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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Rabiscando para ser: do si mesmo para o papel

 

Squiggling to be: from yourself to the paper

 

Garabateando para ser: de si mismo para el papel

 

 

Beatriz Pinheiro Machado Mazzolini*

Universidade Paulista, UNIP Campinas
Universidade Ibirapuera, UNIb

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre o Jogo do Rabisco, uma situação criada por Winnicott para compreender a comunicação de seus pacientes. O jogo é descrito tal como proposto por Winnicott (1968, 1984) em seus textos O Jogo do Rabisco e Consultas terapêuticas em Psiquiatria infantil, respectivamente. Para o autor, os desenhos revelam, no espaço terapêutico, alguns aspectos da personalidade e habilidades perceptivas do indivíduo, que, muitas vezes, não se evidenciaram no ambiente familiar. O estudo de Safra a respeito desse tema enriquece o artigo. A experiência vivida por Karin, uma adolescente de 12 anos, apática para os estudos e para a vida, é apresentada como ilustração do modo como o Jogo do Rabisco pode acontecer no cotidiano clínico. O artigo pretende, também, fomentar a pesquisa com esse tipo de recurso, que parece simples, mas que é altamente complexo e de grande profundidade psíquica.

Palavras-chave: Psicologia do desenvolvimento, Intervenção, Jogo do rabisco, Fenômenos transicionais.


ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on the Squiggle Game, a situation created by Winnicott to comprehend the communication of his patients. The game is described as proposed by Winnicott (1968, 1984) in his texts The Squiggle game and Therapeutic Consultations in Child Psychiatry, respectively. To the author, the drawings reveal, in the therapeutic area, some aspects of the individual’s personality and perceptive abilities, which many times, couldn’t be evidenced in the familiar environment. Safra’s study regarding this theme enriches the article. The experience lived by Karin, a 12-year-old teenager, apathetic to the studies and to her life, is presented as an illustration of how the Squiggle Game may happen in the clinical routine. The article also intends to foster the research with this kind of resource, which seems to be simple, but is highly complex and of great psychic significance.

Keywords: Development psychology, Intervention, Squiggle game, Transitional phenomena.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es reflexionar sobre el Juego de Garabatos, una situación creada por Winnicott para comprender la comunicación de sus pacientes. El juego es descrito tal como propuesto por Winnicott (1968, 1984) en sus textos El Juego de Garabatos y Consultas terapéuticas en Psiquiatría infantil, respectivamente. Para el autor, los dibujos revelan, en el espacio terapéutico, algunos aspectos de la personalidad y habilidades perceptivas del individuo, que, muchas veces, no se evidencian en el ambiente familiar. El estudio de Safra al respecto enriquece el artículo. La experiencia vivida por Karin, una adolescente de 12 anos, apática para los estudios y para la vida, es presentada como ilustración del modo como el Juego de Garabatos puede suceder en el cotidiano clínico. El artículo pretende, también, fomentar la pesquisa con ese tipo de recurso que, a pesar de parecer simple, es altamente complexo y de gran profundidad psíquica.

Palabras clave: Psicología del desarrollo, Intervención, Juego de garabatos, Fenómenos transicionales.


 

 

Introduzindo os rabiscos

Rabiscar é uma atividade quase automática. Quem, diante de lápis e papel, não começa logo a rabiscar? Não importa a forma que se dá ao desenho, a ordem é rabiscar, passar o tempo, deixar marcas no papel...

Essa situação comum do dia-a-dia não passou desapercebida para Winnicott, um grande observador do ser humano, que deu grande destaque a essa expressão livre e criou o que ficou conhecido como O Jogo do Rabisco1, que é uma forma de comunicação, um meio de se entrar em contato com o si mesmo da pessoa que joga. Nas palavras do autor: “É simplesmente um método para estabelecer contato com um paciente infantil” (WINNICOTT, 1994, p. 231).

Abram (2000), diretora da Squiggle Foundation de Londres, escreve que

Winnicott chamou o uso que fez do jogo dos rabiscos de “consulta psicoterapêutica” com a intenção de distingui-la da psicanálise e da psicoterapia, além de indicar que a primeira consulta, por si só, pode ser terapêutica (ABRAM, 2000, p. 198).

A mesma autora relata que “Winnicott estava muito relutante em escrever sobre o jogo dos rabiscos, receoso de que fosse tomado como um teste psicológico” (ABRAM, 2000, p. 200). O medo de Winnicott era que seu jogo fosse confundido com algo como o Teste de Apercepção Temática (TAT), ou seja, uma técnica estruturada, com regras bem estabelecidas. Essa preocupação em não transformar esse jogo em teste é enfocada por Winnicott (1990) em uma carta datada de 18 de junho de 1968 ao correspondente L. Joseph Stone, em que escreve:

Adoro falar sobre essas coisas que ilustram o uso dos rabiscos através da referência a exemplos de consultas terapêuticas, mas, ao mesmo tempo, como espero que perceba, reluto muito em colocar isso de maneira definitiva no papel. Eu preferiria que cada profissional do ramo desenvolvesse seu próprio método, assim como eu desenvolvi o meu (WINNICOTT, 1990, p. 154-5).

Nessa carta, Winnicott indica alguns textos para leitura sobre o Jogo do Rabisco, mencionando sua intenção de reunir todas as suas idéias sobre o tema. Escreve também a respeito de sua relutância em iniciar uma técnica de rabiscos, que poderia ser vista como rival de outras técnicas projetivas, o que não era nem de longe o seu propósito.

Os escritos e os desdobramentos em relação ao que Winnicott pensa sobre o Jogo do Rabisco são muitos e merecem mais aprofundamento, mas para o presente artigo é preciso recortar o que interessa na teoria winnicottiana.

Winnicott compreende o ser humano por sua tendência à maturação, que, para acontecer nesse mundo, necessita do estabelecimento de certas condições ambientais considerando como condição principal a relação com um outro ser humano, em um ambiente seguro.

Na concepção winnicottiana, o ser humano é contínuo devir e fundamentalmente porvir. O si mesmo (self) é um estar no mundo em contínua transformação, dependendo das experiências que são vividas pelo indivíduo.

As contribuições de Safra (2006) em relação ao estudo do pensamento de Winnicott auxiliam o profissional a embasar e compreender as idéias desse autor. Uma delas é considerar, como fundamental para a situação terapêutica, não só o já acontecido na vida, como também aquilo que ainda não aconteceu (o que está por vir) e que aguarda possibilidade de acontecer. Só por meio do encontro com um outro humano será possível dar continuidade ao processo maturacional.

No pensamento de Winnicott o porvir está vinculado à noção de esperança, sendo ela o elemento que permite afirmar algo sobre a sanidade de alguém. Assim, o terapeuta é o representante do porvir (sustenta a esperança, o futuro da realização do self), é uma figura frente à qual o passado pode vir a se repetir e o paciente pode, na presença dele, formular as questões que comprometeram sua tendência maturacional.

A partir desse referencial, o processo transferencial implica, dentro do trabalho clínico, aquilo que virá a ser formulado como experiência transformadora (originária), que implica o novo. O psicoterapeuta faz a intervenção a partir de um lugar do futuro, que se torna presente no encontro terapêutico (o paciente na sala, qual seu idioma pessoal2, qual seu tipo de jogo, como completa os rabiscos etc.).

 

Rabiscando com Winnicott e Safra

Winnicott (1984) ao relatar suas experiências com o Jogo do Rabisco faz uma ligação artificial entre este e a consulta terapêutica3, afirmando neste texto que:

(...) se é dada a oportunidade de maneira adequada e profissional para uma criança ou para um adulto, no tempo limitado do contato profissional o cliente trará e exporá (embora de início apenas como uma tentativa) o problema predominante ou conflito emocional ou a espécie de tensão que aparece nesse momento da vida do cliente” (WINNICOTT, 1984, p. 15).

Winnicott acredita que o problema que pode aparecer no material da consulta terapêutica é o mesmo que está causando tensões na pessoa. Nessa situação de jogo evita as interpretações do inconsciente, porém coloca-as em discussão. O autor, em vários textos, enfatiza que não faz interpretações para demonstrar competência. Transcrevo o que ele declara, neste texto, em relação a essa afirmação: “Uma coisa que o leitor notará é que nunca (assim espero) faço interpretações para meu próprio benefício” (WINNICOTT, 1984, p. 18). Acredito que sua advertência auxilia o terapeuta a focar sua atenção exclusivamente no paciente, se vier a fazer algum tipo de interpretação.

Safra (2006), ao analisar o Jogo do Rabisco, lembra que Winnicott considerava-o como uma situação, definindo situação como um lugar de acontecimento. Safra aponta como primeira questão fundamental do Jogo do Rabisco o fato de ele possibilitar o uso, o gesto, o brincar. Vale ressaltar aqui que Winnicott valorizava o brincar por sua possibilidade de colocar as coisas em trânsito, e não como elemento expressivo. Uma segunda questão é o fato de que o rabisco é uma situação não acabada, sem forma. Ao fazer um rabisco a pessoa oferece ao outro uma forma inacabada, que pode referir-se ao não acontecido na sua história. Winnicott, como foi mencionado anteriormente, considera o ser humano como um ser de porvir e não acabado (em devir), que traz fraturas em sua história e anseia pela possibilidade de que tais fraturas encontrem trânsito na presença de alguém.

O rabisco pode mostrar a maneira como o self se apresenta no mundo, não acabado, e esta é a grande questão do objeto subjetivo. Winnicott define o objeto subjetivo como aquele que se forma no psiquismo humano e que pode tornar presentes a aspiração e a esperança da realização de si.

Safra (2006) lembra que os rabiscos de Winnicott nunca eram um círculo, um quadrado ou uma forma acabada, o que ele desenhava era a garatuja mesmo. A pessoa olhava para o desenho de Winnicot e se sentia provocada pela instabilidade e pelo desejo de dar uma forma a ele. O rabisco deve ser feito a lápis, pois permite textura e pode ser apagado. Pede-se que a pessoa construa algo, que dê uma forma a algo, o que tem a ver com toda a situação inacabada do próprio porvir do self. Nesse momento da criação, no momento em que a pessoa constitui algo por meio do rabisco, tem-se uma forma que fala do estado de self.

Uma das coisas que considerei ao ler as instruções dadas por Winnicott acerca da aplicação do jogo refere-se à maneira como ele orienta que seja proposta a situação. Ele ressalta que o fator mais importante, quando aplicava o jogo, era a sua flexibilidade. Adverte que, se a criança quisesse desenhar, conversar, brincar com brinquedos, cantar, fazer bagunça ou qualquer outra atividade, ele permitia isso, ficando livre para se adaptar aos desejos dela. Sugere que o terapeuta que vai utilizá-lo faça o mesmo e não fique preso a regras muito rígidas. Mazzolini (1999) descreve o jogo do rabisco livre, de uma adolescente que joga de acordo com as próprias regras, e a flexibilidade da psicoterapeuta, que joga de acordo com a necessidade da paciente.

 

O Jogo do Rabisco

A instrução do Jogo do Rabisco, tal como proposta por Winnicott é transcrita a seguir:

“Vamos jogar alguma coisa. Sei o que gostaria de jogar e vou lhe mostrar.” Há uma mesa entre a criança e eu, com papel e dois lápis. Primeiro apanho um pouco de papel e rasgo as folhas ao meio, dando a impressão de que o que estamos fazendo não é freneticamente importante, e então começo a explicar. Digo: “Este jogo que gosto de jogar não tem regras. Pego apenas o meu lápis e faço assim...” e provavelmente aperto os olhos e faço um rabisco às cegas. Prossigo com a explicação e digo: Mostre-me se se parece com alguma coisa a você ou se pode transformá-lo em algo; depois faça o mesmo comigo e verei se posso fazer algo com o seu rabisco (WINNICOTT, 1994, p. 232).

Uma variação dessa instrução aparece em Winnicott (1984), no caso de Iiro, um menino finlandês, em que ele diz: “Fecharei meus olhos e farei um risco a esmo no papel; você o transformará em alguma coisa e depois será sua vez e você fará o mesmo e eu transformarei seu traço em alguma coisa” (WINNICOTT, 1984, p. 20).

Outra consulta, de um menino de oito anos, Jason, mostra como ele relutou em aceitar o jogo prontamente.

Nesta vez, ele e eu estávamos nos comunicando e pedi que o pai dele aguardasse na sala de espera. Puxei a pequena mesa e sugeri o jogo, explicando sobre os rabiscos. Ele disse: “Não conhece um jogo de pontos?” Ele deu a impressão de que não seria capaz de tolerar coisa alguma que não tivesse perder e ganhar, e não tive muitas esperanças quanto a jogo produtivo, baseado nos rabiscos. Entretanto, insisti (WINNICOTT, 1984, p. 363).

Pode-se notar que o Jogo do Rabisco é aparentemente simples, porém sua complexidade não está na instrução ou no resultado e sim na experiência, na possibilidade de oferecer à criança um espaço de confiança, um ambiente facilitador, para que possa acontecer como ser humano, colocando em trânsito questões fundamentais que ficaram detidas em seu processo maturacional.

 

Rabiscos, acontecimento e ser

Karin4, uma adolescente de 13 anos em processo psicoterapêutico por sua apatia diante dos estudos e da vida. Karin chega sempre cansada às sessões, mas nunca falta. Vai mal na escola, não se sente compreendida pelos pais e sente-se humilhada pela irmã, que manda nela e a chama de burra. Em uma determinada sessão, pega folhas brancas que ficam disponíveis em cima da mesa e começa a fazer rabiscos. Escreve bastante o seu nome e, algumas vezes, o meu, sua psicoterapeuta, sobrepondo rabiscos, desenhos, palavras etc. Comento, precipitadamente, “quanta coisa escrita, será que dá para ler?” Ao que Karin responde: “Eu gosto de fazer isso”.

Karin descobre o Jogo do Rabisco e cria a situação que necessita (para vir a ser) e eu a acompanho em seu percurso. Proponho o jogo de Winnicott. Karin fica surpresa, acha engraçado e aceita jogar.

Explico rapidamente o jogo, faço um rabisco e ela completa, desenhando um pássaro pousado no parapeito de uma janela aberta (figura 1). Fico impressionada com o seu desenho, com a cena que ela monta para a avezinha e sinto vontade de perguntar. Ela se antecipa e comenta que não poderia deixar o pássaro sozinho na folha.

 

 

Começo a falar e digo “é difícil mesmo alguém estar sozinho...”, mas Karin interrompe minha fala, dizendo que “não é para falar, é só para desenhar”.

Então, faz um rabisco para mim. Sinto que devo desenhar um cisne nadando e completo o seu rabisco, desenhando isso. Não comento nada no momento, esperando um comentário seu, que não vem, mas percebo que ela gosta, pois olha e sorri para o nosso desenho.

Faço um outro rabisco, que ela completa rapidamente com uma tigela de sopa sobre uma mesa (figura 2). Como na situação anterior, Karin não comenta nada.

 

 

Conforme a regra, era a vez de Karin rabiscar e eu completar o desenho, mas ela transforma a regra e me pede para fazer outro rabisco para ela. Aceito o seu jogo, a mudança da regra e rabisco algo, que ela completa, desenhando uma boneca de ponta-cabeça, em um vaso com uma única flor (figura 3).

 

 

Penso quantas metáforas e metonímias!

Convido Karin a integrar os desenhos em uma história, mas ela não quer, ela me interrompe mais uma vez, lembrando-me da regra do
silêncio. Respeito a regra e fico em silêncio.

Karin olha para os desenhos, parece compreendê-los e não diz nada. A sessão já estava terminando e lembro isso a ela, que aceita
encerrar. Ao despedir-se diz “Hoje foi legal”.

 

Tentando traduzir os rabiscos

Karin apresenta-se por meio de seus desenhos: um pássaro que precisa de apoio, está cansado de voar? Uma tigela de sopa em cima de uma mesa: um alimento fácil de digerir, não precisa mastigar e nem morder. A cena sugere espera ou abandono ou o quê? Não tem ninguém para dar a comida e não tem ninguém para comer, onde estão as pessoas? Uma menina-boneca ou uma boneca-menina, de ponta cabeça, que enfeita um vaso de vidro? Quantas questões formuladas em seus desenhos, que riqueza de experiência e nem foi preciso falar convencionalmente. Karin conecta-se com o seu si mesmo, desenha sem pressa de acabar alguns aspectos de si mesma, que estavam detidos ou perdidos em seu processo de desenvolvimento.

Winnicott nos ensina que o setting terapêutico tem de prover a experiência que o paciente necessita. O setting forneceu-lhe continência e segurança ao dar-lhe espaço (terapeuta presente, viva, em disponibilidade e folhas em branco) para colocar-se como queria, escrevendo seu nome e, ao mesmo tempo, marcando sua identidade. Karin usa a ilusão e encontra significado nas relações com aqueles rabiscos. Digo-lhe que eles falam dela, de seu nome, de rabiscos, que comunicam algo que ainda não sabemos o que é. Ela ouve e não retruca, como sempre faz, nesse momento sente que sua vida está acontecendo.

O setting permite-lhe ser ela mesma (sem a sombra de sua irmã), quando propõe as regras do jogo segundo seus critérios pessoais e compartilha isso comigo, sua terapeuta-testemunha.

Karin inicia a sessão, rabisca e me faz lembrar do Jogo do Rabisco de Winnicott e então proponho a situação, o lugar de acontecimento, e as coisas acontecem. Autorizo o brinquedo que ela mesma descobriu, potencializamos esse espaço mágico. Karin fala sem usar palavras para falar ou para escrever, usa rabiscos que se transformam em desenhos que falam de apoio, liberdade, companhia, alimento, enfeite, ponta-cabeça, fragilidade.

Mudo o manejo para atender ativamente às suas necessidades, olho para ela, tentando compreender o que lhe acontece. Penso na precipitação do psicólogo que julga ter de falar sempre alguma coisa para seu paciente e reflito sobre minha própria precipitação ao querer conversar sobre seu primeiro desenho. Winnicott, ao longo de sua obra, adverte sobre precipitação e interpretação.

Khan (1984), amigo, colaborador e estudioso da obra de Winnicott, relata a história clínica de Peter, um adolescente que se afastou das atividades escolares e sociais, levando Khan a pensar sobre a questão do silêncio como forma de comunicação.

Quando diagnostiquei que o negativismo e a retirada para a inércia e a apatia eram, ao mesmo tempo, um pedido de socorro e a expressão de uma tendência anti-social, eu fiquei preparado para transformar os processos clínicos numa representação desses conflitos intrapsíquicos. O idioma principal do paciente para comunicá-los e expressá-los era o silêncio, e é a manipulação clínica desse silêncio que passo a relatar (KHAN, 1984, p. 206-7).

Karin, como Peter, necessitava de silêncio, de ausência de intrusão, seja por perguntas ou pela interpretação; necessitava da presença corporal sensível na minha pessoa; para poder fazer o que tinha necessidade de fazer. Karin precisa de experiência, vibra com ela e devolve isso ao final da sessão, quando diz “Hoje foi legal”. Sentese bem, sente-se vivendo, realizando, tendo esperança.

Essa é uma experiência importante para Karin, pois é ela quem determina as regras do jogo, de acordo com a dupla que formamos. Estabelece o seu próprio parâmetro para o jogo: a regra do silêncio, que para ela é fundamental, não se comenta nada. Demarca espaço e ritmo próprios, e eu privilegio uma situação que é escolhida por ela; sinto que o que é para ser feito é acolhê-la e permitir que jogue, do seu jeito. Karin rabisca coisas e o próprio nome como forma de acontecer no mundo, como forma de realizar a própria identidade.

Posso acolhê-la dentro do que ela gosta de fazer. Tento falar e ela me interrompe, ela estabelece como gosta que aquele jogo seja jogado: sem falar. Ela me dá as dicas de como conduzir o manejo. Vou tateando, com base naquilo que me comunica, até chegar ao manejo adequado para a situação em que nos encontramos. Acredito que posso dar continência e holding a ela para que se expresse, como ela mesma.

 

Rabiscando mais um pouco para concluir

O exemplo de Karin ilustra o uso que fiz do Jogo do Rabisco de Winnicott, a partir do gesto dela, uma paciente já em processo psicoterapêutico. O uso que fiz marca uma diferença em relação à metodologia usada por Winnicott, pois foi uma sessão dentro de um processo de atendimento.

Acredito que usar a teoria winnicottiana, como base para a compreensão e condução de meus atendimentos, deu-me condições de valorizar a experiência que o paciente vive dentro do setting terapêutico estabelecido para ele. Pude reconhecer, nesse caso, que Karin necessitava apresentar a si mesma partes não integradas de seu si mesmo, para então começar a integrá-las nessa situação, que foi sustentada por mim, que lhe dei holding. A situação não precisava de interpretação, e sim de manejo5 para que Karin pudesse colocar em trânsito algumas de suas questões fundamentais.

Winnicott considera a consulta terapêutica como uma situação fundamental para que se realize um encontro e para que algo que ficou retido no processo maturacional possa ser revertido. O terapeuta é a figura para quem se colocam as grandes questões originárias e para quem se colocam os elementos que se detiveram no processo maturacional e ele, por meio de sua intervenção, possibilita ou não que aquilo que esteve detido possa retomar o seu processo.

O terapeuta colocado nessa posição reconhece a questão que o indivíduo formula, sem interpretá-la, dando presença humana e possibilitando que a questão entre em trânsito. Colocar uma questão em trânsito é uma maneira de abordar o assunto de forma específica, pois as questões fundamentais da vida humana (origem, solidão, sexualidade, vocação, morte etc.) não se resolvem, mas precisam transitar. Não resolvemos, mas colocamos em trânsito por meio de questões simbólicas, por meio do gesto, do brincar. É preciso a presença do outro para que a questão psíquica possa ser colocada em trânsito, possa entrar em processo de maturação. Essa é a questão do jogo e do fenômeno transicional, pois quando o desenvolvimento psíquico se detém não há a possibilidade de jogar.

Os objetos culturais ajudam no processo de devir do ser humano, mas nada pode ser imposto, pois o que é imposto rompe os fenômenos transicionais. O que é imposto promove reação e não movimento do próprio indivíduo em direção a alguma coisa. Assim, o terapeuta é uma presença e uma referência que possibilita, sem oprimir. A intervenção é um gesto do terapeuta que acontece dentro da experiência transferencial, que possibilita que o jogo continue. Winnicott sempre compreende as coisas que estão se passando na relação ou no desenho como um acontecimento ou como uma conquista.

Winnicott (1984) afirma em relação à questão da interpretação de desenhos o seguinte:

Longos tratamentos psicanalíticos têm tido efeito sobre mim e percebi que interpretações que pareciam corretas há dez anos e que o paciente aceitava por medo mostraram-se, no final, justificações conspiratórias. (...) Alguém pode possuir uma tendência doutrinária a pensar que todas as cobras são símbolos fálicos, e é claro que podem ser. (...) o desenho feito por uma criança de uma cobra pode ser a configuração de eu (self) que ainda não usa braços, dedos, pernas e artelhos. (...) Longe de ser um objeto parcial, uma cobra num sonho ou fobia pode ser um primeiro objeto integral (WINNICOTT, 1984, p. 18).

Acredito ser fundamental deter nossa atenção a essa observação de Winnicott, pois temos de compreender o que comunicam os desenhos das crianças que atendemos, a partir das experiências que elas vivem, a partir de sua história biográfica e menos dos manuais de interpretação. Para Winnicott, a forma, os desenhos, enfim, o jogo sempre falam da totalidade do self, de como o indivíduo vive suas experiências. Sua metodologia de leitura do desenho é olhá-lo como totalidade do self e como ele é experimentado naquele momento, ele nunca o olha como objeto parcial.

Assim, deve-se considerar que uma pessoa, ao completar o rabisco, fala de sua experiência de ser, do modo como experiencia a totalidade de si mesma. Para Winnicott, os desenhos do Jogo do Rabisco falam de estados de self, de sentidos do si mesmo e não de objetos parciais.

O terapeuta nessa perspectiva não é um técnico, não é um lugar de projeção e nem um lugar de deslocamento. Ele é um novo outro humano, que traz um repertório decorrente de sua trajetória pessoal pela vida, cheio de possibilidades de colocar em trânsito as questões fundamentais do destino humano. Por essa razão, na consulta terapêutica, no Jogo do Rabisco, o analista joga tanto quanto a criança, ele se põe em trânsito junto com a criança. Tratase de estar em uma relação com a criança dentro do espaço potencial, em que oferta à criança garatujas inacabadas, para que ela possa colocar ali os seus estados de self.

A criança não pode ser o interlocutor do terapeuta, pois são as garatujas dele que devem dialogar com as garatujas da criança. O terapeuta ao fazer as garatujas conversa com a problemática da criança.

A criança se surpreende comunicando algo e essa surpresa pode ser a revelação de que uma dissociação se desfez, podendo ter acontecido uma integração. O terapeuta está lá para reconhecer a comunicação e para promover a interlocução com a questão que a criança trouxe. A criança supera uma dissociação e renova sua esperança na possibilidade de comunicação humana. Na perspectiva winnicottiana, o fato de que a esperança encontrou realização é a possibilidade do estabelecimento da sanidade no mundo psíquico. Essa experiência abre a possibilidade de a criança buscar outras oportunidades, outros seres humanos para pôr em marcha as suas questões fundamentais.

Tenho usado o Jogo do Rabisco em sessões, durante processos de atendimento, como ocorreu com Karin, e os resultados têm sido surpreendentes, para mim e para as pessoas que participam dele. Acredito que são necessárias mais pesquisas com essa situação de jogo, principalmente em centros de atendimento de um grande número de crianças, como as clínicas-escola dos cursos de Psicologia.

Winnicott (1984) compartilhou 21 consultas com os profissionais que querem aprender mais sobre o Jogo do Rabisco e sobre sua maneira de trabalhar. Ele compara sua posição à do violoncelista que estuda a técnica e depois começa a tocar a música, mas podendo usar a técnica que aprendeu. Penso que o que ele ressalta aqui é o uso criativo que pode ser conseguido pelo psicoterapeuta após familiarizar-se com a situação propiciada por meio do Jogo do Rabisco.

Encerro o artigo com as palavras tão sábias e esperançosas de Winnicott, para todos nós, que ainda temos muito a aprender com ele:

Estou consciente de realizar esse trabalho com mais facilidade e sucesso do que seria capaz de fazer há trinta anos atrás, e meu desejo é estabelecer a comunicação com aqueles que ainda estão trabalhando a técnica, dando-lhes, ao mesmo tempo, a esperança de que um dia virão a tocar a música (WINNICOTT, 1984, p. 14).

 

Bibliografia

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SAFRA, G. DVD: A consulta terapêutica winnicottiana: teoria e técnica da intervenção sob demanda. São Paulo: Edições Sobornost, 2006.         [ Links ]

_______. Polifonia do idioma pessoal. In: Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Edições Sobornost, 2006.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: biamazzolini@uol.com.br

Recebido em 14/08/2006
Aceito em 25/09/2006

 

 

* Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo, docente de cursos de graduação e pós-graduação no Instituto Pieron de Psicologia, IPPA, na Universidade Paulista, UNIP Campinas e na Universidade Ibirapuera, UNIb
1 Jogo do Rabisco (Squiggle Game). Amálgama de dois trabalhos: um não publicado, escrito em 1964, e outro, publicado em 1968
2 Idioma pessoal é definido como o modo de ser do paciente e o modo como constitui sua relação com o espaço, com o tempo e com a materialidade do mundo (SAFRA, 2006, p. 93)
3 Consulta terapêutica: tipo de intervenção denominado por Winnicott para encontros de uma até três sessões
4 A história clínica de Karin (nome fictício) é parte da dissertação de mestrado apresentada ao IPUSP, por MAZZOLINI, 1999
5 Manejo é o provimento da adaptação ambiental que faltou ao paciente no seu processo de desenvolvimento (KHAN, 1993, p. 7). In WINNICOTT, D. W. Textos selecionados da Pediatria à Psicanálise. Consultar também ABRAM, 2000, p.139-40.

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