinets de Curiosités difundiam-se rapidamente.

Crescia também o interesse pelos jardins botânicos. O Jardin du Roy, cujo superintendente era, desde 1739, o próprio Buffon, era aberto para visitação pública todas as terças e quintas-feiras, atraindo grande número de pessoas.18 Colecionar animais empalhados, plantas vivas ou secas e objetos oriundos de localidades distantes eram atividades características do século XVIII, uma época que valorizava o conhecimento científico. Buffon influenciou largamente o olhar de seus contemporâneos sobre as terras e os habitantes do Brasil, já que, com sua grande autoridade de cientista muito conceituado, membro da Academia de Ciências e responsável pelo Jardin du Roy, escreveu:

(...) compare as pequenas nações selvagens da América com nossos grandes povos civilizados; (...) veja ao mesmo tempo o estado das terras que estas nações habitam, e julgará facilmente o pouco valor destes homens pela pequena impressão que suas mãos fizeram sobre seu chão: seja estupidez, seja preguiça, estes homens semi-embrutecidos, estas nações não-policiadas, grandes ou pequenas, não fazem mais que pesar sobre o globo sem aliviar a Terra, esfomeá-la sem a fecundar, destruir sem edificar, tudo gastar sem nada renovar (BUFFON, 1988, p. 281-282).

O texto do naturalista veiculava, assim, uma imagem que tinha sua credibilidade assegurada pela posição de destaque do autor – destaque conferido sobretudo pelas importantes funções que exercia. Evidentemente, a grande riqueza da Histoire Naturelle não se resume aos comentários sobre a América, mas eles devem ser destacados na análise da visão francesa sobre o Brasil, já que representavam um discurso que se apoiava na autoridade de um cientista cuja obra teve larga repercussão na Europa. Suas considerações mais gerais sobre a natureza também sinalizam uma transformação nos olhares, que nos setecentos deixam de admirar a floresta espessa e úmida como havia sido o caso em épocas anteriores:

Veja (...) essas tristes regiões onde o homem jamais residiu; cobertas, ou melhor, espetadas de bosques espessos e negros em todas as partes elevadas, árvores sem casca e sem topo, curvadas, rotas, cadentes de vetustez, outras em maior número, jacentes ao pé das primeiras, para apodrecer por sobre amontoados já apodrecidos (...). A Natureza bruta é horrenda e moribunda (...) (BUFFON, 1988, p. 259-260).

Árvores antigas e a natureza bruta, não-cultivada, passavam a ser motivo de lamentação. A mudança de paradigma, que surge com a revolução científica, mas que só se difunde efetivamente a partir do Iluminismo,19 traz em seu cerne uma transformação importante no imaginário francês sobre a natureza. As obras de História Natural e os assuntos ligados à Biologia tornaram-se de interesse público. Os jardins botânicos e os Gabinetes de Curiosidades eram visitados não apenas por especialistas, mas pela população em geral, o que contribuía para difundir, se não conhecimentos mais profundos (que continuavam a ser privilégio de uma reduzida elite), ao menos as versões mais acessíveis que estendiam a racionalidade ao mundo natural.

Se, no decorrer dos séculos XVI e XVII, o Brasil havia ocupado um largo espaço no imaginário francês como repositório de mitos e maravilhas, no século XVIII a demanda por produtos de luxo, o interesse por uma literatura que fazia referência a cenários de jardins e palácios distantes e a curiosidade científica estimulavam outros contatos e viagens ao Extremo Oriente, mais proveitosas do que as que conduziam à colônia portuguesa. Foram principalmente os jesuítas os grandes responsáveis pela veiculação de diversas imagens que transmitiam a beleza e o refinamento da arte e da sociedade da China no século XVIII. Sua presença foi bem aceita pelos imperadores chineses, já que os sacerdotes se instalavam muitas vezes na Corte, prestando serviços diversos, entre eles os de astrônomos, geógrafos, arquitetos, médicos e até mesmo pintores.20 As ilustrações que realizaram e os relatos que escreveram foram também fundamentais para a divulgação da cultura chinesa no imaginário da Europa setecentista. O jesuíta francês Jean-Denis Attiret escrevia, em meados do século XVIII, sobre o magnífico Palácio de Verão do imperador, em Pequim:

“Dir-se-ia que é um destes palácios fabulosos que se formam repentinamente como que por encanto em um belo vale ou no topo de uma montanha” (ATTIRET citado por CHEN, 1983, p. 63).

É um verdadeiro paraíso terrestre (...) Além dos canais há, por todos os lados, caminhos, ou melhor, sendas que são pavimentadas de pequenas pedras e que conduzem de um vale a outro. (idem, p. 64).

Esse palácio e seus fabulosos jardins foram objeto de grande interesse na Europa do século XVIII, quando proliferaram, nas decorações da nobreza e também da burguesia, as chamadas chinoiseries. O luxo do extremo Oriente e a organizada e estratificada sociedade chinesa atendiam perfeitamente aos desejos de uma França setecentista, e a demanda de exotismo era satisfeita pelos negociantes com importações de produtos sofisticados, de alto luxo.

O Oriente Médio também despontava como uma área de interesse, e os contatos estabelecidos no século XVIII viriam alimentar o chamado “orientalismo” do século XIX. O mundo islâmico mantinha relações importantes com os franceses e também atraía o interesse por sua cultura. Entre 1704 e 1717, foram publicados 12 volumes das Mil e uma Noites, traduzidas do árabe por Antoine Galland21. A obra se constitui em um conjunto de contos oriundos das tradições populares não apenas árabes mas também indianas e persas e, no decorrer do século XVIII, foi grandemente difundida na Europa em sua tradução francesa. Além do interesse econômico, sem dúvida importante, foi também toda uma cultura oriental que se fez presente exercendo fascínio entre os europeus. Por outro lado, as viagens científicas passam a ser uma constante e encontram largo apoio na monarquia. Observação e experiência são as duas palavras-chaves para definir a ciência do século XVIII, e viajantes, como La Condamine, Bougainville e Lapérouse, partem justamente com objetivos que se enquadram perfeitamente nesse contexto, visando a alargar conhecimentos que pudessem trazer para a Coroa francesa tanto o prestígio do saber quanto um pretendido domínio do Pacífico.

O objetivo central da expedição de La Condamine, que partiu em 1735, era o de obter a medida do meridiano na altura do Equador. Outras aquisições científicas integraram também a bagagem de retorno da longuíssima viagem, que durou 10 anos, consagrando-a como um real sucesso em sua época. Só em 1743, após terem sido realizadas as tarefas para as quais a equipe de cientistas havia sido enviada, é que La Condamine decide-se pela descida do rio Amazonas, de Jaén de Bracamoros até Belém do Pará, viajando durante um ano pela Amazônia brasileira e seguindo para Caiena em 1744.22 Sem dúvida um típico viajante ilustrado escreve com cuidado e faz referências bem fundamentadas sobre tudo o que vê. La Condamine relata com muita sobriedade o que ouviu falar sobre as mulheres amazonas, dando crédito, mas de forma discreta, ao que lhe contaram e ressaltando que se tratava de informações recebidas e não de fatos por ele mesmo testemunhados.

No decurso de nossa navegação, indagámos por toda parte dos índios das diversas nações, e com grande cuidado o fizemos, se tinham algum conhecimento das mulheres belicosas que Orellana pretendia ter encontrado e combatido, e se era certo que elas se conservavam fora do comércio dos homens, não os recebendo entre sí senão uma vez por ano (...). Todos nos disseram que ouviram falar disso por seus pais, e juntaram mil particularidades longas demasiado para serem repetidas, e tudo tendente a confirmar que houve no continente uma república de mulheres solitárias, que se retiraram para as bandas do Norte (...) (LA CONDAMINE, 1944, p. 64).

Comparando-se esse texto de La Condamine com o de André Thevet, do século XVI, também sobre as amazonas, é possível observar a grande distância entre o universo mental das duas épocas e o espaço para o fantástico no relato do franciscano quinhentista. Thevet escreveu:

Matam seus filhos machos [as amazonas], assim que nascem, devolvendo-os a seus provaveis pais; quanto às meninas, guardam-nas consigo, justamente como faziam as antigas amazonas da Asia. Ordinariamente, guerreiam algumas outras nações e tratam com muita deshumanidade os que caem em seu poder. Isto é, penduram-nos pelas pernas a um galho alto de arvore, onde os deixam por algum tempo; se, porém, quando tornam ao lugar do supplicio, os prisioneiros ainda estão, por accaso, vivos, atiram-lhes milhares de flechas. É verdade que não devoram os inimigos, como os demais selvagens, mas deitam-nos ao fogo, até que os mesmos fiquem reduzidos a cinzas (THEVET, 1944, p. 377-378).

La Condamine, porém, não se interessa por referências que remetem ao mito e encerra o capítulo com um comentário que é bastante característico de um texto iluminista, explicando que, se as amazonas efetivamente existiam, era devido a determinadas condições que tornavam a sua realidade não apenas possível, mas lógica. A racionalidade do argumento é flagrante no trecho que segue:

Contento-me em assinalar que se alguma vez pôde haver Amazonas no mundo, isso foi na América, onde a vida errante das espôsas que acompanham os maridos à guerra, e que não são mais felizes no lar, lhes deve ter feito nascer a idéia e ocasião frequente de se furtarem ao jugo dos tiranos, buscando fazer para si um estabelecimento onde pudessem viver na independência, e pelo menos não serem reduzidas à condição de escravas e bêstas de carga. Semelhante resolução uma vez tomada e executada, não teria nada de extraordinário, nem de mais difícil do que o que se observa todos os dias em tôdas as colônias européias da América, ou não é senão demasiado comum que servos maltratados e descontentes fujam aos bandos para os bosques, e não raro sós, quando não acham a quem associar-se, e que aí passem assim vários anos, e talvez toda a vida em solitude (LA CONDAMINE, 1944, p. 81-82).

Constata-se, pois, o entrelaçamento de temas secundários no assunto central, que é o da veracidade da existência das amazonas. La Condamine aproveita para inserir na sua reflexão um comentário sobre a necessidade de fugir da tirania – o que coincide com a crítica iluminista ao despotismo, no século XVIII – fazendo também referência às condições difíceis para aqueles que são maltratados nas colônias americanas. Em uma passagem sobre os jacarés, distancia-se muito dos relatos do século XVI, que descreviam de forma amalgamada vários tipos de répteis, associando-os a uma hipotética descendência de animais fantásticos. Se Léry (1975, p.142-143) afirmava ter visto um “monstruoso lagarto” que abria a boca e soprava de forma violenta (poderíamos associa-lo à imagem de um dragão medieval), La Condamine conta simplesmente que:

Os crocodilos são comuníssimos em todo o curso do Amazonas, e até na maior parte dos rios que veem ter a êle. Alguns chegam a ter algumas vêzes 20 pés (6,5 m.) de comprimento; e talvez os há maiores. Já tinha eu visto um grande número dêles no rio Guayaquil. Êles ficam horas e dias inteiros sôbre o lodo, estendidos ao sol e imóveis; seriam tomados por troncos de árvore, ou por longos pedaços de pau cobertos de uma casca escabrosa e dessecada. Como os das margens do Amazonas são menos perseguidos e caçados, êles pouco temem os homens (LA CONDAMINE, 1944, p. 115).

Outro viajante do Século das Luzes que, em suas expedições, passou também pelo Brasil foi Louis-Antoine, conde de Bougainville. Partiu da Europa em 1766, deu a volta ao mundo e regressou à França no ano de 1769. Sua estada no Rio de Janeiro, porém, foi breve, apenas o tempo de uma escala técnica. Mesmo assim, foi recebido pelo vice-rei Antonio Alvares da Cunha, que o convidou para um espetáculo na Casa de Ópera do padre Ventura, um teatro de certo destaque que encenava peças com artistas brasileiros. Seu relato sobre o que assistiu foi severo, afirmando que uma obra-prima de um autor europeu contrastava com a má qualidade do trabalho local:

Nós pudemos, numa sala assaz bela, ver as obras-primas de Metastasio, representadas por uma troupe de mulatos, e ouvir estes trechos divinos dos grandes mestres da Itália, executados por uma má orquestra que regia então um padre corcunda em trajes eclesiásticos (BOUGAINVILLE citado por CARELLI, 1993, p. 40).

O viajante setecentista, ilustrado, observa, descreve, critica. Seu imaginário é balizado pela crença no progresso, pelas virtudes da civilização, e mesmo a voz de Rousseau e as visões do bom selvagem não chegam a valorizar, de forma absoluta, o estado de natureza. A sociedade francesa do iluminismo já não se permite mais cultivar os mitos e as maravilhas da Idade Média. Vai sendo construído, pois, um exotismo a partir de um Outro que é explicado e catalogado e, sobretudo, comparado com os europeus. Mapeamento, experiência e inventário são as atividades principais dos que, no século XVIII, partem não mais em busca de uma inatingível Cocanha, como havia sido o caso daqueles que os precederam, mas sim imbuídos de novos objetivos mais adequados à Razão iluminista.

 

Conclusão

Os olhares franceses sobre o Brasil, nos séculos XVI e XVII, foram marcados por um forte imaginário medieval que ainda se fazia presente numa Europa na qual o Renascimento e, portanto, a modernidade, não se difundiam de maneira uniforme. Tanto a cultura popular quanto a erudita mantiveram-se influenciadas por toda uma gama de maravilhoso e de fantástico que era visível também na herança artística, nas ilustrações dos textos que circulavam em diversos ambientes e também nas esculturas das grandes catedrais. O bestiário da Idade Média ainda era evocado e, portanto, podia ser facilmente transposto para as visões dos viajantes, pois o fantástico permeava o real.

Nos relatos franceses dos séculos XVI e XVII, apesar das diferenças que pudessem separar católicos e protestantes, permaneceu o fio condutor de uma forte expectativa do encontro com o estranho. Foi, então, a capacidade de aceitar o maravilhoso, que se constituía em parte do arcabouço mental da época, o que deu credibilidade aos relatos enraizados nos mitos. Credibilidade esta que permitiu aos viajantes quinhentistas e seiscentistas uma significativa abertura do olhar para descrever o Outro. Mais adiante é a razão, entendida como explicação que se pretende coerente e fundamentada em parâmetros europeus de “civilização” que estará no âmago dos novos discursos sobre o Brasil. Ocorrerá, então, um deslocamento dos interesses de uma França que entra na modernidade e que começa a viver sob a influência da Ilustração, das novas aquisições da ciência e, muito claramente, do desejo de afastar velhas crenças.

O exotismo descrito pelos viajantes do século XVIII é elaborado fundamentando-se nas visões do Oriente muito mais do que nas do Brasil. Os textos da época deixam evidente que o olhar sobre o Outro não é mais aquele olhar que aceita o fantástico, o desmedido. Buffon sentencia, com a chancela de sua autoridade de naturalista e de responsável pelo Jardin du Roy, que a natureza bruta não é digna de admiração, pois é “degenerada” (BUFFON, 1988, p. 259- 260). Os missionários que vão ao Extremo Oriente mostram à Europa a beleza organizada dos jardins e da sociedade da China. A razão iluminista, permeando todo esse universo mental, participa da destruição das crenças nos mitos e maravilhas que haviam se mantido até meados do seiscentos.

Nos séculos XVI e XVII, a presença de um importante corpus de mirabilia permitia uma riqueza de interpretações que não necessariamente se atrelava a modelos lógicos, construídos a partir do racionalismo eurocêntrico. Ainda era possível acreditar no estranho, no diferente, e relatá-lo por escrito a um público que também compartilhava da mesma mentalidade, na qual havia lugar para o deslumbramento. No entanto, quando a ciência passa a se constituir no principal instrumento para a leitura do Outro, ela passa também a explicá-lo, e a razão se torna a chave para descrever os comportamentos não europeus. Mas o que se pode observar é que o pensamento racional e a compreensão da diferença, com base nas novas aquisições da História Natural, não se constituem na garantia de maior tolerância para com a diversidade do mundo. O abandono do maravilhoso medieval, longe de ter representado um avanço na descrição do desconhecido, traduziu-se numa perda para o entendimento mais rico e complexo da alteridade.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: carmenlicia@yahoo.com

Recebido em 30/08/2006
Aceito em 26/09/2006

 

 

* Centro Universitário de Brasília, UniCeub
1Sobre a periodização proposta por esse autor, ver também Le Goff, s/d, p. 74, onde é contestada a existência de uma “fratura” nos séculos XV e XVI, que fosse tida como a marca de uma profunda mudança. Le Goff insiste bastante, em quase toda a sua vasta obra na idéia do que denomina “uma longa Idade Média“

2
Ver com relação a todo esse imaginário, os seguintes textos: Mattoso (1988, p. 95- 110), Qantara (1995) e Brunel (1997, p. 222-227; 627-634)
3 Ver Boulnois (1963) e Musée de la Marine (1994, p. 71-77)
4
“Como disse Lewis Hanke, os primeiros europeus que chegaram à América – os portugueses incluídos – contemplaram o Novo Mundo através de lentes medievais, e levavam em sua tripulação todas as idéias e lendas que a Idade Média havia propagado com efusão. Na vida religiosa da primeira metade do século XVI, seu caráter ortodoxo foi cópia fiel da ordem medieval das coisas (WECKMANN, 1993, p. 24). As traduções das citações de fontes primárias e de bibliografia em íngua estrangeira são nossas
5 Sobre a grande repercussão do manuscrito de Marco Polo na Europa, ver: Bibliothèque Nationale de France, 1993, p. 25
6
Sobre Zurara, ver Leite, 1941, e também a própria fonte, Zurara, 1978. Sobre o reino do Preste João, ver Carreira, 1997. Ver também Zaganelli, 1990
7 A bibliografia sobre Viajantes é muito vasta. No decorrer de nossa pesquisa, consultamos um grande número de obras, que estão relacionadas em Palazzo, 2002
8 Ambas as obras foram traduzidas para diversos idiomas ainda no século XVI e alcançaram um considerável número de leitores na Europa. No presente artigo utilizamos a edição brasileira (THEVET, 1944) de Singularidades […], com tradução, prefácio e notas de Estevão Pinto, e a edição francesa fac-similar (LÉRY, 1975) do original de Histoire d’un Voyage […], com tradução nossa nas citações
9 Optamos por manter a grafia de época das citações, já que é mais coerente também com a referência e com a redação dos textos em questão
10 Sobre os bestiários medievais, ver Voisenet, 2000
11 A historiografia discute acerca da tolerância inicial de Villegagnon para com os protestantes, atribuindo-lhe ora uma eventual simpatia em relação à religião reformada, ora um comportamento oportunista que mudava de acordo com a maior ou menor força política do grupo católico dos Guise junto à monarquia francesa. Sobre Villegagnon e a França Antártica, ver Carelli, 1993, p. 30-35, e Varnhagen, 1956, p. 106-116
12 “As aparições do maravilhoso dão-se, muitas vezes, sem relação com a realidade quotidiana, mas surgem no meio dela. (…) Se bem que subsista o movimento de admiração dos olhos que se arregalam, a pupila dilata-se cada vez menos e este maravilhoso, conservando embora o seu caráter vivido de imprevisibilidade, não parece particularmente extraordinário” (LE GOFF, 1994, p. 67- 69). “Gervásio de Tilbury conta- nos, entre outras numerosíssimas notações de mirabilia que nas cidades do vale do Ródano (…) há uns seres malfazejos, os dracs, que atacam as crianças pequenas mas, salvo algumas excepções, não são papões. introduzem-se, à noite, nas casas – já depois de fechadas as portas –, tiram as criancinhas dos seus berços e levam- nas para a rua e para as praças, onde são encontradas na manhã seguinte – com as portas das casas sempre fechadas. (…) Os vestígios da passagem dos dracs são como que imperceptíveis e o maravilhoso perturba o menos possível a regularidade quotidiana; mas é talvez isso o que de mais inquietante há neste maravilhoso medieval: justamente o facto de ninguém se interrogar sobre a sua presença sem nexo em pleno quotidiano” (idem, p. 52)
13 Referência ao comentário que teria sido feito por Francisco i, rei da França, por ocasião da assinatura do tratado de Tordesilhas. Ver Chinard, 1978, p. 30
14 Ver Boulanger, 1951, sobre todo esse contexto histórico
15 Sobre o tema da revolução científica, ver Rossi, 1992
16 Ver, sobre o expansionismo colonial francês, Ferro, 1994
17 Buffon publicou o primeiro volume de sua História Natural em 1749 e, a partir de então, continuou a editar regularmente o conjunto da obra, que atingiu um total de 36 volumes até 1788. Ver os textos originais de Buffon publicados em edição comemorativa: Buffon et al., 1988
18 Ver maiores detalhes em Laissus, Y. Le jardin du roi. In: idem, p. 66
19 Ver Rossi, 1992, p. 34. Ver também Pumfrey, 1988, p. 32-41
20 Os primeiros jesuítas enviados por Luís XIV à China partiram no final do século XVII, em 1685. Ali, fizeram-se úteis ao imperador e adotaram o idioma e os hábitos chineses. No século XVIII, prosseguiram sua atividade missionária e enviaram à França informações muito detalhadas sobre literatura, ciências, arte e história na China. Em 1735, foi publicada em Paris, suscitando grande interesse, a obra Description de la Chine, do padre Halde. Mas, a partir de 1742, o Vaticano passou a condenar sistematicamente a simpatia dos jesuítas para com os ritos chineses e o diálogo com o confucionismo, o que prejudicou a catequese, mas não impediu que os inacianos continuassem a se constituir em fonte importante de referência sobre assuntos chineses. Ver detalhes em Broc, 1987, p. 90-100
21 A tradução de Galland foi realizada a partir de um manuscrito do final do século XIII, encontrado na Síria e que, no século XVIII, ainda não havia sido editado nem mesmo em seu original árabe. Incompleta, a primeira edição no Oriente, feita pelo xeque Al-Yemeni, data de 1814, sendo seguida por aquela que se tornará mais conhecida no Oriente, a do Cairo, de 1835. Sobre todo o provável percurso dessa obra, que se tornou um marco no imaginário ocidental a respeito do islã, ver Wajnberg, 1997. Ver também Miquel; Bencheikh, 1991
22 Sobre o histórico da viagem, ver a Apresentação de Basílio de Magalhães. In: La Condamine, 1944, p. I-XVIJ.

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