SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número14Caderno de fotografias: “Entre olhares”Retrato do fim do século: homem, terra e trabalho em Nova Ponte/MG e a problemática dos deslocamentos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Por que eu gosto de morangos?

 

Why do I like strawberries

 

¿Por qué me gustan las fresas?

 

 

Regina de Toledo Sader*

Endereço para correspondência

 

Sou leitora apaixonada de romances policiais e sei que não estou sozinha nessa paixão, mas em excelente companhia como pretendo mostrar. Ernest Mandel, por exemplo, marxista e trotskista belga, autor de estudos tais como, Introdução ao Marxismo, A teoria leninista da organização, Trotski - um estudo da dinâmica de seu pensamento, escreveu também sobre a história social do romance policial: Delícias do Crime1 onde “confessa”, é ele quem o diz, gostar do gênero. Neste livro busca explicar porque milhões de pessoas no mundo todo lêem romances policiais. Na introdução explica que usando o método dialético clássico tal como foi desenvolvido por Hegel e Marx, tratará do tema como um dado social e não literário, justificando que nenhum fenômeno social é menos digno de ser estudado do que outros, pois a grandeza da teoria marxista repousa na sua capacidade de poder explicá-los todos.

Lendo Mandel fico sabendo que foi o declínio da agricultura e conseqüente êxodo rural, contribuindo para o grande crescimento das cidades nos dois últimos séculos, que trouxe o aumento da distância entre casa e local de trabalho, da poluição sonora e da atmosfera, intensificando a tensão nervosa, que por sua vez criou uma poderosa necessidade de distração, tornando o romance policial o ópio das “novas” (aspas do autor) classes médias no verdadeiro sentido da fórmula original de Marx: “uma droga psicológica que nos distrai da intolerável monotonia da vida cotidiana” nas palavras do Mandel. [Uau! Quando em setembro de 1973 no Chile, após o golpe, ao ser levada presa para uma ilha, a Quiriquina, por ser professora estrangeira da universidade de Concepción – donde suspeitíssima – e levava em minha bolsa dois livros da Agatha Christie, mal sabia eu que buscava fugir da monotonia!! E que monotonia! Assistir a espancamentos, humilhações e ameaças, só mesmo um romancezinho policial para dar mais cor naqueles tempos monótonos…]

E tem mais, pois “o romance policial é uma resposta às necessidades da intelectualidade alienada e dos trabalhadores na indústria e nos serviços, parcialmente conscientes da sua alienação, mas ainda não a ponto de compreender que uma explicação científica dos mistérios da produção de bens e da sociedade burguesa é possível, e que a emancipação coletiva é preferível ao escapismo individual” (pg. 117). [Oops!] E continua: “O romance policial é semiemancipatório, semi-civilizado e semi-sublimado. É burguês par excellence, um remédio burguês para os doentes da classe média atacados pelos males da sociedade burguesa.” (mesma página). [Com essa última afirmação concordo plenamente, e põe males da sociedade burguesa nisso, principalmente na Quiriquina. Quando eu era menina, com meus doze anos em meados do século passado (credo! agora sou idosa) e meu avô, um ávido leitor de policiais – na época chamávamos de histórias de detetive – me introduziu no gênero, não suspeitava que seríamos os dois considerados alienados parcialmente conscientes dos tais mistérios da produção de bens da sociedade burguesa…]

Mas outros autores, citados por Mandel e Medeiros de Albuquerque, este em seu livro O Mundo Emocionante do Romance Policial 2, buscam outras explicações. Álvaro Lins (in Medeiros de Albuquerque p. 13 e 14) diz que “o romance policial, mais do que os outros, é um mundo particular e fechado, com as suas emoções, com seus encantos, com suas grandezas e misérias, tudo diferente do mundo em que vivemos. A leitura de um romance policial é uma evasão, uma troca de realidades; é a entrada num universo de natureza anormal, o do crime, apaixonando os leitores não só pelo extraordinário, mas também por uma ligação secreta com esse mundo de horrores, operada na circunstância de que no homem mais virtuoso ou tímido existe a possibilidade de praticar o ato anormal do criminoso.” Mandel (p. 26-27 op. cit.) cita dois autores: Walter Benjamin (Kriminalromane auf Reisen) para quem um “viajante lendo, num trem, um romance policial está temporariamente substituindo uma ansiedade por outra, (…) e desta forma esquece medos envolvendo- se nos inocentes temores ligados aos crimes e aos criminosos que não guardam qualquer relação com sua vida pessoal.” Em seguida cita Erich Fromm (in The Sane Society), para quem a sensação de tédio, monotonia e enfado nada mais é do que manifestação de uma ansiedade mais profunda, e que “o interesse e o fascínio [por romances policiais] não são apenas expressões de mau gosto e anseio pelo escândalo, mas correspondem a uma dramatização da última instância da vida humana, isto é, a vida e a morte, através do crime e do castigo, da luta entre o homem com a natureza.” Mandel critica a tentativa de explicação por meio única ou principalmente de fatores como psicologia individual (p. 111 op. cit.), pois estes devem estar integrados ou subordinados aos fenômenos mais gerais da evolução social.

Enfatizando a existência de grande número de adeptos do gênero, Mandel (pg. 28, Nota 3), cita A.G.Lowy (Die Weltgeschichte ist das Weltgericht) que nos diz que Bukhárin era um “fanático leitor de romances policiais, que chegava atrasado para importantes reuniões do partido porque não conseguia largar o romance que estivesse lendo na ocasião” [não disse que eu estava em boa companhia??], e que em 1924 escreveu um artigo no Pravda falando da utilidade de se lançarem romances no gênero como meio para a educação das massas, o que de fato foi feito. [E que monotonia deveria ser a vida na jovem URSS em 1924, com a ascenção do camarada Stalin ao poder. Era mesmo necessário mostrar às massas e aos intelectuais parcialmente alienados que deveriam lutar contra a produção de bens pela burguesia e etc., enfim.]

De qualquer forma a importância do romance policial é de tal monta, que Medeiros de Albuquerque (op. cit.) transcreve um despacho do jornal O Estado de São Paulo de 10 de janeiro de 1973, no qual lemos à página 34 que o governo cubano estabeleceu normas aos escritores de novelas e contos policiais, especificando que os romances do gênero “não devem envolver os protagonistas de suas obras em intrigas amorosas nem recorrer a fatos fortuitos para elucidar os crimes” pois, “o amor é desnecessário quando se trata de assuntos sérios e da solução de mistérios”. [Ai, ai, ai, e eu que gosto tanto quando o mocinho se apaixona pela mocinha…]. E tem mais: “os crimes não podem ser elucidados por meio da decifração de códigos, descobertas de drogas, associação de palavras, sessões espíritas e comparação de pontas de cigarros dos suspeitos com as encontradas no local do crime (…) os crimes devem ser descobertos unicamente por meio de deduções e nunca com base em fatos fortuitos.” Além disso, “o governo exige que as obras tenham caráter instrutivo, a fim de servir como estímulo à prevenção de atividades anti-sociais.” (p. 35 op. cit.) [Danou-se! quando lia um romance policial queria só me divertir, agora devo me estimular a prevenir as tais atividades anti-sociais, além de buscar compreender uma explicação científica dos mistérios da produção da sociedade burguesa, que a emancipação coletiva é preferivel ao meu escapismo individual, e que tenho uma ligação secreta com esse mundo de horrores, além de achar que existe para mim a possibilidade de praticar o ato anormal do criminoso e, sobretudo ter mau gosto e anseio pelo escândalo!! Estou me sentindo terrivelmente culpada, Dona Agatha, lendo sobre crimes na alta sociedade inglesa pré e pós Segunda Guerra, só porque a senhora quiz!]

Apesar de rotulado como ópio das novas classes médias e de droga psicológica contra o tédio do cotidiano, muitos autores trabalham seus enredos sob uma ótica política. Não só Dashiel Hammet ou Ross Macdonald, mas muitos outros. A lista não é nem de longe exaustiva, cito apenas alguns de memória ou que tenho à mão: Graham Greene com o monumental Terceiro Homem levado ao cinema estrelando Joseph Cotten, Orson Wells, que está magnífico, e Alida Valli, com uma bela trilha sonora; mais recentes são James Grady com Seis Dias do Condor, que transformado em filme dirigido por Sidney Pollack teve o espaço de tempo diminuido para três dias, estrelado pelo belo Robert Redford; Cruz Smith com Gorky Park; Manoel Vasquez Montalbán que é (ou foi) membro do Comitê Central do PC Catalão que escreveu sobre a Argentina e os Desaparecidos entre outros, sempre com uma nítida abordagem política; José Latour, escritor cubano radicado no Canadá, lançado recentemente no Brasil em 2005 pela Record com Mundos Sujos, da mesma maneira que Pierre Frei que escreve Morte em Berlim, publicado também pela Record no mesmo ano; Henning Mankell com os Cães de Riga pela Cia das Letras; Frederick Forsyth cujo livro mais famoso é o Dia do Chacal; todos os de Robert Ludlum; e por aí vai. Eu não tenho grande apreço pelos romances mais políticos, digamos assim, mas dentro desta rubrica esses são os meus preferidos.

Tão pouco é verdade que na luta pelo bem contra o mal o primeiro prevalesce. Patrícia Highsmith criou o anti-herói Ripley, um assassino e mau-caráter que sempre vence. Será que quem lê essas mal traçadas assistiu À Plein Soleil, traduzido, creio, como O Sol por Testemunha com Marie Laforêt e Alain Delon, este como Ripley? Até Dame Agatha Christie escreveu um de seus romances que deixa em aberto a punição da assassina por falta de provas: At Bertram’s Hotel. Confesso que fico irritadíssima quando isso acontece. Se quero que o bandido ganhe basta ler o jornal diário. Está aí o tal do marcola et caterva que não me deixam mentir.

Há um outro tipo de romance que alguns autores não colocam como policiais, enquanto outros sim, são aqueles que tratam de espionagem necessariamente envolvendo conspirações e crimes a serem elucidados. Novamente na minha listinha (que não cobre nem um milionésimo dos autores) aponto Frederick Forsyth, Robert Ludlum, James Grady (eles de novo), John Grisham, John le Carré, e agora, sobretudo Dan Brown com O Código Da Vinci com sucesso mundial extraordinário.

Dan Brown descobriu a fórmula do sucesso ao alinhavar tarefas difíceis – como a solução de enigmas, que se constituem em etapas –, com teorias conspiratórias desafiando poderosos, com polêmicas que envolvem as versões da Bíblia cristã. O terreno estava pronto. Quantos contos de fadas na nossa infância têm um herói que precisa decifrar pistas para seguir adiante? Os contos do ciclo arturiano da busca do Santo Graal também têm esta característica. E Brown “pega uma carona” e tanto nos livros – também “best sellers” – de alguns autores3, além de trazer à tona a organização, um tanto quanto secreta dentro da Igreja Católica que é o Opus Dei, como vilã.4

É preciso não esquecer que descobertas arqueológicas fortuitas entre 1947 e início da década de cinquenta trouxeram à tona os manuscritos do Mar Morto em Israel, os envangelhos de Nag Hammadi e o envangelho de Judas, no Egito, sendo que este não se tem certeza do local exato em que foi encontrado e que demorou decênios para ser finalmente adquirido e divulgado por pesquisadores. Todos trazem novas versões que abalam os ensinamentos bíblicos tradicionais do Novo Testamento.

A seu favor conta também o fato de que vivemos numa época que as teorias conspiratórias são bem aceitas por todos nós. Existem as falsas conspirações e complôs, em geral arma adotada por ditadores: plano Cohen de 1937 do governo Vargas no Brasil, o incêndio do Reichstag do Hitler, o complô dos jalecos brancos e dos judeus do Stalin, o Plan Z dos golpistas chilenos de 1973. Mas também complôs reais e recentes, a lista é longa mas cito apenas três: o assassinato do John Kennedy, a invasão do Iraque, cujo pretexto seria a presença de produção de armas biológicas por Saddam Hussein, que ficou claro que era falso, e o envenenamento a domicílio por Anthrax nos Estados Unidos, com cepa desenvolvida em laboratórios do governo americano. Estamos todos prontos para aceitar como plausíveis, teorias que expliquem fatos violentos que presenciamos no nosso cotidiano. Brown tinha os ingredientes para seu best-seller. E “enricou’ do dia pra noite!

Irremediavelmente perdida por esse ópio de classe média, essa droga psicológica, pelo meu escapismo individual e individualista, nunca me entusiasmei muito pelo romance policial brasileiro. Destaco apenas Lucia Machado de Almeida com o Escaravelho do Diabo5, que li na primeira edição, e, atualmente, Luiz Alfredo Garcia- Roza6, autor que aprecio muito. Quando soube, ao ler Medeiros de Albuquerque (op. cit.) que Guimarães Rosa havia participado com um capítulo em uma obra coletiva7 escrevendo um romance policial, fiquei entusiasmadíssima! Ai, que decepção. É uma brincadeira, um verdadeiro “pastiche”, e é meu querido Guimarães Rosa quem cria a personagem Tia Maria, um mixto de Miss Marple e Sherlock Holmes, que no capítulo escrito pela Rachel de Queiroz, elucidará o crime.

Na verdade, sou fã mesmo das romancistas inglesas. Meninota esperava com ansiedade chegar ao Brasil os livros da Agatha Christie, de quem li todos. Gosto muito da Ruth Rendell, tenho todos os seus livros, faltando-me apenas o último que acaba de ser lançado em Londres. P.D.James, então nem se fala. Martha Grimes, com toda uma série cujos títulos são nomes de “Pubs” antigos. Julie Kaewert, que coloca seus enredos em casas editoras, livros de antiquários e de colecionadores de primeiras edições, olhem os títulos; Unbound, Unprintable, Untitled, Unsolicited, Unsigned, Uncatalogued. Li e tenho todos. Das americanas gosto principalmente da Amanda Cross e da Mary Higgins Clark. São muitas, e não vou cansar ninguém com enumerações. Basta dizer que aprecio a elegância de estilo, aliada a uma finesse no tratamento do enredo. Detesto livros sobre serial killers, sequestros e assassinatos de crianças, descrições de torturas.

E querem saber? Nada melhor do que eu me sentar na varanda da minha casinha da roça lá no sul de Minas, tendo como paisagem um lago no horizonte cercado de morros, ver passar um bando de tucanos de tardinha, quando o sol já está caindo, com um delicioso romance policial nas mãos.

Agora só falta alguém responder a pergunta com que abro estas notas: porque gosto de morangos? Porque seu perfume sutil e seu gosto suave me fazem preferi-lo a carambolas? Alguma perversão, talvez, desta “velha dama indigna”, como alguém já me chamou? Pode ser…

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: rtoledosader@uol.com.br

Recebido em 23/07/2006
Aceito em 25/09/2006

 

 

* Maria Regina Cunha de Toledo Sader. Professora, Doutora aposentada pela Geografia na Universidade de São Paulo
1 Ed. Busca Vida, 1988
2 Francisco Alves ed., 1979
3 O Santo Graal e a Linhagem Sagrada de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, com a primeira edição inglesa de 1982 e que está na 18a. ed. pela Nova Fronteira; The Temple and The Lodge de M.Baigent & R. Leigh , Arrow Books, 1989; The Templar Revelation – secret guardians of the true identity of Christ, de Lynn Picknett & Clive Prince, publicado na Inglaterra pela Bantam Press em 1997; A Conspiração Jesus – A verdade sobre a ressureição de Cristo e a polêmica sobre o Santo Sudário de Turim, de Holgen Kersten e Elmar R.Gruber, Ed. Best Seller de 1994; Apócrifos, os proscritos da Bíblia compilados por Maria Helena de Oliveira Tricca da Ed. Mercuryo, 1989. Neles há mistérios, versões envolvendo polêmicas sobre o local da morte e ressurreição de Cristo, sua provável descendência por seu casamento com Maria Madalena, bem como envangelhos que foram preteridos no Concílio de Nicéia de 520 de nossa era, e, sobretudo, o interesse das Igrejas cristãs em acobertar tais fatos. No O Santo Graal e a Linhagem Sagrada há pastas de documentos depositados na Biblioteca Nacional de Paris que misteriosamente são desfalcadas e posteriormente enriquecidas com outros, mortes misteriosas, enriquecimento suspeito de um cura de aldeia que estaria no centro de uma conspiração, templários… Os autores destes livros são acadêmicos universitários ou psicólogos e jornalistas da BBC com exceção de Picknett e Prince que se apresentam como pesquisadores de “mistérios paranormais, e mistérios ocultos e religiosos”. Todos deliciosos de se ler, pra quem, como eu, gosta do gênero
4 Veja-se a respeito dos métodos desta organização, o livro recém lançado pela Ed. Panda Boooks, 2006: Memórias Sexuais no Opus Dei, de Antonio Carlos Brolezzi, antigo membro e hoje professor do Instituto de Matemática da USP
5 Ed. O Cruzeiro, 1956
6 Garcia-Roza é formado em Filosofia e Psicologia e tem vários livros publicados na área da psicanálise, e seu detetive tem o revelador nome de Spinoza
7 O Mistério dos MMM, Ed. O Cruzeiro, 1962 coordenado por João Condé, com os autores: Viriato Correa, Dinah Silveira de Queiroz, Lucio Cardoso, Herbert Sales, Jorge Amado, Josee Condé, João Guimarães Rosa, Antônio Callado, Orígenes Lessa e Rachel de Queiroz. Consegui um exemplar graças aos esforços de uma amiga, Gisela Pupo Nogueira, que encontrou um exemplar somente em um sebo de Porto Alegre, via pesquisa na Internet, porque nem na Biblioteca Nacional ela havia conseguido

Creative Commons License