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Psicologia Escolar e Educacional

Print version ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. vol.7 no.2 Campinas Dec. 2003

 

ARTIGOS

 

Família, escola e a dificuldade de aprendizagem: intervindo sistemicamente

 

Family, school and learning difficulties: systemically intervention

 

Edla Grisard Caldeira de Andrada1

Universidade Federal de Santa Catarina.

 


 

RESUMO

Refletindo acerca do papel do psicólogo escolar, este artigo apresenta uma intervenção sistêmica em uma das escolas do município de São José, Santa Catarina. Partindo da teoria sistêmica e da psicologia histórico-cultural, considerou-se a necessidade de ampliar a visão de “indivíduo dotado de problemas” para o entendimento dos sistemas diretos no qual o aluno vive: família e escola. Assim, famílias, professores e alunos participaram de alguns encontros com a psicóloga a fim de criar outros significados para a dificuldade apresentada na escola. O objetivo das intervenções foi circular a responsabilidade do “problema” entre os membros que participaram dos encontros. O artigo possibilita aos especialistas em educação novas maneiras de intervir nas escolas sem estigmatizar ou rotular o aluno.

Palavras-chave: Intervenção sistêmica, Dificuldade de aprendizagem, Relação famílias-escola.


 

ABSTRACT

Thinking about the role of the school psychologist, this article presents a systemic intervention in one of the schools of São José, Santa Catarina. Based on the systemic theory and the historical-cultural psychology, it was considered the necessity of amplifying the view of “problem child” to the understanding of the systems where the child directly lives: family and school. Therefore, families, teachers and students took part in some meetings with the psychologist in order to create other meanings to the difficulty presented at school. The objective of the interventions was to circulate the responsibility of the “problem” among the members who took part in the meeting. The article makes it possible to the specialists in education to think of new ways of intervention without stigmatize the student.

Keywords: Systemic interventions, Learning difficulties, Family-school relations.


 

 

INTRODUÇÃO

O esse município no qual atuei, em Santa Catarina, diferencia-se da maioria dos municípios brasileiros por apresentar em seu quadro de funcionários o cargo de Psicólogo na Educação. Em 2001, prestei concurso para a Secretaria da Educação e Cultura sendo lotada em uma das Escolas da Rede como Psicóloga, compartilhando meu trabalho na Secretaria com quatro psicólogos contratados em caráter temporário. Como a demanda é grande, muitas escolas, e o número de psicólogos pequeno, em 2002 acabei dividindo minha carga horária em três escolas diferentes e aqui relato parte do trabalho feito em uma delas junto às famílias e professores de alunos apontados pela equipe pedagógica e pelos próprios professores como “alunos problema” ou “com dificuldade de aprendizagem”.

A escola em questão foi inaugurada em março de 2002 e tem uma estrutura privilegiada, em se tratando de escolas públicas. Conta com laboratório de informática, duas salas de laboratório de ciências totalmente equipado, incluindo mini laboratórios móveis para o professor utilizar em outros lugares da escola. Além disso, a escola tem sala de dança e anfiteatro, este ainda em construção.

Importante ressaltar que não é só o espaço físico que ainda está em construção, mas também o Projeto Político Pedagógico. A própria equipe escolar também está em formação, visto que em 2002 os professores e funcionários eram em sua maioria contratados, somente alguns poucos já estavam efetivados na Rede Municipal de ensino. É, portanto, uma escola de história recente, ainda sem uma visão clara do perfil de seus alunos e professores.

Foi neste cenário em construção que propus um trabalho junto às famílias e professores dos alunos apontados com dificuldade, procurando refletir com a equipe pedagógica (direção e orientação pedagógica), assim como junto com os professores e as famílias as funções que tais dificuldades poderiam estar exercendo na escola e/ou nas famílias, possibilitando ao aluno novas maneiras de estar nos determinados sistemas.

Entendendo a família e a escola como sistemas em desenvolvimento, que contém o sujeito também em desenvolvimento, relaciono neste artigo conceitos de dinâmica familiar com as dificuldades de aprendizagem relatadas pela equipe pedagógica e professores. O objetivo foi de resignificar o comportamento “desviante” do aluno na escola, ressaltando suas potencialidades e possibilidades, assim como de ampliar a visão de “indivíduo dotado de problemas”, criando junto com professores, alunos e famílias um novo significado ao termo “dificuldade de aprendizagem”.

Para a compreensão dos casos aqui relacionados me fundamento na psicologia histórico-cultural, referenciada no pensamento de Vygotsky (1983) e no paradigma sistêmico. Tal escolha epistemológica deve-se ao fato de ambas teorias considerarem o sujeito no seu meio social, contextualizando-o no tempo e no lugar, partindo do fundamental princípio acerca da formação social do ser humano.

Escolho Vygotsky (1983), mais especificamente, por estudar a formação dos processos psíquico-superiores (como memória voluntária, atenção voluntária, etc) relacionando-os com a atividade social, necessariamente mediada pelos muitos outros com os quais convivemos. Vygotsky (1998) em sua teoria da gênese e desenvolvimento do psiquismo humano apresenta o processo de significação como essencial ao desenvolvimento humano, sendo este definido como “um processo dialético, marcado por etapas qualitativamente diferentes, determinadas pela atividade mediada, que é justamente a chave desse processo” (Andrada, 2001, p.20).

Trabalho com o paradigma sistêmico por compreender o funcionamento e a dinâmica dos sistemas humanos, seja ele uma família, uma empresa, uma sala de aula, enfim, uma escola. Focalizando a comunicação, as fronteiras entre as partes do sistema, a formação de um sintoma e sua função no sistema, o ciclo de vida familiar, entre outros conceitos importantes, a teoria sistêmica possibilita uma nova visão acerca dos problemas, inclusive acerca das dificuldades de aprendizagem. Reconhecendo que o paradigma sistêmico ultrapassa o paradigma linear de causa e efeito onde “um aluno não aprende porque é deficiente”, o significado e o entendimento que o sistema escolar dá à dificuldade de aprendizagem podem ser transformados quando professores e pedagogos se colocam como sujeitos que também constroem e mantém o problema. Consideramse, portanto, o contexto e as relações estabelecidas com esse educando, assim como a significação acerca do que se mostra ser o “problema de aprendizagem”.

 

Teorias de apoio

Entendendo desenvolvimento humano como um processo Bronfrenbrenner (1994) sugere o modelo PPCT, ou seja, pessoa, processo, contexto e tempo. Segundo este autor, a pessoa se desenvolve através de processos proximais, que são interações que acontecem nos contextos ou sistemas diretos onde o sujeito faz parte, chamados de microssistemas, assim como nos outros sistemas que indiretamente influenciam a vida do sujeito. As interações configuram-se então como o motor do desenvolvimento (Tugde, Gray & Hogan, 1997).

De maneira semelhante, Vygotsky (1981) defende a idéia de que os outros têm fundamental papel no desenvolvimento de qualquer pessoa, uma vez que nós só nos desenvolvemos através das interações estabelecidas com os outros, sendo que estas interações estão carregadas de significados socialmente construídos. Assim, “O processo de significação é destacado por Vygotski (1998) em sua teoria da gênese e desenvolvimento do psiquismo humano, posto que, via atividade em contextos sociais específicos, o que é apropriado pelo sujeito vem a ser não a realidade em si, mas o que esta significa tanto para os sujeitos em relação quanto para cada um em particular”(Andrada & Zanella, 2002, p.128).

Pode-se inferir, portanto, que aquilo que professora significa como problema de aprendizagem ou de comportamento é fruto das suas experiências prévias e apropriações geradas na suas interações nos sistemas em que vive e viveu ao longo de sua história. Dessa forma, sendo sempre uma significação construída, pode ser reestruturada ou reenquadrada.

Assim como os significados construídos podem ser transformados, o modelo de Bronfrenbrenner demonstra que os sistemas movem-se através do tempo e também se modificam. Isso acontece não em uma perspectiva linear, cronológica, mas em uma perspectiva de ciclos. Sendo assim, o conceito de ciclos está associado ao conceito de desenvolvimento, movimento, crescimento, ordenação, etapas. Exemplificando esse movimento no sistema familiar, Duque (1996) afirma que “desde que se constituem, por meio da união de um casal, as famílias passam por um certo número de fases evolutivas naturais que se sucedem ao longo de um contínuo, o qual denominamos ciclo vital”. (p.78)

Carter e McGoldrick (1995) classificam 6 fases evolutivas na vida da família: o jovem solteiro; o casamento; famílias com filhos pequenos; famílias com adolescentes; famílias no meio da vida e famílias no estágio tardio da vida. Em cada estágio existem processos emocionais implícitos que exigem mudanças no status da família para que esta prossiga se desenvolvendo.

A formação de um sintoma2 acontece normalmente nas passagens de estágios, pois o nível de estresse familiar, segundo Carte e McGoldrick (1995) “é geralmente maior nos pontos de transição de um estágio para o outro no processo de desenvolvimento familiar” (p.8). O estresse, porém, pode também ser externo (uma mudança social, política). Para Papp (1992) o aparecimento de um sintoma pode ser ocasionado de diversas formas, na concepção de Papp (1992) “Por uma mudança em um dos sistemas mais amplos nos quais a família existe, tais como o sistema social, político, cultural e educacional (...) ou o evento precipitador pode vir de dentro da família como uma reação a alguma ocorrência do ciclo de vida (morte, nascimento, etc)”. (p.24)

De qualquer forma, sintoma e sistema estão conectados, servindo um ao outro. Se a origem está fora da família, sua permanência indica que está exercendo alguma função dentro da família, para que alguma transação permaneça ou para que a família evolua no seu ciclo vital. Ao considerarmos o ciclo da família podemos perceber que processos de transição são geralmente acompanhados de muita ansiedade, podendo aparecer sintomas como forma de dominar a crise. Para Duque (1996) “a crise é resultado do sofrimento acarretado pela necessidade de mudar e se define (...) por seu caráter transitório. Na maioria das vezes, os sintomas desaparecem com o tempo sem que seja necessária intervenção terapêutica. Outras vezes, a intervenção terapêutica se faz necessária para que a família adquira uma nova compreensão e significação do problema apresentado por seus componentes”. (p.84) Pensando no sistema escola, se a crise é resultado da necessidade de mudar, é possível entender um problema na escola como uma necessidade de mudança nas interações do sistema. Assim, a criação de novos significados para o problema apresentado é o que objetiva um trabalho na escola cujo ponto de partida é o pensamento sistêmico.

Tal pensamento requer uma reflexão contextual, pois apresenta os seguintes princípios: totalidade (o todo é maior que a soma das partes, ou seja, o funcionamento do sistema não pode ser entendido a partir do funcionamento de um só indivíduo); integridade de subsistemas (os sistemas possuem subsistemas que são integrados, relacionados uns aos outros); circularidade (todos os componentes influenciam-se mutuamente) (Schaffer, 1996).

Nesse sentido, Tilmans-Ostyns (s/d) observa que “o pensamento sistêmico funciona segundo um modelo circular. Isto significa que o lugar, o momento no qual situamos o inicio de um processo interacional, para daí deduzir uma compreensão, é totalmente arbitrário. Para iniciar a compreensão de tal processo, podemos ver outras coisas. A questão de saber quem começou, quem é a causa, não tem, portanto sentido neste modo de pensamento”. (p.3)

Dessa forma, para compreendermos o processo interacional é preciso considerar diversas causas, assim como as possíveis funções que determinado problema pode estar exercendo neste processo. O aluno, portanto, não pode mais ser visto como o sujeito dotado de problemas, separado do sistema sala de aula, mas como um sujeito relacional cujo problema exerce uma função no sistema. Conforme Curonici e McCulloch (1999), “é ainda preciso levar em conta que o problema manifestado por uma criança (por um grupo de crianças) é um conjunto importante da manutenção do equilíbrio (homeostasia) do sistema inteiro. É o que explica a persistência no tempo de algumas dificuldades e a pouca eficácia das medidas que tendem a fazer desaparecer o problema ao focar-se no indivíduo que o manifesta”. (p.37)

A teoria sistêmica, em sua riqueza epistemológica, considera o sintoma de diversos ângulos. Para Satir (1980) o sintoma é problema na comunicação, ou seja, uma comunicação disfuncional (generalista, incompleta, desconexa) poderá gerar sintomas no indivíduo. Assim, o psicólogo deve trabalhar focalizando a comunicação do sistema.

Haley (1979), por sua vez, descreve o sintoma como fruto das dificuldades quotidianas não resolvidas e, segundo ele, só persistem se os comportamentos dos outros membros do sistema foram mantidos. Para solucioná-lo, portanto, é preciso criar novos padrões de comportamento, modificando seqüências rígidas e repetitivas.

Já Minuchin (1982), numa visão mais estrutural do sistema família, fala em fronteiras, coalisões e alianças entre membros, além de relações de poder, sendo o sintoma resultado de problemas na estrutura do sistema. Assim, o psicólogo visa a alteração nos padrões de interação durante os encontros, delimitando fronteiras parentais, etc.

Anderson e Goolishian (1998), compartilhando uma visão construcionista, ditam que a própria descrição do problema constitui o problema, sendo que o sintoma deriva de interpretações partilhadas por uma comunidade. O psicólogo parte de uma posição de “não-saber” sobre o sujeito e numa orientação colaborativa com este resignifica as formas pelas quais a linguagem constrói o self e o mundo.

Aliando o conhecimento acima descrito com o trabalho de psicóloga na escola, os atendimentos que agora descrevo visaram criar na escola a visão de complexidade e instabilidade de qualquer tipo de problema, salientando também a intersubjetividade3 , ou seja, o papel que a própria escola e as famílias exercem na manutenção e quiçá criação da dificuldade do sujeitoaluno. Nesse processo as famílias acrescentam uma importante contribuição quando participam ativamente das discussões sobre o “problema” na escola e, assim, se beneficiam quando conseguem também criar novos significados aos problemas apresentados.

 

Os atendimentos: processo inicial

Para facilitar o procedimento de encaminhamento na escola a direção, as orientadoras e professoras escreviam sobre os alunos, ressaltando seus dados sobre aprendizagem e comportamento em sala, incluindo o histórico escolar e outros dados que considerassem relevantes.

Após a leitura dos encaminhamentos, eu conversava com equipe pedagógica e professores e muitas vezes surgiam dessa conversa idéias de encaminhamento na própria sala de aula, sendo o professor o mediador da mudança, algumas vezes obtendo muito sucesso. Entretanto, se a equipe considerasse importante, era marcado o primeiro contato com a criança, sempre junto com a família ou com a professora, dependendo da situação. Em seguida eu costumava observar as interações na sala de aula. Às vezes, eu mantinha contato com as famílias por mais tempo, em alguns encontros acordados com os membros. Outras vezes um único encontro com a família era o suficiente para entender que a dificuldade apontada estava exercendo alguma função no sistema escolar. Vamos aos exemplos:

 

A agitação de V.

V., 6 anos, está na primeira série e entrou na escola no mês de Abril, em virtude da mudança de cidade dos pais. Segundo relato da professora, “ele fica mexendo com todos os colegas da seguinte forma: chutando, dando rasteira, empurrando, puxando o cabelo, rasga as atividades feitas em sala e não faz as atividades. Quando solicitado justifica que só escreve com letra de forma. Além disso, é desinteressado, desmotivado e adora uma brincadeira em sala. Não sabe ler. Precisa de ajuda urgente, é hiperativo”. Ao falar sobre os deveres, a professora acrescenta que “das poucas atividades feitas em casa vem com letra corrida, a mãe pega em sua mão para escrever”.

Sua fala evidencia sua insatisfação e insucesso perante o menino e acaba por responsabilizar o aluno por todo o fracasso que ambos vivem na sala. O pedido implícito é “retirem o menino, pois ele é o problema”.

No contato com a mãe, a criança e o padrasto, notouse que há um envolvimento emocional bastante saudável, explicitado no cuidado dos pais com os deveres, com higiene, na proteção sem exageros, nas negociações e na possibilidade de autonomia e diferenciação (por exemplo, V. tem quarto só para ele, tempo e brincadeiras escolhidas pelo menino, etc).

V. mostrou-se atento à conversa, respondendo prontamente quando solicitado, com vocabulário adequado e rico. Calmo, o menino desenhou o tempo todo, sem mostrar qualquer indício de hiperatividade. Quando questionado a respeito da escola, V. foi incisivo: “a professora não gosta de mim e a sala é chata”.

Segundo relato da mãe, V. em casa é organizado, faz suas tarefas diariamente com ajuda do padrasto, com quem tem uma boa relação afetiva, fato observado nos encontros com a família. Dessa forma, a mãe não entende porque V. está “indo mal” na escola e acha que a professora está “resistindo” ao menino. Ela estranha o fato de o menino estar agitado, até agressivo com colegas, e que ainda não lê ou escreve, pois em casa ele se mostra uma criança tranqüila.

V. veio de uma escola que priorizava o lúdico através de atividades que eram mediadas com brincadeiras. A escrita da professora era em caixa alta, não sendo necessário nem exigido escrever com letra corrida, sendo que o processo de passagem para letra corrida acontecia naturalmente. A professora e a escola negligenciaram o histórico escolar de V. e não compreendiam sua resistência à escrita corrida e sua vontade de brincar.

Foram feitos dois encontros com a família e em seguida um encontro com V. e sua professora. Nesse encontro, o menino contou para a professora como era sua escola anterior e a questão da letra corrida, assim como das brincadeiras que muito sente falta. Negociamos com a professora o uso de letra em caixa alta assim como momentos mais lúdicos na sala de aula. Foi levantada a hipótese de que V. ainda não se sentia incluído na turma, visto que a professora não fez qualquer movimento para possibilitar sua inclusão quando ele chegou. Nesse encontro contratei com a professora algumas observações na sala de aula.

A observação da sala de aula trouxe outros dados muito relevantes: a professora mostrava-se insegura e atrapalhada. Sem um plano de aula adequado não conseguia negociar com as crianças e tentava coagi-las com gritos e até pequenos beliscões. V. demonstrava sua insatisfação com a maneira de dar aulas da professora “atrapalhando” diariamente a ponto de ser retirado da sala. Sua agitação fez a escola voltar seu olhar para a sala de aula como um todo, e somente assim foi possível reorganizar a percepção do sistema e da função que V. estava exercendo na sala. O “problema” da criança pôde finalmente ser visto como positivo, levantando a necessidade de mudança no sistema.

Dessa forma, junto com a orientação pedagógica decidimos intervir diretamente no trabalho da professora, mediando o processo de elaboração dos planos de aula, avaliando com ela cada aula e o progresso da turma semanalmente. A orientação entrou em sala com mais freqüência e, junto com esta psicóloga, estabelecemos momentos de encontro com a professora para que esta pudesse resignificar seu papel de gestor da turma junto às crianças. A família foi informada das mudanças em encontro com a professora e a psicóloga, quando algumas dificuldades na comunicação professora-família foram sanadas.

Infelizmente, a professora por problemas particulares acabou faltando muitas vezes e assim não pôde seguir com o plano estabelecido em conjunto. Sua aula e seu papel na sala não foram modificados e a professora acabou sendo convidada a deixar a turma, visto a impossibilidade de ela ser ela própria uma mediadora na transformação das interações no sistema sala de aula.

V. foi conquistado pela professora substituta, que sabendo de toda a história desde que o menino entrou na escola, possibilitou um ambiente bastante lúdico e afetivo, garantindo assim a integração de V. com seus colegas de turma e com a escola como um todo. Segundo esta nova professora, V. mostra-se inteligente e tem toda a capacidade de acompanhar a turma, sendo que sua agitação pôde ser canalizada em atividades escolares mais lúdicas.

A agitação de C.

C., adolescente de 13 anos, filha única, sexta série. Mora com o pai, 31 anos, bancário e com a mãe, 30 anos, que trabalha no restaurante dos seus pais. A aluna foi encaminhada pela direção pelos seguintes motivos: “C. é muito agitada, vive cantando e custa a concentrar-se”. Segundo a direção a aluna diz que lhe “falta cérebro na testa”. Segundo relato dos professores, “C. na matemática freqüentemente esquece compromissos e materiais, porém consegue acompanhar o conteúdo. Em história realiza todas as tarefas e tem rendimento regular, bem como em português. Parece querer chamar sempre a atenção, pois fica cantando o tempo todo”.

Visto que esquece tarefas com freqüência, seu rendimento baixou muito. Suas notas em matemática baixaram visto que muitas vezes C. esquece que havia estudado para determinada prova, ou simplesmente não faz provas alegando ter “dado um branco”. Nessas situações fica tão nervosa que acaba falando muito, ficando muito agitada e torna-se alvo fácil de gozações e brincadeiras dos colegas de turma.

Na primeira entrevista com a família C. estava bastante agitada, não conseguia terminar um assunto por inteiro, logo falava de outra coisa e a mãe comentava “tá vendo como é?”. C. admitiu não gostar de esquecer as coisas e segundo a mãe C. já foi ao neurologista que a diagnosticou com déficit de atenção, recomendando psicoterapia. No fim da conversa ficou claro que a mãe de C. não consegue mais lidar com o esquecimento de C., pois “precisa ficar o tempo todo lembrando de tudo, até mesmo do banho”. C. confirmou e acrescentou que não agüenta mais a mãe “pegando no pé”.

O foco de trabalho com essa família foi a superproteção da mãe e a necessidade de C. ter sempre alguém cuidando de sua vida nos mínimos detalhes, características complementares. Assim, foi tema dos encontros acordados com a família a dificuldade de diferenciação de C., visto que a família está passando para outro estágio no ciclo: o de pais com filhos adolescentes.

A pouca diferenciação acaba sendo reforçada pela dificuldade de C. de lembrar de coisas importantes para sua vida, como sua higiene e seus estudos. Assim, a mãe se coloca em um papel de se antecipar aos movimentos de C. para que nada seja esquecido, porém não consegue atingir a escola, ou melhor, dentro da escola a mãe não pode se antecipar aos movimentos de C. A comunicação foi também foco da nossa atenção nos encontros, pois muitas vezes mãe antecipava-se e respondia perguntas por C., que se irritava e comentava “tá vendo com ela é?”.

Na medida em que os encontros aconteciam houve um aumento no rendimento de C. na escola, assim como a diminuição de seu comportamento agitado e nervoso, fato percebido por todos os professores. Um salto significativo foi quando C. começou a anotar em seu diário os fatos importantes da escola, como tarefas a cumprir, provas para estudar, etc. Da mesma forma, C. em casa anotava o que havia feito, estudado ou cumprido e assim ela sempre conseguia executar e cumprir as tarefas escolares, aumentando seu rendimento escolar.

Quando nossa adolescente passou a executar suas tarefas por conta própria, sua mãe mostrou outros comportamentos em relação à C., perdendo sua função de eterna protetora. A comunicação entre ambas melhorou, C. passou a se cuidar mais e ambas começaram a se diferenciar. Nesse momento, alcançado o objetivo de aumentar o rendimento escolar de C., de comum acordo com os pais e com a própria C., finalizamos o atendimento da família na escola. Depois disso acompanhei o desenvolvimento de C. em conversas informais, em visitas a sala de aula e através dos professores. A família foi devidamente encaminhada para terapia familiar fora da escola.

 

CONCLUSÕES

Diante das reflexões deste artigo e analisando a descrição de dois exemplos de atendimentos com queixas semelhantes, resta uma pergunta: qual o significado dos termos “aluno com problema” ou “dificuldade de aprendizagem?”. São várias as possíveis respostas, várias as possíveis construções de significado acerca dos termos, sem que uma seja a mais verdadeira que outra. Assim, não podemos previamente acreditar que alunos são problemas ou que famílias são desajustadas, ou que professores são autoritários. Precisamos ver um “quebracabeças”, as partes e o todo!

No caso de V., seu comportamento agitado foi significado pela professora como “hiperatividade”, e a professora ficou impossibilitada de questionar a função que tal agitação estava exercendo na sala de aula. Para a equipe escolar, na qual me incluo, ficou claro que V. nos prestou um grande serviço sendo o menino “problema” da turma, pois assim pudemos observar quão inadequadas estavam sendo as aulas da professora, assim como alguns de seus comportamentos. Usando as palavras da mãe do menino, na verdade ele é quem “estava resistindo” à professora. A necessidade de mudar o sistema sala de aula era urgente e V. nos apontou isso com um comportamento “agitado”.

Trabalhando os dois microssistemas de V. foi possível obter uma idéia clara de como o problema estava sendo significado e qual função exercia na escola. Como afirmam Curonici e McCulloch (1999), “quando o professor descreve um problema, não se trata da realidade, uma entidade que existe fora de sua percepção. Estamos tratando da construção da realidade efetuada por uma pessoa singular em determinado momento”. (p.63).

Assim, foi necessário reenquadrar o problema, dando um novo significado à agitação de V.: uma estratégia muito inteligente de chamar a atenção da escola, atraindo para si a ajuda dos adultos para sanar as dificuldades da sua sala de aula. “É o que Malarewicz (apud Curonici & McCulloch, 1999) chama de competência interativa da criança”. (p. 69)

Já no atendimento de C., no primeiro encontro com a família evidenciou-se a necessidade de estabelecer com esse microssistema uma ação colaborativa, priorizando a criação de um novo significado à dificuldade de C., visto que já era uma dificuldade existente no sistema familiar. Foram trabalhadas as fronteiras parentais, assim como as seqüências de comportamentos padronizados entre mãe e filha. A família passou a entender o problema como algo que não pertence à C., que não faz parte dela, mas da interação entre os membros da família, e sendo assim poderia perfeitamente ser modificado.

A agitação e esquecimento estavam exercendo um papel fundamental no sistema familiar, pois o comportamento de C. tanto mantinha a família no mesmo estágio do ciclo de vida familiar (pais com criança dependente) como desequilibrava o sistema para que este evoluísse (pais com adolescente). Quando a família criou outros significados para a dificuldade, diluindo entre os membros familiares a “culpa”, logo se perceberam evoluções de C. na escola.

Quero finalizar deixando registrado como o trabalho do psicólogo na escola é de fundamental importância, desde que este abra espaço para discussões, para orientações colaborativas, sem fazer uso de somente uma teoria para explicar todo e qualquer fenômeno, enquadrando nela as dificuldades que possam surgir nas relações escolares.

Cabe aqui uma metáfora sobre como perceber um fenômeno: o vale! Se cada um de nós se coloca em determinado ponto no alto de um vale teremos uma perspectiva limitada pela nossa própria posição. Uns poderão ver um rio, outros apenas árvores, etc. Podemos nos locomover e até trocar de perspectiva, mas é necessário um exercício de reflexão para entendermos aquela outra perspectiva a partir das suas próprias bases filosóficas e epistemológicas e fazer uso desta quando necessário. Quanto mais lentes diferentes nós tivermos para o olhar, a leitura e o entendimento de um mesmo fenômeno, mais rica será nossa compreensão do mundo.

Dessa forma, ao iniciar qualquer atendimento, seja este qual for, o psicólogo deve valer-se de uma posição de “não-saber”, pois este sempre precisa da informação do outro, do ser humano a sua frente, e “a interpretação é sempre um diálogo entre terapeuta e o cliente e não o resultado de narrativas teóricas pré-determinadas, essenciais para a significação, competência ou modelo teórico que o terapeuta defende” (Gergen e Warhuus, 2001, p.38).

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 01/07/03
Revisado em: 23/10/03
Aprovado em: 12/12/03

 

1 Psicóloga e docente da Universidade Federal de Santa Catarina.