SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número1Autoritarismo e adesão a sistemas de valores psicossociaisCrenças irracionais, ajustamento psicológico e satisfação de vida em estudantes universitários índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

PsicoUSF

versão impressa ISSN 1413-8271

PsicoUSF v.14 n.1 Itatiba abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Direito de brincar: as (im)possibilidades no contexto de trabalho infantil produtivo

 

Right to play: the (im)possibilities in the context of productive childish job

 

 

Indira Caldas Cunha de Oliveira*; Rosângela Francischini**

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dentre os vários aspectos relacionados à infância, elegemos o direito da criança brincar, atividade esta considerada importante para o seu desenvolvimento, segundo várias perspectivas teóricas em Psicologia, dentre as quais destacamos a sociohistórica. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho foi investigar como as crianças em situação de trabalho, a partir do seu discurso e de suas práticas, vivenciam o brincar em seu cotidiano. Participaram da pesquisa quatro crianças que desenvolvem atividades no processo de beneficiamento da castanha de cajú. Como procedimentos recorremos à entrevistas semiestruturadas, observação participante e fotografias. A perspectiva de análise fundamenta-se nos estudos sociohistóricos e discursivos. Diante da análise do corpus, percebemos que os sujeitos participantes da pesquisa conseguem viver, mesmo que seja de forma parcial, a sua ludicidade. Assim, o trabalho restringe a construção da cultura lúdica dessas crianças, uma vez que o tempo de que dispõem está comprometido, em grande extensão, com as atividades do beneficiamento da castanha de cajú.

Palavras-chave: Infância, Lúdico, Trabalho infantil produtivo.


ABSTRACT

Among several aspects related to childhood we have chosen the rights of the children to play, which is considered an important activity for their development according to several theoretical perspectives in Psychology, among which we highlight the social-historic approach. In that context, the aim of this work was to investigate from their speech and their practices how children in working situation play in their everyday lives. Four children participated in the research, developing activities in the process of cashew nuts advantaging. We recurred to interviews, participating observations, and photographs. The perspective of analysis for this work is based on social-historic and discursive studies. Due to the analysis of the corpus, we realize that the subjects in the research can live, even in a partial way, its truth. Thus, the work restrains the construction of those children's culture, because the time they get is damaged largely due to their work on the cashew nuts.

Keywords: Childhood, Ludic, Productive infant work.


 

 

Introdução

Infância é uma categoria que está perpassada por um conjunto de procedimentos que a configuram, podendo ser chamada de uma "administração simbólica da infância", na qual é constituída por: 1) um conjunto de normas, atitudes e prescrições escritas ou formalizadas que permeiam a vida das crianças na sociedade, por exemplo, frequência ou não a certos lugares e tipo de alimentação; 2) definição da área de reserva para os adultos, e 3) configuração de um "ofício de criança" ligado à escola (Sarmento, 2004). Dentre esses elementos podemos eleger o brincar como uma atividade tipicamente infantil, que ganha status na lei Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069/90). O conceito de infância presente no ECA tem delimitado idade, reconhecido a condição especial de desenvolvimento da criança e assegurado direitos, dentre eles, o brincar; dessa forma, é um elemento fundamental na estruturação de infâncias.

Diante de tal condição, esse direito deve ser garantido pela família, pela sociedade em geral e pelo poder público para todas as crianças. Porém, nem todas têm os seus direitos assegurados, como no caso das crianças em situação de trabalho, que são "obrigadas" a, desde cedo, procurar seu sustento ou contribuí para o sustento da família. O tempo destinado ao estudo e à brincadeira transforma-se em tempo destinado ao trabalho (Mello, 1999).

Conhecendo essa problemática indagamo-nos: como é constituída a cultura lúdica dessas crianças? Tomando como ponto de partida essa discussão, realizamos uma pesquisa (Oliveira, 2004) cujo objetivo foi investigar como as crianças em situação de trabalho no beneficiamento da castanha de caju, a partir do seu discurso e de suas práticas, vivenciam o brincar em seu cotidiano.

Lúdico, brincadeira, brinquedo, jogo...

São várias as tentativas de conceituar o lúdico, a brincadeira, o brinquedo e o jogo e, ao mesmo tempo, diferenciá-los. Na maioria das vezes, esses termos são utilizados como sinônimos, seja no cotidiano seja na literatura, específica, não apresentando, segundo os autores pesquisados, uma definição única. Por isso, qualquer tentativa de uniformização de conceito não é tarefa recomendável.

Diante dessa dificuldade, no contexto deste trabalho, vamos utilizar a palavra lúdico como o espaço que envolve os brinquedos, as brincadeiras e os jogos. O brinquedo - como suporte da brincadeira - é o que a possibilita. O jogo enquanto atividade que possui regras estruturadas; a brincadeira enquanto atividade individual da criança ou de interação de crianças, utilizando objetos/brinquedos ou não, vinculando-a à satisfação e à diversão. (Santos & Koller, 2003).

Com um olhar para o componente social da brincadeira, Brougère (1998) afirma: a "brincadeira pressupõe uma aprendizagem social", pois a criança é iniciada na mesma na interação com pessoas de seu cotidiano. Essa inserção compreende uma comunicação e uma interpretação, que "supõe um contexto cultural subjacente ligado à linguagem, que permite dar sentido às atividades" (Brougère, 1998, p. 21).

Consoante o que já dissemos, a criança aprende a brincar e, para tanto, ela precisa conhecer e se apropriar do universo simbólico particular, para que, posteriormente, esses conhecimentos possam extrapolar o universo lúdico e ser utilizados em outros campos (Brougère, 1998). Nessa perspectiva, Huizinga (1996) concebe o jogo enquanto fenômeno cultural que é guardado na memória, transmitido pelas pessoas e tornado tradição.

É nesse sentido que Brougère (1998) fala numa cultura lúdica, entendida como um conjunto de procedimentos (regras e significações) que permitem tornar o jogo possível, construída nas interações sociais (permissões ou restrições), ou seja, por meio das intersubjetividades. Segundo o autor,

dispor de uma cultura lúdica é dispor de um certo número de referências que permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser vista como tais por outras pessoas" (Brougère,1998, p.24).

Para Brougère (1998), a produção da cultura lúdica acontece a partir do acúmulo de experiências lúdicas que ocorrem através das competências das crianças, sejam elas biológicas ou psicológicas. O termo "acúmulo" aqui utilizado não está relacionado à passividade da criança a aprender uma brincadeira, mas à capacidade que ela tem de interagir, dar significação em resposta à reação do outro, produzindo novas significações.

No entendimento da cultura lúdica, a brincadeira também é uma forma de interação criança/adulto. Altman (2002) nos traz como exemplo a cultura indígena, em que os meninos acompanham os seus pais na pesca e as meninas, suas mães nas plantações, no cozer mandioca, no carregar o irmão nas costas, na tipóia, e, depois, brincando, imitam os gestos e as atitudes dos pais, preparando-se para a vida adulta. É nessa interação que os pais construíam brinquedos para seus filhos com os elementos da natureza (sementes, casca de árvore, barro): bonecas e animais, por exemplo.

Anteriormente, ressaltamos a importância do brinquedo na brincadeira e no jogo. A atividade lúdica da criança com a utilização de objetos (brinquedos), no entanto, nem sempre depende da definição das formas que esses instrumentos apresentam. Benjamin (1984) ressalta a idéia de transformação de elementos os mais diversos, em brinquedos, realizada pela criança.

E embora resta à criança uma certa liberdade em aceitar ou recusar as coisas, muitos dos mais antigos brinquedos (bola, arco, roda de penas, papagaio) terão sido de certa forma impostos à criança como objetos de culto, os quais só mais tarde, graças à força da imaginação da criança, transformaram-se em brinquedos. (p.72)

O lúdico na psicologia histórico-cultural

Segundo essa perspectiva, a brincadeira é vista como uma atividade essencial, mesmo a principal, ao desenvolvimento infantil, uma vez que ela prepara o caminho de transição de um estágio de desenvolvimento para outro e que, através dela, ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico. Nas palavras de Vygotsky (1984):

O brinquedo fornece ampla estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência. A ação na esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação das intenções voluntárias e a formação dos planos da vida real e motivações volitivas - tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar. A criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo. Somente neste sentido o brinquedo pode ser considerado uma atividade condutora que determina o desenvolvimento da criança. (p.117)

A importância do jogo se manifesta, ainda, na possibilidade de realização de desejos que não possíveis no "mundo real". A solução encontrada pela criança é envolver-se num mundo imaginário e ilusório chamado brinquedo, conforme aponta Vygotsky (1984). Observam-se, frequentemente, em brincadeiras de crianças, questões recorrentes ligadas a assuntos familiares, nas quais estão presentes a estrutura familiar e a de papéis (pai, mãe, filhos etc.). Nessas brincadeiras, as crianças "copiam" e (re)criam regras de conduta, vivenciadas na realidade. Vygotsky (1984) e Leontiev (2001) concordam que os significados e sentidos aí manifestos vão sendo construídos no decorrer da brincadeira.

O brinquedo proporcionará às crianças a livre substituição (capacidade de substituir um objeto pelo outro). Essa capacidade possibilita à criança atingir uma definição funcional de conceitos e objetos, desenvolver o pensamento abstrato e aprender regras, valores e modelos dos adultos. Wallon (1986a) diz que a criança:

brinca servindo-se de qualquer objeto: faz de um pedaço de pau entre as pernas um cavalo e, com um chapéu de papel sobre a cabeça, brinca de soldado. Faz de conta que é locomotiva, por meio de gestos mecânicos com os braços e as pernas e de respirações sonoras e ritmadas. (p. 93)

Um outro aspecto importante com relação ao brinquedo é que ele permite criar uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) em que a criança vai além do comportamento habitual da sua idade. Conceito criado por Vygotsky (1984) que significa a distância entre o desenvolvimento real (aquilo que a criança consegue fazer sozinha) e o desenvolvimento potencial (aquilo que a criança já consegue fazer com a ajuda do outro - adulto ou criança num nível mais elevado). Por exemplo, ao brincar com a boneca, desenvolve algumas atividades semelhantes àquelas desempenhadas pela mãe.

Leontiev (2001) aponta que, em cada estágio de desenvolvimento, a brincadeira tem algo que lhe é específico. No período pré-escolar, há predomínio da situação imaginária e do papel expresso nos jogos de enredo (de papéis) que compõem o universo das brincadeiras pré-escolares; porém, a regra lhes fica latente. Esses jogos de enredo vão evoluindo, tornando-se jogos de regra, como "esconde-esconde"; nestes, a situação imaginária e o papel tornam-se latentes e a regra explícita. Nas palavras de Leontiev (2001):

"Um traço marcante dos jogos, com uma situação imaginária desenvolvida e relações sociais, é precisamente o de que surge neles um processo de subordinação às regras da ação, processo este que surge das relações estabelecidas entre os participantes do jogo." (p.136)

Conforme apresentado acima, as teorias psicológicas demonstram as contribuições da brincadeira e o ECA a concebe como um direito essencial à vida da criança. Embora esteja presente em Lei, nem todas as crianças podem desfrutar desse direito; as crianças que trabalham são exemplos disso, uma vez que têm restrições impostas pelo tempo ocupado nessas atividades. Essa realidade é bem sintetizada por Vogel e Mello (1992):

Além da fome, troca-se também o tempo livre e, com ele, as brincadeiras, o estar à toa na vida com suas possibilidades de experimentação lúdica do mundo. Troca-se também a formação escolar, ou, pelo menos, a perspectiva de aproveitamento e sucesso na escola. E, na maioria dos casos, troca-se o recesso de casa e quintal pelo espaço aberto da rua, onde se encontra o universo do trabalho (p.135) (grifo nosso)

São poucos os estudos: Fonseca (1999); Marques (2001); Martins (1993); Silva (2003) que abordem essa questão. Em uma pesquisa exploratória (Alves & cols., 2001) realizada com vinte crianças em situação de rua de Porto Alegre/RS, com o objetivo de discutir o brinquedo e as atividades cotidianas dessas crianças, observou-se que, quando as crianças estão trabalhando, elas pensam em brincar (seis respostas), em concentrar-se na tarefa (seis respostas) e na família (três respostas). Porém onze crianças relataram preferir trabalhar a brincar, seis queriam estar brincando e uma relatou gostar das duas atividades de forma equivalente. As justificativas se concentram no retorno financeiro que a atividade proporciona e em ser uma atividade valorizada pela sociedade: "afasta da marginalidade", "enobrece o homem". Essas respostas refletem a força da ideologia do trabalho, citada por Campos (2001).

Marques (2001), observando a relação entre o brincar, o estudo e o trabalho infantil com o presente e o futuro de crianças em situação de trabalho nas ruas, sintetiza, como segue abaixo, o resultado de sua pesquisa:

... a convivência entre escola e o trabalho infantil gera perdas significativas na vida dessas crianças e adolescentes, tanto no aspecto lúdico quanto na formação escolar necessária à emancipação desses sujeitos. Esses comprometimentos são provocados não só pela necessidade de inserção no trabalho infantil, mas também pelas próprias concepções pedagógicas até então sobre o brincar, o estudar e o ser criança que dificultam o desenvolvimento de atividades mais prazerosas no contexto escolar e que acabam colocando em risco as perspectivas de futuro dessas crianças. (p.125)

Silva (2003) realizou uma pesquisa na Zona na Mata Canavieira Pernambucana buscando compreender o significado da cultura lúdica no cotidiano das crianças trabalhadoras, analisar o tempo de lazer/lúdico das crianças, identificar qual o projeto de infância e de sociedade que almejam essas crianças e identificar os componentes de transgressão e de resistência ligados ao lúdico.

Neste estudo ele pode constatar que o tempo que sobra após o trabalho poderia ser compreendido sob três dimensões: supressão, a vivência plena e parcial dos momentos de brincadeiras/lúdico. A dimensão predominante foi a vivência parcial, a falta de tempo para brincar ocasionada pelas longas jornadas de trabalho, a escola e os afazeres domésticos. O lúdico, na maioria das vezes, é vivenciado no tempo que sobra do trabalho. Assim, as crianças brincam mesmo em condições adversas de tempo e de espaço. Porém, Silva (2003) questiona o que pode estar em jogo na vivência do lúdico dessas crianças. Em suas palavras:

O que realmente está em jogo, na minha percepção, é o fato de elas brincarem numa realidade destruída pela racionalidade capitalista e, mesmo assim, se imporem como seres sociais, resistindo ludicamente, apresentando, enfim, um outro projeto de sociedade. Isso significa dizer que o tempo exíguo para o lúdico também carrega consigo as marcas históricas da pobreza, da privação, do trabalho estranhado, do cerceamento, da justiça, da má distribuição da renda e da terra. (p.339)

As crianças em situação de trabalho dividem o seu tempo mais com obrigações do que com não-obrigações, não vivenciando um tempo livre, mas um tempo que sobra do tempo de trabalho excedente, como bem coloca Silva (2003), a partir da realidade que ele pesquisou:

Quando a questão do lazer se refere à infância pobre e trabalhadora, não se pode desconsiderar que as extensas jornadas de trabalho que realizam os meninos e meninas, sobretudo no período do corte da cana, se constituem em fator limitante ou supressivo do tempo para o lúdico. As longas jornadas de trabalho das crianças, também chamada de tempo de trabalho excedente, são a expressão de superexploração tanto da força de trabalho dos adultos quanto das crianças, tendo como finalidade principal a mais-valia. (p. 208)

 

Método

Participantes

A escolha do grupo de pesquisa - crianças em situação de trabalho - deu-se a partir de observações realizadas no contexto de beneficiamento da castanha de caju, na fase exploratória. Dentre as crianças em situação de trabalho, elegemos aquelas que passam a maior parte do seu tempo trabalhando no beneficiamento da castanha de caju e cujo acesso nos foi possibilitado, constituindo quatro crianças (uma de 7 anos - participante B; duas de 8 - A e C; e uma de 11 - D), meninas, pertencentes a dois grupos de famílias.

Procedimentos e instrumentos

A pesquisa realizada parte dos pressupostos da abordagem qualitativa cuja principal preocupação é o aprofundamento na compreensão da realidade vivenciada por essas crianças e a qualidade dos dados, que se reflete na necessidade de uso sistemático de diferentes procedimentos/instrumentos relacionados com o fenômeno investigado. (Haguette, 1992). Dentre eles, optamos por:

1) Observação participante, com o objetivo de conhecer o caráter peculiar das atividades em situação de trabalho e suas relações com o lúdico. Dessa forma, realizamos oito visitas. Algumas vezes estas foram de um dia; outras vezes, durou até quatro dias. Participamos de diferentes atividades do contexto das crianças, como no processo de beneficiamento da castanha de caju, nos momentos de brincadeiras, comemoração do dia das crianças, realização da primeira eucaristia, reuniões da Associação Comunitária. Foram feitas, também, visitas à creche, à escola e ao posto de saúde do lugar. Essas participações foram importantes, pois subsidiaram a contextualização da comunidade e nos colocaram em maior proximidade com seus moradores, facilitando a escolha dos participantes da pesquisa.

2) "Diário de campo" - relato escrito do que o pesquisador ouve, presencia e pensa no decorrer da construção dos dados (Minayo, 1993). Este instrumento foi utilizado para fazer anotações e observações sobre a relação estabelecida entre a pesquisadora e os participantes, entre os participantes e seus familiares e amigos, assim como o registro dos demais instrumentos empregados.

3) Fotografias - foram tiradas pelas próprias crianças e pela pesquisadora, nos mais variados momentos, para que pudessem representar suas infâncias. Elas ensaiavam poses, lugares e motivos, em meio a risadas e brigas. Quando reveladas, na sequência das visitas, as fotos foram apresentadas às crianças, desencadeando discursos e novas significações para os eventos de seus contextos.

4) Brincadeiras - foram desenvolvidas atividades com alguns jogos (dominó de animais e um jogo de completar palavras - industrializado, onde se apresenta uma palavra em que falta uma sílaba); à criança é solicitado preencher com essa sílaba e formar uma palavra passível de interpretação.

5) Entrevistas semiestruturadas - Essas foram realizadas individualmente, na varanda da casa de uma religiosa que desenvolve trabalhos comunitários com aquela população e gravadas em cassete. Seguiram um roteiro, utilizando as narrativas pessoais, realizando-se alguns recortes referentes ao cotidiano das crianças, às atividades que lhes são ou não agradáveis, os sonhos para o futuro, ao que consideram ser criança.

Os instrumentos foram utilizados de acordo com a especificidade de cada um (ex. diário de campo, utilizado em todo o período de trabalho de campo). Observamos que a entrevista foi o último procedimento, uma vez que buscou sistematizar e sintetizar os dados compostos a partir dos demais procedimentos.

A perspectiva de análise que norteou essa tarefa fundamenta-se nos estudos sócio-histórico com recurso à análise de conteúdo temática (Minayo, 1993). Nesse sentido, realizamos, primeiramente, uma leitura flutuante sobre o conteúdo emergente a partir dos diferentes instrumentos utilizados. Na sequência, exploramos e organizamos o corpus com o objetivo de construir os eixos temáticos. Assim, procuramos entender como o lúdico está inserido na infância das crianças em situação de trabalho, considerando os seguintes eixos temáticos: tipos de brincadeiras, brinquedos utilizados, procedimentos presentes nas brincadeiras, lugar, horário, sentimentos, atividades restritivas ao exercício do lúdico. Perpassando esses eixos buscamos entender como o brincar vai se configurando dentre as demais atividades, principalmente o trabalho e o estudo. Na análise do corpus acima descrita buscamos uma relação com o referencial teórico que subsidia este estudo.

 

Resultado e discussões

Análise do corpus: a cultura lúdica

A cultura lúdica, como vimos anteriormente, é construída a partir das interações sociais, situadas num determinado espaço e contexto histórico, e está submetida às restrições e imposições dos adultos e do próprio lugar (Brougère, 1998). Sendo entendida dessa forma, procuramos discutir a cultura lúdica no contexto do trabalho de campo, em que estão presentes outros atores sociais que interagem com as participantes. Assim, observamos atividades lúdicas variadas, desde as brincadeiras tradicionais até aquelas sugeridas pela televisão - incluindo, principalmente, as que envolvem brigas e lutas. São essas manifestações do universo lúdico das crianças que, a seguir, estarão nos ocupando.

Tipos e brinquedos

No trabalho de campo pudemos conhecer várias brincadeiras e jogos que estão presentes no cotidiano das crianças. Em muitas delas, participamos em conjunto, num processo de constante aprendizado para ambos. Para apresentá-las, vamos recorrer a algumas categorias organizadas por Silva (2003), que buscou uma sistematização própria, propondo classificação que procurou abranger as múltiplas possibilidades, mantendo coerência interna. Vale ressaltar que as possibilidades de classificação das atividades lúdicas são várias; não há consenso entre os teóricos.

Atividades lúdicas das crianças beneficiadoras da castanha de caju:

1. Jogos e brincadeiras tradicionais: pular corda; tica (pega-pega); esconde-esconde; jogo de bola; futebol; academia (amarelinha); brincadeiras de roda; brincar de pedrinhas; vôlei; brincar de cozinhar.

2. Brinquedos tradicionais: blocos de montar; carros; baladeiras.

3. Brinquedos construídos: balanços; "pula-pula"; beyblader; objetos construídos com barro: robôs, camas, bilocas, sofás, crianças e panelas; escorrego; esguichos d'água; motocicleta.

4. Jogos: dominó; jogo da memória.

5. Atividades na natureza: construir buracos; subir em árvores; tomar banho de chuva; pegar tanajura; tomar banho de açude; caçar passarinho; balançar nas árvores; tomar banho de praia.

6. Brinquedos desejados: bonecas; robôs (Power Ranger); beyblader.

7. Outras atividades de lazer: assistir televisão; passeio para outros localidades; dançar; cantar; catecismo; ir ao assentamento; festas em datas comemorativas; brincar de luta; andar de bicicleta; jogar minigame.

Diante do exposto acima, pudemos verificar que a maior parte das atividades lúdicas desenvolvidas pelas crianças necessita de poucos objetos, muitos deles disponíveis na natureza ou no próprio ambiente, como a brincadeira de academia (amarelinha), para a qual as crianças precisam de apenas um caco de telha para jogar. Às vezes, esses objetos são transformados, ou seja, as crianças se apropriam de um elemento da natureza, como o barro, e criam robôs, panelas e bilocas.

É interessante observar a criatividade das crianças em utilizar e transformar os objetos que as cercam. Um cano, aparentemente sem uso, transforma-se num cavalo para um e numa arma para outro. Nessas atividades, assim como nas brincadeiras de modo geral, a criança começa a internalizar regras de conduta a partir da realidade vivida ou que gostaria de viver, dando uma significação própria - atividade generalizada (Leontiev, 2001). Também estão presentes valores e costumes da comunidade; esses são, segundo Bakhtin (2002), manifestações da ideologia que está presente no cotidiano das relações sociais. Além disso, observa-se um dos elementos estruturadores da infância: Fantasia do Real (Sarmento, 2004), que diz respeito à forma como a criança lida com suas emoções, frustrações e alegrias para que a vida se torne aceitável para ela, o que é possível no mundo do faz-de-conta.

Uma simples tábua, encostada a um galho do cajueiro, em determinado momento tem a função de um escorrego. Em outro, serve como um "pula-pula" - uma tábua, em que uma das suas extremidades está apoiada ao chão e a outra na calçada, provocando um desnível e possibilitando o pular.

A necessidade de transformação é permanente, é algo que surge de imediato, percebido quando perguntamos se as crianças brincam muito e se têm brinquedos, conforme é demonstrado na fala da participante "D":

Ex. 1. D: Só a Irmã, às vez da, assim, uns brinquedo para eles e faz uns negócios doidos (riu) que eles gostam. (...) eles gostam de pegar barro e dizer que fazem robô e que vai destruir a terra (riu). Outro... bota tábua no pé do cajueiro pra escorregar. Esses negócios. (...) às vezes quando morava pra colá, sabe, lá no alto, nós fazia robô, assim, sabe, fazia de barro umas panelinhas, começava a fazer umas biloquinhas, fazia um bocado de coisa.

Quando a participante "D" diz "... eles e faz uns negócios doidos (riu) que eles gostam. (....) eles gostam de pegar barro e dizer que fazem robô e que vai destruir a terra", podemos perceber que as crianças vão dando significados e sentidos no decorrer da brincadeira. Essas atividades, posteriormente, ajudarão a criança a atingir uma definição funcional de conceitos e objetos e a desenvolver o pensamento abstrato (Vygotsky, 1984).

O desejo de possuir um brinquedo que não está ao alcance dessas crianças, faz com que elas construam outros como, por exemplo, um beyblader (uma espécie de pião industrializado, exibido em um desenho pelo programa TV Globinho, da Rede Globo). Duas formas possíveis de construção foram observadas: com um pedaço de papelão (suporte), palito de pirulito enrolado numa linha (para fazê-lo girar), mais uma tampa de detergente (o objeto que gira); com um pedaço de madeira (suporte), mais um outro pedaço de madeira comprido e menor para enrolar a linha (para fazê-lo girar) e uma "bacia" de bicicleta envolvida numa tampa de refrigerante.

Ou o desejo faz com que apenas se sonhe com o objeto desejado, como bem expressa a participante D:

Ex. 2. D: "...Têm muitas coisas que a pessoa vê e diz que quer." P: "Diga só uma coisa que você vê e queria comprar?" D: "Umas boneca, que a pessoa vê e fica com vontade de brincar, mas não tem como".

Os desejos das crianças possuírem determinados brinquedos - beyblader e bonecas - têm como pano de fundo o mercado de produtos culturais para a infância exposto na mídia (programas de televisão, principalmente) tornando a infância globalizada. São essas vozes que constituem parte do discurso dessas crianças. Porém, elas só têm acesso a esses produtos pela televisão e a forma que encontraram para estar mais próximas a eles foi reproduzi-los com objetos do próprio ambiente em que vivem, significando-os dentro de suas culturas e de suas condições.

Na maior parte das brincadeiras, as crianças utilizam sucata ou elementos da natureza, aos quais só é dado sentido por aquele que brinca e enquanto a brincadeira dura. A outra forma refere-se àquele que é reconhecido como tal - os industrializados e os artesanais - em que o acesso a eles é limitado. Dessa forma, as crianças tentam reproduzir o brinquedo industrializado a partir dos recursos acessíveis às mesmas, como foi demonstrado anteriormente.

Durante as observações e as entrevistas pudemos perceber que as brincadeiras e os jogos tradicionais ocupam o espaço maior na atividade lúdica das crianças em situação de trabalho, seguido do "assistir televisão". Mas como se configuram essas brincadeiras e jogos? Dessa questão nos ocuparemos a seguir.

As brincadeiras de roda são realizadas com muitas crianças, meninas e meninos, que fazem um círculo de mãos dadas e começam a cantar uma música, fazendo os gestos que nela são indicados. As crianças aprenderam essas brincadeiras na creche e no catecismo.

As músicas cantadas pelas participantes não têm uma origem na comunidade; foram transmitidas e modificadas através de gerações que, provavelmente, receberam influências de outros povos. Algumas das músicas conhecidas pelas participantes extrapolam a cultura da região, sendo também encontradas em outras cidades, por exemplo, "Fui na Espanha...", "Atirei o pau no gato...", "O circo pegou fogo...", presentes, também, na cultura lúdica de crianças de outros lugares.

A brincadeira de pular corda é realizada de diferentes formas, com meninas e meninos participando: 1) Duas crianças ficavam rodando a corda e o restante, pulando-a simultaneamente. As crianças iam saindo à medida que errassem, até ficar uma única criança; 2) Duas crianças ficavam rodando a corda e as demais, uma por uma, iam pulando, enquanto as restantes contavam até a criança errar; 3) Cantavam uma música para ver quem conseguia terminar de pular cantando a música, de acordo com o que ela indicava. As crianças não possuem corda; quando querem brincar, pedem-na emprestada para a Irmã.

Numa determinada situação em que pudemos observar as crianças pulando corda e que foi fotografada, pudemos observar que uma delas (participante "D") (a que está em uma das extremidades da corda), brinca, estando com uma criança no colo. Articulando a expressão na imagem fotográfica com o discurso produzido pela criança em outros procedimentos, observa-se a tentativa de conciliação da atividade lúdica com a atividade que é da sua responsabilidade: tomar conta da irmã mais nova.

A academia é desenhada com um graveto e jogada com um caco de telha. As regras que as crianças seguem nessa brincadeira são de domínio público.

De todas as brincadeiras e jogos, parece-nos que o futebol é o que mais fascina as crianças. A participante "C" falou que quando crescer gostaria de ser jogadora de futebol, fato expresso também por seus irmãos. Disse que esse sonho deve-se ao pai, que gostava de jogar futebol e tinha ensinado a jogar. Nos finais de semana, o pai de "C" levava todos os filhos para vê-lo jogar futebol. A participação de meninas em jogos de futebol será retomada abaixo.

Brincar de cozinhar é mais raro. A participante "D" falou que elas brincavam de cozinhar debaixo do cajueiro; construíam um fogão com tijolos e carvão e levavam comidas para cozinhar - macarrão, arroz, carne - levavam, também, os pratos para comer. Observa, no entanto, que essa atividade não ocorre há algum tempo.

As atividades de lazer nos espaços naturais são tão presentes quanto as de jogos e brincadeiras tradicionais. Algumas delas se misturam com personagens da televisão, como quando uma criança sobe numa árvore e começa a se balançar, emitindo sons como se fosse Tarzan. Outras são temporais, como tomar banho no açude, que só pode ser realizada quando o mesmo enche, nos dias de grandes chuvas na região.

De acordo com as brincadeiras e jogos descritos anteriormente, percebemos que há um predomínio das atividades lúdicas de situações mais regradas, confirmando a evolução dos jogos apontada por Leontiev (2001) que, também, têm importantes contribuições ao desenvolvimento infantil, uma vez que para participar de tais jogos e brincadeiras (futebol, academia, pular corda) a criança tem que se subordinar às regras referentes a cada atividade e estabelecer relações de concordância, discordância, competição (ganhar e perder) entre os participantes do jogo, diante do objetivo que ele se propõe. Assim, esse tipo de atividade ajuda no desenvolvimento de traços da personalidade e na autoavaliação da criança.

Existem outras atividades que fazem parte do lazer das crianças, como os passeios que fizeram em conjunto com suas famílias ou com o colégio. Nesses, elas podem tomar banho de praia, brincar nos parques de diversões e comprar alguns brinquedos, como carrinhos, relógios e mini-games. O catecismo também é uma possibilidade de diversão, visto ser um momento que reúne várias crianças: elas cantam, dançam e brincam.

Uma outra diversão é assistir televisão. Essa atividade ocupa um lugar semelhante ao ocupado pelas brincadeiras na vida das crianças, no que se refere ao tempo destinado a ela. Às vezes, a atividade de trabalho chega a impedir a criança de assistir televisão, como bem dizem as participantes "A" e "C":

Ex. 3. P: Você não gosta de tirar péia, por quê? A: "Por que não, porque não posso assistir televisão".

__ * __

P: Por que você não gosta de tirar péia? C: "Por que eu quero assisti as novela e mãe não deixa".

O que elas mais gostam de assistir é novelas, Malhação, filmes e desenhos. Diante de todas essas atividades lúdicas vamos conhecer quem são as pessoas que compartilham com as crianças as brincadeiras e os jogos.

Com quem brincamos?

As participantes desta pesquisa brincam mais entre elas, seus irmãos e vizinhos. Talvez isso ocorra porque moram mais afastadas das demais casas da comunidade. Mesmo assim, de vez em quando, aparecem outras crianças que moram mais distantes e os primos que moram num assentamento próximo. Brincam com as colegas de classe, na escola, com as catequistas e com os alunos do catecismo.

As participantes "A", "B" e "D" brincam entre si, com os irmãos mais novos, porém com as irmãs mais velhas essa troca é mais difícil. Com os seus pais também não é muito diferente, uma vez que eles passam o dia trabalhando, embora encontrem momentos para brincar, segundo a participante "D":

Ex. 4. P: "Eles [os pais] brincam com você, conversam? Como é a vida deles com você?" D: "É bem brincalhão, depois fica com raiva, aí depois fica brincalhão". P: "Eles têm tempo para brincar com vocês?" D: "Só, assim, nos dia de folga que eles não vão trabalhar, aí eles ficam de brincar de pedra com nós". P: "Como assim de pedra?" D: "De pedra... sabe... aquelas... não tem uma brincadeira que a pessoa brinca de pedra?" (gesticula, para explicar à pesquisadora).

Durante as observações, foi percebido o brincar dos pais com os filhos pequenos (que não trabalham) durante o trabalho. Neste ambiente foi montado um balanço na árvore, e enquanto os pais ficam quebrando castanha, de vez em quando empurravam a criança no balanço.

Já a participante "C" brinca com todos os irmãos, principalmente o mais novo, e com seus vizinhos. Em relação aos seus pais, ela sempre fala do pai brincando com todos os filhos, não se restringindo a horários específicos. A mãe brinca com ela, conforme explicitado em seu discurso:

Ex. 5. P: "Sua mãe brinca com você?" C: "Brinca". P: "De quê?" C: "Ela fica brincando com eu e P. [o irmão mais novo] de... fica brincando na cama". P: "De quê?" C: "De tica, é, fica pulando em riba da cama". P:" De que horas ela brinca com você?" C: "É assim, de manhãzinha".

Aos dados acima acrescentamos a observação de que em todas as atividades lúdicas das crianças participam meninas e meninos, sejam elas quais forem - futebol ou brincadeiras de roda. Não foram observadas diferenciações nas atividades de meninos e meninas, relacionadas às regras das brincadeiras e aos papéis de cada participante.

Ao conhecermos quem são as pessoas que brincam com as crianças e de que elas brincam, pudemos perceber que essas crianças são inseridas na cultura lúdica pelas professoras da creche, da escola e do catecismo, através da mídia e, apesar do trabalho ocupar grande parte do tempo dos pais, eles, também, possibilitam essa inserção, ensinando as crianças a jogarem futebol, "jogo de pedrinhas", brincar de balanço na árvore. Assim, a brincadeira possibilita a interação intrageracional (criança-criança) e intergeracional (criança-adulto) (Sarmento, 2005); o surgimento de afetos e carinhos, como no caso da participante "C" que lembra do seu pai, na maioria das vezes, na situação de jogo de futebol. É nesta "interatividade" - um dos elementos estruturadores da infância (Sarmento, 2004) - que há uma contribuição para a formação da identidade da criança, uma vez que ela se apropria da cultura através das outras crianças e adultos em diversas situações.

Algumas limitações foram apresentadas no que se refere a com quem se pode brincar e aos lugares disponíveis para realizar essa atividade. A seguir trataremos dessa questão.

Brincamos onde?

O lugar onde mais acontecem as brincadeiras é em frente às duas casas das participantes da pesquisa, em frente ao Centro Social, em um pátio localizado praticamente no centro do espaço geográfico ocupado pela comunidade e em um campo de futebol cujo espaço foi delimitado pelas crianças. Por se tratar de um espaço em zona rural é caracterizado pela presença de árvores, pela não-delimitação em ruas, calçadas e praças públicas e pela ausência de circulação de carros e ônibus. Essa condição possibilita maior mobilidade das crianças, normalmente dada entre o local onde são realizados os trabalhos com a castanha de caju e as atividades lúdicas. Possibilita, ainda, a incorporação de elementos da natureza nos arranjos de brinquedos e na própria brincadeira.

As participantes falaram que, às vezes, gostam de brincar em frente à padaria, mas isso não estava podendo ocorrer porque a pessoa responsável pelo estabelecimento alertou-as sobre a possibilidade da bola danificar os vidros onde ficam os pães.

Foram citados, ainda, como espaços de brincadeiras, a área da casa da Irmã, pois esta tem brinquedos e os disponibiliza para as crianças; a quadra de esportes da comunidade e o açude.

A escola possui um espaço de realização das brincadeiras. A participante "C" disse que jogam futebol, mas acha muito ruim fazê-lo nesse espaço, pois o sol é muito quente. Ressaltou que a professora tinha prometido construir um local coberto para brincar, mas nunca o fez. Porém, o horário para essa atividade é bem restrito, como veremos no tópico a seguir.

Têm, as participantes, horário para brincar?

A infância dessas crianças em situação de trabalho tem horários ou momentos para a brincadeira e a diversão. Quando falamos sobre suas rotinas, verificamos que elas brincam depois do trabalho e nos finais de semana, discurso que aparece na fala da participante "C":

Ex. 6. P: "Qual o horário que você gosta de brincar?" C: "De quatro horas". P: "Por que você só brinca de quatro horas?" C: "Porque eu gosto mais, de três horas tou trabalhando, aí eu só brinco de quatro". P: "Até que horas?" C: "De quatro até umas quatro e meia".

O que aparece na fala da participante "C" não é gostar de brincar às quatro horas, mas é a impossibilidade de brincar em um outro horário por causa do trabalho. Na escola também há restrições quanto ao horário para brincar; as crianças jogam bola apenas no horário do intervalo, que tem um curto tempo de duração. O lúdico na escola só está presente no horário do recreio das crianças, sendo esquecido dentro da sala de aula. Podemos fazer uma comparação com as diretrizes dos PCN's (Brasil, 1998b) que não expõem a importância da brincadeira na aprendizagem na faixa etária de crianças a que eles se destinam, sendo essa questão só mencionada no Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (1998a). Tal situação pôde ser verificada numa visita realizada na escola, em que foi observado o material pedagógico utilizado por uma professora e pelo discurso da participante "C":

Ex. 7. P: "No colégio vocês brincam?" C: "Tem vez que nós brinca mais de bola. (...)" P: "Que horas vocês brincam de bola?" C: "De quatro e pouco e depois nós vamos ler o que tem no quadro e pronto. (...)" P: "Ela [professora] faz como na aula?" C: "Ela, só tem umas palavras no coisa, ai ela quer que nós diga todinho". P: "As palavras?" C: "Sim, ai bem facinho, aí nós diz". P: "A aula dela só tem isso? Não tem outra coisa?" C: "Só. Ela também escreve".

Assim, o brincar é possibilitado somente num tempo não ocupado pelo trabalho e pelo estudo. Realidade semelhante é encontrada na pesquisa realizada por Silva (2003), em que ele questiona o tempo destinado às brincadeiras pelas crianças. O autor nos mostra que dentre as três dimensões possíveis de tempo que sobra após o trabalho - supressão, vivência plena e parcial - a predominante na vida das crianças em situação de trabalho é a vivência parcial, uma vez que após o trabalho ainda existem a escola e os afazeres domésticos. As crianças brincam num tempo que sobra, em condições, muitas vezes, adversas de espaço.

 

Considerações finais

Conhecendo a cultura lúdica das participantes, pudemos observar que existe uma vivência lúdica, mesmo que com suas restrições. Talvez pelo ambiente em que morem - uma comunidade rural - por terem um espaço disponível para brincar com árvores, por ser um lugar tranquilo, sem a presença de dispositivos característicos da zona urbana (shoppings centers, por exemplo) e da industrialização, que as crianças preservem a tradição de brincadeiras antigas e que possam usar a imaginação e a criatividade.

Essa cultura lúdica foi constituída mediante as interações com os diferentes atores sociais (irmãos, pais, colegas, professores etc.). Para desenvolver suas atividades lúdicas, elas necessitam de poucos objetos, que são encontrados na natureza ou no próprio ambiente e adaptados ou transformados em brinquedos e brincadeiras.

Delineado esse perfil, percebemos que a criatividade das crianças aflora durante suas brincadeiras. Constatamos outras contribuições que o lúdico proporciona (Leontiev, 2001; Vygotsky, 1984; Wallon, 1986a, 1986b) na cultura lúdica das participantes, como a internalização de valores e elaboração de emoções, o estabelecimento de regras, a autoavaliação das habilidades e progressos da criança, comparando-a com as outras, e a introdução do elemento moral, durante as brincadeiras de futebol, academia, jogo de dominó e de pular corda.

Nas brincadeiras, também, estão envolvidos aspectos ideológicos. Ao brincar de cozinhar ou com bonecos estão presentes os costumes e os valores da comunidade; o desejo de possuir certos brinquedos tem como pano de fundo o mercado de produtos culturais para a infância, exposto, principalmente, pela mídia televisiva.

Fica evidenciado como o brincar é uma construção sócio-histórico-cultural. As cantigas de roda da época da colonização vão passando de geração em geração, sendo adaptadas pelas novas (Altman, 2002). É na relação com o outro que vai se construindo a cultura lúdica, pressupondo uma aprendizagem social (Brougère, 1998), fato observado quando as participantes falam que aprenderam as brincadeiras e jogos com as professoras, os pais, primos e colegas.

Sobre este aspecto, o lúdico é uma forma de interação criança/adulto, como foi observado algumas vezes nas atividades e nos discursos das participantes. Embora isso ocorra, o trabalho ocupa grande parte da vida dos pais e esses momentos de brincadeira entre pais e filhos tornam-se raros. Como vimos, é durante o trabalho que a mãe empurra o filho no balanço e nos dias de folga foi ensinada a brincadeira de pedrinhas. A figura dos pais é tão importante na formação dos filhos, que o sonho do pai em "ser jogador de futebol" torna-se o sonho dos filhos.

A cultura lúdica também é constituída pelas delimitações explícitas pelos pais e pelos professores, pelas características dos espaços colocados à disposição na escola, na comunidade e em casa (Brougère, 1998). Assim acontece. O lugar mais disponível é a área com os cajueiros, próximo às suas casas. A escola não proporciona espaço adequado, em nenhum sentido, para a atividade lúdica, refletindo no horário limitado que as crianças têm para brincar.

Há restrições também fora da escola; o tempo destinado à brincadeira, como já foi citado, refere-se a uma vivência parcial, em que se brinca após o trabalho, a escola e aos afazeres domésticos.

Nesse sentido, a vivência da infância nessas crianças - em situação de trabalho - está comprometida; muitas das contribuições que a brincadeira poderia proporcionar ao desenvolvimento do sujeito estão suprimidas. Contudo, ainda existem resquícios do exercício de atividades lúdicas no cotidiano dessas crianças.

A forma como cada criança vivencia a sua infância e, consequentemente, sua ludicidade, está relacionada com os contextos nos quais está inserida; o ambiente em que moram, as interações com os pais, com os amigos, com os irmãos, com os integrantes do espaço escolar, a exposição à mídia televisiva, dentre outros aspectos, configuram possibilidades múltiplas, dentre as quais, aquelas tornadas possíveis pela condição de inserção em atividades de trabalho.

 

Referências

Altman, R. Z. (2002). Brincando na história. Em M. Del Priore (Org.). História das Crianças no Brasil (3ª ed. pp. 231-258). São Paulo: Contexto.        [ Links ]

Alves, P. B., Koller, S. H., Silva, M. R. da, Santos, C. L. dos, Silva, A. S., Reppold, C. T. & Prade, L. T. (2001). Brinquedo, trabalho, espaço e companhia de atividades lúdicas no relato de relato de crianças em situação de rua. Psico, 32 (2), 47-71.        [ Links ]

Bakhtin, M. (Volochinov) (2002). Marxismo e filosofia da linguagem. (9ª ed.). (M. Lahud & Y. F. Vieira, Trad.). São Paulo: Hucitec. (Trabalho original publicado em 1977).        [ Links ]

Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. (M. V. Mazzari, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1969).        [ Links ]

Brasil (1998a). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Brasília.        [ Links ]

Brasil (1998b). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais - Introdução. Brasília.        [ Links ]

Brougère, G. (1998). A criança e a cultura lúdica. (I. Mantoanelli, Trad.). Em T. M. Kishimoto (Org.). O brincar e suas teorias (pp. 19-32). São Paulo: Pioneira.        [ Links ]

Campos, H. R. (2001). Pobreza e trabalho infantil sob o capitalismo. Tese de Doutorado. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Faculdade de Educação.        [ Links ]

Fonseca, C. (1999). O abandono da razão: a descolonização dos discursos sobre infância e família. Em E. L. A. de Souza (Org.). Psicanálise e Colonização (pp. 225-273). Porto Alegre: Artes e Ofícios.        [ Links ]

Haguette, T. M. F. (1992). Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Huizinga, J. (1996). Homo Ludens. (4 ed.). (J. P. Monteiro, Trad.). São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1938)        [ Links ]

Leontiev, A. N. (2001). Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar (8ª ed.). (M. da P. Villalobos, Trad.). Em L. S. Vygotsky, A. R. Luria & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. (8ª. ed., pp. 119-142). São Paulo: Icone.        [ Links ]

Marques, W. E. U. (2001). Infâncias (pre)ocupadas: trabalho infantil, família e identidade. Brasília: Plano.        [ Links ]

Martins, J. de S. (1993). Regimar e seus amigos - a criança na luta pela terra e pela vida. Em J. de S. Martins (Org.). O massacre dos inocentes - a criança sem infância no Brasil. (2ª. ed., pp. 51-80). São Paulo: Hucitec.        [ Links ]

Mello, S. L. de (1999). Estatuto da Criança e do Adolescente: é possível torná-lo uma realidade psicológica. Psicologia USP, 10(2), 139-151.        [ Links ]

Minayo, M. C. S. (1993). O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: ABRASCO.        [ Links ]

Natal. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90 (1997). Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Secretaria Municipal de Educação de Natal.        [ Links ]

Oliveira, I. C. C. de. (2004). Infâncias: o lugar do lúdico nas tramas do trabalho infantil. Dissertação de mestrado. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Faculdade de Psicologia.        [ Links ]

Santos, E. C. & Koller, S. H. (2003). Brincando na rua. Em A. M. A. Carvalho, C. M. C. Magalhães, F. A. R. Pontes & I. D. Bichara (Orgs.). Brincadeira e cultura: viajando pelo Brasil que brinca - o Brasil que brinca. (Vol. 1, pp. 187-206). São Paulo. Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Sarmento, J. M. (2004). As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. Em M. J. Sarmento & A. B. Cerisara. Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação (pp 9-34). Porto: ASA.        [ Links ]

Sarmento, J. M. (2005). Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância. Educação & Sociedade, 26(91), 361-378.        [ Links ]

Silva, M. R. da (2003). Trama doce-amarga: (exploração do) trabalho infantil e cultura lúdica. São Paulo: Hucitec.        [ Links ]

Vogel, A. & Mello, M. A. dos S. (1992). Da casa à rua: a cidade como fascínio e descaminho. Em A. Fausto & R. Cervini (Org.). O trabalho e a rua - Crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. (pp. 134-150). Unicef/Flasco/Unesco. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1984). A formação social da mente. (1ª ed.). (J. C. Neto, L. S. M. Barreto & S. C. Afiche, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986, escrito em1929).        [ Links ]

Wallon, H. (1986a). Imitação e representação. (E. S. Lima, Trad.). Em M. J. G. Werebe & Nadel-Brufelt (Orgs.). Henri Wallon (pp. 83-107). São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1945).        [ Links ]

Wallon, H. (1986b). O papel do outro na consciência do eu. (E. S. Lima, Trad.). Em M. J. G. Werebe & Nadel-Brufelt (Orgs.). Henri Wallon (pp. 158-167). São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1946).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Departamento de Psicologia, campus Universitário - Lagoa Nova
Caixa Postal 1524
CEP: 59.078-970. Natal, RN.
E-mail: incaldas@yahoo.com.br

Recebido em abril de 2008
Reformulado em setembro de 2008
Aprovado em janeiro de 2009

 

 

Sobre os autores:

* Indira Caldas Cunha de Oliveira é graduada em Psicologia, mestre e especialista em Psicopedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é psicóloga escolar da Secretaria Municipal de Educação de João Pessoa, Paraíba e professora na área de psicologia da educação. Desenvolve estudos nas áreas de Psicologia do Desenvolvimento Humano, Sociedade e Educação.
** Rosângela Francischini é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo, doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, com doutorado "sanduíche" na Universidade de Genebra. Atualmente é professora do Depto. de Psicologia - graduação e pós-graduação - na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma Universidade, coordenadora, desde 2002, do Núcleo de Estudos Sócio-Culturais da Infância e Adolescência, coordenadora do GT Desenvolvimento Humano em situação de risco social e pessoal da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento, tem experiência em ensino, pesquisa e extensão em Psicologia do Desenvolvimento Humano, com ênfase em desenvolvimento de crianças em contextos de risco e vulnerabilidade social e pessoal e em metodologia de pesquisa com crianças.