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Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.12 n.1 Campinas jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Adaptação à universidade em jovens calouros

 

Adaptation to university among young freshmen students

 

Adaptación a la universidad en jóvenes novatos

 

 

Marco Antônio Pereira Teixeira I, *; Ana Cristina Garcia Dias II, **; Shana Hastenpflug Wottrich II, ***; Adriano Machado Oliveira II, ****

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Universidade Federal de Santa Maria

 

 


RESUMO

O primeiro ano é um período crítico para a adaptação do estudante à universidade. O objetivo desta pesquisa foi investigar, qualitativamente, a experiência de adaptação à universidade em jovens calouros em uma universidade. Participaram do estudo 14 estudantes de diferentes cursos, com idades entre 18 e 22 anos. Os sujeitos foram entrevistados individualmente e as entrevistas submetidas a uma análise fenomenológica. Quatro grandes temas emergiram da análise: Saindo de casa, Ingressando na vida acadêmica, Percebendo mudanças em si mesmo e Adaptando-se ao curso. Os resultados indicam que a adaptação à universidade entre calouros é uma experiência que traz mudanças importantes para os estudantes, e que o sucesso na adaptação depende de muitos fatores, alguns deles não ligados diretamente ao contexto acadêmico. Apesar disso, o contexto universitário tem um papel importante a desempenhar no processo de adaptação à universidade.

Palavras-chave: Universitários, Adaptação, Universidade.


ABSTRACT

The first year in university is a critical period for the student's adaptation. The aim of this research was to investigate, in a qualitative way, the experience of adaptation to university in a sample of university freshmen. Fourteen students from different courses, aged between 18 and 22 years old, took part in the study. They were interviewed individually and the interviews were submitted to phenomenological analysis. Four main themes emerged from the analysis: Leaving home, Starting academic life, Perceiving changes in self, and Adapting to the course. Results suggest that adaptation to university among freshmen is an experience that produces important changes for the students, and that the adaptation success depends on many variables, some of them not directly linked to the academic context. However, the university has an important role to play in the process of the students' adaptation.

Keywords: College students, Adaptation, University.


RESUMEN

El primer año es un período crítico para la adaptación del estudiante a la universidad. El objetivo de este trabajo fue investigar cualitativamente la experiencia de adaptación a la universidad en jóvenes novatos. Participaron del estudio 14 estudiantes de cursos diferentes con edades entre 18 y 22 años. Los sujetos fueron entrevistados individualmente y las entrevistas pasaron un análisis fenomenológico. Del análisis surgieron cuatro grandes temas: Saliendo de casa, Ingresando en la vida académica, Percibiendo cambios en si mismo y Adaptándose al curso. Los resultados indican que la adaptación a la universidad entre novatos es una experiencia que trae cambios importantes para los estudiantes, y que el suceso en la adaptación depende de muchos factores, siendo que algunos de ellos no se relacionan directamente al contexto académico. Pese a eso, el contexto universitario tiene un papel importante para desempeñar en el proceso de adaptación a la universidad.

Palabras clave: Universitarios, Adaptación, Universidad.


 

 

Introdução

As experiências durante o primeiro ano na universidade são muito importantes para a permanência no ensino superior e para o sucesso acadêmico dos estudantes (Pascarella & Terenzini, 2005; Reason, Terenzini & Domingo, 2006). O modo como os alunos se integram ao contexto do ensino superior faz com que eles possam aproveitar melhor (ou não) as oportunidades oferecidas pela universidade, tanto para sua formação profissional quanto para seu desenvolvimento psicossocial. Estudantes que se integram acadêmica e socialmente desde o início de seus cursos têm possivelmente mais chances de crescerem intelectual e pessoalmente do que aqueles que enfrentam mais dificuldades na transição à universidade.

O ingresso no ensino superior é uma transição que traz potenciais repercussões para o desenvolvimento psicológico dos jovens estudantes. Em primeiro lugar, ela representa muitas vezes a primeira tentativa importante de implementar um senso de identidade autônomo, tentativa esta traduzida por meio da escolha profissional (ou tentativa de escolha), que é uma tarefa típica do desenvolvimento na passagem da adolescência para a vida adulta (Erikson, 1976). No entanto, estudos têm revelado que nem sempre a profissão escolhida possui um caráter central na constituição da identidade de calouros universitários. Para alguns, o simples fato de ingressar no ensino superior e identificar-se como estudante universitário parece ser um aspecto mais saliente do que a própria profissão (ou curso) em si (Lassance & Gocks, 1995).

De fato, a experiência universitária não se resume à formação profissional. Especialmente nos anos iniciais, e para aqueles jovens que concluem o ensino médio e ingressam logo em seguida em um curso superior, a universidade tem um impacto que vai além da profissionalização (Almeida & Soares, 2003). A entrada na universidade implica uma série de transformações nas redes de amizade e de apoio social dos jovens estudantes (Tao, Dong, Pratt, Hunsberger & Pancer, 2000). Geralmente, até o término do ensino médio, uma significativa parcela da vida dos adolescentes gira em torno da escola: é na escola que passam a maior parte do tempo; é lá que costumam ter a maioria dos amigos; é também, principalmente, a escola que lhes cobra desempenho e responsabilidade, sob pena de sanções diversas. O mundo universitário, por outro lado, é bem menos estruturado que o mundo escolar. Os colegas não são mais os mesmos, havendo a necessidade de estabelecer novos vínculos de amizade. Enquanto tais vínculos não se estabelecem, o jovem conta apenas com seus próprios recursos psicológicos e o apoio das redes formadas anteriormente ao ingresso na universidade (outros amigos e família) para enfrentar eventuais dificuldades que possam surgir pela frente. Ajustar-se à universidade implica, assim, integrar-se socialmente com as pessoas desse novo contexto, participando de atividades sociais e desenvolvendo relações interpessoais satisfatórias (Diniz & Almeida, 2006; Pascarella & Terenzini, 2005).

A qualidade da relação que o universitário tem com seus pais, durante e mesmo antes do ingresso no ensino superior, é um fator que também influencia a adaptação à universidade. A percepção de apoio emocional por parte dos pais, a reciprocidade nas relações pais-filhos, o diálogo familiar sobre a vida na universidade e o apoio parental específico em questões relativas à transição parecem contribuir para a adaptação ao contexto do ensino superior (Mounts, 2004; Mounts, Valentiner, Anderson & Boswell, 2006; Wintre & Yaffe, 2000). Além disso, jovens que se percebem psicologicamente separados dos pais, mas que têm sentimentos positivos em relação a essa separação, tendem a se adaptar melhor na universidade do que aqueles que se sentem mais dependentes de seus pais em termos psicológicos (Beyers & Goossens, 2003; Wiseman, Mayseless & Sharabany, 2006). Alguns estudos indicam ainda que jovens que desenvolveram um padrão de apego seguro tendem a ser menos auto-críticos, o que os leva a se envolverem mais nas interações sociais e a experimentarem menos solidão e menos depressão no primeiro ano da universidade (Wei, Russell & Zakalik, 2005; Wiseman & cols., 2006).

As rupturas impostas pela vida universitária repercutem ainda em outros âmbitos além das redes sociais dos estudantes. A universidade é um ambiente distinto do escolar, nela a monitoração e o interesse da instituição pelo estudante é notadamente diminuído. Isto faz com que o envolvimento do estudante com sua formação dependa muito mais dele do que do ambiente universitário. A responsabilidade pelo aprendizado, antes centrada na escola, é agora deslocada para o jovem. Dele se espera autonomia na aprendizagem, na administração do tempo e na definição de metas e estratégias para os estudos (Soares, Almeida, Diniz & Guisande, 2006). Apesar deste aumento na expectativa de responsabilidade individual por parte do aluno em sua formação e adesão ao curso, verifica-se que certas características do ambiente universitário, tais como a oportunidade de interação com professores e de envolvimento em atividades extra-classe, favorecem a integração do aluno ao contexto universitário (Capovilla & Santos, 2001; Fior & Mercuri, 2003; Kuh, 1995; Kuh & Hu, 2001).

Enfim, o ingresso na universidade é, ao menos potencialmente, uma experiência estressora para os jovens estudantes. Por ser hoje o ingresso na universidade uma tarefa de desenvolvimento típica da transição para a vida adulta (ao menos nas camadas sociais mais favorecidas), faz-se necessário ampliar nosso conhecimento a respeito do modo como os jovens vêm vivendo esse momento, as dificuldades enfrentadas e as repercussões dessa experiência em seu desenvolvimento psicológico.

No Brasil, estudos recentes sobre a adaptação à universidade são ainda pouco numerosos (por exemplo, Mercuri & Polydoro, 2003; Joly, Santos & Sisto, 2005; Primi, Santos & Vendramini, 2002; Schleich, 2006; Vendramini & cols., 2004). Não foi localizado nenhum estudo que focalizasse, qualitativamente, a experiência de ingresso na universidade na perspectiva de universitários calouros. Assim, o objetivo desta pesquisa foi descrever e investigar exploratoriamente a experiência de ingresso e adaptação ao curso superior entre jovens ingressantes no meio universitário. Mais especificamente, pretendeu-se investigar se os jovens percebem dificuldades em sua adaptação e como lidam com essas dificuldades; se possuem redes de apoio (família e amigos) e como essas redes auxiliam na adaptação; se a experiência de ingresso na universidade produz mudanças pessoais capazes de ser reconhecidas pelos jovens estudantes e qual a natureza dessas mudanças. Buscou-se privilegiar, assim, o caráter subjetivo da experiência de ingresso e adaptação à vida universitária no primeiro ano por meio de relatos retrospectivos dessa experiência, desde o ingresso no curso até o momento atual. A fim de que os participantes já tivessem tido um percurso de vida universitária razoável sobre o qual refletir, foram selecionados para a pesquisa estudantes entre o final do primeiro e o final do segundo semestre de seus cursos.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 14 calouros universitários. Em todos os casos, tratava-se da primeira experiência de ingresso na universidade. A Tabela 1 traz outros dados descritivos dos participantes, como sexo, idade, curso, semestre, situação de moradia (se moravam com os pais), opção pelo curso (se o curso era a opção mais desejada e se estavam gostando do curso.

Delineamento

Uma vez que o objetivo do estudo foi captar e descrever a experiência de ingresso na universidade por jovens calouros, optou-se por um delineamento qualitativo fenomenológico. A fenomenologia busca revelar a experiência consciente dos indivíduos sobre um dado fenômeno, sendo que tal experiência se esclarece "a partir da significação dos acontecimentos que a constituem" (Gomes, 1998, p. 21). Assim, a pesquisa visa identificar o que pode ser considerado o núcleo comum da experiência (neste caso, a experiência de transição à universidade) por meio do mapeamento das temáticas que emergem na narrativa dos participantes, pois a experiência consciente é, em última instância, um processo comunicativo que se manifesta por meio da linguagem (Gomes, 1998). Nesse modo de pesquisar, portanto, a intenção não é oferecer interpretações conclusivas ou generalizáveis para qualquer situação, mas sim apontar as múltiplas possibilidades envolvidas no fenômeno. Dessa forma, este estudo delineou-se como uma sucessão de estudos de casos, nos quais as temáticas emergentes apontaram para uma estrutura comum da experiência de transição apresentada aqui, considerando a transversalidade dos casos.

Instrumento

A fim de ter acesso às percepções dos jovens sobre sua adaptação à universidade, foi utilizada uma entrevista com roteiro tópico flexível, elaborada para este estudo levando em consideração os objetivos descritos ao final da introdução (ver Quadro 1). Esta entrevista buscou circunscrever o tema de interesse e ao mesmo tempo dar liberdade para que o entrevistado construísse uma narrativa associando temas considerados relevantes em sua experiência pessoal (Gomes, 1998).

Procedimentos

Os participantes do estudo foram selecionados por conveniência, por meio de convites em salas de aula e indicações feitas por estudantes conhecidos dos pesquisadores. Os próprios participantes da pesquisa também sugeriram colegas e amigos como potenciais colaboradores do estudo. As pessoas indicadas ou que se disponibilizaram a participar foram contatadas pessoalmente ou por telefone a fim de confirmar o interesse na pesquisa. As entrevistas foram agendadas conforme a disponibilidade dos voluntários e dos entrevistadores, e gravadas em áudio. Cuidados éticos foram observados na execução do estudo, sendo utilizado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de participação na pesquisa antes da realização das entrevistas.

 

 

 

Análise dos dados

As entrevistas foram transcritas literalmente e analisadas a partir do método fenomenológico. O método fenomenológico refere-se à maneira como o pesquisador procede reflexivamente ao longo da pesquisa, ou seja, como ele transforma sua experiência consciente (intuições pré-reflexivas) em consciência da experiência. A abordagem sistemática da experiência consciente organiza-se na seqüência de três reflexões que atuam sinergicamente (descrição, redução e interpretação) e que estão presentes em todos os momentos da pesquisa (Gomes, 1998).

O primeiro passo ou descrição fenomenológica traz uma síntese geral e não crítica dos temas indicados baseado no material empírico recolhido na entrevista. O segundo passo ou redução fenomenológica é um retorno à descrição para questioná-la, especificando suas partes temáticas, diferenciando a força constitutiva de cada parte (relevante do irrelevante; essencial do complementar), para escolher em que parte aprofundar. Uma vez escolhida uma determinada parte, retorna-se às entrevistas para localizar novos elementos que confirmem ou não a relevância da parte escolhida. A exposição da redução compõe-se de excertos das entrevistas para servirem de evidência da análise realizada. Por fim, o terceiro passo, ou interpretação fenomenológica é um balanço crítico entre o que foi descrito e o que foi especificado ou reduzido. Nesta etapa final os pesquisadores confrontam suas percepções, a literatura e os sentidos oferecidos pelos entrevistados a fim de fornecer uma síntese compreensiva da experiência (Gomes, 1998).

Nesta pesquisa, os protocolos das entrevistas (dados brutos) foram tomados como a descrição bruta da experiência. O questionamento das entrevistas e a organização das mesmas em uma estrutura compreensiva constituem a redução (Gomes, 1998), que é apresentada a seguir na seção "Resultados". Por fim, os confrontos da redução com a literatura e as considerações acerca das implicações da pesquisa constituem a interpretação fenomenológica, aqui explicitada na seção "Discussão".

 

Resultados

A seguir são apresentados os temas identificados nas entrevistas, com excertos ilustrativos. Estes temas ("Saindo de casa", "Ingressando na vida acadêmica - primeiras impressões", "Percebendo mudanças em si mesmo" e "Adaptando-se ao curso") correspondem a quatro grandes dimensões em torno das quais foram organizadas as percepções dos entrevistados sobre suas experiências de primeiro ano. No conjunto, os temas constituem uma estrutura de possibilidades relacionadas ao ingresso e à adaptação à universidade.

Tema 1: Saindo de casa

A saída da casa dos pais, embora não diretamente ligada à vida dentro da universidade, é um evento marcante para aqueles que deixam suas famílias de origem com o intuito de estudar em uma outra cidade. Essa experiência de sair de casa é percebida essencialmente de dois modos: como algo difícil, em virtude de se sentirem sozinhos, e também como algo importante, devido à independência conquistada. A perda do contato cotidiano com as figuras parentais traz a exigência de desenvolverem um senso maior de "cuidar de si", de ter responsabilidade por si mesmo. Nesse sentido, as atividades rotineiras de manutenção da casa fazem com que os jovens percebam o suporte recebido na família de origem e mudem o seu modo perceber a família.

"...quando tu tá com a família, sempre tem alguém dizendo: "Vai estudar, acorda, vai na aula." Aqui não. Aqui tu tem que mais é sozinho, se virar. Tu tem que fazer as coisas, porque se tu não fizer, ninguém vai fazer por ti." (João)

"Com certeza, muda bastante... Tu passa a ver melhor a tua família, sabe, dar valor pras pessoas. Eu mudei bastante em função não da faculdade, mas estar aqui, sabe." (Luana)

As vivências dessas novas experiências longe da família são percebidas como essenciais, e, de certa forma, adquirem uma maior relevância na vida dos indivíduos do que o ingresso na Universidade propriamente dito. De fato, observa-se que tais experiências demandam diferentes adaptações em suas vidas. Apesar da presença dos obstáculos advindos do fato de viverem sozinhos ou longe das figuras parentais, essas dificuldades são valorizadas e consideradas parte essencial da experiência de ingresso no ensino superior, pois elas encontram-se associadas à sensação de autonomia e maturidade em suas vidas.

"Tu tens vários caminhos pra seguir, mas alguns caminhos levam, cada caminho leva a um resultado específico e daí a pessoa tem que saber qual o resultado que ela quer obter. Seria isso: dificuldade tem que existir. Se não existir dificuldade não tem graça, não tem emoção." (Pedro)

Tema 2: Ingressando na vida acadêmica - primeiras impressões

O ingresso na vida acadêmica é marcado por um conjunto de percepções muito variadas: um alívio das pressões decorrentes do vestibular (principal sistema de seleção usado nas universidades brasileiras, consistindo em um conjunto de provas que avaliam conhecimentos escolares), uma mudança surpreendente na vida ou mesmo uma experiência que provoca desamparo. Nesse novo contexto de experiências, aparecem a instituição, o trote e as novas amizades como elementos cujos papéis são considerados fundamentais pelos calouros.

Ingressar na universidade gera alívio das tensões envolvidas no processo seletivo para entrada na universidade. Dessa forma, entrar para um curso superior é percebido como um evento que divide a vida em dois momentos: antes e depois do resultado do vestibular.

"Ah... isso com certeza mudou [...] um dos piores momentos foi o cursinho, e agora, dentro da universidade, eu não tenho aquela preocupação de estudar única e exclusivamente para passar no vestibular... Agora tu tem que estudar, em termos de adquirir conhecimentos para a vida... e não única e exclusivamente para o vestibular." (Clara)

Os significados atribuídos à entrada na Universidade são perpassados pela rotina anterior de estudos - antes inespecífica e vivenciada sob pressão e agora voltada para os interesses específicos de cada aluno. Nesse contexto, o estudo assume um outro sentido, uma vez que a aquisição de conhecimentos na universidade não serve apenas para um fim avaliativo, mas implica em conhecimentos que serão utilizados na vida.

Outro significado associado ao ingresso no ensino superior é o de uma mudança abrupta de vida, podendo ser sentido como um "estouro na cabeça". A vida acadêmica traz muitas mudanças que exigem um esforço de adaptação do indivíduo, seja no sentido de corresponder às exigências de desempenho, mais altas do que no ensino médio, seja no sentido de se adaptar a novas regras da instituição e a novas pessoas, como colegas, professores ou funcionários. A mudança de um ambiente familiar conhecido (a escola) para outro desconhecido (a universidade) parece gerar inicialmente uma sensação de atordoamento, que sugere a perda de referências anteriores.

"... É um negócio que eu senti bastante de diferença do colégio pra faculdade. É um impacto muito forte. Até às vezes a cabeça dá um curto. Daí eu dava uma folga. Diferença brutal." (Márcio)

"Foi em sete meses um estouro na cabeça. Tu muda completamente tua vida. Antes tu morava com o teu pai e com tua mãe e depois tu mora sozinho... Algo do dia pra noite, dá pra dizer..." (João)

Assim, junto com o alívio e alegria pelo ingresso na universidade, há também certo desamparo gerado pela experiência de perda de referências anteriores. Ter que lidar por conta própria com um grande volume de exigências, tanto acadêmicas quanto administrativas, é uma experiência que pode provocar sentimentos de estar perdido e pouca motivação. A ausência de uma orientação com relação aos processos burocráticos universitários também é percebida como um obstáculo à adaptação, na medida em que dificulta a ambientação do calouro à instituição e suas rotinas.

"Mas nem tanto, pelo menos tinha que ter uma pessoa pra orientar... isso é pra aquilo... agora faz isso... [..] Te vira... Bah! Muitos "balões" que a gente dá por não saber, não ter alguém pra te ajudar até..." (Karen)

"Geralmente, tu não conhece muita coisa... Te falam, tu absorve, mas não chega a se motivar a fazer as coisas..." (Ana)

"Tu fica meio perdido... muito perdido... Mas tu tem que correr atrás, né... tu pega uns livros, dá uma estudada, vai em umas aulas de monitoria..." (Douglas)

No processo de ambientação à universidade, o trote é visto como uma experiência que proporciona um entrosamento inicial com os demais colegas de turma e também de semestres posteriores, servindo como um "quebra-gelo". Esse momento descontraído pode ser ainda acompanhado de informações importantes, que auxiliarão na adaptação posterior* como dicas sobre professores e sobre o funcionamento da instituição.

"Tem um processo de interação no trote, assim, tu acaba ficando menos tímido... aquela sujeira toda, aquela festa... não tem com tu não ficar menos tímido." (Márcio)

"Do que eu gostei bastante foi quando os meus veteranos me recepcionaram... Em relação ao trote, assim, eles fora bem... 'Se tu quer fazer tu faz... se não quer... não participa'... E foram dando as dicas dos professores... Se tu ter alguma dificuldade a quem tu deve procurar..." (Douglas)

Os laços de amizade estabelecidos nessas primeiras experiências na universidade são percebidos como sendo de grande importância pelos calouros. Há uma expectativa em relação às novas amizades que serão formadas. O estreitamento dos laços entre os estudantes permite o compartilhamento de expectativas, interesses e problemas, facilitando a adaptação. Por outro lado, a ausência de um espírito de grupo entre os estudantes pode ser motivo de decepção, à medida em que frustra expectativas de uma mudança na vida social após a entrada na universidade.

"...agora, como todo mundo tem a mesma visão, o mesmo pensamento, estuda, e quer ser alguém na vida, então, a amizade ficou mais intensa. O cara divide os problemas que tem." (João)

"A falta de união da minha turma, isso me decepcionou bastante. Porque tu ouve todo mundo falar que tu entra na faculdade e a vida muda." (Luana)

Tema 3: Percebendo mudanças em si mesmo

Entrar na universidade é uma experiência que implica mudanças no modo de comportar-se e de perceber a si mesmo, ganhando saliência a responsabilidade, as relações interpessoais e a autonomia. As mudanças em responsabilidade são percebidas em dois grandes âmbitos: o profissional e o pessoal. Os calouros têm consciência de que, na universidade, o que está em jogo é o futuro profissional e que é preciso seriedade nesse sentido, ainda que a importância dada ao aspecto profissional varie muito entre os estudantes. No plano pessoal, a responsabilidade mostra-se atrelada ao fato de levar uma vida mais independente do contato com os familiares, o que exige assumir tarefas cotidianas por conta própria e arcar com as conseqüências de seus atos. De um modo ou de outro, o significado dessa responsabilidade encontra-se associado à noção de adultez.

"Ah, tipo, tenho mais responsabilidade. Porque tu tá estudando pra ser um profissional, né?" (Karen)

"Aumentou a responsabilidade, então, sei lá, eu acho que tenha amadurecido um pouquinho, só pelo fato de estar longe de casa, então não tem quem faça as coisas por ti e tu tem que fazer, né?" (Cristine)

"E no comportamento, tu te torna mais responsável. Tu parece que tu passa e 'agora eu sou gente, eu sou adulto, vou fazer por mim, tô fazendo a minha vida'. Com certeza, muda bastante..." (Luana)

Outras mudanças percebidas relacionadas a aspectos pessoais são o desenvolvimento de relacionamentos interpessoais e a superação da timidez. A experiência universitária pode ainda oferecer ferramentas para o desenvolvimento do juízo crítico, facilitando a emergência de atitudes mais autônomas.

"Isso é um pensamento que eu mudei, um pensamento que engloba, que afeta vários setores da minha vida, que é a timidez... Eu tô sendo menos tímido..." (Pedro)

"Mudou a minha maneira de agir... Antes, como é que eu vou te dizer, eu tinha que escutar tudo e ficar quieta. Agora não, eu posso falar, contestar. Antes eu tinha que escutar, dizer 'Amém', e fazer ..." (Joana)

"... e tu chega aqui e vê que não é grande coisa também... que exige muita coisa de ti, da pessoa, porque se tu for esperar pelo professor..." (Teresa)

A necessidade de autonomia é sentida especialmente em relação ao aprendizado. Os calouros percebem que é preciso assumir uma atitude ativa frente à aprendizagem, buscando aprender por conta própria e procurando oportunidades que estão além da sala de aula. Tal exigência por autonomia, contudo, é vivida de formas diferentes. Há os que valorizam essa experiência, vendo nela uma chance de ampliar o potencial do sujeito no âmbito do conhecimento acadêmico. Porém, outros se sentem desanimados com a necessidade de "ir atrás" do conhecimento e das oportunidades de aprendizado.

"Pra mim, isso é bom, porque... sempre tu ir atrás é bom, né? Se tu tem que procurar, tu vai aprendendo, já... Vai procurando, vai vendo outras coisas." (Karen)

"E eu acho, eu me sinto meio desanimada [...] É aquela coisa: é o livro, é a doutrina e o aluno que se vire, assim, como, é a gente que tem que estar correndo atrás..." (Carol)

Tema 4: Adaptando-se ao curso

O ajustamento à universidade entre os calouros depende de um conjunto de aspectos que faz com que eles se sintam pertencendo ao curso e à universidade. Nesse sentido, os vínculos afetivos com os colegas, as relações com os professores, as atividades extra-classe e o desenvolvimento de estratégias para lidar com as frustrações e dificuldades são fatores importantes na experiência de adaptação.

A vivência trazida pelos universitários mostrou que os vínculos afetivos com os colegas são essenciais para a adaptação. Além do sentimento de pertencer a um grupo, as amizades possibilitam a partilha de experiências e o apoio em caso de dificuldades.

"...Eu não tinha amigos, assim, prá essas coisas. Agora, eu tenho. As amizades, assim. Não tem amizade particular, são várias pessoas." (João)

"(...) o papel que cada uma [colega] tem na vida da outra é fundamental. (...) afinal tu passa parte da tua vida aqui dentro né...então é claro que a gente convive e é fundamental..." (Teresa)

A importância dos professores para a adaptação à vida acadêmica dos calouros é percebida em dois planos: o acadêmico e o pessoal. Os alunos notam que o desempenho em sala de aula, a competência e a capacidade de ensinar do professor são aspectos que contribuem para gostar do curso e envolver-se nas atividades. Quando isso não ocorre, o sentimento é de frustração. Porém, além dessa dimensão acadêmica do papel docente na adaptação, os professores também podem cumprir uma importante função no aspecto pessoal do ajustamento à universidade. Esse segundo papel, embora não pareça central, é percebido pelos alunos como uma demonstração de interesse que vai além do aprendizado formal.

"O que eu não tenho gostado mais é professor que vai dar aula e dá aula mais ou menos, assim, e ele finge que sabe, e tu finge que aprende... e termina o conteúdo e pronto: vai embora e ninguém aprendeu nada. Isso é muito ruim..." (Jorge)

"Eles perguntam se tu tá com uma cara estranha, eles já chegam e perguntam, se tu tá bem... se tu tá mal... Eles não são tipo professores de cursinho, que chegam lá na frente e não importa se tu tá bem ou mal... Eles têm contato direto com a gente, não só em relação ao conteúdo." (Clara)

As atividades acadêmicas não obrigatórias ocupam um lugar de destaque no processo de adaptação ao curso para os alunos que se envolvem nesse tipo de experiência. Tais atividades exigem responsabilidade e oportunizam contato com outros estudantes e professores. A movimentação do aluno no ambiente do curso, preenchendo seus horários com atividades de projetos e pesquisas, possibilita conhecer novas realidades e motiva os alunos em relação à vida acadêmica.

"Um troço que pra mim tá sendo bom é eu participar do projeto na faculdade, que a gente tá fazendo nas escolas municipais e coisa... Tu vê outra realidade, né? Isso tá sendo bom..." (Cristine)

"Sempre tem alguma coisa pra fazer, alguma coisa pra pesquisar. Com a Empresa Júnior a gente tá começando com projetos agora. Com o diretório também, a gente começou com projeto da semana acadêmica. O diretório é alguma coisa que não pára, né? Os dois são coisas que não param." (Carol)

A adaptação à universidade implica ainda aprender a lidar com as frustrações em relação ao curso, seja em relação ao conteúdo das disciplinas ou mesmo a dificuldade em dar conta das exigências. Essas dificuldades e frustrações iniciais podem levar a sentimentos de decepção e a pensamentos de abandono do curso.

"...várias vezes tu quer fugir, tu quer largar tudo. Eu já tive vontade de fazer isso. Mas justamente pela dificuldade do curso." (Luana)

"Sinceramente... eu achei decepcionante... Eu achava que ia ser algo mais assim... tipo no segundo grau a gente não tem vontade de estudar... Eu pensei que a faculdade ia me ajudar mais, sei lá... (...) se eu quiser aprender alguma coisa... eu tenho que pegar os livros e estudar (...) Se eu quiser aprender, se eu quiser ir bem numa prova... porque no quê depender da explicação deles [professores] na faculdade... não... não adianta muito (...) eu repeti a matéria, né... daí continua sendo o mesmo professor... e daí ele continua explicando daquele mesmo jeito, (...) ele não explica bem, sabe... daí teve prova e eu não fui muito bem... daí eu pensei 'meu, eu tenho que estudar pro vestibular, eu tenho que sair desse curso!', que é horrível... (...) os meus colegas também estão mais ou menos que nem eu... decepcionados com a faculdade." (Diana)

Contudo, os calouros também aprendem com os veteranos que, com o passar do tempo, o curso se torna melhor. Para isso, é preciso tolerar as eventuais insatisfações iniciais.

"... o segundo semestre e essas outras cadeiras do primeiro só atrapalham. Todo mundo diz que o básico é assim mesmo." (Karen)

"Tem um amigo meu da Mecânica que tá se formando agora que falou que ele acha que é um teste de resistência o básico, né. Se tu passar no básico, tu tá pronto pra te formar." (Jorge)

Ao lidar com as dificuldades, o jovem pode recorrer aos pais, aos amigos e mesmo aos professores. No entanto, os pais são percebidos como fontes de apoio fundamental, apesar da presença dos amigos.

"... eu converso muito com as minhas amigas, com a minha irmã, mas a minha mãe é indispensável..." (Clara)

"... a gente tá longe da família... a gente se sente sozinho... e eles [amigos] substituem um pouco..." (Diana)

 

Discussão

Os relatos dos entrevistados mostraram uma grande diversidade de experiências relacionadas ao ingresso na universidade. Contudo, não foram observadas, na maioria dos participantes deste estudo, dificuldades de adaptação à universidade que sugerissem um sofrimento psicológico demasiado ou um fracasso frente às exigências acadêmicas. Embora tenham sido referidos sentimentos de solidão, de insatisfação com o curso, com professores, com colegas e com o funcionamento da universidade, além de um nível de exigência acadêmica com o qual não estavam acostumados, os participantes desta pesquisa não descreveram estas experiências, em geral, como situações com as quais não conseguissem lidar ou tolerar (exceto no caso de uma entrevistada que pensava em trocar de curso). Assim sendo, as experiências relatadas parecem refletir, em seu conjunto, um leque de possibilidades que são mais ou menos comuns à maioria dos estudantes universitários.

Observou-se que o ingresso na universidade traz uma série de mudanças de caráter mais pessoal aos estudantes. Em especial, a saída da casa dos pais (para aqueles que deixam suas famílias de origem) traz novas responsabilidades ligadas a tarefas cotidianas que precisam ser realizadas, impulsionando o desenvolvimento da autonomia. A entrada na universidade, neste caso, é uma experiência que impacta não apenas pelas demandas do ambiente universitário, mas também porque provoca uma mudança mais radical no contexto de vida do jovem, exigindo o desenvolvimento de respostas adaptativas frente a um conjunto de situações desafiadoras relacionadas ao gerenciamento da própria vida, algo já detectado em outros estudos (Gottlieb, Still & Newby-Clark, 2007).

No entanto, o senso de responsabilidade também se desenvolve em função das exigências acadêmicas, pois os calouros percebem que a universidade não irá esperar por eles para o cumprimento das mesmas. Assim, a partir do ingresso na universidade, eles precisam tomar para si a responsabilidade por suas vidas - tanto na esfera pessoal quanto acadêmica - o que estabelece um novo modo de relação do sujeito consigo mesmo. Este desenvolvimento de autonomia, ainda que sob certa pressão, é um efeito esperado e positivo da ida à universidade nos estudantes (Pachane, 2003; Pascarella & Terenzini, 2005). É interessante notar que tais experiências, ainda que potencialmente estressantes, foram percebidas, em geral, de um modo positivo, como algo que produz crescimento pessoal. Essa percepção de amadurecimento por meio do enfrentamento de situações adversas ou desafiadoras é uma das características psicológicas que parecem marcar, subjetivamente, a transição da adolescência para a adultez emergente (Arnett, 2004), sendo um aspecto a ser considerado na avaliação das vivências universitárias.

Por sua vez, o ingresso na universidade propriamente dito é percebido como um evento potencialmente impactante. Primeiro, há a sensação de alívio e de tarefa cumprida, que era a aprovação no vestibular. Esta sensação pode ser acompanhada de uma idéia de que agora poderão estudar apenas aquilo que gostam ou desejam. Contudo, as primeiras exigências universitárias, sejam elas burocráticas (matrículas, carteiras estudantis) ou acadêmicas (nível de exigência das aulas), podem ser percebidas como muito bruscas, fazendo com que alguns se sintam perdidos frente ao cotidiano universitário. Essa percepção de mudança brusca revela o despreparo que em geral o calouro apresenta frente às demandas e o modo de funcionamento da universidade. A falta de um maior conhecimento sobre o que é a universidade e o que esperar dela, tanto em termos acadêmicos quanto pessoais, é um fator que pode concorrer para as dificuldades de adaptação (Bardagi, 2007; Santos & Melo-Silva, 2003).

É importante notar, contudo, que nem sempre as dificuldades ou as frustrações percebidas (disciplinas pouco interessantes, muito difíceis ou professores com pouca didática) refletem-se numa desadaptação ao curso, no sentido do estudante sentir-se de tal forma insatisfeito que chegue a pensar em abandoná-lo (embora isso também possa ocorrer). Alguns alunos conseguem enfrentar as dificuldades e interpretá-las como se fossem desafios a serem superados, enquanto outros as vêem como barreiras instransponíveis (Zajacova, Lynch & Espenshade, 2005). Esta última situação pode resultar de uma atitude passiva frente àquilo que é percebido como frustrante, configurando uma propensão ao abandono do curso. A intenção de largar o curso, assim, parece ser uma reação desesperançada de esquivar-se de uma situação aversiva frente à qual o estudante sente-se sem capacidade de enfrentamento. Nesse sentido, o grau de motivação para o curso específico (não avaliada neste estudo) bem como características mais gerais de personalidade (como pró-atividade), podem ser fatores que diferenciem aqueles que persistem nos cursos, dos que desistem frente às dificuldades.

Porém, os relatos também deixam evidente a importância que um contexto acadêmico bem estruturado em termos de informação e apoio tem para uma boa adaptação no início do curso. De fato, sabe-se que o ambiente e a cultura organizacional da instituição repercutem no desenvolvimento e desempenho do estudante, mais do que características estruturais como tamanho, missão ou seletividade da universidade (Berger, 2000). A integração com os demais estudantes (calouros e veteranos) e o próprio "trote" são também fatores que concorrem para uma adaptação mais tranqüila, na medida em que os elos interpessoais são fortalecidos, tornando a busca e o recebimento de apoio mais fáceis.

Após as primeiras semanas e a integração inicial, o papel do grupo (colegas) parece ficar mais evidente. A satisfação com a vida universitária parece associada com o quanto o grupo corresponde às expectativas sociais dos estudantes. De acordo com essa idéia, Diniz e Almeida (2006) verificaram que, especialmente no primeiro semestre, os relacionamentos interpessoais eram mais importantes para a adaptação do que a gestão de responsabilidades, cuja importância aumentava apenas no segundo semestre. Isso é compreensível, pois, uma vez que o calouro ainda não tem uma imagem individual de si mesmo como estudante de uma dada profissão, sua referência identitária é antes de tudo o coletivo do qual faz parte. Percebe-se, assim, a importância da integração ao grupo como fator de adesão ao curso no início da vida acadêmica (Lassance & Gocks, 1995). É no espaço coletivo que os indivíduos partilham suas expectativas e se apropriam dos mitos ou estruturas narrativas próprias de cada curso. São as justificativas do tipo "no início é assim mesmo" ou "depois do segundo ano melhora" que ajudam o estudante a dar um sentido ao seu percurso na faculdade, e assim lidar também com as suas dificuldades. Dessa forma, a importância da interação com os colegas não se restringe ao aspecto afetivo ou de amizade. A inserção social do estudante possibilita a este construir um sentido partilhado acerca das suas experiências no curso - positivas e negativas - ajudando-o a desenvolver estratégias de ajustamento na universidade.

Além do grupo, os professores e as oportunidades de envolvimento acadêmico extra-classe também foram citados como elementos que favorecem a adaptação, como revelam outras pesquisas (Bardagi, 2007; Fior & Mercuri, 2003; Kuh, 1995; Kuh & Hu, 2001; Pascarella & Terenzini, 2005). Embora no caso dos professores as referências não tenham sido muito evidentes, os relatos sugerem que os professores influenciam o envolvimento do aluno em função da forma como preparam e ministram suas aulas e se relacionam com os alunos (Kuh & Hu, 2001; Pascarella & Terenzini, 2005). Professores interessados em que os alunos aprendam parecem funcionar como estímulo para a adesão ao curso, ao passo que professores desinteressados estimulam o desengajamento dos calouros. Paralelamente à relação professor-aluno, as atividades extracurriculares também auxiliam na adaptação, na medida em que possibilitam aos alunos integrarem-se ainda mais à dinâmica do curso, conhecendo mais colegas e professores, e ainda tendo a oportunidade de explorar aspectos da formação não contemplados nas aulas (Fior & Mercuri, 2003).

Quanto às dificuldades enfrentadas, nenhuma foi considerada de manejo muito difícil pela maioria dos entrevistados. Para lidar com as dificuldades acadêmicas (como desempenho nas disciplinas), colegas e até mesmo professores foram citados como as principais fontes de apoio. Já para dificuldades de cunho mais emocional, ligadas a dificuldades em viver sozinho ou de adaptar-se à nova vida social imposta pela universidade, as referências privilegiadas foram os pais ou outros parentes, ainda que espacialmente distantes dos estudantes, indicando a importância do apoio familiar para a adaptação dos calouros ao contexto universitário (Mounts, 2004; Mounts & cols. 2006; Wintre & Yaffe, 2000).

De um modo geral, os resultados deste estudo indicam que a adaptação à universidade entre calouros depende de muitos fatores, sendo que alguns deles não estão ligados diretamente ao contexto acadêmico, como o fato de o estudante morar com a família ou não, e a própria rede de apoio social com a qual o calouro pode contar fora da universidade. Apesar disso, o contexto universitário tem um papel importante a desempenhar no processo de adaptação à universidade. É essencial, no início do curso, prover informações de qualidade aos ingressantes relativas à vida acadêmica e também dar apoio efetivo para que o aluno possa usufruir corretamente e sem dificuldades dos benefícios que a universidade oferece, especialmente nas primeiras semanas após o ingresso (por exemplo, obtenção de documentos, procedimentos de matrícula, uso de bibliotecas, restaurante universitário, localização das unidades e serviços, normas da instituição, etc.).

Concomitantemente, é necessário que os cursos estimulem a integração social dos alunos, na medida em que o grupo tem um papel fundamental na construção da identidade dos novos universitários e também na construção de uma rede de apoio afetivo e acadêmico que possa auxiliá-los em caso de dificuldades. Atividades de integração podem ser propostas dentro de cada curso e também entre os cursos, promovendo o contato dos alunos com diversidade de idéias e pessoas. Ainda, é preciso oferecer serviços especializados que possam dar atenção àqueles estudantes que venham a se deparar com maiores dificuldades de adaptação, seja por estarem longe da família, por não se sentirem eficazes para fazer amigos, por não conseguirem se organizar para dar conta das exigências acadêmicas ou mesmo por apresentarem outros problemas pessoais que possam interferir no seu funcionamento cotidiano.

De toda forma, novas pesquisas são necessárias para explorar de modo mais aprofundado os aspectos envolvidos na adaptação à universidade evidenciados neste estudo. Nesta pesquisa todos os participantes eram provenientes de uma mesma instituição e foram convidados a participar do estudo. O fato de que quase todos os entrevistados não tenham relatado insatisfação ou dificuldades acentuadas, caracterizando situações de pré-abandono de curso, talvez seja decorrente do caráter voluntário da participação na pesquisa, o que pode ter levado à auto-seleção de alunos melhor adaptados aos seus cursos. Esse viés da amostra pode também explicar por que dificuldades acadêmicas mais críticas não tenham sido salientes nas entrevistas. Contudo, é muito provável que existam situações de desadaptação severa entre os estudantes. Futuros estudos podem buscar descrever, quantitativamente, a severidade de alguns problemas de adaptação que porventura existam, tais como depressão, solidão, estresse entre outros. Também seria interessante identificar casos de desadaptação mais extremos para estudá-los qualitativamente em maior detalhe, buscando compreender aspectos específicos, pessoais e contextuais, que dificultam a adaptação à universidade.

 

Referências

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Recebido em: 01/10/2007
Revisado em: 06/06/2008
Aprovado em: 30/06/2008

 

 

Sobre os autores:

* Marco Antônio Pereira Teixeira (mapteixeira@yahoo.com.br) - Professor do Instituto de Psicologia da UFRGS. Doutor em Psicologia pela UFRGS. Endereço para correspondência: Rua Ramiro Barcelos 2600 - Porto Alegre / RS - CEP 90035-003.
** Ana Cristina Garcia Dias (cristcris@hotmail.com) - Professora do Curso de Psicologia da UFSM. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pela USP/SP.
*** Shana Hastenpflug Wottrich (swottrich@yahoo.com.br) - Psicóloga formada pela Universidade Federal de Santa Maria.
**** Adriano Machado Oliveira (adriano_oliveira22@hotmail.com) - Psicólogo formado pela Universidade Federal de Santa Maria.

Nota dos autores:
Os autores agradecem o apoio da FAPERGS à pesquisa.