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Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.5 n.2 Campinas dez. 2001

 

Sugestões Práticas

 

Quebrando tabus: uma experiência com crianças portadoras de necessidades especiais

 

Katya Luciane de Oliveira1

Universidade São Francisco

 

As sugestões aqui apresentadas decorrem de um estágio prático realizado em uma escola que cuida de crianças especiais. Digo especiais não só pela questão da deficiência mental ou por necessitarem de maior atenção e cuidado, mas também pela grande capacidade que têm para amar e pelo muito que têm a nos ensinar, expressando com tanta intensidade e espontaneidade suas emoções e sentimentos.

Embora as publicações na área de educação especial sejam vastas, pesquisas evidenciam que há carências de estudos sistemáticos sobre várias questões que carecem de maiores e melhores explicações. A proposta principal deste texto é fazer algumas considerações a respeito de tabus que, infelizmente, cercam a excepcionalidade, o que torna necessária uma rápida retomada de algumas definições de trabalho, que serão aqui utilizadas.

Em geral, crianças portadoras de deficiências são discriminadas e excluídas de uma vida social normal, pois a sociedade tende a deixar à margem aquilo que não se enquadra dentro dos procedimentos rotineiros. A deficiência mental pode ser definida como um funcionamento intelectual acentuadamente abaixo da média, existindo falhas no comportamento de adaptação do indivíduo, manifestando-se durante o período de desenvolvimento. Crianças que sofrem de deficiência mental são mais lentas que outras crianças da mesma idade, essa lentidão ocorre quando de uma falha de associação e classificação de informações, nas fases do raciocínio ou na memória.

No que se chama de excepcionalidade, em termos de deficiência mental, há graus diferentes de comprometimento, um indivíduo normal tem um quoeficiente de inteligência de escore 100, ou seja, QI 100. Os indivíduos que apresentam escores 85 menos um desvio padrão, e um QI de 70 menos dois desvios padrões, são classificados como subnormais intelectualmente e limítrofes, são capazes de um desempenho médio, se houver um programa educacional adequado. Os indivíduos que apresentam com menos dois ou três desvios padrões, ou seja, QI variando entre 55 e 70 são classificados como deficientes mentais educáveis, indivíduos abaixo de menos três desvios padrões, porém capazes de responder ao teste, são considerados dentro da faixa treinável, e no estágio realizado trabalhouse apenas com deficientes mentais educáveis e treináveis.

Os deficientes mentais educáveis são aqueles que por ter um desenvolvimento mental subnormal são incapazes de se beneficiar de forma adequada do programa de escolas regulares. Porém, possuem a capacidade de apresentar um desenvolvimento na educabilidade em assuntos acadêmicos, em um nível primário e avançado dos graus elementares. Sua adaptação social ocorre até o ponto em que possa eventualmente progredir de forma independente em sua comunidade e adequar-se ocupacionalmente, podendo sustentarse, parcial ou totalmente, quando adulto.

Os deficientes mentais treináveis são indivíduos que possuem dificuldades em aprender habilidades acadêmicas em qualquer nível funcional e, especialmente, em desenvolver comportamentos independentes. Pressupõe- se que, quando adultos, apresentem adequação vocacional satisfatória. Um indivíduo treinável é capaz de obter bons resultados na capacidade de cuidar de si mesmo, de proteger-se de perigos em seu meio social, de apresentar ajustamento em seu meio social, de ser economicamente útil, no lar ou vizinhança, ajudando em tarefas do lar ou em ambientes especiais de trabalho.

Salienta-se que a identificação de indivíduos deficientes mentais é realizada por meio de procedimentos aceitos de medição de subnormalidade intelectual e adaptação social. Para tanto, o teste individual de inteligência é usado com freqüência quando da determinação da subnormalidade.

A excepcionalidade representa um grande desafio, de uma forma geral, é difícil avaliar o grau de comprometimento envolvido, pois há várias interpretações falsas e também a evolução alcançada em algumas áreas do desenvolvimento é demasiadamente lenta. Há muitos enganos sendo cometidos, o que ressalta a importância da competência e responsabilidade do avaliador.

Minha experiência como estagiária levou à quebra de vários tabus, tais como os relatados a seguir.

1º Tabu: Crianças especiais não apresentam independência de julgamentos.

Durante o estágio eu trabalhava com vinte e quatro crianças, sendo o grupo composto por deficientes mentais treináveis e educáveis, com faixa etária de 7 a 24 anos. No primeiro dia me apresentei, dizendo que era estagiária de psicologia e expus qual era o objetivo do meu trabalho com eles e expliquei detalhadamente o projeto. Ao terminar minha exposição, um adolescente de quatorze anos levantou a mão e perguntou: “Como devemos te chamar? Devemos chamar você de professora? Respondi que não, pois eu não era professora. Ele nem deixou eu terminar de falar e perguntou: “Podemos chamar você de mãe? Porque a minha professora deixa”. Respondi que não, ele nem deixou eu terminar de falar novamente e perguntou: “Podemos te chamar de tia?” Respondi que sim, então ele falou imediatamente: “Como, se você não é irmã do meu pai ou da minha mãe?” E assim caiu por terra o primeiro tabu.

2º Tabu: Crianças especiais são dispersas e não apresentam entrosamento grupal.

O início sempre é difícil graças à falta de entrosamento entre as crianças, visto que mesmo agrupados pelo nível de deficiência (treináveis e educáveis), cada aluno vinha de uma classe diferente, e havia algumas divergências no grupo. No entanto, com o decorrer do processo foi havendo um grande interesse pelas atividades propostas e pude observar que todos já estavam suficientemente entrosados e participativos. Ao aplicar uma atividade, cuja dinâmica exigia que pintassem à mão, com tinta guache, verifiquei que uma menina não queria participar e não insisti, pois o combinado sempre foi que eles participariam das atividades se quisessem. Mas qual não foi minha surpresa quando o grupo se juntou e, através de um porta voz, foram falar para a menina pedindo para que ela participasse, pois iria ser legal. O mais interessante foi que a menina disse: “Eu não estou com vontade de participar, mas por que vocês querem eu participo”. E naquele dia aprendi mais uma lição, que crianças especiais, além de não serem dispersas, podem, também, apresentar um bom entrosamento grupal.

3º Tabu: As crianças especiais não apresentam determinação e confiança em si.

O grupo era bastante exigente; todos gostavam de elogios e de saber sobre o seu desempenho nas atividades. Assim, ao final de cada encontro, eu dava um feedback sobre cada um. Isso funcionava como um reforço positivo para que eles continuassem a participar das atividades e também contribuía para consolidar a imagem que tinham perante o grupo. Pois todos ouviam o que haviam feito de positivo na realização de determinada atividade. Em um dos encontros, a atividade proposta exigia um esforço quanto à utilização da coordenação motora fina. No grupo, todos apresentavam condições de realizar a atividade, exceto um garoto que possuía um defeito físico nas mãos, mas que lhe permitia escrever o nome e algumas outras palavras. No entanto, eu sabia que aquela tarefa iria exigir muito dele e ao explicar a atividade, distribui as folhas e fiquei observando a todos, especialmente o menino. De fato, como eu havia imaginado, enquanto os trabalhos eram desenvolvidos, ele foi ficando atrasado em relação aos colegas. Resolvi oferecer-lhe ajuda, perguntando-lhe se queria que eu segurasse sua mão e o conduzisse. Mais uma vez fui surpreendida, pois ele me olhou fixamente e disse: “Eu posso fazer sozinho e como eu demoro, tenho certeza que o meu vai ficar mais bonito do que o dos outros”.

4º Tabu: Crianças especiais não têm consciência de sua limitação.

No grupo havia algumas crianças e adolescentes que apresentavam comportamentos de liderança, entretanto, havia um garoto, de aproximadamente quatorze anos, que realmente era o líder do grupo. Ele tomava a frente em praticamente todas as atividades e freqüentemente pediam a ele que fosse o porta-voz dos outros. Tratava-se de um garoto muito comunicativo e dinâmico, seu grau de comprometimento não era muito perceptível, pois ele conseguia escrever e ler coisas básicas com pouca dificuldade. Quando eu chegava, era o primeiro a vir oferecer ajuda para arrumar as carteiras e perguntar qual era a atividade do dia. Enquanto os trabalhos eram realizados, eu costumava ficar andando pela sala e perguntando a cada um como estava se saindo. Certa vez, ao passar por ele e perguntar se estava tudo bem, ouvi como resposta: “Claro que estou, isso aqui eu consigo fazer. Eu não sei se você sabe que eu sei ler e escrever e até freqüentei a escola normal, porém tem certas coisas que na escola que eu não consigo fazer. Aqui nesta escola eu posso fazer tudo, diferente da escola normal, porque aqui eu consigo fazer toda a minha lição e também participo da oficina e lá eu consigo fazer muitas coisas bonitas. Quando eu brigo com o meu irmão ele me xinga de retardado, mas eu sei que eu não sou, porque apesar de não conseguir fazer a lição da escola normal eu consigo fazer coisas bonitas na oficina e tenho certeza que ele não consegue, nem se tentasse...”.

5º Tabu: Eu vou ensinar a crianças especiais.

De fato esse tabu é o mais abrangente, pois, muitas vezes, quando um profissional escolhe trabalhar com a área de educação especial, parte do pressuposto que vai contribuir e ensinar às crianças. Mas o que a realidade nos mostra é que, no plano das relações humanas, essas crianças têm muito a nos ensinar e nos surpreendem a cada dia. Nós, profissionais, contribuímos para o desenvolvimento cognitivo e motor dessas crianças, mas quando da interação com elas, descobrimos seu vasto mundo interior e o quanto a relação de aprendizagem poderá ser recíproca.

Minha convivência com essas crianças durou um ano todo e, durante esse tempo, a maior lição que aprendi foi que se nós conseguíssemos desenvolver nossa sensibilidade para expressar nossas emoções e sentimentos como elas o fazem, certamente seríamos pessoas mais espontâneas e verdadeira e, quem sabe, teríamos um mundo bem melhor!

 

1 Psicóloga e Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados da Universidade São Francisco.