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Psicologia Escolar e Educacional

Print version ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. vol.11 no.2 Campinas Dec. 2007

 

HISTÓRIA

 

Entrevista com Mitsuko Antunes

 

 

Entrevistadora: Wanda Junqueira de Aguiar

 

 

Mitsuko Aparecida Makino Antunes, psicóloga, mestre em Filosofia da Educação e doutora em Psicologia Social. Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da Educação da PUC-SP desde 1992, orientando pesquisas em História da Psicologia Escolar e da Educação no Brasil e Desenvolvimento da Identidade do educador e do educando. Estes têm sido os temas de suas principais publicações, sempre marcadas por um olhar crítico, questionador e propositivo. É assessora da Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, desde 2001.

Wanda: Como foi sua escolha pelo campo da educação?

Mitsuko: Fiz graduação em Psicologia. Desde o início do curso, meu interesse foi se definindo pela pesquisa. Todas as disciplinas que enfatizavam a investigação acabavam por me interessar mais: metodologia, experimental, desenvolvimento. A maioria desses professores tinha forte vínculo com a educação. Estes eram também os docentes mais críticos, mais politizados, os que ousavam, em plenos anos 1970, discutir a dura realidade vivida sob a ditadura militar; eram eles que, não tendo ou não podendo dar Paulo Freire, ensinavam toda a Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire me foi apresentado de forma bancária: sentada na carteira e ouvindo o professor (risos). Isso, obviamente, me predispôs ao interesse pelas disciplinas diretamente relacionadas à educação, tanto as de licenciatura (nessa altura, já podíamos comprar e ler Paulo Freire), como as PEPAs (Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem). Também já podíamos ter acesso a outros autores, como Illich e Nidelcoff, mas, principalmente, autores brasileiros, de uma nova geração, que tinham a crítica à educação e à sociedade como base de suas formulações, como Luiz Antonio Cunha, Maria Helena Patto, Dermeval Saviani, Barbara Freitag, entre outros. Tive o privilégio de ter PEPA com Sergio Leite, Lucilia Reboredo, Mary Julia Dietzch e Verônica Sanduvetti. Não tive, nessa disciplina, uma formação clínico-terapêutica, individualista, tradicional, mas a crítica a esse enquadramento da Psicologia Escolar e a busca de formas de ação comprometidas com a ação pedagógica, com foco na escola pública... Enfim, foi com PEPA que eu descobri que a Psicologia poderia ser diferente, comprometer-se com os interesses da maioria da população. Não era acaso a relação entre posicionamento político e preocupação com educação desses professores.

Wanda: Como você começou a trabalhar em educação depois de formada?

Mitsuko: Não fui trabalhar em educação. Entrei direto no mestrado, em Filosofia da Educação, por influência direta de minhas ex-professoras, Mary Julia e Verônica. Também com elas, iniciei, naquele mesmo ano, a lecionar PEPA. Acho que esse foi o caminho da maioria de nós, que tínhamos interesse em educação. A atuação em Psicologia Escolar era muito restrita e, em geral, na perspectiva que criticávamos; a exceção que me lembro, agora, era o trabalho da Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo, coordenado por Yvonne Khouri.

Wanda: Como entra a História da Psicologia nesse percurso?

Mitsuko: Pela educação! Na disciplina História da Educação Brasileira, no mestrado, deparei-me com muitas coisas que, na Psicologia, nunca tinha ouvido falar. E era Psicologia, e no Brasil! Maria do Carmo Guedes me acolheu, então, no doutorado, para desenvolver o projeto que, já de início, apostava na tese de que Psicologia e educação no Brasil tinham uma história muito mais próxima do que se imaginava até então. Minha tese foi sobre o processo de autonomização da Psicologia no Brasil, processo este que teve na educação seu mais importante fundamento.

Wanda: Como você articula essas duas áreas, História da Psicologia e Psicologia Escolar e da Educacional?

Mitsuko: Eu sei que parece que ambas as áreas correm meio paralelas. Mas acredito que consigo estabelecer uma articulação, nem sempre fácil de explicar, pois parto do princípio de que a compreensão de uma área do conhecimento, assim como toda realidade, só é possível se compreendemos o processo de sua constituição, isto é, sua história. A Psicologia é a área de conhecimento à qual me dedico; a educação é o campo sobre o qual procuro mirar o olhar psicológico. A história é o recurso teórico-metodológico a partir do qual tento entender essa relação como processo que se constrói no fluxo do tempo, que é multi-determinado e contraditório. Adoto, tanto na tentativa de compreender o fenômeno psicológico como o processo histórico de constituição da Psicologia, o referencial epistemológico e metodológico do materialismo histórico-dialético. Costumo dizer que trabalhar com o passado é uma condição para a compreensão do presente; além disso, trabalho com o presente para não perder a realidade. Procuro, assim, com essas duas dimensões, não perder de vista o futuro, ou seja, um projeto de sociedade mais justa e igualitária, para o qual a Psicologia e a educação podem e devem contribuir. Acho que eu poderia dizer que Psicologia, educação e história formam a tríade de meus interesses, tendo como substrato a preocupação epistemológica e como fim um projeto éticopolítico-social, que se afirma na possibilidade de construção de uma educação comprometida com os interesses próprios das classes populares. Aliás, não há opção teórico-metodológica e, principalmente, trabalho em educação que sejam neutros; há sempre aí uma opção política, quer esteja ela explícita ou não. E, por falar em futuro, retomo o que você dizia agora há pouco sobre Paulo Freire, "é preciso apostar no 'inédito viável', numa utopia, não como algo impossível, mas como algo que depende da vontade política para ser efetivado".

Wanda: As relações entre Psicologia, educação e sociedade são muito antigas, não é?

Mitsuko: Uma das atividades de que mais gosto é a docência. Quando as condições permitem, gosto muito de trabalhar as relações entre epistemologia, idéias psicológicas e pedagogia. Mais precisamente, se retomarmos o percurso do pensamento ocidental, desde a Grécia Antiga, nos deparamos com uma indissociabilidade entre essas três dimensões, as quais, obviamente, remetem a uma concepção de homem e de sociedade. Por exemplo, a concepção socrática de produção de conhecimento sustenta-se numa clara afirmação do psiquismo - que anunciou, inclusive, muitas formulações psicológicas posteriores -, do que decorre sua proposta pedagógica, fundamentada numa concepção de homem e sociedade... É possível traçar um caminho pela história do pensamento ocidental (e provavelmente de outras tantas manifestações do pensamento humano, inclusive das várias culturas indígenas pré-colombianas), da Antigüidade à Idade Média, com a Patrística e a Escolástica, à Idade Moderna... até a contemporaneidade, demonstrando a estreita relação entre essas três instâncias. Aliás, é muito importante dizer que o desenvolvimento da Psicologia como ciência autônoma teve na educação o mais importante alicerce para a emergência da então chamada Psicologia aplicada, particularmente com o funcionalismo, do qual outras abordagens derivaram.

Wanda: E no Brasil?

Mitsuko: Desde o período colonial, preocupações educacionais e idéias psicológicas aparecem articuladas. Essa tendência é encontrada ao longo do século XIX e, na virada para o século XX, pode-se dizer que ela se oficializa, com a criação da disciplina Psicologia e pedagogia nas Escolas Normais, que se tornaram, inclusive, as principais instituições produtoras de conhecimento e práticas que relacionavam a Psicologia à educação, pelo ensino, pesquisas em seus laboratórios, produção de livros e, sobretudo, pela formação de profissionais, que foram os pioneiros da Psicologia no Brasil. Foram as Escolas Normais que deram as bases para os primeiros cursos de pedagogia, os quais, junto com os cursos de filosofia e pontualmente de medicina, foram, por sua vez, as bases para os cursos de Psicologia, mesmo antes da regulamentação da profissão de psicólogo. Enfim, essa é uma longa, complexa e fascinante história, que já conta com inúmeros estudos, mas que guarda ainda uma infinidade de possibilidades para pesquisa.

Wanda: Muitas críticas foram feitas à maneira como Psicologia e educação se relacionaram ao longo desse período. Como você interpreta isso?

Mitsuko: Esse é um processo muito interessante. É possível dizer que, com o pensamento escolanovista e a maneira como ele aqui foi incorporado, a educação e a pedagogia tiveram na Psicologia sua principal base de sustentação, acarretando o que podemos chamar de psicologização da educação, numa perspectiva reducionista e, pode-se dizer, ideológica. São muito questionáveis as maneiras como teorias e técnicas psicológicas (ou pseudo-psicológicas) foram utilizadas. A aplicação e a interpretação indiscriminada de testes; a culpabilização da criança e de sua família, por problemas tidos como "emocionais", para legitimar o fracasso Escolar, produzido pelas relações eminentemente Escolares, a redução dos processos pedagógicos aos fatores psicológicos, contribuíram para legitimar práticas educativas questionáveis, desconsiderando os determinantes históricos, sociais, culturais, políticos, econômicos e, principalmente, pedagógicos, no processo educativo. Isso foi e continua sendo objeto de crítica à maneira como a educação incorporou a Psicologia. Da mesma maneira, também a Psicologia passou a criticar essa relação, indo mais além, ao colocar a própria Psicologia Escolar como alvo de suas críticas. Criticava-se o enquadramento clínico-terapêutico e individualizado, que, em última instância, também reforçava a culpabilização da criança e da família, pautado no modelo médico e alheio às condições pedagógicas e sociais, adotado pela maioria das ações em Psicologia Escolar. Ou seja, as velhas e íntimas relações entre Psicologia e educação passavam a ser alvos de críticas de pesquisadores e profissionais de ambas as áreas.

Wanda: Essas críticas produziram transformações na educação e na Psicologia?

Mitsuko: Sim e não. Ainda hoje, por um lado, três décadas depois dessas críticas começarem a ser formuladas, ainda encontramos uma e outra posturas. Ainda é recorrente a responsabilização do aluno por seu desempenho na escola, assim como ainda muitos psicólogos continuam atuando ou representando a atuação do psicólogo Escolar numa perspectiva clínico-terapêutica e individualista. Só por curiosidade, já ouvi de um profissional que trabalhava num projeto efetivamente interdisciplinar de Psicologia Escolar, que ele achava o trabalho importante, mas era uma pena porque ele não estava exercendo mais a profissão de psicólogo! Por outro lado, sim. Creio que hoje, após esse momento da primeira negação, já se alçou à segunda negação, isto é, à superação de uma Psicologia reducionista e ideológica e da prática dela decorrente. Não se pode negar que os fatores psicológicos são constitutivos do processo educativo, ao mesmo tempo que este é concebido como totalidade con-creta, da qual o psicológico faz parte. Da mesma maneira, há várias experiências em Psicologia Escolar que demonstram toda sua potencialidade de atuação conjunta com outros profissionais da educação, na construção de uma educação democrática, que busca garantir condições de aprendizagem e desenvolvimento para todos os educandos, considerando suas condições específicas, elemento este que demanda exatamente aquilo que é próprio da Psicologia que se fundamenta em formulações teóricas hoje disponíveis, capazes de fundamentar a compreensão desses fenômenos e a intervenção profissional. Essa não é a única maneira de inserção do psicólogo na educação, mas talvez seja aquela que melhor explicita a possibilidade de articulação teórico-prática do trabalho em Psicologia Escolar.

Wanda: Fale um pouco da experiência em Guarulhos.

Mitsuko: Você perguntou, no início, como eu comecei a trabalhar em educação. Bem, tive algumas experiências mais diretas em educação, principalmente com formação de professores (com alfabetização, no programa desenvolvido por Sergio Leite; no antigo Cenafor, hoje FDE; na antiga CENP), mas foi só na Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, na gestão iniciada em 2001, que eu tive oportunidade de acompanhar mais de perto a construção de uma verdadeira Rede de Ensino. Veja, eu digo "acompanhar", porque o projeto lá é tão ousado que eu apenas corro atrás para ver o que acontece e tentar elaborar algumas análises. Mais precisamente, hoje há menos da metade dos psicólogos que lá estavam antes dessa gestão. Havia, na Secretaria, um departamento que agregava os psicólogos e outro que agregava os pedagogos; esses dois departamentos foram unidos e, juntos, psicólogos e pedagogos passaram a compor núcleos por modalidade de ensino, passando a atuar numa perspectiva interdisciplinar, tendo como principal função, entre muitas outras, a elaboração e a implementação do Projeto Político-pedagógico, com foco na formação de professores. São muitas as funções exercidas por esses psicólogos, muitas das quais retomam situações que há muito desejávamos que a Psicologia pudesse interferir, como a contribuição à formação de professores pela socialização da fundamentação teórica que dá base à atividade pedagógica, particularmente os processos de ensino-aprendizagem e a criação de condições para o desenvolvimento da criança. Participam também de intervenções que se aproximam da clínica, mas focadas na escola e nas condições de aprendizagem do educando, como as várias atividades realizadas pela Rede de Apoio à Inclusão. O trabalho realizado pelos núcleos aponta também para possibilidades de atuação que estão sendo construídas no processo, como o acompanhamento dos programas de arte-educação e suas relações com a aprendizagem. Enfim, há muitos trabalhos que estão sendo realizados e que não cabem todos aqui, inclusive muitos que eu sequer conheço. Há também trabalhos que não são específicos do psicólogo, mas que fazem parte das tarefas institucionais que qualquer profissional incorpora a suas atividades, e que são muito interessantes, como a organização das Semanas da Educação, da Consciência Negra, do Livro etc. Voltando à pergunta, o sentido dessa experiência para mim, eu afirmaria que são: o quanto aprendo sobre educação, particularmente das classes populares; acompanhar de perto um projeto imenso de implantação de uma rede, desde a construção de escolas (de 24 mil para mais de 100 mil alunos) até, o mais importante, a elaboração e a implementação de um projeto pedagógico comprometido com os interesses das classes populares; a implementação de um projeto integrado de saúde Escolar; formação de professores; o surgimento de uma nova modalidade de educação infantil, o Programa Educriança; enfim, muitas coisas. Disso tudo, eu diria que o maior privilégio para mim é ter a oportunidade de ver que muitas coisas que afirmávamos, na academia, que poderiam e deveriam ser feitas são possíveis.

Wanda: Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Mitsuko: Gostaria. Pode até parecer uma atitude de adulação, mas não posso me furtar a avaliar o pa-pel que a ABRAPEE assume na organização da área, promovendo um debate que dá voz às múltiplas perspectivas da área, qualificando a discussão e, com isso, provocando uma significativa contribuição à produção de conhecimento e à prática da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil, ou melhor dizendo, entendo que a entidade tem conseguido estabelecer um profícuo diálogo entre teoria e prática, entre ciência e profissão. Isso não é pouco. É, na verdade, o enfrentamento de um dos maiores desafios que se colocam hoje para a Psicologia em particular e para as outras áreas de conhecimento em geral.