SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 issue1Ways to construct a future world with hopeEntrevista com Raquel S. L. Guzzo author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia Escolar e Educacional

Print version ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. vol.3 no.1 Campinas  1999

 

RESENHA

 

O outro lado da psicanálise

 

 

Walmor de Almeida Nogueira Largura1

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

 

Crews, F. (1999). As guerras da memória: o legado de Freud em xeque. São Paulo: Editora Paz e Terra.

 

O presente livro foi organizado a pedido da New York Review of Books, editora que entre os anos de 1993 e 1994 publicou dois artigos do professor emérito e ex-diretor do departamento de Inglês da Universidade da Califórnia, Frederick Crews.

O impacto dos artigos de Crews foi grande tanto na comunidade científica como na pseudocientífica, principalmente pelo seu resgate histórico na análise da teoria freudiana. A prova disso foi o enorme volume de cartas recebidas, uma das maiores na história da revista.

Nas suas 231 páginas, o livro está divido em Introdução, os dois artigos acima referidos ("O Freud desconhecido" e "A vingança do reprimido") e um posfácio intitulado "Confissões de um espancador de Freud". Ao término de cada um dos artigos, Crews apresenta algumas das principais cartas enviadas para a editora e tece alguns comentários sobre as mesmas.

Ao todo, são 18 cartas reproduzidas integralmente e algumas outras apenas resumidas em função do veto de sua publicação por parte de seus autores. Entre os autores destas cartas que permitiram a publicação, destacam-se Mortimer Ostow, psiquiatra e psicanalista presidente da Psychoanalytic Research and Development Fund e psiquiatra-assistente no Mentefiori Medical Center; J. Schimek, professor de psicologia clínica na New York University e analista didático no lnstitute for Psychoanalysis Training and Research; David D. Olds, professor-clínico associado de psiquiatria no Center for Psychoanalysis Training and Research da Columbia University; Robert R. Holt, professor emérito na New York University e ex-diretor do Research Center for Mental Health; e Charlotte Krause Prozan, psicoterapeuta e terapeuta licenciada em São Francisco e diretora associada do San Francisco lnstitute for Psychoanalytic Psychoterapy and Psychoalalysis.

O artigo "O Freud desconhecido" está subdivido em cinco pequenas partes. Nelas Crews demonstra claramente que a psicanálise é um método clínico psicológico muito questionável do ponto de vista científico, principalmente quando se leva em consideração a metodologia empregada e a falta de ética de seu idealizador.

Para demonstrar algumas das grandes falhas metodológicas e éticas da psicanálise freudiana, o Autor faz uso de alguns exemplos extraídos da correspondência entre Freud e Fliss, publicada integralmente somente em 1985, 35 anos depois da primeira versão impressa, onde Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernest Kris omitiram tudo aquilo que, arbitrariamente, determinaram como conteúdos que careciam de interesse científico. Foram justamente esses conteúdos que revelaram posteriormente algumas características peculiares como o desdém de Freud às sessões clínicas, o fato de aproveitar para escrever à Fliss enquanto um dos primeiros pacientes estava sob hipnose, e seu hábito de cochilar durante as livres associação de seus pacientes.

Crews segue seu texto dando outro exemplo referente às questões éticas de Freud. Ele apresenta o caso de Horace Frink, analista americano casado, mas que mantinha um caso amoroso com uma paciente (segundo Crews, prática comum entre os analistas na década de vinte), Angelika Bijur, herdeira de um banco. Freud escrevendo para Frink, apontou ao seu discípulo que ele era um homossexual latente com grande possibilidade de vir se tornar patente, e isso se devia principalmente ao seu medo de tornar-se rico. Freud sugeriu que ele se separasse de sua esposa e convencesse Bijur a fazer o mesmo, e nessa mesma carta diz: "se tudo correr bem, vamos transformar esse presente imaginário em contribuição real para o "Fundo de Psicanálise" (p. 40). Por fim, Frink atormentado pela culpa, tentou por diversas vezes o suicídio e Freud se manteve indiferente a estes fatos.

Para retratar algumas das falhas metodológicas, Crews retoma alguns clássicos casos da psicanálise, como o de Sergei Penkeeiv, mais conhecido como o Homem dos Lobos e de Ida Bauer, a 'Dora'. Em ambos, Crews demonstra que a teoria de Freud foi manipulada por sua mente criativafantasiosa, pelo seu alto poder de persuasão e arbitrariedade, chegando ao ponto de negar ou ignorar dados da realidade em prol da psicanálise por estes refutarem toda a sua teoria.

No caso do Homem dos Lobos, o próprio ex-analisado de Freud apontou em sua velhice, que achava pouco provável ter presenciado uma cena de seus progenitores mantendo relações sexuais enquanto dormia no berço próximo à cama de seus pais como sugeriu o criador da psicanálise, uma vez que não era costume na sua classe social colocar crianças para dormir no quarto junto dos pais.

No final do primeiro texto, o Autor apresenta a deixa para o próximo artigo afirmando ser Freud o "verdadeiro patrono histórico da síndrome da falsa memória" (p.62).

Na primeira sessão de correspondências são apresentadas onze cartas, de uma forma geral, não focalizam o conteúdo técnico-científico do argumento escrito por Crews, mas proferem críticas a sua personalidade defeituosa incapaz de realizar uma avaliação equilibrada. Nesta sessão, o Autor enriquece com dados e exemplos tudo aquilo que procurou analisar em seu artigo, os erros e a insustentabilidade da teoria freudiana frente a uma análise caracteristicamente científica com rígidos controles e passível de generalização.

Em A vingança do reprimido, Crews explora o "movimento da memória recuperada" que surgiu nos Estados Unidos no início da década de 80 e foi amplamente utilizado para fazer emergir conteúdos reprimidos ocorridos na tenra infância, geralmente estupros praticados pelos pais. Segundo a óptica do Autor, a utilização desta técnica extremamente subjetiva e cientificamente questionável, fez com que muitos inocentes fossem para a prisão pagar por um 'crime' que não cometeram.

Para realizar esta discussão, Crews utiliza-se de casos penais como o de George Franklin/ Elieen Lipsker no qual, com o auxílio de conhecimentos científicos disponíveis, põe em xeque toda a conduta de muitos profissionais americanos, principalmente Leonore Terr, Ellen Bass e Laura Davis, estas duas últimas autoras e divulgadoras desta crença, principalmente por meio do livro: The courage to heal.

No caso de George Franklin/Elieen Lipsker, apesar de não haver nenhuma evidência concreta que envolvesse Franklin ao estupro e ao assassinato da amiga de Lipsker, os jurados, envolvidos por um rica e detalhada descrição do fato ocorrido há vinte anos, condenaram Franklin à prisão perpétua. Em 1995, o juiz federal Lowell Jensen revogou a condenação por causa da pouca confiabilidade das lembranças recuperadas e pela impossibilidade de serem demonstradas cientificamente, mas estipulou uma fiança de um milhão de dólares para garantir a presença acusado enquanto espera um novo julgamento.

Um fato muito curioso que comprova a alta sugestionabilidade no processo da "recuperação" da memória, foi o relato do caso de Paul Ingram. Segundo Crews, "impressionado pelo caráter condicional das confissões" (p. 144), Richard Ofshe (consultor chamado para auxiliar no caso) decidiu fazer um teste impondo uma falsa lembrança a Ingram para verificar se ele a aceitava ou não. Por incrível que possa parecer, o réu, no dia seguinte, apresentou uma confissão escrita do delito sugestionado.

Também nesta parte, a discussão das cartas enviadas à editora enriquecem muito tudo aquilo que o autor procurou descrever em seu artigo, mas novamente os remetentes focalizam muito pouco a discussão técnica dos constructos freudianos, bem como as falhas na utilização da memória recuperada pelo seu alto poder de sugestionabilidade.

Sem dúvida nenhuma, o livro é muito interessante, principalmente com a inserção das cartas escritas por críticos, e que em alguns casos, não deixam de tirar a razão de Crews quanto aos abusos de Freud e suas falhas metodológicas, mas na maioria das vezes, ao invés de discuti-las frente a visão científica, preferem fazer críticas superficiais ou sobre o 'desequilíbrio' emocional do Autor.

Por tratar de um assunto técnico, o livro é recomendado para psicólogos, profissionais afins e principalmente, para estudantes de Psicologia, que durante a graduação infelizmente raramente têm a oportunidade de conhecer o outro lado da teoria freudiana, e como aponta Crews, "um legado de absoluta escuridão conceitual" (p. 230).

Como a linguagem é clara e objetiva, e por ele estar repleto de exemplos, o livro se torna muito didático podendo ser lido por pessoas leigas interessadas nesta polêmica temática.

Por fim, vale ressaltar que a obra fornece aos leitores uma bibliografia rica e atual, que poderá servir de base para desenvolvimento de pesquisa numa área ainda pouco explorada na realidade brasileira, mas que poderia contribuir em muito para o desenvolvimento da psicologia no país.

 

 

1 Rua Joaquim Azevedo Queiróz, 44 Jardim Paineiras, CEP: 13093-433 Campinas-SP - Brasil.