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PsicoUSF

versão impressa ISSN 1413-8271

PsicoUSF v.12 n.1 Itatiba jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Relação conjugal na transição para a parentalidade: gestação até dezoito meses do bebê

 

Marriage in the transition to parenthood: pregnancy until eighteen months of baby

 

 

Clarissa Corrêa Menezes *; Rita de Cássia Sobreira Lopes I, **

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente estudo objetivou-se analisar a relação conjugal, durante a transição para a parentalidade, sob dois enfoques: a avaliação que cada casal faz de sua relação e a interação comunicacional que estabelece nos diferentes momentos da transição. Foi realizado um estudo de caso coletivo, longitudinal, que abrangeu cinco etapas: o último trimestre de gestação e o terceiro, o oitavo, o décimo-segundo e o décimo-oitavo mês de vida dos bebês. A amostra foi composta por quatro casais adultos, com idades entre 20-30 anos, que esperavam seu primeiro filho e que foram recrutados em grupos de preparação para gestantes em hospitais de Porto Alegre. Em cada uma das etapas consideradas, os casais foram contatados e entrevistados conjuntamente, com base em entrevistas semi-estruturadas. A análise dos dados foi realizada a partir das análises qualitativa e quantitativa de conteúdo. Os resultados deste estudo apontam que um fator central para a compreensão da conjugalidade na transição para a parentalidade é a qualidade da relação conjugal estabelecida antes da transição.

Palavras-chave: Relação conjugal, Transição para a parentalidade, Nascimento do primeiro filho.


ABSTRACT

The present study aimed to analyze the marital relationship, during the transition to parenthood, from two perspectives: each couple's evaluation of their relationship in the different moments of the transition and the communicational interaction sustained during the interviews. It consisted of a longitudinal, collective case study, which comprised five moments: the last trimestre of pregnancy and the third, the eighth, the twelfth and the eighteenth month of the baby. The sample was composed of four adult couples, with ages ranging from 20-30, who were expecting their first child and were contacted on pregnancy groups from hospitals of the city of Porto Alegre. In each stage, couples were contacted in their homes and interviewed together. The data analysis was carried out through qualitative and quantitative content analysis. The results of the study shows that a central factor for understanding marital relationship in the transition to parenthood is the quality of the marital relationship established before the transition.

Keywords: Marital relationship, Transition to parenthood, First baby's birth.


 

 

Introdução

Recentemente, o conceito de ciclo de vida da família tem sido usado para descrever o percurso natural dos casais através do tempo. Nesse sentido, Gottman e Notarius (2002) tentaram definir os processos críticos que determinam as principais transições desenvolvimentais que os casais costumam passar. Eles mencionam que há um conhecimento intuitivo de que os casais se relacionam diferentemente de acordo com a fase vivida, o que vem sendo empiricamente investigado. A noção de ciclo de vida é trabalhada por Carter e McGoldrick (1995), que consideram o ciclo de vida familiar como sendo dividido em seis estágios: (a) jovens solteiros; (b) novo casal; (c) famílias com filhos pequenos; (d) famílias com filhos adolescentes; (e) lançando os filhos e seguindo em frente - o ninho vazio; e, finalmente, (f) famílias no estágio tardio de vida.

A partir do conceito de ciclo de vida familiar, acredita-se que a transição para a parentalidade (passagem do estágio (b) ao estágio (c), segundo Carter & McGoldrick, 1995) é uma das maiores mudanças por que o sistema familiar pode passar. É o momento em que os cônjuges, antes apenas um casal, tornam-se pais, progenitores de uma nova família. O nascimento do primogênito, em especial, é a primeira experiência de parentalidade vivida pelo casal.

Nos estudos empíricos a respeito da parentalidade, percebe-se que o nascimento do primeiro filho é especialmente considerado. Pesquisadores como Wilkinson (1995) e Crohan (1996) investigaram as mudanças na qualidade da relação conjugal de casais que passavam pela transição para a parentalidade a partir do nascimento do primeiro filho, comparando-os a casais que não tinham filhos. Eles obtiveram resultados semelhantes em suas pesquisas, que mostraram que o declínio na felicidade e na satisfação conjugal é mais pronunciado entre os casais que passam pela transição para a parentalidade do que os que não o fazem. Wilkinson, por sua vez, pode também confirmar sua hipótese inicial de que as mulheres sofrem mais o impacto do nascimento do primeiro filho na relação conjugal do que os homens.

Pittman (1994), ao apresentar os pontos críticos atravessados por um casal, enfatizou a importância do surgimento da paternidade e da maternidade no processo de desenvolvimento dos casais. O autor aponta que, representando o início da família, freqüentemente a transição para a parentalidade coincide com o fim do romance entre os casais, quando os cônjuges conscientizam-se de que são parte de algo maior do que sua condição de casal e têm, com isso, que renegociar seus padrões interacionais e seus valores anteriores.

Com um entendimento similar, Bradt (1995) acredita que, na transição para a parentalidade, o casal deve aceitar os novos membros no sistema e ajustar o mesmo para criar espaço para o filho e para os papéis de pais. Além disso, necessita unir-se nas tarefas de educação dos filhos, nas tarefas financeiras e domésticas, por meio de constantes negociações. Assim, o nascimento de um filho é considerado um acontecimento que redefine a relação conjugal, antes a única existente no núcleo familiar.

Também Emery e Tuer (1993) e Minuchin (1982) pensam que as demandas práticas e os investimentos emocionais da parentalidade têm efeitos poderosos na relação conjugal. Os autores entendem que a transição para a parentalidade requer que o sistema se reorganize e se acomode às mudanças e apontam como tarefa para o casal, nesse momento, a renegociação dos laços existentes com relação ao poder interpessoal e ao grau de aproximação emocional de sua relação.

Alguns estudos sobre a transição para a parentalidade têm tentado relacionar o desenvolvimento do filho e a relação conjugal. Nesse sentido, Anderson, Russel e Schumm (1983) concluíram que, em média, a satisfação conjugal é mais alta no início do casamento, declina quando o primeiro filho nasce e volta a crescer novamente quando os filhos se tornam adolescentes e começam a deixar a casa dos pais.

Cowan e cols. (1985) verificaram, mediante suas pesquisas, que o conflito conjugal aumenta da gravidez até os 18 meses após o nascimento do bebê, sendo que a satisfação dos homens muda pouco desde a gestação até os seis meses pós-parto, mas declina mais dramaticamente dos seis aos dezoito meses do bebê e, contrariamente, a satisfação das mulheres declina mais da gravidez até os seis meses do bebê, com um declínio moderado dos seis aos dezoito meses do mesmo. Também Lewis (1988) constatou, baseado em pesquisas, que as exigências e tarefas que a maternidade traz às mulheres as levam a ter um aumento da insatisfação com o casamento, o que gera um aumento nos conflitos entre os cônjuges.

Alguns estudos recentes também têm enfatizado que a transição para a parentalidade acarreta a diminuição na satisfação conjugal. Em um estudo longitudinal com 114 casais, Rothman (2004) concluiu que a satisfação com a relação de casal permaneceu estável desde o início do casamento até o fim da gravidez, mas declinou significativamente durante a transição para a parentalidade. Para essa autora, tal declínio foi mencionado tanto pelos homens quanto pelas mulheres dos casais considerados, mas relacionado a diferentes motivos. Para os homens, a tendência a fazer atribuições positivas sobre o comportamento das companheiras explicou o declínio de sua satisfação com o casamento, enquanto para as mulheres, fatores como depressão e temperamento do bebê foram referidos como influenciando o declínio da satisfação conjugal.

No mesmo sentido, Schultz, Cowan e Cowan (2006) realizaram um estudo para examinar a trajetória da satisfação conjugal ao longo da transição para a parentalidade. Eles compararam casais que passavam pela transição para a parentalidade com casais que não tinham filhos. Os dados obtidos e analisados em seu estudo indicaram que há um declínio normativo e linear na satisfação conjugal desde a gravidez até os 66 meses do bebê, período abrangido em sua pesquisa, o que não ocorreu com os casais sem filhos.

Entretanto, alguns autores, tais como Huston e Vangelisti (1995), mencionam que, apesar de o casal perceber que seu relacionamento está declinando em termos de romance, pode perceber um concomitante aumento do companheirismo e da parceria no período da transição para a parentalidade. Nesse sentido, esses autores questionaram o entendimento dominante de que a parentalidade causaria um declínio na satisfação conjugal, apesar de saberem que o nascimento de um filho exige que o casamento seja redefinido. Mesmo tendo consciência das muitas implicações da parentalidade na conjugalidade, Huston e Vangelisti salientam que não é a parentalidade, em si, que provoca um declínio na relação conjugal e no amor entre os cônjuges. Essa nova forma de ver as conseqüências da parentalidade sobre a conjugalidade considera que a transição provocada pelo nascimento do primeiro filho cria um misto de conseqüências que produzem uma variedade de ajustes e adaptações, apenas algumas levando a desavenças.

Na mesma linha de Huston e Vangelisti (1995), Price (2004) pesquisou jovens casais que passavam pela transição para a parentalidade e concluiu que a maioria havia percebido uma melhora em sua relação e satisfação conjugal. Os casais entrevistados mencionaram que a parentalidade havia contribuído para seu desenvolvimento pessoal e moral e que, depois de se tornarem pais, puderam identificar algumas questões negativas de seus casamentos e desenvolver estratégias para melhorá-los e para manter a satisfação conjugal durante a transição.

Outros pesquisadores (Belsky, Spanier & Rovine, 1983; Levy-Shiff, 1994; Lewis, 1988) que se dedicaram ao estudo dos casais em transição para a parentalidade também concluíram que não é a transição em si que provoca um declínio na relação conjugal. Acreditam que a forma como cada casal se relaciona antes do nascimento do filho é que se mostra determinante da maneira como atravessam a transição.

Lewis (1988), de forma semelhante a Belsky e cols. (1983), confirma sua hipótese central de que a maioria dos casais com altos níveis de competência conjugal pré-natal mantém sua estrutura de alta competência conjugal na transição para a parentalidade. O pesquisador acredita que, apesar de variáveis como habilidades individuais para lidar com situações estressantes, estresse e rede de apoio social serem importantes fatores na transição para a parentalidade, sua influência torna-se diminuída pelo impacto, muito maior, da natureza da estrutura da relação conjugal básica nas respostas a essa transição.

Burchinal, Cox, Paley e Payne (1999) reforçam o entendimento de que cada casal atravessa a transição para a parentalidade de uma forma idiossincrática e única. Eles constataram, em sua pesquisa, a importância de diferentes fatores influentes na satisfação conjugal e encontraram, em sua amostra, uma grande variabilidade nas respostas dos casais com relação ao nascimento do primeiro filho.

Nesta mesma linha, Hidalgo e Menendez (2003) realizaram um estudo longitudinal com 96 casais durante a transição para a parentalidade. Seus achados indicaram que fatores como o apoio emocional dos cônjuges, o envolvimento paterno com os cuidados do bebê e a satisfação com a divisão dos trabalhos domésticos podem influenciar a forma como a relação conjugal de desenvolve durante a transição para a parentalidade.

Mais recentemente, Curran, Hazen, Jacobvitz e Sasaki (2006) examinaram o apego emocional e a sintonia em casais que passavam pela transição para a parentalidade. Eles concluíram que as representações dos maridos e das esposas sobre seus companheiros e sobre o casamento de seus próprios pais influenciam a forma como se relacionam com seus parceiros durante a transição para a parentalidade, até os 24 meses do bebê.

Um dos aspectos que se acredita influente na forma como cada casal vivencia a transição para a parentalidade é a sua maneira de se comunicar. A comunicação estabelecida pelos membros do casal pode indicar mais do que seu conteúdo explicitamente expresso. Nesse sentido, faz-se uso de alguns conceitos desenvolvidos por Watzlawick, Beavin e Jackson (1971) em sua Pragmática da comunicação humana, composta por cinco axiomas centrais, dos quais salienta-se neste trabalho o segundo, referente aos aspectos de conteúdo e de relação da comunicação humana. Com base neste axioma, entende-se que a comunicação não transmite apenas informação, mas, também, impõe um comportamento. No nível de relação, uma comunicação poderia ser de três tipos: confirmação, com aceitação da comunicação emitida pelo outro; rejeição, a qual pressupõe, pelo menos, o reconhecimento limitado do que está sendo rejeitado e, assim, não há a negação da realidade do outro; e desconfirmação, quando o outro é ignorado, sem haver o interesse pela verdade ou falsidade do que foi comunicado, havendo a negação da realidade do outro.

Pelo que foi exposto, o presente trabalho foi desenvolvido com o intuito de (a) possibilitar a compreensão da avaliação de cada casal acerca de sua relação conjugal em diferentes momentos da transição para a parentalidade; e (b) investigar e categorizar a interação comunicacional estabelecida pelos casais durante as entrevistas realizadas nos diferentes momentos da transição para a parentalidade.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo quatro casais, selecionados aleatoriamente de uma amostra existente de cem casais, a qual faz parte do projeto intitulado "Projeto Longitudinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola". Os quatro casais foram recrutados em grupos de gestantes de hospitais de Porto Alegre e sua participação se deu por voluntariado. Todos os casais eram casados e esperavam seu primeiro filho no momento do recrutamento, com idade mínima de vinte anos e cujas mulheres não apresentaram problemas de saúde durante a gestação.

Delineamento e procedimentos

Tratou-se de um estudo longitudinal que abrangeu cinco etapas: o último trimestre de gestação e o terceiro, o oitavo, o décimo-segundo e o décimo-oitavo mês de vida dos bebês. Foi realizado um estudo de caso coletivo (Stake, 1994), com o objetivo de avaliar a relação conjugal durante a transição para a parentalidade, sob dois enfoques: a avaliação de cada casal acerca de sua relação nos diferentes momentos da transição e a interação comunicacional estabelecida durante as entrevistas. Com este intuito, os quatro casos foram estudados, longitudinalmente, por análise de conteúdo modelo misto (Laville & Dionne, 1999). As análises dos dados foram realizadas por três pessoas - uma das autoras do trabalho e duas bolsistas de iniciação científica estudantes de psicologia. Cada uma, individualmente, fazia a leitura das entrevistas transcritas e a seleção dos principais conteúdos e, posteriormente, esta seleção era trazida ao grupo. Através da discussão dos conteúdos relevantes as três debatiam suas impressões até que se entrasse em consenso e se formassem as categorias usadas neste estudo.

Os procedimentos realizados foram comuns a todos os casos estudados. No terceiro trimestre de gestação, foram realizadas as primeiras entrevistas com cada casal, conjuntamente, em suas residências. No terceiro mês de vida dos bebês, realizou-se a segunda entrevista, a Entrevista com o casal com bebê de três meses, que também foi feita nas residências de cada família. As etapas seguintes se desenvolveram no Laboratório de Pesquisa do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, no Instituto de Psicologia da UFRGS. Tanto no oitavo, como no décimo-segundo e no décimo-oitavo mês de vida dos bebês, os casais foram entrevistados a respeito de sua relação conjugal e da parentalidade.

Todas as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas. Cada casal foi entrevistado por um mesmo entrevistador em todas as ocasiões.

Instrumentos

O instrumento utilizado na primeira fase do estudo foi o seguinte:

- Entrevista com o casal sobre sua história (Lopes & Castoldi, 1998): história do relacionamento do casal, da gestação e suas expectativas.

Na segunda fase do estudo, utilizou-se:

- Entrevista com o casal com bebê de três meses (Piccinini & cols., 1999a): vida familiar, parentalidade e conjugalidade aos três meses de vida do bebê.

Na terceira fase, utilizou-se:

- Entrevista com o casal com bebê de oito meses (Piccinini & cols., 1999b): vida familiar, parentalidade e conjugalidade aos oito meses de vida do bebê.

Na quarta fase, utilizou-se:

- Entrevista com o casal com bebê de doze meses (Piccinini, Lopes, Averbuch, Castoldi & Gianlupi, 2000): vida familiar, parentalidade e conjugalidade aos doze meses de vida do bebê.

Finalmente, na quinta fase do estudo, utilizou-se:

- Entrevista com o casal com bebê de dezoito meses (Lopes & Menezes, 2000): vida familiar, parentalidade e conjugalidade aos dezoito meses do bebê.

 

Resultados e discussão

As categorias temáticas que nortearam a análise da avaliação de cada casal acerca de sua relação e que foram construídas mediante a análise de conteúdo foram as seguintes: o envolvimento emocional do casal, avaliado pelo entusiasmo com que os cônjuges contaram sua história e sua própria avaliação a respeito da relação conjugal; o envolvimento do homem e da mulher com as funções parentais, avaliado pelo do relato de ambos os cônjuges sobre seu envolvimento emocional e físico com o bebê; e a existência de eventos estressores, considerados aqueles que não se referem às mudanças esperadas no ciclo de vida de uma família que tem seu primeiro filho, tais como morte ou doença mental de algum familiar ou desemprego de um dos cônjuges, por exemplo.

As categorias de interação comunicacional do casal consideradas neste estudo são provenientes de uma adaptação das categorias propostas por Veroff, Sutherland, Chadila e Ortega (1993) e são as seguintes: (1) apoio, quando um dos cônjuges confirma ou colabora com o que o outro fala; (2) conflito, quando um dos cônjuges discorda do conteúdo da fala do outro; e (3) não-apoio, quando um dos dois ignora a fala do outro, não responde a esta ou a desqualifica explicitamente.

Inicialmente, são analisados e discutidos os aspectos singulares de cada um dos quatro casos e, posteriormente, os aspectos comuns aos mesmos. Para fins de apresentação, cada caso foi organizado com base na seguinte seqüência de temas: o envolvimento emocional do casal; o envolvimento do homem e da mulher com as funções parentais; eventos estressores e interação comunicacional estabelecida ao longo da transição. A Tabela 1 será apresentada a seguir com um resumo das interações comunicacionais estabelecidas pelos quatro casais ao longo da transição para a parentalidade.

 

 

Discussão dos aspectos singulares de cada caso

Casal 1 - Taís e Lucas

Um aspecto que caracteriza este caso é seu pouco entusiasmo desde a entrevista da gestação e durante as demais entrevistas. Além disso, quando descreveram e avaliaram sua relação, os cônjuges referiram mínimos detalhes sobre sua história, usando expressões como "tá a mesma coisa... normal..." e "tá aí". Além disso, ambos mencionaram na maior parte das entrevistas e, mesmo antes do nascimento da filha, a existência de conflitos conjugais, referindo que "o pau come frouxo". Pode-se pensar que não foi o nascimento da filha, em si, que provocou o pouco envolvimento emocional posterior desse casal, mas sua relação de pouco envolvimento anterior ao nascimento da filha. Esse fato é coerente com o entendimento de Belsky e cols. (1983), Levy-Shiff (1994) e Lewis (1988), que consideram que os casais que têm mais satisfação conjugal antes do nascimento do primeiro filho tendem a ter mais satisfação conjugal durante e depois da transição. Os conflitos conjugais de Taís e Lucas foram aumentando à medida que o tempo passou e as entrevistas transcorreram também corroborando os achados de Cowan e cols. (1985), que verificaram que o conflito conjugal aumenta desde a gravidez até os 18 meses após o nascimento do bebê.

Apesar de terem diferentes opiniões e com distintas intensidades, ambos os cônjuges concordam que houve um declínio na satisfação e na relação conjugal após o nascimento da filha, o que é referido pela maior parte dos autores revisados no presente trabalho (Anderson & cols., 1983; Cowan & cols., 1985; Crohan, 1996; Emery & Tuer, 1993; Lewis, 1988; Wilkinson, 1995).

Após o nascimento da filha, bem como nos demais períodos considerados neste estudo, Taís mostrou-se queixosa e frustrada em relação à escassa participação do marido na vida familiar. As atividades de Lucas não envolvendo a família tornaram-se, também, gradualmente mais intensas à medida que o tempo passou. Apesar das queixas da esposa e das brigas no casal, Lucas não demonstrou intenção de diminuir a freqüência de suas saídas e sua conseqüente ausência em casa. A insatisfação de Taís com o comportamento do marido parece confirmar o entendimento de Lewis (1988) de que as demandas da parentalidade, particularmente para as mulheres, levam a um aumento da insatisfação e dos conflitos entre os cônjuges.

Com relação às funções parentais desenvolvidas a partir da transição vivida, vê-se que Taís assumiu uma atitude cada vez mais participativa e envolvida com relação aos cuidados e às necessidades físicas e emocionais da filha, sendo a única responsável pelos mesmos e dedicando-se a isso com bastante empenho e em tempo integral. Concomitantemente, constata-se o movimento inverso feito por Lucas, que se mostrou cada vez mais ausente e distante da filha. Verifica-se que ele não se mostrou participativo nas tarefas com o bebê e, apesar de seu discurso contrário, suas atitudes demonstram uma ausência constante com relação à esposa e à filha, além de uma frustração por ter achado, antes do nascimento da filha, que ser pai "seria mais fácil".

Com relação à interação comunicacional estabelecida pelo casal durante as entrevistas (Tabela 1), percebe-se que, apesar das categorias de apoio serem a maioria das interações deste casal em todas as entrevistas, elas diminuíram com relação ao total de trocas de fala estabelecidas pelo casal durante a transição para a parentalidade. De forma inversamente proporcional, as falas de não-apoio aumentam em sua proporção até o 8º mês do bebê, mas voltam a diminuir levemente no 12º e no 18º mês do mesmo. As trocas de fala indicando conflito, que não existiam na primeira entrevista, tornaram-se presentes em todas as demais, aumentando até o 8º mês e voltando a decrescer no 12º e no 18º mês do bebê. Esses dados indicam o que aconteceu também ao longo das entrevistas do casal: eles foram se mostrando gradativamente mais frustrados com sua vida (de casal e parental) e isso apareceu no aumento de interações comunicacionais de conflito e de não-apoio. O fato de estas voltarem a diminuir desde a entrevista dos 12 meses pode ser entendido como uma adaptação e uma conformação do casal com relação à situação, ou apenas como uma demonstração de indiferença, já que suas trocas de fala se reduziram consideravelmente nessas últimas entrevistas.

Casal 2 - Camila e Julio

Percebe-se pouco entusiasmo do casal desde a entrevista da gestação até a dos dezoito meses do bebê, uma vez que falaram pouco e sem empolgação a respeito um do outro e da sua própria relação conjugal. Este tema não ocupou sua atenção de forma intensa nem mesmo quando solicitado nas entrevistas. Parece que a conjugalidade não estava ocupando um papel central na vida de nenhum dos dois. Camila dedicou-se à maternidade e Julio a prover o sustento da família. Assim, mostraram-se afastados e sem perspectiva ou planos para a retomada da conjugalidade. Seu pouco envolvimento emocional também é constatado a partir da avaliação de Camila de sua relação conjugal e das mudanças que a transição para a parentalidade proporcionou, que foi se modificando com o tempo: na entrevista da gestação, sua expectativa era de que o nascimento da filha "melhoraria a relação" do casal, que segundo ela estava "boa...". Essas expectativas foram confirmadas no terceiro mês da filha, quando ela relatou que o casal estava "mais unido e mais amigo" depois do nascimento do bebê. Entretanto, no oitavo, no décimo segundo e no décimo oitavo mês da filha, Camila mostrou-se queixosa e mencionou que estava "cansada e sobrecarregada". Ela mudou sua opinião e relatou que a transição para a maternidade não estava sendo como imaginava e avaliou a relação conjugal como estando "cada vez mais difícil". Suas queixas com relação à sobrecarga com os cuidados com o bebê e à ausência do marido aumentaram à medida que as entrevistas transcorreram. Diferentemente de Camila, Julio pareceu manter estável sua opinião a respeito da transição, não mostrando nenhuma empolgação, mas também nenhuma queixa. Acredita-se que essa diferença quanto à percepção do casamento entre Julio e Camila corresponde aos entendimentos já mencionados de Wilkinson (1995) e Levy-Shiff (1994) de que a qualidade conjugal declina de forma mais pronunciada para as mulheres do que para os homens.

É interessante que, ao mesmo tempo em que Camila se queixa da sobrecarga e do cansaço que os cuidados com a filha causam, ela parece cada vez mais dedicada à função de mãe, mencionando inclusive que é "98,9% mãe". Essa questão de ser mãe e/ou mulher, ao mesmo tempo, parece ser importante para Camila e ela explicitou isso quando relatou que um exemplo negativo de casal é sua irmã, a qual é "muito mulher e não é muito mãe". Enquanto Camila se dedicou e se envolveu com a nova função de mãe, Julio não fez nenhum movimento para obter a atenção da esposa. Ele pareceu conformado com a situação e mostrou-se ausente da vida familiar.

Com relação à interação comunicacional, as trocas de fala entre o casal se concentraram, nas quatro primeiras entrevistas, nas categorias indicando apoio (Tabela 1). É interessante que na entrevista de oitavo mês a categoria de conflito esteve presente (representando 20% do total de trocas de falas) e na de dezoito meses essa categoria teve uma proporção igual à categoria de apoio (representando 50% do total de trocas de fala). Os conflitos do casal durante as entrevistas aumentaram, assim como a avaliação de Camila sobre sua relação conjugal.

Casal 3 - Rosa e Luiz

Percebe-se, neste caso, um grande envolvimento emocional do casal. Rosa e Luiz mostraram-se próximos afetivamente e mencionaram este envolvimento emocional em suas avaliações da relação conjugal. Eles emitiram comentários como "foi um amor fulminante" e "melhor impossível" para se referirem a sua relação. A conjugalidade pareceu ocupar um papel importante nas vidas de Rosa e Luiz desde o momento anterior à transição para a parentalidade. Neste casal pôde-se constatar que sua relação conjugal, bastante próxima afetivamente antes do nascimento do primeiro filho, permaneceu próxima depois desse evento, o que corrobora o entendimento de Belsky e cols. (1983), Levy-Shiff (1994) e Lewis (1988) de que aqueles casais que experienciam mais satisfação conjugal antes do nascimento do primeiro filho, também o experienciam depois desse evento.

Outro aspecto peculiar desse casal é sua capacidade de manter a conjugalidade sem deixar de se ocupar de suas funções parentais. Rosa e Luiz planejaram, desde o início da transição para a parentalidade, preservar um tempo para os dois, não desistindo de sua conjugalidade. Essa questão pode ser compreendida ao considerar-se que a função conjugal, apesar de menos intensa, permaneceu existente e valorizada por ambos durante todos os momentos da transição para a parentalidade.

Apesar de apontarem algumas mudanças no sentido de diminuir o tempo disponível para sua conjugalidade, Rosa e Luiz consideram que as mudanças vivenciadas na transição para a parentalidade foram, no geral, "para melhor". Ambos mostraram-se satisfeitos com o nascimento e a presença do filho e com a dedicação que este necessitava. Além disso, mencionaram o sentimento de estarem mais unidos depois do nascimento do bebê, o que confirma os apontamentos de Belsky e cols. (1983) de que, em alguns casos, apesar de o casal perceber que seu relacionamento está declinando em termos de romance, pode perceber um concomitante aumento do companheirismo e da parceria.

Sobre as funções parentais, constata-se que ambos participaram e desenvolveram seus papéis de mãe e pai de forma envolvida e dedicada. O casal, apesar de concordar com o fato de que é a mãe quem permanecia mais tempo com o filho, reveza-se de forma igualitária com seus cuidados. Mostraram-se, na parentalidade, como na relação conjugal: cúmplices e companheiros. Assim, o casal pareceu fortalecer seus laços afetivos e emocionais à medida que enfrentou as adaptações inerentes à transição para a parentalidade. Esse aspecto do caso em questão relaciona-se ao entendimento de Bradt (1995) de que o resultado ideal dessa transição não seria simplesmente o de ligar os adultos, como pais, aos filhos, mas intensificar o relacionamento íntimo do casamento.

Com relação à interação comunicacional estabelecida pelo casal durante as entrevistas, constata-se que houve, sempre, um predomínio das categorias indicando apoio (Tabela 1). Estas, inclusive, representaram uma proporção cada vez maior do total de trocas de fala estabelecidas entre os cônjuges, à medida que as entrevistas se desenrolaram. Esse aumento da forma apoiadora de se comunicar durante as entrevistas parece coerente com a avaliação do casal a respeito de sua relação. Eles consideraram que a relação manteve-se unida e "melhorou cada vez mais". Realmente, pareceram estar unidos e apoiadores na transição para a parentalidade.

Com relação às categorias de não-apoio, salienta-se sua pequena proporção nas duas primeiras entrevistas (não-apoio na gestação e no 3º mês respectivamente: 20% e 1,7% do total de falas do casal) e sua inexistência nas demais. Assim, o casal pouco interagiu de forma não-apoiadora durante a transição para a parentalidade, o que também corrobora sua avaliação da relação conjugal, de união e companheirismo. De forma semelhante, as categorias de conflito também representaram uma proporção pequena do total de trocas de fala entre os cônjuges. Não apareceram na primeira entrevista, representaram uma proporção cada vez menor nas entrevistas de três, oito e doze meses e não apareceram na de dezoito meses novamente.

Casal 4 - Michele e Walter

É interessante, neste caso, a quantidade de informações que os cônjuges emitiram a respeito de sua história, mencionando terem orgulho da mesma, da forma como se conheceram e ficaram juntos. Sua união permeou todos os momentos considerados do estudo e também apareceu quando eles avaliaram sua relação e a consideraram "ótima" e "bem tranqüila". Assim, esae casal mostra-se envolvido emocionalmente em todas as entrevistas realizadas, mesmo antes do nascimento do filho.

Com relação às mudanças percebidas em virtude do nascimento do filho, o casal salientou que o bebê estava sendo, agora, sua prioridade e que se sentiam mais motivados para trabalhar e adquirir as coisas. Assim, não perceberam mudanças negativas e se sentem mais determinados com seus objetivos e mais unidos emocionalmente. Essa questão é pertinente com o apontamento de Belsky e cols. (1983) de que, em alguns casos, apesar de o casal perceber que seu relacionamento está declinando em termos de romance, percebe-se um concomitante aumento do companheirismo e da parceria.

Enquanto Michele envolveu-se física e afetivamente com o filho, Walter, por sua vez, manteve-se fisicamente mais ausente com relação aos cuidados com o bebê. Tendo em vista a demanda de atenção que a doença e a posterior morte de seu pai causou, ele dedicou-se mais a trabalhar arduamente para prover sustento para a família. Mesmo distante fisicamente da família, parece que Walter se vinculou ao filho de forma intensa, uma vez que relatou sentimentos como "saudades" e "preocupação com o bem-estar" do mesmo. Esta questão é coerente com o entendimento de Emery e Tuer (1993) de que geralmente as mulheres têm maior influência que os homens na promoção dos relacionamentos familiares e em seus papéis expressivos e nutrientes de mãe e dão mais cuidado, proteção, conforto e estimulação social aos seus filhos. Por outro lado, os pais são mais responsáveis do que as mães pelo papel instrumental na família, ligando a criança à sociedade.

Durante a transição para a parentalidade, esse casal vivenciou um fator estressante externo à transição para a parentalidade: a doença e posterior morte do pai de Walter. Esse fator estressante fez parte do cotidiano da família durante o primeiro ano de vida do filho e exigiu bastante tempo e dedicação de Walter. Com a ausência do marido, Michele sentiu-se sozinha e lamentou-se algumas vezes, apesar de mostrar-se compreensiva com seus motivos. Dessa maneira, o casal vivenciou, concomitantemente, dois fatores estressantes: o nascimento do primeiro filho e a morte de um familiar. Sua organização durante esse período crítico pareceu funcional, pois Walter dedicou-se aos cuidados com o pai enquanto Michele, aos cuidados com o filho. Após o falecimento do pai de Walter, este mencionou a saudade sentida do filho e voltou a participar da família como anteriormente.

Portanto, apesar de vivenciar momentos difíceis, o casal pareceu bastante próximo afetivamente. Destaca-se, nesse sentido, a iniciativa do casal de manter momentos a sós para poder "conversar e namorar". Podemos pensar que, como este casal já tinha uma relação de bastante envolvimento emocional antes da transição para a parentalidade, tanto a transição quanto a doença e morte do pai de Walter foram fatores estressantes, mas não destrutivos para a conjugalidade, o que confirma o entendimento de Belsky e cols. (1983), Levy-Shiff (1994) e de Lewis (1988).

Com relação à interação comunicacional estabelecida pelo casal durante a realização das entrevistas, houve um predomínio das categorias de apoio em todas as entrevistas (ver Tabela 1). Entretanto, essa proporção pareceu aumentar à medida que as entrevistas transcorreram, chegando e representar 100% do total de trocas de fala na última entrevista. As categorias indicando conflito representaram uma proporção bastante pequena do total de trocas de fala entre o casal, diminuindo à medida que o tempo passou e, inclusive, não aparecendo na última entrevista.

Discussão dos aspectos comuns aos casos estudados

Com base na discussão dos aspectos singulares de cada caso, constata-se a recorrência de algumas temáticas comuns a todos ou à maioria dos casos considerados. Uma questão que permeou a discussão dos quatro casos diz respeito à importância da natureza da relação conjugal estabelecida anteriormente à transição para a parentalidade. Essa questão foi estudada por Belsky e cols. (1983), Levy-Shiff (1994) e Lewis (1988), que consideraram que o nível de satisfação conjugal apresentado pelos casais antes do nascimento do primeiro filho tende e corresponder ao nível de satisfação conjugal constatado durante e após a transição para a parentalidade. Acredita-se que variáveis como habilidades individuais para lidar com situações estressantes, estresse e rede de apoio social são importantes fatores na transição para a parentalidade, mas é a natureza da relação conjugal que tem a maior influência nas respostas que o casal dará às demandas da transição para a parentalidade.

Pensa-se que não foi o nascimento do primeiro filho que provocou o distanciamento dos casais 1 e 2, mas, isto sim, seu distanciamento afetivo anterior. Dessa forma, o momento da transição para a parentalidade apenas potencializou um distanciamento já existente entre esses casais. Diferentemente, nos casais 3 e 4 constata-se que a relação conjugal já se caracterizava por um envolvimento emocional antes do nascimento do primeiro filho. Dessa maneira, sua conjugalidade permaneceu preservada durante a transição para a parentalidade. Apesar dos cônjuges, nesses casais, estarem envolvidos com as novas funções de pai e de mãe, eles se mostraram também ocupados, cada um a sua forma, com relação afetiva de casal.

Tomando por base essa diferenciação, em que os casais 1 e 2 mostraram-se distantes afetivamente em termos conjugais, enquanto os casais 3 e 4 mostraram-se envolvidos, pode-se pensar em outras considerações comuns aos dois grupos formados. Assim, os casais 1 e 2 mencionaram, em suas entrevistas, a percepção de que a satisfação conjugal havia declinado. Esses casais não perceberam nenhuma mudança positiva em sua relação conjugal na da transição para a parentalidade e sim um constante distanciamento emocional. Diferentemente, os casais 3 e 4, que pareceram manter a conjugalidade preservada, puderam perceber a existência de mudanças positivas em sua conjugalidade. Esses casais mencionaram que, apesar de terem seu tempo para a relação conjugal diminuído, perceberam o aumento de sentimentos de companheirismo e união. Tal situação já fora sugerida por Belsky e cols. (1983), os quais mencionaram a possibilidade de alguns casais, mesmo percebendo que seu relacionamento está declinando em termos de romance, relatarem um concomitante aumento do companheirismo e da parceria conjugal.

Outro aspecto comum aos casais 3 e 4 é a intenção de preservação de sua conjugalidade. Os casais 1 e 2, por sua vez, não mencionaram nem a existência, nem o desejo de preservar a conjugalidade. Novamente, percebe-se que a distinção inicial feita entre os quatro casais em dois grupos - os que tinham um envolvimento emocional e os que não o tinham antes da transição - repercute na preservação, ou não, da relação conjugal.

Com referência à assunção dos papéis parentais, não se percebe um comportamento comum entre os casais estudados. No entanto, percebe-se que os dois casais que preservaram a conjugalidade têm em comum o envolvimento com a construção dos papéis de pai e de mãe. Apenas a maneira como esses papéis são manifestados no cotidiano familiar mostrou-se distinta. Com relação ao envolvimento com a parentalidade, ainda, contatou-se que, nos dois casais que mostraram um distanciamento afetivo, as mães assumiram todas as funções e os cuidados com seus filhos e os pais mantiveram-se distantes e cada vez mais ausentes. Tanto no casal 1, quanto no casal 2, as mulheres queixaram-se freqüentemente das ausências dos esposos e da sobrecarga da maternidade. É interessante salientar que essas queixas não existiram no casal 3 e no casal 4. Apesar de haver algumas lamentações no casal 4, estas foram sempre sucedidas por desculpas e pela compreensão da esposa de que a ausência do marido se devia à doença e posterior morte do próprio pai.

Parece relevante, portanto, destacar que a parentalidade se manifesta de forma diferente em cada casal. Entretanto, a participação, ou não, dos homens na função parental mostrou-se relacionada à qualidade de sua conjugalidade. Nos casais 3 e 4, que tinham um envolvimento emocional, os homens assumiram a paternidade e construíram sua função de pais, apenas variando a forma de manifestação das mesmas. Nos casais 1 e 2, por sua vez, percebe-se que, além de a relação conjugal se caracterizar por um distanciamento, os homens não se mostraram envolvidos com a paternidade, diferente das mulheres, que o fizeram de forma intensa.

Com relação à interação comunicacional estabelecida pelos casais durante as entrevistas realizadas, alguns apontamentos também podem ser efetuados. A distinção entre os casais que têm um envolvimento emocional e os que têm um distanciamento afetivo permanece coerente quando se analisa o desenvolvimento longitudinal da interação comunicacional dos casais.

Inicialmente, destaca-se que as categorias de apoio foram predominantes em todas as entrevistas de todos os casais. Apesar disso, nos casais 1 e 2 a proporção de categorias de apoio foi diminuindo à medida que o tempo passou e as entrevistas foram realizadas. Diferentemente, nos casos 3 e 4 a proporção de categorias de apoio com relação ao total foi aumentando à medida que a transição para a parentalidade se desenvolveu. Essa diferença parece confirmar a anterior divisão dos casos em dois grupos, em razão da qualidade da relação conjugal anterior ao nascimento do filho. Durante a transição para a parentalidade, os casais que tinham uma relação de envolvimento emocional puderam aprimorá-la e manifestar isso por meio do aumento da emissão de respostas apoiadoras ao cônjuge. De outra maneira, os casais que tinham um distanciamento afetivo sentiram mais o impacto da transição, diminuindo a forma apoiadora de interagir com o cônjuge.

A proporção das categorias de não-apoio teve um percurso inverso às de apoio. Elas foram pouco existentes e foram diminuindo à medida que as entrevistas se desenrolaram nos casais 3 e 4. No casal 1, a emissão de respostas de não-apoio por parte da esposa foi aumentando com o passar do tempo e a do esposo manteve-se estável. No casal 2, que teve a peculiaridade de interagir comunicacionalmente de forma muito escassa, as categorias de não-apoio não existiram.

A interação comunicacional indicando conflito foi, da mesma forma que a de não-apoio, pouco existente e cada vez mais escassa nos casais 3 e 4. No casal 1, entretanto, a interação indicando conflito passou a aparecer de forma cada vez mais freqüente por parte da esposa e menos freqüente por parte do esposo. No casal 2, a interação comunicacional de conflito emitida pela esposa também aumentou com o desenrolar das entrevistas.

Finalmente, constatou-se que não é a transição para a parentalidade, em si, que gera uma crise no sistema familiar e conjugal. É a história de cada casal e a qualidade de sua relação afetiva que vão ser relevantes para a existência de uma crise ou não. Os casais com envolvimento emocional sofrem as mudanças provocadas pela transição para a parentalidade, mas conseguem, ainda assim, preservar a sua conjugalidade. Os casais que têm um distanciamento emocional, por sua vez, mostram-se mais suscetíveis à crise que se instaura e parecem enfrentar mais dificuldades na preservação de sua conjugalidade.

 

Considerações finais

Durante a realização desta pesquisa, alguns aspectos pareceram interessantes para futuras investigações. É relevante a forma como cada indivíduo, subjetivamente, passa pela transição para a parentalidade. No presente estudo, o enfoque foi a relação conjugal. Entretanto, parece importante compreender, também, as percepções e vivências individuais, do homem e da mulher, enquanto indivíduos que passam pela transição e tornam-se pais. Este tema foi trabalhado por Corrêa (2001). Além desse aspecto, chamou a atenção e mostrou-se pertinente para novas investigações a participação das famílias de origem no processo de desenvolvimento do casal. A participação e a influência dos familiares pareceu muito intensa, tanto no momento da escolha, quanto no momento da manifestação da conjugalidade e de sua preservação, ou não. Os modelos transgeracionais acompanham todos os casais, uns de forma a serem repetidos, outros de forma a serem evitados. Esses são temas pouco estudados em psicologia, mas que, com o tempo, vêm tornando-se mais valorizados. Dessa forma, mostra-se necessário que seu estudo continue sendo aprofundado cada vez mais.

Esta investigação teve o objetivo de ampliar o conhecimento na área de transição para a parentalidade, enfocando a conjugalidade nesse processo. Dessa forma, a transição por que os casais passam, ao terem seu primeiro filho, pode gerar mudanças positivas ou negativas em sua conjugalidade, quanto a promoverem um envolvimento ou um distanciamento emocional. É a qualidade da relação conjugal que se mostra determinante na forma da conjugalidade ser preservada ou não. Assim, percebe-se que a avaliação da qualidade da relação conjugal e o estudo do ciclo vital dos casais parecem relevantes e imprescindíveis para o trabalho com este tema. São sugestões de questões para serem investigadas em futuras pesquisas, de forma mais aprofundada e específica.

A presente pesquisa é um estudo aprofundado e longitudinal de quatro casos de casais adultos, selecionados aleatoriamente de uma amostra maior existente, que passavam pela transição para a parentalidade. Dessa forma, as conclusões aqui referidas não são passíveis de generalizações. Entretanto, pode-se pensar que são considerações relevantes com relação à transição para a parentalidade e à conjugalidade, uma vez que emergiram de um estudo aprofundado e longitudinal.

Os apontamentos aqui realizados mostram-se relevantes também para outras áreas da psicologia, além da psicologia do desenvolvimento. Acredita-se que a psicologia clínica pode fazer uso das considerações apresentadas por esta pesquisa no atendimento a casais, famílias e indivíduos. Os apontamentos feitos são também importantes para a área da prevenção em psicologia. Casais que pretendem ter seu primeiro filho poderiam ser beneficiados pelo auxílio de profissionais especializados. Nesse sentido, poder-se-iam realizar avaliações com os mesmos a fim de analisar a sua conjugalidade ou, ainda, de propor um tratamento com respeito às mudanças previsíveis que a transição provoca, minimizando suas dificuldades. Certamente, essa possibilidade facilitaria aos casais a transição para a parentalidade, assim como a preservação de sua conjugalidade.

 

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Endereço para correspondência
Av. Bagé, 1006 apto. 301 - Bairro Petrópolis - 90460-080 - Porto Alegre-RS
Tel.: (51) 3061-8558 - (51) 9846-0853

Recebido em dezembro de 2005
Reformulado em março de 2007
Aprovado em abril de 2007

 

 

Sobre os autores:

* Clarissa Corrêa Menezes é psicóloga, especialista em Psicologia Clínica com ênfase em Terapia Familiar e de Casal e doutora em Psicologia do Desenvolvimento do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
** Rita de Cássia Sobreira Lopes é psicóloga, doutora pela University College London (Inglaterra), pesquisadora do CNPq e professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.