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PsicoUSF

versión impresa ISSN 1413-8271

PsicoUSF v.13 n.2 Itatiba dic. 2008

 

ARTIGOS

 

Julgamentos sobre ações e sentimentos em interpretações de histórias: uma abordagem piagetiana

 

Judgements about actions and feelings in stories' interpretations: a Piagetian approach

 

 

Maria Thereza Costa Coelho de SouzaI, *; Camila Tarif Ferreira FolquittoI, **; Marcella Pereira de OliveiraII, ***; Samanta Pedroso NataloI, ****

I Universidade de São Paulo, Brasil
II Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta dados selecionados a partir de pesquisa com 76 crianças de cinco a dez anos sobre interpretações de dois contos de fadas dos Irmãos Grimm: O lobo e os sete cabritinhos e Senhor lobo e senhora gata. O objetivo é discutir os julgamentos das crianças sobre ações e sentimentos de personagens dos contos, baseados nos conceitos de valores, julgamentos e apreciações emocionais, de Piaget. A hipótese geral foi a de que os julgamentos e a capacidade de avaliar sentimentos evoluem com a idade. O método utilizado foi a entrevista clínica piagetiana adaptada aos dois contos. Os resultados indicaram diferenças entre as crianças mais velhas e as mais jovens da amostra, mas as análises estatísticas não apontaram diferenças significativas para comparações entre crianças de faixas etárias mais próximas. Esta pesquisa contribuiu para a discussão sobre o uso de contos de fadas em estudos sobre valorizações afetivas e julgamentos em crianças.

Palavras-chave: Julgamentos, Sentimentos, Abordagem piagetiana, Histórias.


ABSTRACT

This paper presents some data of 76 children's representation of two Brothers Grimm's fairy tales: The wolf and the seven young kids and Mr. Wolf and Mrs. Cat. Children were aged from 5 to 10/11 years old. The article aims to discuss children's judgements about characters'feelings and actions, based on Piaget's concepts of values, judgments and emotional appreciation. The general hypothesis was that quality of judgement and the capacity for feelings evaluation increase with age. The method was the clinical interview adapted to the two fairy tales. Results indicated differences between the oldest and the youngest children of the sample, but statistical analisis didn't show significant differences between children near in age. This research contributed to discuss the possibility for using fairy tales in studies about children emotional appreciation and moral judgements.

Keywords: Judgments, Feelings, Piagetian approach, Stories.


 

 

Introdução

Juízos e valores: de escolhas práticas às regras morais

A capacidade para fazer juízos desenvolve-se ao longo da vida, no sentido de passar a incluir cada vez mais as intenções dos protagonistas e sua responsabilidade na execução das ações e também nos resultados e ocorrências observadas no mundo físico e social. As noções de "certo" e "errado" são inicialmente apresentadas à criança por seus pais e pelas pessoas mais próximas, as quais decidem o que se deve e o que não se deve fazer. Assim, as regras e deveres estão indissociavelmente ligados às pessoas que os apresentam, para somente gradativamente desligarem-se delas. A fonte das regras é, assim, inicialmente externa, e apenas mais tarde será interna. O indivíduo sofre a legislação de outrem para somente depois ser ele mesmo legislador.

Interessado na maneira pela qual as crianças praticavam e tinham consciência das regras dos jogos, Piaget (1932) observou como elas eram transmitidas aos mais jovens e como eram por eles assimiladas, para dois jogos clássicos: o de bolinhas de gude e o de amarelinha. Sua hipótese era a de que a maneira pela qual as regras dos jogos intermediavam as relações entre crianças seria reproduzida nas relações sociais de modo geral, ou seja, jogar certo implicaria considerar mais, ou menos, os pontos de vista dos outros, em jogos específicos e também nos jogos sociais. Obedecer simplesmente a uma ordem ou lei levaria ao seu cumprimento, mas não necessariamente à consciência de sua necessidade ou ao aprofundamento de seu conteúdo. O autor se perguntava então: como as regras se tornam necessárias para a organização social? Como as crianças constroem seus julgamentos a partir das relações sociais que envolvem regras? Qual a relação entre os juízos e o desenvolvimento psicológico?

Piaget demonstrou a existência de duas formas de moralidade na infância, diretamente ligadas, pois, às relações sociais, à inteligência e à afetividade das crianças: a heteronomia e a autonomia. A primeira, denominada Moral da Obediência, refere-se a relações de respeito unilateral e a sentimentos de amor e temor em relação aos mais velhos (autoridade), os quais apresentam as regras. É em essência a moralidade do pequeno (que obedece) em relação ao grande (que legisla). É perfeitamente coerente com o pensamento pré-operatório no que este pensamento tem de inflexível, irreversível e pobre em coordenações. Para a criança pequena, trata-se de mandar ou obedecer e não há possibilidade de mandar e obedecer como elementos de um único e mesmo sistema de relações sociais. O mais velho manda e o mais novo obedece. Isso e apenas isso. Piaget comenta que a criança tem necessidade desse momento de heteronomia em seu desenvolvimento, já que não se sente capaz de criar regras. Contudo, é o próprio desenvolvimento que demandará coordenações progressivas de pontos de vista, relações de respeito mútuo e ruptura da rigidez imposta pelas relações sociais assimétricas. O pensamento operatório possibilita a flexibilidade por meio da reversibilidade; as regras podem ser criadas e construídas em cooperação e o princípio da obediência se subordina a um outro que lhe é superior: o princípio da Justiça. As relações de respeito unilateral permanecem na vida dos adultos, mas estarão submetidas às de respeito mútuo: a obediência ocorrerá em relação a regras consideradas justas e não mais em relação às pessoas.

É importante discutir as noções de "valor" e de "juízo", no contexto da teoria de Piaget, para auxiliar na compreensão de seu conceito de juízo moral. Como sabemos, há juízos que não são morais, pois se referem a julgamentos diretamente ligados a fatos, sentimentos ou ações sobre os quais incide uma escolha ou decisão. Por exemplo, a decisão sobre para qual lado da rua se vai numa esquina, envolve julgamentos sobre o meu objetivo (onde se quer chegar), sobre o espaço a ser percorrido e sobre o que se quer fazer. Há, nesse caso, opções melhores e mais eficazes que me levarão mais rapidamente ou com maior eficiência ao objetivo. Se os julgamentos não são muito bem feitos, ou se são parciais (se consideram somente o objetivo e não os diferentes caminhos, por exemplo), o resultado pode ser frustrante. É freqüente o sentimento de desapontamento e mesmo de fracasso, ao constatar que existia um caminho bem mais curto e que demandaria menos tempo até chegar ao objetivo (destino). Tal como essa, há muitas outras situações que envolvem julgamentos, tomada de decisões e valorações. A partir das considerações de Piaget sobre o desenvolvimento moral, muitas investigações foram realizadas, em diferentes contextos, sobre a capacidade das crianças julgarem situações que envolvem dilemas (conflitos de interesses). Podem ser lembrados os trabalhos de La Taille (2002), sobre as relações entre sentimentos e julgamentos e sobre as virtudes morais num campo de conhecimento denominado Psicologia Moral. Os dados da presente pesquisa enfocaram julgamentos que estão envolvidos na tomada de decisões e na apreciação sobre ações e sentimentos, e que não são necessariamente morais, no sentido de estarem relacionados à esfera do dever. Tratam, portanto, de avaliações sobre ações, atitudes e sentimentos, inserindo-se no campo da Psicologia do Desenvolvimento Humano. O foco foi, portanto, a qualidade dos julgamentos e das justificativas empregadas pelas crianças e suas possíveis relações com as idades, mais do que a resolução de conflitos.

Piaget (1954), em curso proferido na Sorbonne, apresentou as noções de "valor" e valorização como presentes desde cedo na vida da criança. Atribuir valor é operação básica e organizadora da vida infantil desde muito cedo. O bebê organiza seus objetos atribuindo valores, os quais estão diretamente relacionados às suas possibilidades de ações e realização de necessidades. Assim, objetos são escolhidos em detrimento de outros, ações são desempenhadas em lugar de outras, decisões práticas são tomadas, considerando o que Piaget denominou de interesses (apoiando-se em conceitos de E. Claparède). Claparède (citado por Piaget, 1954) considerou que as condutas possuem dois elementos: um energético (afetivo), que estabelece as metas, e outro estrutural (fornecido pela inteligência), que oferece a técnica ou os meios para se atingir a meta. Os valores são, para Piaget, as dimensões afetivas das condutas e vão compor, juntamente com a estruturação cognitiva, faces de uma mesma moeda. Assim, valores vão configurar o universo afetivo das crianças desde cedo, até chegar o momento em que vão se revestir de conteúdos morais. Então, por exemplo, ser inteligente pode perfeitamente ser um valor para muitos, mas não necessariamente é um valor moral, enquanto ser justo é necessariamente moral, já que regula interações sociais, permite julgamentos em termos de dever e não pode, pois, ser questionado (é sempre bom ser justo).

Representação, interpretações de histórias e julgamentos

O conceito de representação cognitiva foi inicialmente apresentado por Piaget em sua obra A formação do símbolo na criança (1978), após longa exposição sobre o jogo simbólico e a imitação, os quais são, para ele, expressões da capacidade para representar, da capacidade de diferenciar os objetos de seus representantes, os significados dos significantes. Nessa obra, o autor apresenta a evolução da representação na criança, desde os pré-conceitos do pensamento egocêntrico, passando pelo pensamento intuitivo, até chegar aos conceitos propiciados pelo pensamento operatório. Escolhe, para explicar essa evolução, descrever a evolução da imitação e do jogo simbólico, expressões fundamentais da capacidade para representar a si próprio e o mundo. Enfatiza a importância da representação para o desenvolvimento psicológico: prescindir da percepção como organizadora das ações e reconstruir, num nível superior, o que foi construído no universo das ações práticas. A capacidade para interpretar está, a nosso ver, diretamente ligada às qualidades da representação durante a vida da criança, desde as mais coladas à materialidade dos fatos até as mais abstratas.

Os contos de fadas fazem parte do cenário psicológico de diferentes maneiras, em especial como possíveis "representantes" do mundo interno das crianças, apresentando-lhes aspectos conhecidos e também assustadores do desenvolvimento. O autor que ilustra esta maneira de pensar sobre o papel dos contos é o psicanalista Bruno Bettelheim (1980), o qual realizou uma leitura psicanalítica freudiana de vários contos de fadas, demonstrando como os mesmos poderiam auxiliar as crianças a enfrentarem as angústias de seu crescimento e as agruras do desenvolvimento, sobretudo as perdas, as disputas e os conflitos. Dessa perspectiva decorreram inúmeras pesquisas, em especial voltadas para a área clínica e diagnóstica.

É também bastante freqüente na literatura e nas pesquisas a vertente explicativa junguiana sobre as relações entre os contos e o desenvolvimento psicológico, ressaltando os mitos e os simbolismos universais que este tipo de narrativa oferece aos indivíduos e o alento que podem trazer em momentos de dificuldade ou de transição evolutiva (Von Franz, 1985).

Não há propriamente uma visão piagetiana sobre as interpretações de histórias (contos de fadas e contos populares), isto é, a revisão da literatura não apontou, até o momento, investigações que utilizaram contos ou histórias como matéria-prima para o pensamento de crianças de diferentes idades, ou seja, como dizia Piaget, como material para o exercício da reflexão. Apesar disso, os escritos desse autor sobre a construção e qualidade das crenças infantis, as características da evolução cognitiva e a correspondência entre os aspectos cognitivos e afetivos do desenvolvimento podem, a nosso ver, servir de inspiração para pesquisas que utilizam esse tipo de literatura como instrumentos para acessar e estudar o desenvolvimento infantil, assim como o método proposto pelo autor (a entrevista clínica). A revisão da literatura não apresenta indicações de investigações piagetianas sobre as interpretações de histórias, reservando para a perspectiva desse autor lugar complementar ou ainda de pouca importância. Como exceção a essa tendência, podemos citar a pesquisa de Geist e Aldridge (2002) sobre a progressão no desenvolvimento de histórias inventadas oralmente por crianças. Esses autores realizaram sessões em que discutiam com crianças de jardim da infância e de primeira a terceira séries (N=60) alguns contos dos Irmãos Grimm. Após essas sessões, pediam que as crianças inventassem contos de fadas e analisavam o conteúdo de seu discurso, quanto à organização e gênero narrativo. Os autores se basearam em trabalhos sobre contos de fadas recontados por escrito, e seu estudo objetivou enfocar as recontagens, e invenções orais. Pretenderam responder às seguintes questões de pesquisa: 1) Há uma diferença em termos de desenvolvimento quanto ao tipo de história inventada, por exemplo, fantasiosa ou realística? 2) Existem diferenças em termos de desenvolvimento quanto ao conteúdo das histórias das crianças? e 3) Existem diferenças em termos de desenvolvimento na maneira como crianças organizam o conteúdo das histórias inventadas? Os resultados indicaram que as crianças mais jovens (do jardim da infância) tendiam a inventar histórias fantasiosas com objetos fantásticos, etc. As crianças de primeira e segunda séries tendiam a inventar histórias realísticas e as de terceira série inventavam narrativas pessoais com aspectos próprios ou que se referiam a pessoas conhecidas. A discussão dos resultados ressaltou a possível influência do contexto escolar sobre o tipo de história inventada, por exemplo, o ambiente do jardim da infância possuía quase que exclusivamente livros de histórias fantásticas, enquanto os ambientes das outras séries possuíam mais histórias realísticas e factuais e, além disso, exigiam das crianças narrativas desses tipos. Outro dado interessante é relativo à maneira como os pais eram apresentados pelas crianças; antes da terceira série os pais eram apresentados como heróis e pessoas que confortam os filhos. As histórias inventadas podiam ainda refletir os medos e ansiedades das crianças. A organização das histórias foi analisada quanto a três aspectos do desenvolvimento apontados por Piaget: a) a organização parece melhorar com o desenvolvimento; b) o egocentrismo decai por meio das interações no ambiente social e c) a distinção entre fantasia e realidade se desenvolve com a idade. Os pesquisadores se apoiaram em conceitos da teoria de Piaget para explicar a seqüência e as diferenças qualitativas observadas nas histórias inventadas por crianças de idades diferentes, sobretudo os conceitos de pensamento lógico (que permite inclusive organizar o discurso) e egocentrismo. Além dos resultados mencionados, esse estudo concluiu que a segunda série parece ser a mais adequada para que a capacidade de inventar e criar histórias possa se desenvolver, já que nessa fase as narrativas são realísticas e menos fantasiosas. A investigação não informa se as crianças foram entrevistadas sobre a história inventada ou se apenas elaboravam de forma livre as histórias oralmente.

As pesquisas de De Souza sobre representações de contos de fadas foram iniciadas em 1990 com sua tese de doutorado a respeito das versões dadas por crianças de nove a onze anos para o conto do Chapeuzinho vermelho, em duas versões: Perrault (2003) e Grimm (1989). A autora analisou aspectos afetivos com base em avaliações projetivas da personalidade e aspectos cognitivos de acordo com provas piagetianas (De Souza, 1990). Desde essa época vem estudando o assunto, tendo desenvolvido um programa de pesquisas, no qual focaliza elementos afetivos, cognitivos (De Souza, 2005) e, mais recentemente, culturais, envolvidos nas representações e interpretações que indivíduos de diferentes idades apresentam para diversos contos de fadas.

Os dados apresentados neste artigo foram selecionados de pesquisa desenvolvida em 2004-2005, sobre as interpretações de dois contos de fadas, a saber: O Lobo e os sete cabritinhos e Senhor lobo e senhora gata (anexo 1). O objetivo geral da pesquisa foi investigar se haveria relações possíveis entre a idade das crianças e a compreensão do conto, e julgamentos sobre os sentimentos e ações das personagens. Como objetivo específico, o presente estudo analisou a hipótese de que a qualidade dos julgamentos melhoraria com a idade (indício do nível de desenvolvimento psicológico), assim como a capacidade de refletir sobre mais de um sentimento (explícito ou implícito), simultaneamente.

 

Método

Participantes

Foram entrevistadas 76 crianças, com idades entre 5 e 10 anos, provenientes de ambiente educacional (creche ou escola), das cidades de São Paulo e de São José dos Campos/SP. Todos os participantes freqüentavam escolas de ensino infantil e fundamental da rede privada. A seleção dos entrevistados foi realizada de maneira aleatória nas instituições referidas.

Situação experimental

A pesquisa foi realizada nas dependências das escolas participantes, em salas reservadas para as entrevistas, nas quais permaneciam apenas a entrevistadora e a criança entrevistada, portanto, em ambiente razoavelmente livre de interferências que pudessem prejudicar o andamento da pesquisa. As entrevistas somente foram realizadas após consentimento dos pais, em conformidade aos procedimentos éticos de pesquisa. Deve ser ressaltado o fato de que a instituição à qual as pesquisadoras pertencem não obriga a submissão de todos os projetos de pesquisa ao Comitê de Ética. No entanto, todos os procedimentos realizados seguiram as normas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069, de 13/07/1990).

Procedimentos para a coleta dos dados

Foi utilizada a entrevista clínica piagetiana (Piaget, 1926), adaptada aos dois contos de fadas (anexo 2). A entrevista foi conduzida a partir dos dois protocolos de pesquisa, elaborados por uma das autoras, para cada conto, e compostos de perguntas que procuravam desencadear respostas argumentativas, relacionadas aos objetivos específicos da pesquisa. De modo geral, as perguntas se referiam ora à compreensão do conto propriamente dito ora a julgamentos sobre ações e atitudes das personagens, ora a valorizações (afetivas) de aspectos destas e, finalmente, a aspectos ligados ao gênero das crianças. Trinta e sete crianças ouviram o conto O lobo e os sete cabritinhos e, o restante (N=39), o conto Senhor lobo e a senhora gata. Com o objetivo de nos certificarmos de que a criança havia entendido os aspectos principais da história, foi pedido que o conto fosse recontado. Depois da recontagem, as crianças responderam às perguntas relacionadas ao conto que tinham ouvido. As entrevistas foram gravadas para posterior transcrição e análise.

Para o presente artigo, e de acordo com os protocolos globais de entrevista, foram selecionados dados relacionados aos julgamentos sobre ações e sentimentos dos personagens evidenciados nas respostas às questões 5 e 6 do protocolo do conto Senhor lobo e senhora gata1, e à questão 6 do protocolo do conto O lobo e os sete cabritinhos2. Aspectos relacionados à compreensão cognitiva do conto, possíveis diferenças de gênero no julgamento sobre ações dos personagens e elementos ligados às identificações com as personagens, investigados durante as entrevistas, foram analisados em outra ocasião e não foram selecionados para o presente artigo. Para fins das análises ora propostas, as respostas foram agrupadas por semelhança de argumentação, a partir das quais foram elaboradas categorias, tendo como referencial teórico os estágios de desenvolvimento da teoria de Piaget, que supõe uma evolução da capacidade de argumentação com o desenvolvimento. Portanto, respostas que indicavam um nível de desenvolvimento mais avançado foram classificadas em categorias superiores; respostas nas quais os argumentos eram praticamente inexistentes ou fora de contexto foram classificadas em categorias iniciais e, entre esses dois pólos, inseriam-se categorias intermediárias. Esta análise foi feita separadamente para cada questão e para cada conto, e as categorias construídas pelas autoras para as respostas às questões mencionadas serão apresentadas juntamente com os resultados. A inserção das respostas nas diferentes categorias foi realizada pelas autoras, em sistema de rodízio, isto é, cada uma categorizava as respostas para um conjunto de crianças e estas respostas eram também categorizadas, independentemente, pelas outras três autoras/juízes. Ao final do rodízio as discrepâncias foram discutidas e a classificação final das respostas foi realizada.

 

Resultados e discussão

Para as questões 5 e 6 do protocolo do conto Senhor lobo e senhora gata, relacionadas ao julgamento de ações dos personagens ("O que você achou do que a gata fez na história? Por quê? O que você achou do que o lobo fez na história? Por quê?"), foram elaboradas as seguintes categorias:

Nível I - "Fora de contexto ou deformação": respostas que não se referiram ao conto ou que o deformaram (Ex.: "Eu achei legal porque a gata ficou amiga do lobo").

Nível II - "opinião": respostas que expressaram mais opiniões do que julgamentos baseados explicitamente no conto. (Ex.: "Eu não gostei do que o lobo fez porque não gosto de lobos").

Nível III - "fatos": respostas nas quais os julgamentos basearam-se nos acontecimentos da história e em sua descrição. (Ex.: "Achei ruim o que o lobo fez, porque ele falou que poderia fazer muitas coisas e não conseguiu, não fez").

Nível IV - "inferência": respostas nas quais o enredo foi usado como base para inferências relacionadas às intenções das personagens ou às conseqüências de suas ações. (Ex.: "Achei esperto (o que a gata fez) porque era o melhor jeito, que nem uma pessoa que está correndo do ladrão, ela vai lá e pula no galho").

A amostra para essa questão constituiu-se de 38 crianças, sendo 26 meninas (69% do total) e 12 meninos (31%). A média de idade foi de 8,079 anos, com DP=1,5489. Apesar de trinta e nove crianças terem sido entrevistadas com o protocolo desse conto, uma criança não justificou sua resposta e, portanto sua resposta não pôde ser classificada para esta questão. Para o tratamento estatístico, a amostra foi reagrupada em três grupos de faixas etárias: 6 anos (n=10, 26% da amostra), 7 a 8 anos (n=10, 26%), e 9 a 10 anos (n=18, 48% do total). Com os dados obtidos, para a análise estatística, foram atribuídos pontos para as categorias de respostas. Assim, foi atribuído 1 ponto para as respostas classificadas no nível I (fora do contexto ou deformação); 2 pontos para o nível II (opinião), 3 pontos para as respostas da categoria III (fatos) e 4 pontos quando as respostas apresentavam inferências (nível IV).

Por meio do teste de Kruskall Wallis, comparando-se os grupos etários, foi encontrada diferença estatisticamente significativa entre eles em relação à distribuição das respostas nas diferentes categorias de análise (KW=7,644; p=0,022). Na comparação dois a dois entre as faixas etárias, pelo teste de Mann-Whitney, não foi observada diferença estatisticamente significante entre as faixas etárias 6 anos e 7 a 8 anos (MW=37; p=0,295), bem como entre as faixas etárias 7 a 8 anos e 9 a 10 anos (MW=57; p=0,079). Entretanto, comparando-se as faixas etárias 6 anos e 9 a 10 anos, observamos diferença significante entre a distribuição das respostas para os dois grupos (MW=40; p=0,009).

 

 

Observou-se para essas questões que as respostas das crianças de 9 a 10 anos apresentaram uma tendência de maior pontuação, que representa uma classificação em categorias de níveis superiores, ou seja, essas crianças com maior freqüência julgaram as atitudes do personagem a partir dos fatos e de inferências sobre estes; enquanto as crianças mais jovens, de 7 a 8 anos, tenderiam a considerar exclusivamente os fatos ou ocorrências da história (nível III), para julgar as ações dessas personagens, ou ainda, emitir sua opinião pessoal sobre a atitude da personagem, dado que foi observado com maior freqüência nas crianças de 6 anos.

Quanto à análise da questão 6 do protocolo do conto O lobo e os sete cabritinhos ("O que você acha que o cabritinho mais novo sentiu quando viu que só ele não tinha sido devorado pelo lobo? Por quê?"), relacionada à capacidade de refletir sobre mais de um sentimento (implícito ou explícito), foram elaboradas as categorias a seguir.

Nível I - "não-referência a sentimentos": nessa categoria foram classificadas respostas que não se remetem a sentimentos implícita ou explicitamente e nas quais há a referência aos acontecimentos do conto (ex.: "o cabritinho sentiu que estava na caixa do relógio").

Nível II - "sentimento implícito": respostas que não se referem explicitamente a sentimentos, mas indicam sua presença implícita (ex.: "o cabritinho sentiu que estava sozinho").

Nível III - "explicitação de um sentimento": respostas que se remetem explicitamente a um sentimento (ex.: "o cabritinho se sentiu triste porque os irmãos tinham morrido").

Nível IV - "explicitação de mais de um sentimento": respostas nas quais mais de um sentimento foram explicitamente indicados (ex.: "o cabritinho sentiu tristeza porque os irmãos tinham morrido e alegria por ter escapado").

Tal como feito para a questão anterior, foi elaborada uma tabela de atribuição de pontos para as categorias de respostas obtidas.

Para investigarmos a hipótese de que a qualidade do reconhecimento de sentimentos evoluiria com a idade, foi realizado tratamento estatístico para uma amostra de 37 crianças, sendo 21 do sexo feminino (56% do total) e 16 do sexo masculino (44%). A média de idade foi de 7,94 anos (DP=1,4897). A amostra foi dividida em duas faixas etárias: 5 a 7 anos (n=16, 44% da amostra), e 8 a 10 anos (n=21, 56% do total). Pelo teste de Mann-Whitney, foi observada diferença estatisticamente significativa entre os grupos etários na distribuição das respostas nas categorias apresentadas (MW=84,5; p=0,005).

 

 

Tomando como base a perspectiva piagetiana, considerou-se que a resposta a esta questão exigiria que a criança fosse capaz de colocar-se no lugar do outro para poder inferir possíveis sentimentos desse outro. Para isso deveria ocorrer uma diminuição do egocentrismo cognitivo/afetivo, o que ocorreria por volta dos 7-8 anos de idade (transição do período pré-operatório para o operatório concreto). Além disso, a conquista do pensamento operatório possibilitaria à criança operar e relacionar, ao mesmo tempo, diferentes situações, hipóteses, e também sentimentos. A diferença estatística observada entre os grupos etários está de acordo com essa afirmação, já que crianças na faixa etária entre 8 e 10 anos apresentariam uma tendência a emitir respostas classificadas em níveis superiores, ou seja, parecem reconhecer e explicitar com maior freqüência possíveis sentimentos da personagem, mesmo quando esses podem ser aparentemente contraditórios (como ficar alegre e ao mesmo tempo triste). Reconhecer que o cabritinho pode estar triste, porque perdeu os irmãos, e alegre (ou aliviado), porque não foi morto pelo lobo, envolveria, assim, a capacidade de pensar diferentes situações num mesmo sistema, e reconhecê-las como não-contraditórias entre si, mas como co-existentes e simultâneas.

As análises indicaram que a suposição de um progresso na qualidade dos julgamentos, com a idade, é pertinente, ainda que esse progresso tenha sido constatado apenas na comparação entre grupos etários bem distintos, não tendo sido detectadas diferenças entre idades próximas. Esta constatação está de acordo com a perspectiva piagetiana que apresenta a evolução cognitiva (e também a afetiva) rumando da menor objetividade e maior rigidez e apego ao concreto para a maior amplitude, profundidade e valorização de aspectos abstratos do mundo e dos objetos. É importante considerar que, para Piaget, o desenvolvimento não ocorre por "saltos", e sim por construções gradativas e integrativas, o que parece ter sido demonstrado pelo fato de ter havido significância estatística apenas para a comparação entre grupos etários mais distantes.

 

Considerações finais

O estudo das interpretações de histórias, no que diz respeito aos julgamentos sobre ações e sentimentos, demonstrou que a qualidade dos juízos parece evoluir com a idade, sendo as diferenças significativas apenas quando se comparam idades mais distantes. Este resultado está de acordo com a abordagem de Piaget, para a qual o desenvolvimento ocorre gradativamente e de maneira contínua, sem grandes saltos ou rupturas, sendo esperado não perceber mudanças significativas em comparações entre idades muito próximas. Os resultados indicaram que crianças mais jovens tendem a avaliar as ações de maneira mais subjetiva, apoiadas em opiniões e em avaliações implícitas que não chegam a ser exteriorizadas. Assim, exigidas a julgar sentimentos, simplesmente não os referem ou, pelo menos, não explicitamente. Já as crianças mais velhas explicitam suas opiniões mais claramente, apoiadas em fatos e em inferências, assim como são capazes de expressar sentimentos opostos, simultaneamente, sem contradição. Os dados apresentados neste artigo relacionam-se a outros resultados obtidos em estudos anteriores de De Souza, os quais investigaram o desenvolvimento de qualidades das interpretações de contos de fadas, em suas dimensões cognitivas e afetivas3. Os julgamentos sobre ações e sentimentos se manifestaram, assim, de acordo com a mesma tendência geral já observada para outras avaliações, para outras questões dos protocolos, confirmando a expectativa teórica de Piaget quanto à passagem da subjetividade para a objetividade dos juízos sobre o mundo, apoiada no desenvolvimento cognitivo e afetivo. Isso poderia indicar, então, que os elementos das representações aqui destacados estariam relacionados a aspectos gerais e contínuos do desenvolvimento. Os contos, mais uma vez, demonstraram ser material propício para a reflexão das crianças e instrumento rico de pesquisa sobre as qualidades dos julgamentos infantis, o que veio reforçar a necessidade de mais estudos piagetianos sobre as interpretações e representações de histórias. Assim, podemos concluir este artigo afirmando que a diversidade de dados e resultados de análises nos faz refletir sobre a necessidade e o desafio estimulante de continuar pesquisando as representações e interpretações de contos de fadas, os quais têm se mostrado sensíveis e pertinentes para o acesso ao mundo psicológico dos indivíduos. Pesquisas realizadas em diferentes contextos culturais também trouxeram informações preciosas sobre a influência desses elementos sobre o desenvolvimento das interpretações de histórias (De Souza, 2006).

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mtdesouza@usp.br

Recebido em novembro de 2007
Reformulado em abril de 2008
Aprovado em julho de 2008

 

 

Sobre as autoras:

* Maria Thereza Costa Coelho de Souza é professora de Psicologia do Desenvolvimento no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo desde 1997 e estuda a temática das relações entre afetividade e cognição no desenvolvimento psicológico, utilizando contos populares. É autora de artigos e capítulos de livros sobre temas da teoria de Jean Piaget e investigações sobre interpretações de histórias.
** Camila Tarif Ferreira Folquitto é psicóloga; desde 2007 é mestranda em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), na área de concentração Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e linha de pesquisa Desenvolvimento e Aprendizagem. Foi bolsista de Iniciação Científica do CNPq (2004-2005) e da FAPESP (2005-2006).
*** Marcella Pereira de Oliveira é psicóloga; desde 2007 é mestranda em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), área de concentração psicanálise. Foi bolsista de Iniciação Científica da FAPESP (2005-2006).
**** Samanta Pedroso Natalo é psicóloga; atualmente (desde 2007) atua na área clínica e escolar. Foi bolsista de Iniciação Científica da FAPESP (2005-2006).
1 O que você achou do que a gata fez na história? O que você achou do que o lobo fez na história? Por quê?
2 O que você acha que o cabritinho mais novo sentiu quando viu que só ele não tinha sido devorado pelo lobo? Por quê?
3 Em artigo recente, de título: "Relações entre aspectos afetivos e cognitivos em representações de dois contos de fadas", enviado para publicação na revista Boletim de Psicologia, as autoras comentam sobre a evolução da representação na criança, de acordo com Piaget.