SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número1Depressão infantil: uma contribuição para a prática educacionalEstratégias de compreensão de leitura índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.7 n.1 Campinas jun. 2003

 

ARTIGOS

 

A construção da seriação auditiva: uma análise através da metodologia clínica

 

The construction of the hearing seriation: analysis through clinical methodology

 

 

Patrícia Fernanda Carmem Kebach1

 


RESUMO

Esta pesquisa procura compreender a construção do conhecimento musical relacionado ao parâmetro sonoro altura, através da diferenciação de intervalos de notas e seriação auditiva da escala temperada. Os fundamentos teóricos encontram-se na epistemologia genética piagetiana. Para essa observação, 18 sujeitos com idade entre quatro e 12 anos foram entrevistadas através de provas de seriação baseadas no método clínico de Piaget, utilizadas como referência metodológica. Os resultados confirmam a hipótese inicial: a construção do conhecimento musical ocorre de forma homóloga aos níveis investigados pela Escola de Genebra para outros objetos de conhecimento. Além da confirmação dessa hipótese, a novidade desta pesquisa está em utilizar a metodologia clínica e uma concepção interacionista sobre a produção do conhecimento musical.

Palavras-chave: Cognição, Método clínico, Música, Seriação.


ABSTRACT

This research shall cover the construction of the musical knowledge relating to the sound parameter pitch, through the differentiation of intervals of notes and the hearing seriation of the temperate scale. The theoretical foundations are to be found in the genetic epistemology of Piaget. For this observation, 18 subjects with age between 4 and 12 years are researched through the tests of seriation based on the clinical methodology of Piaget, used like methodological reference. The results confirmed the initial hypothesis: the construction of musical knowledge occurs in a form homologous to the levels investigated by the School of Geneva for other objects of knowledge. In addition to this confirmation, the novelty of this research is in the use of the clinical methodology and of an interactionist conception concerning the production of musical knowledge.

Keywords: Musical knowledge, Clinical methodology, Hearing seriation.


 

INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa, o problema que se pretende expor é o desenvolvimento musical da criança ligado ao parâmetro sonoro altura, através da diferenciação de intervalos tonais e da seriação auditiva da escala musical temperada por crianças de quatro a 12 anos. Utiliza- se como referência metodológica, as provas de seriação criadas por Piaget e Szeminska (1972), os trabalhos práticos em epistemologia genética realizados por Bovet (1999, 2000) e também a pesquisa de Barcelo I Ginard (1988), sobre as estratégias de construção e buscas sonoras associadas à seriação da escala musical. Procura-se analisar os resultados desta pesquisa observando o tipo de abstração, segundo os conceitos de Piaget (1995) para as abstrações empírica, reflexionante, pseudo-empírica e refletida - feita pelos 18 sujeitos entrevistados durante a realização das provas clínicas propostas, e também relacionando a três níveis de desenvolvimento: pré-operatório (nível I); um nível mais avançado do pré-operatório que é chamado aqui de intuitivo (nível II), em que a criança raciocina por meio do pensamento transdutivo e operatório (nível III). A análise dos dados relacionada a esses níveis de desenvolvimento é importante para acompanhar o processo de evolução cognitiva do sujeito, enquanto a análise do tipo de abstração feita pelo sujeito na busca da solução dos problemas propostos, coloca em evidência os mecanismos profundos da construção desse conhecimento.

Os resultados confirmam a hipótese inicial: a construção do conhecimento musical ocorre de forma homóloga aos níveis investigados pela Escola de Genebra para outros objetos de conhecimento. Além da confirmação dessa hipótese, a novidade desta pesquisa está em utilizar a metodologia clínica e uma concepção interacionista sobre a produção do conhecimento musical.

As Pesquisas na Área de Música e Cognição

A epistemologia genética possui poucos estudos dedicados à análise da construção do conhecimento musical. Dentre eles, destacam-se as pesquisas francesas de Delalande (1982), Soulas (1990), Noisette (1997), Agosti-Gherban (2000) e as brasileiras de Beyer (1988, 1994, 1995), Gobbi (1999), Lazzarin (1999), Bellochio (2000) e Maffioletti (2002). Apesar de possuírem um foco teórico diferenciado, outros pesquisadores brasileiros contribuem de forma importante para a área do desenvolvimento musical por meio do estudo das mudanças paradigmáticas que vêm ocorrendo aos poucos no ensino de música (Koellreutter, 1997; Campos, 2000; Brito, 2001). Todos esses pesquisadores têm em comum o reconhecimento da interdependência existente entre organismo e meio nos processos de estruturação do pensamento. Muitos deles reconhecem a importância de se levar em conta as estruturas mentais que o sujeito possui no momento em que procura estruturar o objeto musical com o qual interage. Como diz Koellreutter (apud Brito, 2001) “é preciso aprender a apreender do aluno o que ensinar” (p. 31). Mas, de que modo se pode saber o que o sujeito conhece sobre a música para que se possa proporcionar a ele situações que o orientem e desafiem a ampliar seu conhecimento musical? Nesta pesquisa, propõe-se que o método clínico é uma ferramenta indispensável para a observação de um certo estado de desenvolvimento e da estruturação do pensamento dos sujeitos pesquisados em relação à música.

A criação de provas musicais baseadas no método clínico piagetiano para analisar o desenvolvimento cognitivo referente à música, é raramente encontrada. Nesse sentido, a formulação de provas clínicas para uma teoria geral sobre o desenvolvimento musical é bastante importante, não só para a criação de uma epistemologia genética referente especificamente à música, mas também para a construção de uma pedagogia relacional, onde o conhecimento é construído por meio da interação entre aluno e professor, entre sujeito e objeto a ser aprendido.

Procedimentos Metodológicos para a Criação, Aplicação e Observação da Prova Clínica

Para a observação da construção da escala temperada, que é o objeto desta pesquisa, criou-se uma prova clínica (Kebach, 2003) baseada nas experiências de seriação realizadas por Piaget e Szeminska (1972). Nas experiências desses autores, a metodologia concerne ao método clínico, em que o experimentador observa os aspectos do funcionamento e estruturação da mente da criança no momento em que procura organizar os objetos (nesse caso, os sons) sobre os quais age, atribuindo a eles um sentido por meio da sua ação e verbalização de seus atos. Assim, pode-se dizer que o método clínico se traduz pelo procedimento, inicialmente, de coleta de dados, por meio da proposição de determinadas tarefas e execução destas pelas crianças, em que o experimentador observa as ações e conversa livremente com a criança, a propósito da tarefa executada, para seguir seu pensamento e, posteriormente, analisa esses dados, que devem ser registrados (por meio de gravadores, vídeos, anotações etc.), a partir de uma determinada teoria.

Antes de realizar esta pesquisa, uma pesquisa exploratória foi realizada (Kebach, 2002), cujas provas foram baseadas na entrevista clínica. Procurou-se, com essa metodologia, resgatar o universo cognitivo musical espontâneo das crianças, particularmente suas formas de representação verbal. Tinha-se a hipótese de que isso não seria suficiente para compreender o pensamento da criança sobre o objeto musical, pois não foi realizada a observação do fazer. Com a entrevista, apenas foram observadas as verbalizações das crianças e, apesar da experiência ter sido dirigida com hipóteses pré-determinadas, apareceram aspectos espontâneos nas respostas, como, por exemplo, parâmetros musicais que não haviam sido sugeridos, e que as crianças já possuíam esquemas conscientes ou inconscientes para mencionar nas entrevistas (intensidade e duração, por exemplo). Encontraram-se também as expressões que as crianças usam para diferenciar as alturas das notas (grosso/ fino, alto/baixo). Essas constatações sobre o universo verbal das crianças obtidas na entrevista clínica foram indispensáveis no momento de aplicar as provas sobre o parâmetro sonoro altura, que consiste na diferenciação de sons graves e agudos.

Para realizar as experiências que serão abordadas neste artigo, utilizou-se o método clínico (a síntese entre a observação clínica e a entrevista clínica) na criação e aplicação das provas, com o intuito de verificar não somente os aspectos verbo-conceptuais dos sujeitos entrevistados, mas também suas ações concretas sobre o objeto a ser estruturado. Desse modo, foi possível verificar, então, os seguintes aspectos: as ações concretas e mentais dos sujeitos (ao compararem alturas de sons diferentes e ao construírem a seriação da escala musical) e a verbalização dessas ações.

Especificamente no campo da música, as referências metodológicas estão situadas na pesquisa de Barcelo I Ginard (1988) sobre a seriação de notas da escala musical, visando a verificação da capacidade de diferenciação dos sujeitos no que se refere ao parâmetro altura. Segundo esse autor, o modo mais corriqueiro das crianças construírem uma escala musical é através da seriação, em que comparam auditivamente o material proposto. Nos níveis inferiores de desenvolvimento, as crianças servir-se-iam do jogo de tentativas à espera de um som global definitivo para formar uma escala musical, por meio da percepção sonora, modificando a colocação das notas sucessivamente. Esse tipo de exploração é chamado pelo autor de intuição sonora. No nível das operações formais, a audição interior levaria aos intervalos, ou distâncias relativas do som, nas quais preponderam as construções da escala. Por isso, dificilmente, alguém, que não tenha uma construção musical bem sólida, conseguirá chegar a esse patamar. Portanto, o modo mais utilizado pelas crianças que Barcelo I Ginard (1988) pesquisou foi a comparação auditiva dos sons, devido ao fato de que tais sujeitos pertenciam, na sua grande maioria, à faixa etária preponderante no nível operatório concreto, ou seja, de seis/sete a 11/12 anos. Esses sujeitos também freqüentavam escolas de música. Os 18 sujeitos desta pesquisa não freqüentaram aulas de música e, apesar de pertencerem a uma faixa etária semelhante (quatro a 12 anos), e de lhes ser sugerida a construção por meio da comparação dos sons, utilizaram, preponderantemente, a intuição sonora para construírem a escala. Esse tipo de construção foi encarado como uma ação espontânea do sujeito. Como já era de se esperar, nenhum sujeito construiu sua escala por meio da audição interior.

Antes de iniciar a prova da seriação, verificou-se a capacidade de diferenciação dos sujeitos referente ao parâmetro altura, propondo a eles a oposição entre notas graves e agudas, primeiro através de intervalos tonais grandes, depois de intervalos de um tom. A variação da altura corresponde à identificação das variações de graves e agudos na música. Verificou-se que quase todas as crianças possuem essa diferenciação no que diz respeito aos intervalos grandes, mas atrapalham-se na identificação do que seria o som mais grave e o mais agudo, quando o intervalo tonal é próximo. De qualquer modo, aplicaram-se as provas, todas até o final, com os 18 sujeitos pesquisados, com a intenção de avaliar a tomada de consciência ou a ausência durante a realização das provas (Piaget, 1974).

Procurou-se sistematizar as provas já aplicadas por Barcelo I Ginard (1988), de modo a ser fiel ao método clínico, com base nas provas de seriação explicitadas nos trabalhos práticos em epistemologia genética realizados na Universidade de Genebra, no curso oferecido por Magali Bovet (1999, 2000). Segundo essa pesquisadora, nas provas de seriação, a verbalização é reduzida, pois aqui o mais importante é anotar com muita precisão as ações da criança durante suas construções e inserções: tentativas, comparações, correções, etc.

Conceitos Utilizados para a Análise dos Dados

Os sujeitos retiram as propriedades dos objetos ou da coordenação de suas ações sobre os objetos através de abstrações. Por meio de seus instrumentos de assimilação, o sujeito poderá ou não fazer relações, estabelecer significados, etc. Assim, “O processo do conhecimento está restrito ao que o sujeito pode retirar, isto é, assimilar, dos observáveis ou dos não-observáveis, num determinado momento.” (Becker, 2001 p.47).

Para se compreender os conceitos que foram utilizados na análise dos protocolos recolhidos, referentes à abstração empírica, abstração reflexionante, abstração pseudo-empírica e a abstração refletida, é importante, aqui, retomar tais conceitos. Piaget (1995) no seu livro “Abstração Reflexionante” em suas conclusões gerais, retoma, de forma sucinta, os quatro tipos de abstrações utilizadas pelos sujeitos para abstrair dos objetos ações em suas características materiais ou das coordenações das ações deles mesmos, sobre os objetos, suas propriedades: “a abstração “empírica” (empirique) tira suas informações dos objetos como tais, ou das ações do sujeito sobre suas características materiais; de modo geral, pois, dos observáveis, ao passo que a abstração “reflexionante” (réfléchissante) apóia-se sobre as coordenações das ações do sujeito, podendo estas coordenações, e o próprio processo reflexionante, permanecer inconscientes, ou dar lugar a tomadas de consciência e conceituações variadas. Quando o objeto é modificado pelas ações do sujeito e enriquecido por propriedades tiradas de suas coordenações ( p. ex., ao ordenar elementos de um conjunto), a abstração apoiada sobre tais propriedades é chamada “pseudo-empírica” (pseudo-empirique), porque, ao agir sobre o objeto e sobre seus observáveis atuais, como na abstração empírica, as constatações atingem, de fato, os produtos da coordenação das ações do sujeito: trata-se, pois, de um caso particular de abstração reflexionante e, de nenhum modo, de uma decorrência da abstração empírica. Finalmente, chamamos de abstração “refletida” (réflechie) o resultado de uma abstração reflexionante, assim que se torna consciente, e, isto, independente de seu nível” (p. 274).

Verifica-se, então que a marcha predominante na evolução dos processos cognitivos depende da abstração reflexionante, pois é esta que vai transferir para um plano superior o que foi tirado de um nível inferior da atividade desse sujeito. Essa evolução é dirigida por uma lei de equilíbrio entre as diferenciações e as integrações. Observa-se, nesse caso, que as diferenciações são resultantes do que Piaget (1995) chama de reflexionamento, característico das abstrações reflexionantes, que consiste no processo que retira de um nível inferior determinadas ligações, que são explícita ou implicitamente empregadas, ou implicadas sem serem notadas, e as transforma em objetos do pensamento do nível que chega depois. As integrações resultam das reflexões, que são reorganizações necessárias sobre esse nível posterior, enriquecido pela introdução dos novos objetos de pensamento que ainda não haviam sido considerados até o momento. A reflexão é necessariamente generalizadora devido ao fato de se apoiar sobre uma totalidade mais ampla criada pelo sujeito (Piaget, 1995 p 28).

Analisando os protocolos de modo a observar as abstrações utilizadas na realização das provas, verificase de que forma a criança realizou sua ação, isto é, se foi apoiada sobre a abstração empírica, em que a criança apenas retira as características observáveis dos objetos, ou sobre a abstração reflexionante, em que a criança consegue coordenar suas ações debruçando-se sobre si mesma e, inconsciente ou conscientemente, leva em conta essas coordenações e relações estabelecidas. Por meio da verbalização daquilo que fez, a criança poderá, ou não, apropriar-se de sua ação e re-organizar seu pensamento.

Sob essa ótica, os sujeitos do Nível I são os que se apóiam basicamente sobre simples abstrações empíricas, não coordenando suas próprias ações, por não possuir esquemas básicos de ação para significar a problemática proposta, encontrando-se, assim, no estágio pré-operatório de desenvolvimento, por não conservarem as abstrações feitas sobre o objeto.

Os sujeitos do Nível II são aqueles que estão de tal forma centrado nos observáveis do objeto, dito de outra forma, nas características perceptíveis do objeto, que se centram em apenas uma característica do objeto a ser estruturado, sem coordenar pontos de vista, não conseguindo estabelecer relações lógicas no momento em que procuram solucionar os problemas propostos, o que caracteriza o pensamento transdutivo, próprio do estágio intuitivo (fase intermediária entre o pré-operatório e o operatório), em que a criança estabelece apenas relações do particular para o particular, dentre os elementos em jogo. Frente a qualquer contra-argumento, os sujeitos desse nível de desenvolvimento não mantêm a solução correta para o problema em função da ausência de reversibilidade e generalização do conhecimento, encontrando- se, assim, no nível intermediário entre o préoperatório e o operatório, porém ainda pré-operam.

A origem da operação está no processo de interiorizar a organização das próprias ações, não nos seus efeitos (Becker, 2001). Portanto, o sujeito operatório (Nível III) é aquele que possui essa capacidade de organizar as próprias ações, ou seja, aquele que se apropria dos mecanismos íntimos de suas ações. Os exemplos desses três níveis de desenvolvimento estão explícitos na análise dos protocolos das provas clínicas sobre o parâmetro sonoro altura.

Análise dos Protocolos

Para se demonstrar de que modo foram realizadas e analisadas as provas clínicas, estão descritos aqui alguns protocolos que foram pegos como exemplo para demonstrar os níveis de desenvolvimento dos sujeitos pesquisados. Neles, as falas do experimentador estarão escritas em letras não grifadas. As falas da criança em itálico. As ações de ambos estão sempre entre parênteses. Utiliza-se, como Piaget (1995), somente as três primeiras letras do nome dos sujeitos e, logo após o nome, a idade de cada um entre parênteses.

O material utilizado para estas provas foram oito sinos, formando a escala de dó (dó grave, ré, mi, fá, sol, lá, si, e dó agudo) todos de formato idêntico, para que não houvesse a possibilidade da criança se centrar nos aspectos visuais dos sinos, e sim no som destes.

Prova para a Verificação da Diferenciação de Intervalos Tonais Grandes

Nessa prova, dos dezoito sujeitos entrevistados, apenas o sujeito ISA (4,10) pré-operou, demonstrando-se encontrar no Nível II. Nenhum sujeito respondeu de modo completamente pré-operatório (Nível I). Todos os outros, a partir dos 5 anos, responderam à diferenciação de intervalos grandes corretamente (Nível III). Essa prova consiste na diferenciação da oposição agudo X grave, através da comparação, primeiramente espontânea, depois sugerida, de intervalos distantes da escala musical.

Nível II – ISA (4,10) – Aqui, nós temos um monte de sininhos. Toca eles para você ver como eles são (a criança toca os sinos). Como é o som destes sinos? É igual...diferente...? – Diferente. – Este (toco o dó agudo) e este (toco o dó grave) são como? – Um é diferente do outro. – Eles são grossos ou finos, estes sons, ou não? Tem algum grosso e algum fino? – Eu acho que não. – Mas você me disse que eles são diferentes! Como é que eles são, então? – Hum...Grossos. – E este aqui (toco o dó grave) é grosso também ou é fino? – Grosso também.

A criança diferenciou os sinos de modo intuitivo, retirando dos objetos (sinos) suas características sonoras de modo geral, estabelecendo uma relação transdutiva, em que uma característica do objeto é pega para explicar sua totalidade, respondendo que, apesar de serem diferentes, todos são “grossos”. ISA não consegue saber o que os torna diferentes, pois não possui instrumentos suficientes de assimilação. A criança, assim, apenas percebe que existem diferenças entre os distintos sinos, porém não consegue explicá-las, justamente porque, apesar de lhe ser sugerido, não consegue diferenciar um som grave de um agudo. Eis o exemplo de resposta operatória:

Nível III – LUC (11,0) – Eu tenho estes sinos aqui e quero que você os toque para ver se eles são iguais ou diferentes. – (a criança toca os sinos) Tem uns que são um pouco mais finos e outros um pouco mais grossos. – Qual é grosso? – (toca alguns sinos e separa o dó grave) Este. – E fino? – Este (toca lá).

A criança, nesse caso, relacionou o som dos sinos sem que precisasse ser demandada sobre o fato. Utilizou- se da abstração pseudo-empírica, por meio da comparação dos sons, e chegou à conclusão (abstração refletida) de que alguns possuíam os sons mais graves e outros mais agudos. Desconhecendo essa denominação, utilizou o vocabulário espontâneo: grossos (graves) e finos (agudos), sem que lhe fosse sugerido. Confirmou seu conhecimento sobre a distinção entre graves e agudos, entregando os sinos corretamente: o dó correspondeu ao grave, entregando o sino correspondente à nota mais grave da escala e lá (um intervalo de sexta) o exemplo de uma nota mais aguda. Essa primeira operatoriedade não garante que a criança consiga seriar toda a escala. Ela apenas está estabelecendo uma relação entre dois sinos, e não, entre um e todos os outros. LUC realmente não consegue seriar a escala de modo operatório.

Prova para a Verificação da Diferenciação de Intervalo de Um Tom

Nessa prova, nenhum sujeito demonstrou ser intuitivo. Frente aos contra-argumentos, ou permaneciam no Nível I, trocando os sons (grave=fino; agudo=grosso), ou tomavam consciência (Nível III) de qual som era o grave, e qual era o agudo. Para a observação dessa diferenciação entre grave e agudo, propôs-se o intervalo de um tom apenas. A média de idade de crianças pré-operatórias ficou em torno dos 7 anos. Eis um exemplo:

Nível I – PAB (5,0) – Destes dois sinos aqui (toco o dó grave e o ré), qual é o mais grosso e qual o mais fino? – (a criança toca os sinos para comparar) Este (ré) é o mais grosso. – E este (toco o dó grave)? – É o mais fininho (com convicção). – Teve um menino que me disse que este (toco o dó grave) era o mais grosso, e este (toco o ré) era o mais fino. Ele tem razão ou não? – Não. Este (ré) é mais grosso do que aquele ali (pega o lá e toca). – Ah! Do que o anterior! Mas entre estes dois (toco novamente o dó grave e o ré), qual é o mais grosso? – Este (ré). – E este (dó grave)? – Um pouquinho mais fino.

O sujeito PAB, mesmo frente ao contra-argumento proposto, demonstra ser pré-operatório na distinção entre grave e agudo. Apesar de ter diferenciado corretamente um intervalo mais distante, ainda não construiu esquemas auditivos suficientes para diferenciar um intervalo pequeno de som. Nesse caso, embora perceba uma diferença mínima, os instrumentos de assimilação de que dispõe não são suficientes para o estabelecimento de relação operatória. Beyer (1995) sugere que possa haver alguma inversão nesse tipo de resposta, na qual a criança conserva a noção de graves e agudos de modo invertido, ou seja, as notas mais graves são tomadas pelas mais agudas e vice-versa. Nesse caso, as crianças já estariam num nível mais adiantado de desenvolvimento do pré-operatório, isto é, no intuitivo. Porém, esse não é o caso de PAB, pois ele não conservou a inversão nas provas posteriores. A média de idade dos sujeitos que operaram nessa prova ficou em torno dos 9,5 anos.

Nível III – MAU (10,1) – E entre estes dois sinos aqui (toco o dó grave e o ré) qual é o fino e qual o grosso? – Este aqui (dó grave) é o mais fino. – Mas um menino me disse que este (toco o ré) é mais fino do que esse (toco novamente o dó grave). O que tu achas? Ele tem razão, ou não? – ... (a criança pensa) – Qual é o mais grosso e qual o mais fino? (toco os dois mais uma vez) – Este (toca o dó grave) é o mais grosso e este (toca o ré) o mais fino. – Mas antes você disse o contrário? – Não (ri). Este (dó grave) é o grosso e este (ré) é o fino. – Tem certeza? – Tenho.

No exemplo acima, o sujeito MAU, tomou consciência de qual era a nota mais grave e a mais aguda, durante a realização da prova, ao ouvir várias vezes o som dos dois sinos. Esse é um caso típico de abstração pseudo-empírica, em que a criança precisa se apoiar sobre a audição do som dos sinos, para compará-los várias vezes, até obter a certeza de sua resposta. Comprovou ainda sua tomada de consciência na prova de inserção de uma nota na escala, na qual localizou corretamente o local do sino que se havia deixado de lado, no momento em que se construiu a escala temperada de modo ascendente, para que ele inserisse esse sino, completando a escala.

Inserção de Um Sino na Escala Semi-Pronta

Essa prova consistiu na introdução, pela criança, de uma nota que foi retirada da escala, em que o material utilizado foram também os sinos, dispostos em uma fileira, do mais grave ao mais agudo, cujos espaços visuais entre eles deveriam ser iguais para que a criança não tentasse adivinhar visualmente o lugar correto do sino retirado.

Os sujeitos pré-operatórios procuraram o lugar do sino visualmente, tentando achar alguma diferença entre os espaços deixados entre os sinos. Outros não conseguiram comparar o som da nota que foi retirada com os demais sinos.

Nível I – JES (7,3) – Vira de costas que eu vou montar os sinos do jeito que eu acho que fica bom do mais fino ao mais grosso (monto a escala e deixo o fáde lado). Pode olhar. Aqui está do mais grosso ao mais fino, e eu quero que você encontre o lugar certo deste sino (fá) entre os outros, para que a minha fileira continue do mais grosso ao mais fino. – Tá (toca o fá e coloca depois do si). – Por que você escolheu este lugar para ele? – Porque eu acho que ele vai aí. – Como é que você sabe? – ... – Então, vamos tocar todos para ver se está certo (toco todos). Está certo aí? – ... – Como é este (si), em relação a este (fá)? É mais grosso ou mais fino? – É este aqui (si) o mais fino. – Eu disse para você deixar do mais grosso ao mais fino. Se este (si) é fino e este (fá) é grosso, ele está correto aqui? – Não. – Então, procura um lugar para ele. Pode tocar os outros. – (coloca depois do dó sem fazer comparações, simplesmente olhando) – Como é que você fez para saber que era aí? – (a criança ri) – Você pode mexer neles para comparar. – (toca todos) – Você acha que está certo aí, ou não? – Acho que sim.

O sujeito JES, apesar de lhe ser sugerida a comparação auditiva, e de responder corretamente que si é mais agudo que fá, centrou-se sobre as características visuais dos sinos, procurando empiricamente o lugar correto para a nota, ou seja, por meio de suas percepções visuais. JES faz, portanto, uma leitura sem nenhuma compreensão dos fatos. Entre esse tipo de leitura e o nível de compreensão, através da descoberta da razão para o lugar adequado do sino, existe uma etapa intermediária. Nessa etapa (Nível II) , a criança sabe de que modo deve procurar (via comparação dos sinos), porém resta encontrar o lugar correto. O sujeito intuitivo aproxima-se muito do lugar correto da nota na escala, mas não possui esquemas suficientes para diferenciar intervalos pequenos. No caso do exemplo abaixo, a diferença (entre mi e fá) é de apenas meio tom.

Nível II – MIC (10,8) – Vou fazer a minha carreira e vou pedir para você colocar um sino no meio dos outros (monto a escala sem o mi). Pode virar. Aqui está do mais grosso ao mais fino. Onde este sino deve ser colocado, para que permaneça assim, do mais grosso ao mais fino? (entrego o sino para a criança) – (toca várias vezes o mi e tenta adivinhar visualmente o lugar correto) – Você pode escutar o som dos outros sinos, não precisa adivinhar! – (toca todos e coloca depois de fá) – (toco toda a seqüência) Está certo neste lugar, ou não? – Está. – Como é este (mi) em relação a este (fá)? – Um pouquinho mais fino.

A percepção está presente desde o princípio dessa prova, no exemplo acima. MIC procura o lugar do sinoprimeiramente de modo visual. Depois, quando lhe é sugerido um outro modo de busca (escutar os sons), aproxima-se muito da resposta correta, comparando o som do sino que lhe foi entregue com os outros (abstração reflexionante/pseudo-empírica), mas é traída novamente por sua percepção, desta vez, auditiva, por não possuir esquemas suficientes de diferenciação de intervalos pequenos (nesse caso, de apenas meio tom).

Nessa prova, muitas crianças foram operatórias. A média de idade deste nível, foi 9,5. A hipótese para esse fato é a de que houve maior facilidade de comparação dos sons, tendo em vista que a escala já se encontrava quase pronta (apenas faltando uma nota). A relação de uma nota com todas as outras já dispostas de modo correto levou as crianças operatórias ao êxito através de abstrações pseudo-empíricas, em que, no caso operatório, foi necessário fazer a comparação dessa nota com todas as outras.

Nível III – CAR (11,1) – Vou montar a minha escala e tirar um sino. Vira de costas (monto e tiro o mi). Pode olhar. Coloca este sino no lugar certo para que eles continuem do mais grosso ao mais fino. – (compara o mi com cada um e pára no fá, colocando mi no local certo, antes do fá) – Como é que tu sabes que ele vai aí? – Porque eu comparei ele com os outros.

O sujeito CAR conseguiu apropriar-se de sua ação de modo consciente. Isso fica claro quando representa verbalmente sua ação ao final da prova. Encontra-se aí um exemplo de abstração refletida sobre o processo de construção de seriação.

O objetivo dessa prova foi o de fazer com que as crianças pré-operatórias e intuitivas pudessem ouvir a escala temperada, mesmo que incompleta (faltando uma nota), procurando tornar a tarefa de seriação um pouco mais acessível, na medida em que fosse sugerida uma sistemática de organização dos sinos. Porém, isso não ocorreu. Piaget (1995) diz que a abstração, ainda que baseada sobre as ações de outra pessoa “está longe de constituir um processo simples, mesmo quando estas ações são simplesmente concernentes à ordem constitutiva das séries.” (p.161). Embora alguns sujeitos tenham conseguido realizar a tarefa de introduzir apenas um sino na escala de modo operatório, na hora da seriação ascendente e descendente, o único sujeito que operou completamente foi GAB (6,2). Esse fato comprova que é preciso que a própria criança construa a relação entre os intervalos, por meio da apropriação de suas ações, ou seja, da coordenação das mesmas.

Apenas a escuta (passiva) da escala pronta não é suficiente para sua construção. O conhecimento não é adquirido por meio dos órgãos dos sentidos (nesse caso, a audição). Ele é uma construção por meio da interação do sujeito com o objeto. A relação entre os intervalos da escala, portanto, é uma complexa construção que exige esquemas de assimilação para a tarefa de organização dos eventos sonoros. A noção de escala, mesmo que seja construída com hipóteses pré-operatórias do próprio sujeito, é, segundo Beyer (1988), o pré-requisito para a construção, ainda que intuitiva, da escala temperada.

Seriação Ascendente da Escala

Logo após passarem pelas etapas de diferenciação entre sons graves e agudos, aplicou-se em todos os sujeitos, a prova de seriação da escala de dó grave a dó agudo (uma oitava). A prova consistiu na organização dos sinos, de modo a formarem a escala de dó.

Nível I – VIN (7,6) – Quero que você arrume todos estes sinos do mais grosso até o mais fino, todos em uma fileira. – (procura os sinos ouvindo os sons sem comparar uns com os outros) Pronto! Estes aqui são os finos, estes os grossos e estes os normais (aponta para cada separação que fez, pois agrupou os sinos em dois conjuntos de três sinos e um de dois). – Como é que você sabe que estes (aponto para cada grupo) são mais finos, estes grossos e estes normais? – Por causa que eu toquei. – Vamos ver como você arrumou, então (começo pelo grupo que a criança denominou de mais finos: ré, mi, dó grave; depois os que a criança denominou de mais grossos: sol, fá, lá; finalmente os denominados de normais: si, dó agudo). Então, você arrumou do mais grosso ao mais fino? – Sim. – E se fosse para colocar um ao lado do outro, todos em uma só carreirinha, como é que você organizaria? – Eu ía... – Faz, então, um do lado do outro. – (ele organiza na vertical os sinos dois a dois) – Vamos ver como ficou (toco cada dupla: dó grave/sol; mi/fá; ré/lá; dó agudo/si) – Estes primeiros aqui parecem com o som da campainha!

Nesse primeiro nível, fica demonstrada uma atitude inicial, na qual a criança procura ordenar um dos sinos, sem compará-lo ao conjunto dos outros, como se não devesse seguir uma direção estável na ordem de relação dos termos, nem auditiva e nem mesmo visual, procurando fazer somente pequenos agrupamentos. Alguns vão simplesmente colocando um sino ao lado do outro, como foi o caso de VIN, sem sequer ouvi-los. Esses últimos, apesar da similaridade dos sinos, buscam encontrar características visuais de diferenciação para arranjá-los. Os sujeitos pré-operatórios fazem, assim, apenas abstrações empíricas no momento de construírem suas seriações, buscando as informações nas próprias percepções sobre o objeto a ser estruturado.

No nível intuitivo, que é considerado também pré-operatório, apesar de estar mais próximo da operatoriedade, as crianças servem-se do jogo de tentativas de comparações globais à espera de uma resolução definitiva ou do som definitivo global, como sugere Barcelo I Ginard (1988), para construírem suas escalas. Estão centrados ainda na percepção sonora global, modificando a colocação das notas sucessivamente, porém de modo não completamente pré-operatório, pois passam dos julgamentos pré-relativos à seriação empírica.

Estão centrados na percepção sonora global, modificando a colocação das notas sucessivamente e não conseguem, assim, obter êxito na construção da escala. Encontram um procedimento que consiste em construir a escala tendo em conta as extremidades (que nem sempre estão corretas, mas são percebidas como tais), sem conseguir relacionar os elementos entre elas, que garantiriam uma progressão constante operatória. Dessa forma, tal procedimento toma o lugar dos sistemas de relações, pelas simples figura perceptiva/intuitiva do conjunto, sem que a criança consiga classificar e comparar os elementos em jogo de modo coerente (Piaget & Szeminska, 1972).

diferenciação das alturas de apenas dois sinos) – Hum...Eu acho que eu troquei... – Então, você acha que o correto é que este (dó grave) é o mais... – Fino. – E este (toco o dó agudo)... – Mais grosso. – Então, a fileira fica como? – Assim (toca os sinos sem trocar a ordem em que havia organizado anteriormente: fá, sol, si, mi, ré, dó grave, lá, dó agudo).

Nesse exemplo do estágio intuitivo, a criança inicialmente relaciona os sinos, utilizando uma abstração pseudoempírica (ficando implícita a abstração reflexionante que está sempre presente nas abstrações pseudo-empíricas e não nas empíricas) para separar os sons mais agudos dos mais graves, mas que não persiste quando a criança necessita fazer comparações mais específicas de modo a organizar todos os sinos em uma seqüência coerente. A partir daí, apóia-se sobre abstrações empíricas. Como acontece corriqueiramente, denomina de forma diversificada o parâmetro altura (“Este está mais forte...”), o que poderia significar uma confusão entre parâmetros (estaria a criança referindo-se à intensidade do som?), o que demonstra uma falta de diferenciação das diferentes alturas das notas e também da altura em relação aos outros parâmetros do som. Acaba negando as primeiras relações operatórias feitas nas outras provas, através do desequilíbrio causado pelo novo desafio, para trocar a denominação: os finos são associados aos graves, e os grossos, aos agudos. Essa não-conservação de sua própria relação estabelecida anteriormente demonstra o caráter irreversível da estruturação atual; portanto, a não-generalização desse conhecimento, em função da falta de esquemas de assimilação para a organização dessa estrutura mais complexa.

O caso atípico GAB é o único exemplo do estágio operatório.

Nível III – GAB (6,2) – Agora, eu quero que você arrume do mais grosso ao mais fino, todos os sinos. – (a criança faz comparações de todos os sinos, separa-os por suas alturas e depois vai pegando pares para comparar, organiza a fileira buscando os sinos através da comparação com o último que enfileirou) – Vamos ver como ficou (toco sua fileira de sinos): dó grave, ré, mi, fá, si, lá, sol, dó agudo. Está tudo certo? Está do mais grosso ao mais fino? – Só tem dois que estão meio... – Então, tenta corrigir o que pode estar errado. – (coloca o sol e o si no lugar correto) – (toco a seqüência) Agora, deu? – Sim (convicta).

GAB faz a comparação auditiva de todos os sons para construir a escala de modo operatório, tanto de modo ascendente, quanto descendente. Essa ação do sujeito sobre os objetos retirando deles as características de relação entre uns e outros, ou seja, a apropriação não só das características dos objetos, mas das ações que o sujeito exerceu sobre eles ao relacioná-los é típica da abstração reflexionante. A criança apoiou-se sobre abstrações pseudo-empíricas do início até o final da prova. Para fazer as correções necessárias precisou ouvir os sinos mais de uma vez. Enquanto, no nível intuitivo (Nível II), as crianças consideram os sinos como uma espécie de elementos estranhos uns aos outros, comparando-os apenas com uma globalidade sonora, GAB reage de modo contrário, comparando-os, medindo auditivamente a distância dos intervalos e os situando, tendo em conta simultaneamente as relações “mais agudo do que o anterior” e “mais grave do que o seguinte”. Isso demonstra uma grande compreensão em relação às ordenações auditivas dos intervalos.

Apesar da seriação perfeita, quando pergunto a GAB o que há de semelhante nas coisas que fez, a criança responde: “Não tem nada de parecido”. Esse fato demonstra a inconsciência do processo de abstração reflexionante realizada pelo sujeito. Sua inconsciência fica clara também ao dar a resposta à questão sobre o método utilizado para construir a escala: “Estou prestando a atenção”. Essas respostas são típicas das operações concretas. Ou seja, as construções são feitas com base em abstração pseudo-empíricas, na medida em que a criança compara os sons e os relaciona de modo operatório, mas não possui apropriação consciente da organização de suas ações (abstração refletida). Não obstante essa falta de consciência de seu processo de construção, GAB não generaliza o processo de diferenciação dos sons somente por abstrações empíricas, visto que essa generalização é apenas extensiva e consiste em encontrar em novos objetos uma propriedade que já exista neles, mas que é semelhante àquela que já observou em outros (por exemplo, o timbre, quando o sujeito compara o som dos sinos ao som de uma campainha). Ela generaliza esse conhecimento pela reversibilidade existente em suas operações concretas. Mesmo que o sujeito GAB não tenha atingido o nível do raciocínio sobre enunciados verbais (operações formais), sua lógica está apoiada sobre os objetos manipuláveis (operações concretas), o que implica uma lógica de classes. Sua generalização é feita principalmente pelas abstrações reflexionantes, que consistem em introduzir, em novos objetos, propriedades que eles não possuíam (no caso, a organização via seriação, na diferenciação entre graves e agudos), seja porque são tiradas das construções de níveis precedentes, seja, sobretudo, porque conseguem reorganizar e construir novas formas que produzem novos conteúdos. Desse modo, pode-se dizer que a criação de novidades existente no processo de seriação da escala consiste na realização de possibilidades abertas de novas criações posteriores, por meio da construções de níveis precedentes.

Para verificar um grau mais elevado de reversibilidade do todo (escala completa) propôs-se a todos os sujeitos, ao final das provas, que organizassem a escala de modo descendente, ou seja, do sino mais agudo até o mais grave (dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó grave). Como era de se esperar, também nessa prova, a reversibilidade completa da seriação só ocorreu no sujeito que operou na seriação ascendente.

 

CONCLUSÕES

Com base nas conclusões gerais desta pesquisa, o quadro de classificação por nível de desenvolvimento de todos os sujeitos pesquisados pode ser observado no Quadro 1.

 

 

A construção auditiva em relação ao espaço existente entre duas notas (intervalo tonal) é bem mais complexa do que a construção visual, por exemplo, quando é necessário comparar o tamanho de dois pequenos bastões para a seriação visual de uma série, na qual existem vários bastões de diferentes tamanhos que devem ser organizados do menor ao maior, segundo a prova de Piaget e Szeminska (1972). A diferença de tamanho de cada bastão é sempre a mesma, enquanto a diferença de intervalos é de meio tom entre o mi e o fá e o si e o dó agudo, e, entre as outras notas, a diferença é de um tom. Portanto, a medição do espaço via audição é algo bem mais complexo, já que, para comparar dois bastões, a criança coloca um ao lado do outro e consegue observar os objetos em sua concretude. Já dois sons devem ser comparados mentalmente logo após suas execuções sucessivas, e não simultâneas, pois se corre o risco de a criança não conseguir diferenciar um do outro se forem tocados ao mesmo tempo. Assim que é executado, portanto, o som se esvai, e a criança permanece apenas com uma imagem mental deste. Sobre isso, Maffioletti (2002) observa que “...a transformação de uma propriedade sonora só pode ser percebida, com relação a um modelo previamente apresentado. O período de tempo entre a apresentação de um modelo e a indagação sobre sua eventual modificação faz incidir aspectos referentes à memória musical. No caso da apresentação do modelo, seguida de sua modificação, o tempo de concentração auditiva exigido poderá interferir nas respostas” (p. 107).

Para que a noção de escala seja construída, é necessária uma interação, tanto qualitativa, quanto quantitativa com o objeto musical, que garanta a construção de esquemas mentais de assimilação, possibilitando ao sujeito uma memória dos intervalos existentes na escala. Essa é uma aprendizagem complexa que não deve ser negligenciada em função de outras que devem ocorrer posteriormente a esta, como, por exemplo, a alfabetização musical. A noção dos intervalos é um conhecimento básico para a construção do objeto musical, assim como o é a noção de duração dos sons. Assim, “a aprendizagem musical, como qualquer outra, envolve conhecimentos que têm sua base na noção de conservação” (Maffioletti, 2002 p. 106). Nota-se, assim, a importância da conservação das relações existentes entre os intervalos da escala temperada para a generalização deste conhecimento.

Encontrou-se uma décalage (defasagem) bastante grande na seriação auditiva em relação à seriação visual sugerida por Piaget e Szeminska (1972). Na seriação visual, as idades médias de cada estágio de desenvolvimento acompanham as outras tantas provas aplicadas pelos pesquisadores construtivistas. Segundo Piaget (1990), o estágio pré-operatório é encontrado entre as idades de dois/três anos e seis/sete anos (insere-se aqui também o estágio intuitivo). O estágio operatório concreto compreende, de modo geral, as idades que vão dos sete/oito anos até 11/12, quando começam as operações formais.

Os resultados desta pesquisa também foram diferentes dos resultados obtidos por Barcelo I Ginard (1988), tendo em vista que este autor aplicou as provas em crianças que cursavam aulas de música, ou seja, interagiam freqüentemente com o objeto musical e possuíam idades entre oito e 10 anos. O autor afirma que “todos los niños poseían la noción seriativa musical: no han tenido dificultad alguna para conceptuar los sonidos que han escuchado como una colección de elementos organizados mediante diferencias sucesivas” (Barcelo I Ginard, 1988 p. 108). Porém, o mesmo não ocorreu nesta pesquisa. É importante lembrar, aqui, que nenhum dos sujeitos entrevistados estava freqüentando aulas de música durante a realização das provas, para que fosse observado o conhecimento espontâneo dos mesmos sobre o objeto em jogo.

A média final das idades que foi encontrada para os estágios que caracterizaram os resultados desta pesquisa foi a seguinte: as crianças responderam às perguntas de todas as provas de modo pré-operatório até mais ou menos sete anos. A média de idade para as crianças que responderam de modo intuitivo ficou em oito anos e meio. A média geral para o nível operatório (no qual ele apareceu, ou seja, na diferenciação entre graves e agudos e na inserção de um sino na escala já pronta, com exceção do sujeito atípico) ficou em nove anos e meio. As hipóteses sobre esses dados são as seguintes: em primeiro lugar, talvez o número de crianças entrevistadas não tenha sido suficiente para proporcionar a noção de uma média de idades mais específica. Contudo, o mais importante talvez seja a complexidade do problema: as crianças atingem o nível operatório em média aos nove anos e meio em provas mais simples, em que o sujeito deve operar com um ou dois sinos; e ficam no nível intuitivo (intermediário entre o pré-operatório e o operatório, porém ainda pré-operando), nas provas de seriação total, que são mais complexas, pois a ação do sujeito ocorre através da comparação de vários sinos simultaneamente. A complexidade talvez explique o deslocamento do nível operatório para o intuitivo.

Procurando compreender o que pode ter ocorrido com o sujeito atípico, conversou-se com a família de GAB (6,2), para ver o grau de sua interação com o objeto musical dentro de seu lar. Os pais dessa criança possuem um grande conhecimento musical e incentivam a filha a participar das atividades em família. Tocam e cantam em casa e na igreja, pois são pastores. GAB, portanto, interage constantemente com o objeto musical. Outro sujeito que chamou a atenção foi TAI (7,10). Essa menina se aproximou muito da resolução de todos os problemas propostos. Na seriação, tanto ascendente quanto descendente, trocou apenas algumas notas. Entrevistou-se também a mãe da menina para obter maiores informações a seu respeito. Ela realmente não participou de nenhuma aula de música, como havia informado, mas seu passatempo predileto era cantar karaoke (cantar com play-back), a ponto de ganhar concursos do gênero. Encontra-se aí uma enorme interação deste sujeito com o objeto musical, e seu interesse pela música.

Enfim, os resultados das provas estão assim configurados: o nível de interação dos sujeitos com o objeto musical foi o que permitiu a resolução de problemas complexos, como a seriação completa ou semicompleta da escala. Mais do que conteúdo específico (música de Igreja ou karaoke), o que parece relevante são os esquemas de assimilação que a criança possui e seu interesse (desejo, necessidade) em assimilar o objeto musical para que possa ampliar seu conhecimento a respeito.

Conclui-se, dessa forma, que a música é um objeto constituído pela ação humana que se caracteriza pelo atravessamento das estruturas lógico-formais estudadas por Piaget (1995). Assim, confirma-se a hipótese de que a construção do conhecimento musical ocorre da mesma forma que os níveis investigados pela Escola de Genebra para outros objetos de conhecimento.

 

REFERÊNCIAS

Agosti-Gherban, C. (2000). L’éveil musical: une pédagogie évolutive. Paris: L’Harmattan.

Barcelo I Ginard, B. (1988). Psicologia de la conducta musical en el niño. Palma: Universitat de les illes Balears.        [ Links ]

Bellochio, C. R. (2000). A educação musical nas séries iniciais do ensino fundamental: olhando e construindo junto às práticas cotidianas do professor. Porto Alegre: Tese de Doutorado – UFRGS. Rio Grande do Sul.

Beyer, E. (1988). A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino de música, a partir da teoria de Piaget. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado - UFRGS. Rio Grande do Sul.        [ Links ]

Beyer, E. (1994/1995) A construção de conceitos musicais no indivíduo: perspectivas para a educação musical. Em Pauta, 9/10, 22-31.         [ Links ]

Beyer, E. (1995) Os múltiplos desenvolvimentos cognitivomusicais e sua influência sobre a educação musical. Revista da ABEM, 2 (2), 53-67.         [ Links ]

Becker, F. (2001). Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Bovet, M. (1999/2000). Travaux pratiques de psychologie genetique. Genève: Faculté de psychologie et des sciences de l’éducation - Université de Genève.

Brito, T. A. (2001). Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peirópolis.         [ Links ]

Campos, M. C. (2000). A educação musical e o novo paradigma. Rio de Janeiro: Enelivros.

Delalande, F. (1982). Vers une psycho-musicologie. Em C. F. Delalande, & E. Dumaurier L’enfant du sonore au musical (pp. 155-178). Paris: INA GRM,

Buchet Chastel. Gobbi, V. (1999). A educação estética através da apreciação musical: uma experiência. Dissertação de Mestrado - Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo.

Kebach, P. F. C. (2002). A entrevista clínica piagetiana na verificação das construções representativas dos parâmetros do som pelas crianças. Em F. Becker (Org.) Função simbólica e aprendizagens (pp. 95-118). Pelotas: Educat.

Kebach, P. F. C. (2003). A construção do conhecimento musical: um estudo através do método clínico. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado - UFRGS. Rio Grande do Sul.

Koellreutter, H. J. (1997). O ensino da música num mundo modificado. Em C. Kater. (Org.), Educação musical: Cadernos de estudo (n. 6 pp. 53-59). Horizonte: Atravez / EMUFMG/FEA/FAPEMIG.

Lazzarin, L. F. (1999). Ouvir música com significado: um desafio possível. Em E. Beyer (Org.), Idéias em Educação Musical (pp. 74-90). Porto Alegre: Mediação.

Maffioletti, L. (2002). Conhecimento e aprendizagem musical. Em F. Becker (Org.), Aprendizagem e conhecimento escolar (pp. 97-112). Pelotas: EDUCAT.

Noisette, C. (1997). L’enfant, le geste et le son. Paris: Cité de la Musique, Centre de Ressources Musicales et Dance.

Piaget, J. (1974). La prise de conscience. Paris: Presses Universitaires de France.

Piaget, J. (1990). Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes.

Piaget, J. (1995). Abstração refelxionante: relações lógicoaritméticas e ordem das relações espaciais. Porto Alegre: Artes Médicas.

Piaget, J., & Szeminska, A. (1972). La genèse du nombre. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé. (Originale 1941).

Soulas, B. (1990). La construction du sens musical. Les sciences de l’éducation, numero spécial. Education musicale et psychologie de la musique, 3-4, 145-166.

 

Recebido em: 06/09/02
Revisado em: 29/10/02
Aprovado em: 01/07/03

 

1 Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS.