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Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.12 n.1 Campinas jun. 2008

 

HISTÓRIA

 

A trajetória de vida de três pioneiros brasileiros da psicologia escolar

 

 

Eunice Maria. Lima Soriano de Alencar

Universidade Católica de Brasília

 

 

A Psicologia Escolar tem o privilégio de ter, em seu quadro, educadores brasileiros que vêm se destacando há longa data por inúmeras e marcantes contribuições. Dentre esses, poder-se-iam apontar Geraldina Porto Witter, Maria Helena Novaes e Samuel Pfromm Netto. Entretanto, muito pouco se conhece a respeito de suas histórias de vida, como, por exemplo, pessoas que mais influenciaram no desenvolvimento pessoal e profissional desses educadores, fatores subjacentes à sua dedicação à Psicologia, além de eventos críticos e valores pessoais.

Admiração aliada à curiosidade instigaram-me a convidá-los a produzir um pequeno texto a respeito de sua trajetória de vida, com destaque aos fatores mais relevantes para explicar a sua extraordinária produção, refletida em investigações científicas, publicações, formação de novos pesquisadores e premiações. Ninguém melhor do que eles para contar um pouco de suas vivências e experiências marcantes.

Compartilho com o leitor as suas narrativas. Todos eles reconhecem a influência de pessoas especiais, como familiares, professores e colegas. Saltam a vista, nos diversos relatos, uma grande paixão e uma intensa dedicação aos seus projetos profissionais. Deixam-nos muitas lições. Inspiram-nos com o seu modelo de constantes buscas, renovação e espírito de aprendiz.

Em nome da Psicologia Escolar, agradeço aos colegas, Geraldina, Maria Helena e Samuel, pelo legado à área e por nos iluminar com sua sabedoria, fortaleza e determinação.

 

Encontros felizes ao longo de uma vida

Geraldina Porto Witter - UNICASTELO

 

 

Na trajetória de minha vida, como de todas as pessoas, muitos são os que contribuíram para meu desenvolvimento pessoal e profissional. Alguns por pouco tempo, outros por muito tempo, alguns com uma influência pequena, outros com influências mais marcantes e decisivas. São tantas pessoas, que sempre se corre o risco de omitir alguém ou não expressar agradecimentos devidos. Em várias ocasiões, já retomei aspectos de meu caminhar ao longo dos meus 74 anos e, sempre que possível, mencionei a alegria de ter tido o apoio de tantos.

Vou retomar aqui, no pequeno espaço disponível, alguns dos que contribuíram para eu ser o que sou, um ser em busca de se melhorar e de dar o melhor de si para os outros e para seu trabalho. Estou longe de conseguir o que gostaria de ser, mas o que alcancei devo a influência de muitos.

Tive a sorte de nascer em uma família unida por forte laços afetivos, bem estruturada e com alto índice de leiturabilidade. Meu pai só saia de casa após ler o "Estadão" e, no trabalho, arranjava tempo para ler a Folha de São Paulo, que trazia para casa na hora do almoço, a Gazeta Esportiva etc. Uma das últimas lembranças que guardo nítida é dele sentado na cama lendo um livrinho sobre religiosidade. Mas a maior devoradora de textos era sem dúvida, minha mãe. Lia romances, livros de estudos, revistas, jornais, adorava a leitura e queria que todos sentissem o mesmo prazer dela.

Eu ficava muito nas casas de meus avós. As avós sistematicamente cobravam a leitura como forma de aprender e ir além do texto. Assim, mesmo uma história como O Patinho Feio podia render uma longa conversa sobre o que era beleza, que importância isto tinha, se a história de alguma pessoa podia ser semelhante, a dificuldade de aceitação social do diferente, a importância de não ter como critério a aparência física etc.

Muitos de meus tios, tias e primos também eram grandes estimuladores da leitura. Até uma empregada doméstica me ajudou, trabalhou muito tempo na casa de uma de minhas tias e também me apoiou por volta dos meus 3-4 anos quando com paciência me dizia o nome das letras ou lia as palavras das histórias em quadrinho e outros textos que eu queria ler e não apenas que outros lessem para mim. Amolava ela e os meus primos Olinda e Romeu e o tio Afonso que também era menino. Em poucos dias, já conseguia ler por mim mesma. Ainda lembro de Romeu me dizer "leia por si, seja independente o mais que puder". A última vez que conversamos longamente, antes dele ir para o hospital, onde morreu pouco depois, ainda menino, pediu-me que não esquecesse várias coisas, muitas que sonhamos juntos e já dizia que não seria possível realizar. Chorei, me consolou dizendo que o mais importante era eu continuar com a "cabeça livre" e que a leitura e o estudo poderiam me ajudar.

No ensino primário e ginasial (hoje ensino fundamental) cursado em escolas públicas, tive excelentes professores. A professora de primeiro ano (Profa. Alta) tinha como hábito aproveitar os alunos que já sabiam para ajudar os demais a aprender leitura e matemática, o que se denomina ensino por tutoria e cooperativo! Além disso, podiam os "tutores" ir ao pátio e brincar um pouco ou ir para o fundo da sala onde havia muitos livros para ler. No 3º e 4º anos, a Professora Isolina despertou meu interesse por Ciências e Geografia. A esta altura, comecei a achar que Medicina era ótimo caminho, mas era mais influência de alguns filmes, como o Dr. Kildare.

Já no 1º ano do ginásio, alguns professores foram muito importantes. Durante muito tempo fiquei oscilando entre fazer História, por influência do Dr. Bernardes, ou Geografia pela admiração pelo Dr. Batalha, ou Latim pelo respeito ao Dr. Salum. Depois vieram outros que me mostraram outros caminhos tentadores. Meu pai dizia não importar o que fosse fazer, o importante é fazer o melhor que puder, respeitando os princípios morais. Foi justamente no último ano que conheci Witter (meu esposo) nas comemorações pré-formatura. Ele ia fazer o científico (ensino médio) e eu também. Mamãe interveio ressaltando a importância de se ter um diploma que abrisse portas para o trabalho e depois...Acabei indo para a Escola Normal.

Na Escola Normal, descobri um mundo novo de conhecimentos pelos quais muito me interessei. Por exemplo, Prof. Brandão me mostrou o mundo da Sociologia e o prazer de gerar conhecimento, fazendo pesquisas de campo e análises estatísticas. Foi nos anos de normalista que aprendi mais sistematicamente o trabalho em equipe e o prazer de partilhar vivências científicas. Witter e eu namorávamos quase o dia todo, fazendo nossos trabalhos e discutindo o que estávamos aprendendo. Talvez por influência de mamãe e mesmo minha, até para atender ao nosso planejamento familiar, ele também foi fazer a Escola Normal. Mas a pessoa que mais influenciou na minha escolha futura foi a Professora Arouca que me mostrou a Psicologia, o que se fazia, o que se precisava e o que se podia fazer. Os fatos psicológicos estão em toda parte, podem ser vistos, interpretados, teorizados de muitas maneiras, o importante é o que faz eles serem o que são, como se pode interferir etc. Passei a amar a Psicologia.

Após a Escola Normal, Witter e eu casamos, tivemos uma filha e quando ela ia completar três anos fomos cursar a universidade. Fui fazer o curso de Pedagogia e o Witter o de História. Tivemos muito apoio da família, de amigos e de professores. Um bom começo na Psicologia foi dado pelos doutores Carolina M. Bori e Romeu de Morais Almeida, que se coroou mais tarde com a perspectiva universal que Samuel Pfromm Netto passava em suas aulas.

No curso de especialização em Psicologia Educacional, tive contato mais próximo com os professores dessa disciplina, os quais ampliaram e aprofundaram perspectivas, passando a pesquisa a fazer parte do meu fazer diário. Dra Maria José Aguirre estimulou meu motivo de ir para a Universidade ? o estudo da leitura e a Dra Odette Lourenção van Kolck me fez sentir a carência de instrumentos de avaliação. Com o Dr. Arrigo Leonardo Angelini, envolvi-me em uma pesquisa multicultural pela qual ele respondia no Brasil. Foram longos anos de bom aprendizado.

Paralelamente mantive correspondência com autores como Bandura, Staats, Stevens e outros, que sempre foram atenciosos em suas sugestões e envio de materiais.

Comecei a trabalhar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, a convite da Dra. Carolina M. Bori, que foi muito cuidadosa na minha capacitação para dar aulas e atuar no laboratório de Análise Experimental. Foi nesse local que conheci Isaias Pessotti, colega e companheiro, que mostrou como se organizar para produzir, o que ocorria nos bastidores etc. Foi nessa época que também conheci o Dr. Dante Moreira Leite, cujo trabalho muito me interessou, o mesmo podendo dizer do ano estudando análise experimental do comportamento com o Prof. Sherman. Dra Carolina e Isaias foram para a Universidade de Brasília. Era para eu e minha família irmos também, mas o Witter não concordou e ficamos em Rio Claro. Logo depois, ele foi trabalhar com o Dr. Sérgio Buarque de Holanda na USP e, em seguida, recebi o convite do Dr. Arrigo para trabalhar com ele, o qual foi também meu orientador no Doutorado. Foram anos muito bons para meu desenvolvimento, partilhando o trabalho com meus ex-professores e com colegas novos.

Atuando na pós-graduação, em contato com alunos-docentes, nos influenciamos uns aos outros. Quando fui trabalhar na Amazônia, estreitei a relação com o Dr. Warwick S. Kerr, que conheci em Rio Claro, com o qual trabalhei em uma longa pesquisa que envolveu também alguns alunos de pós e de graduação. Como conseqüência, surgiu a Cartilha da Amazônia e o Manual para o Professor, bem como um capítulo de minha Livre Docência. Na Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba, partilhei excelentes vivências com estudantes e colegas. Dentre estes, sou particularmente grata aos Drs. José Loureiro Lopes, José Jackson de Carvalho e Célia de Carvalho. Foi difícil viajar constantemente, ficar longe da família, com filhos na adolescência. Mas tudo se orquestrou, o Witter dando todo o apoio. Na UFPb tive bons contatos com docentes de várias áreas (Psicologia, Educação, Biblioteconomia) e excelentes orientandos com os quais mantenho laços de afeto muito fortes. Ainda na Paraíba, por influência do Dr. Loureiro Lopes, passei a colaborar no UNIPÊ onde foi muito produtivo o relacionamento com o dedicado corpo docente da instituição, especialmente na realização de um Congresso da ABRAPEE na instituição, sendo de se destacar Darcy S. de Macara e Iany Cavalcanti da Silva Barros.

Quando atuei na pós-graduação da PUC-Campinas, era um excelente clima de trabalho. Nessa instituição, coordenei o Curso de Pós-Graduação em Psicologia e colaborei no curso de pós em Biblioteconomia, passando a ter contato mais próximo com alguns docentes que foram orientandos meus e com outros professores com os quais aprendi muito. Quando assumi o cargo correspondente a Pró-Reitoria de Pós-Graduação, na gestão do excelente Reitor Gilberto Selber, também tive oportunidades de aprendizagens diversas.

Certamente devo muito às pessoas aqui mencionadas mas há muitas outras que colaboraram na minha trajetória. Sou profundamente grata a todas elas.

Cabe ainda uma grande responsabilidade, tanto na minha formação, como na atuação profissional e mesmo na minha vida pessoal, os textos lidos em alta freqüência, sem limite. A consulta às bases bibliográficas tornou mais fácil ser leitor independente, sem amarras. Participar de redes sociais de informação tornou as trocas de influências mais atuais, enriquecedoras e o compromisso do saber-fazer-poder da ciência mais abrangente, agradável e produtivo. Assim, o estar atualizado é hoje tarefa muito mais fácil que nos anos sessenta ou mesmo oitenta do século passado. Um pesquisador ou profissional tem obrigação de estar sempre atualizado. Desta forma, agindo não só fará melhor a sua parte como usufruirá mais o prazer do conhecimento. É o que busco fazer a cada dia com a Psicologia e passar aos que buscam comigo alguma ajuda para dar seguimento a sua formação ou para obter uma orientação sobre seu trabalho. O prazer de aprender Psicologia e outras ciências e usá-las criteriosamente não tem fim. Nunca fico decepcionada com a Ciência, pois há muito aprendi que o que não se sabe hoje, mais tarde será descoberto e partilhado.

Ao longo dos anos, com muito amor dediquei-me na vida profissional principalmente ao ensino e à pesquisa, embora tenha exercido outros papéis. Comecei como professora no ensino primário, onde logo percebi a insuficiência de conhecimentos disponíveis sobre leitura. Isto me levou a buscá-los na Universidade. Também tive experiência na pré-escola e no ensino médio. Fui predominantemente docente na Universidade, mas sempre "tomava emprestado" alguma turma da pré-escola, ou do hoje ensino fundamental para ministrar aulas. Assim foi até que a minha idade já não permitia. Na Universidade, dei muitas aulas na graduação e na pós, assumindo o papel de docente-orientador. Aprendi muito com meus alunos e, se não fosse por eles, talvez não tivesse percorrido alguns caminhos.

Até o presente, tive o prazer de orientar 82 doutores, 154 mestres, 57 trabalhos de especialização, 20 trabalhos de iniciação científica e 16 de conclusão de curso.

Como pesquisadora e docente, participei em eventos científicos diversos, tendo apresentado 32 trabalhos em congressos internacionais e 490 em eventos nacionais. Também pude publicar 37 livros, 113 capítulos, 143 artigos, 11 trabalhos completos em eventos e 133 resumos. Considerando a formação que professores e profissionais recebem no Brasil, a dificuldade de muitos em ler outras línguas e a área em que pesquiso e atuo, considero mais importante publicar no Brasil. É uma das atividades de que se precisa para que ocorrer as mudanças capazes de tornar o ensino-aprendizagem mais atual, efetivo, diversificado e inclusivo. Para chegar informações úteis a professores, pais, diretores, desde antigo contato com José Reis, ainda nos anos 60, passei a cuidar mais da divulgação do conhecimento científico. Deste esforço, resultaram 560 artigos em jornais e em periódicos de divulgação.

Tenho procurado dar o melhor de mim, mas sei que poderia ter feito muito mais. Fiz o que pude, dadas as circunstâncias, elas até poderiam explicar ou justificar não ter alcançado minhas metas. Não seriam mais do que desculpas. Continuo produzindo e é com satisfação e alegria que o faço. Espero continuar aprendendo algo novo todos os dias. Para isto contribui o pesquisar a produção científica, a leitura e a velhice.

 

Vivência profissional - renovação e coerência pessoal

Maria Helena Novaes - Professora Emérita da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

 

Com o passar do tempo, percebe-se com maior nitidez a nossa trajetória de vida, tanto como pessoa, quanto como profissional: professora, psicóloga, pesquisadora.

Desde cedo, assumi meu interesse pela educação por acreditar no valor do conhecimento e do processo criativo do ensino-aprendizagem como alavanca para o desenvolvimento da sociedade e da cultura. Sempre gostei muito de ler, escrever, estudar, lecionar, pesquisar, produzir e divulgar minhas experiências partindo do pressuposto que só ajuda o aluno a crescer, o educador que se propõe a crescer também; só ensina alguma coisa, aquele que está aberto para aprender e só educa verdadeiramente quem vê diante de si uma trajetória de realizações criativas, buscando sempre se renovar, demonstrando seu profundo respeito pelo outro e pela própria vida. Essa minha convicção inspirou vários trabalhos acadêmicos, o que me deu muita alegria.

Atenta aos impasses da produção científica, avanços tecnológicos e movimentos artísticos, minha experiência, como livre docente da UFRJ e professor titular e emérita da PUC-Rio por muitos anos, levou-me a uma constante análise crítica e aberta da função social da universidade e de seu compromisso com o desenvolvimento do potencial humano e transformação sócio-cultural. Tal atitude fez com que participasse do concurso para professores da UFRJ, em 1990, sobre o tema "Como seria a universidade do terceiro milênio", tendo o meu texto discorrido sobre "Uma reviravolta imaginada", que mereceu um prêmio e posterior publicação pela Fundação José Bonifácio.

Sobre o que salientar aqui nesse meu depoimento, lembro-me de uma frase de C. Jung que dizia: "Ao fazer relatos objetivos ou apenas contar estórias, o importante é se o que conto é a minha fábula e a minha verdade".

Assim, vamos lá: uma das vivências marcantes na minha formação profissional foi no Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), da Fundação Getúlio Vargas, dirigido por Emílio Mira y Lopez. Este me impressionou pelo seu brilhantismo intelectual, dinamismo pessoal, capacidade de liderança, uma vez que introduziu no Brasil inovações nas áreas da ergonomia, orientação e seleção profissional, na psicologia aplicada a vários setores, no incremento e expansão de pesquisas em nível nacional e internacional. Ele sempre chamava atenção para a necessidade de uma postura ética, de responsabilidade social, além de inovadora na prática do psicólogo.

Sua grande lição de vida, a meu ver, foi a sua resposta ao ser indagado se valia a pena viver: "O que importa não é o que se consegue, mas o que se pretende; não é o que se colhe, mas o que se semeia; não é o êxito, mas a atitude, porque essa e a semeadura dependem de nós, enquanto ser bem sucedido, ou não, obedece a múltiplos fatores, em sua maior parte alheios a nossa vontade".

Fui privilegiada no sentido de ter tido professores excelentes, diretores, colegas, amigos e familiares que muito me apoiaram e incentivaram nessa minha busca profissional permanente aos quais sou muito grata. O meu mérito talvez tenha sido o de saber perceber e aproveitar oportunidades de experiências em vários campos de atuação que foram surgindo e conseguir interligá-las aos meus objetivos e motivações pessoais, transformando-as em realizações criativas.

Minhas contribuições na Associação Brasileira de Reabilitação; como membro fundadora do Serviço de Psicologia e professora dos cursos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional; na Escolinha de Arte do Brasil e na Sociedade Brasileira de Educação através da Arte, como professora e assessora técnica junto a Augusto Rodrigues, Zoé Noronha, Noêmia Varela; no Centro de Orientação Juvenil do Ministério da Saúde; no Centro Nacional de Educação Especial do Ministério da Educação, onde supervisionei vários projetos na área dos alunos talentosos e superdotados, tendo sido presidente da Associação Brasileira para Superdotados por quatro anos e no Centro de Estudos e Pesquisas do ISOP, trouxeram um enriquecimento muito grande à minha rota profissional e pessoal.

Destaque especial daria à minha atuação no Serviço Psico-Pedagógico da Escola Guatemala, pioneiro no campo da Psicologia Escolar, trabalhando junto a uma equipe multidisciplinar, chefiada pela psicóloga Therezinha Lins de Albuquerque que contava com o apoio de Anísio Teixeira do INEP.

Embora possa parecer uma atuação diversificada e até pulverizada, percebo hoje que tinha um fio comum, coerente com meus interesses e metas, além da minha formação, pois antes da Psicologia estudei Filosofia e Letras Neolatinas, fiz curso sobre museus no Museu Histórico Nacional, Terapia Ocupacional e Fisio na Associação Brasileira de Educação, além de vários cursos de artes e idiomas que foram de grande valia para apresentação de trabalhos em congressos e reuniões internacionais.

Visando sempre um aperfeiçoamento e atualização profissional, obtive várias bolsas de estudos no exterior, da UNESCO, do CNPq, do Conselho Britânico e da Fundação Ford.

Minha estada na Universidade de Genebra e no Instituto Jean-Jacques Rousseau foi decisiva para as pesquisas de Doutorado e de Pós-Doutoramento, tendo estudado com Jean Piaget, meu grande Mestre, André Rey e demais pesquisadores do Centro, assim como em Paris na Sorbonne com Renée Zazzo e colaboradores no estágio junto ao Laboratório de Psicologia da Criança na Universidade de Paris V.

Em ambos os países, visitei muitas escolas, creches, centros de pesquisa, serviços de atendimento escolar psicológico e pedagógico, centros internacionais da infância, trazendo para o Brasil vasto material que adaptei à realidade brasileira, como o diagnóstico operatório de Piaget, os testes de segregação perceptiva desenvolvidos com A. Rey, e várias técnicas projetivas e provas de adaptação escolar. Nessas experiências e contextos, constatei a importância que davam à independência intelectual dos alunos, à firmeza nas suas metas e objetivos, o que contribuiu muito para a minha autonomia profissional e constante produção acadêmica.

Esse longo trajeto foi um estímulo para publicar muitos livros, dentre os quais: Psicologia Escolar, Psicologia da Criatividade (traduzidos para várias línguas), Adaptação Escolar, Psicologia do Ensino-Aprendizagem, Psicologia Pedagógica, Desenvolvimento Psicológico de Superdotado, Psicologia Escolar, Prática Profissional e Psicologia da Reabilitação, além de capítulos de livros organizados por colegas, artigos em revistas nacionais e estrangeiras, integrando sempre a teoria com a prática.

No que diz respeito à Psicologia do Desenvolvimento, contribuí com trabalhos envolvendo desde bebês até idosos. Estou, no momento, ancorada na denominada 3ª idade, por conta da minha entrada na casa dos 80 anos, tendo já escrito livros sobre Psicologia da Terceira Idade e realizado pesquisas, como "Gerações e suas lições de vida" e programas de ativação cerebral criativa (PACC), defendendo a importância da intergeracionalidade, do convívio entre gerações e da concepção do envelhecer como passagem transgeracional. Refletindo sobre as contradições, incertezas e complexidade da sociedade atual, acabo de produzir um livro denominado "Paradoxos Contemporâneos" que, de certa forma, completa um anterior denominado "Alienação ou compromisso frente ao próximo século?", publicado em 1999, concluindo que o desafio futuro será como sair desses impasses, a fim de re-singularizar uma subjetividade criativa e polifônica, estabelecida numa cartografia individual e coletiva, enfrentando mutações processuais e conquistando novas relações entre os saberes, renovando o seu cotidiano na convivência humana através de seus desejos, sentimentos, sonhos com emoção e paixão.

Para finalizar, lembrarei, por oportuno, que o passado é o lastro, o presente a sinalização, mas o futuro é sempre uma conquista o que a vida tende a dar certo, nós é que a complicamos.

Acreditar num mundo mais justo e solidário e no ser humano dá sempre esperança e ânimo para prosseguir. Assim, espero conseguir!

 

Três paixões: Psicologia, educação e mídia

Samuel Pfromm Netto - Professor Aposentado da Universidade de São Paulo

 

 

Convivência: não conheço melhor palavra para caracterizar esse processo lento, multiforme e complexo que converte um organismo exclusivamente biológico que somos ao nascer, tão frágil, tão dependente e falto de tudo, em ser verdadeiramente humano, com inumeráveis habilidades e competências e um armazém mnemônico repleto de conhecimentos e recordações de todos os tipos, sensível ao belo, ao bom e ao verdadeiro, capaz de manifestar altruísmo, solidariedade, consideração, caridade, ternura, júbilo, cooperação e compreensão, atento ao que ocorre tanto em torno de si como a distância, responsável e proficiente no trabalho. Convivência é a fonte de tudo isto e de muito mais. Resulta de múltiplos fatores e condições, entre os quais o carinho e os cuidados maternos. O relacionamento íntimo com o pai. A vida comum com os irmãos e parentes. O trato direto com pessoas significativas. A exposição a certos tipos benfazejos de influência que, de modo acidental ou intencional, moldam a personalidade, temperam o caráter, definem a nossa condição humana.

Minha história particular de convivência infantil e juvenil na Piracicaba paulista em que nasci em 1932, com familiares, amigos e conhecidos, é em grande parte responsável pelo que fui, sou e serei. Como deve ser cinzenta e amarga a vida de quem nasce com pouca ou nenhuma oportunidade de receber a atenção, os afagos e as lições de amor, compreensão e serenidade dos mais velhos, no dia-a-dia da vida! No lar em que vim ao mundo e cresci, assim como na modesta chácara dos meus avós (perto do rio Piracicaba e à frente do palacete de Luiz de Queiroz), lugares de correrias e traquinagens nas moradias e casas comerciais da vizinhança, tive uma infância feliz. Convivi com tanta, tanta gente boa, sensata, simples, honrada, acolhedora. A escola primária que freqüentei, já alfabetizado, foi o Grupo Escolar Morais Barros. A dois quarteirões de distância da casa dos meus pais, localizada na rua Prudente de Moraes, junto ao largo da Igreja de São Benedito. Lembro-me, saudoso, dos professores primários que tive: dona Isabel, dona Antonieta Losso, seu Perpétuo... Vieram a seguir os tempos do ginásio. Do curso normal. Do curso clássico. Os três na então Escola Normal Oficial (depois Instituto de Educação) Sud Mennucci, onde me formei em 1949.

A Sud foi o abre-te Sésamo da minha vida. Professores cordiais e competentes. Salas-ambiente de geografia, de música, de trabalhos manuais, de ciências... Uma vasta biblioteca, atulhada de livros, muitos deles em francês, inglês, espanhol. Ajardinada, com amplos espaços ao ar livre e galpões para o recreio, a educação física e a prática de esportes. Nessa Sud dos anos quarenta, a Psicologia e a Pedagogia me fascinaram. E me conquistaram para sempre.

Dentre os educadores que mais me influenciaram, estava José Rodrigues de Arruda. Psicólogo, professor e escritor, divulgador de Dumas, Pavlov e Thorndike, publicou em 1938 o primeiro livro brasileiro de Psicologia da Aprendizagem e do Ensino com bases científicas: "Da aprendizagem das línguas vivas e mortas". Lançou em 1951, pela editora Saraiva de São Paulo, seu "Compêndio de Psicologia", um dos nossos melhores livros de Introdução à Psicologia, largamente difundido nos cursos de formação do professorado paulista. Graças principalmente a Arruda como meu primeiro mentor intelectual, mergulhei fundo no estudo das obras essenciais de Psicologia e Pedagogia.

Psicologia, educação e mídia bem cedo passaram a compor a tríade que marca a minha vida e minha obra. Tive meu primeiro emprego, ainda adolescente, como jornalista em um periódico local, o "Jornal de Piracicaba", onde fui pupilo de um jornalista, médico e intelectual extremamente culto: Fortunato Losso Netto, meu segundo mentor e padrinho de casamento. Paralelamente, atuei como radialista na PRD-6, a antiga Rádio Clube, hoje Rádio Difusora. Fiz crítica de filmes na imprensa e presidi o Clube Piracicabano de Cinema, de que fui um dos fundadores. Após formar-me em meados do século passado como professor primário, comecei minha carreira profissional nos magistérios público e privado. Lecionei inicialmente na própria escola em que me formei e no curso normal do Colégio Piracicabano. Nos anos trinta, Lourenço Filho tinha sido professor da escola normal em que estudei. Nela iniciou as pesquisas que originaram os testes ABC. O Colégio Piracicabano, criado por metodistas norte-americanos em 1881, com seus professores e um grande número de livros de Psicologia e Educação em inglês, destacou-se como um dos focos iniciais da propagação, no país, das contribuições dos psicólogos e pedagogos mais renomados dos EUA.

Já casado (com Marilene Olga Clemente, minha colega nos tempos dos cursos ginasial e normal) e professor efetivo, por concurso público, de psicologia educacional em Paraguaçu Paulista e no Instituto de Educação Leônidas do Amaral Vieira, de Santa Cruz do Rio Pardo, SP, ingressei no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo (1956-59). A USP me acolheu no seu quadro docente no ano seguinte ao da formatura, na antiga cadeira de Psicologia Educacional, liderada por Arrigo Leonardo Angelini. Tornei-me seu assistente, incumbindo-me das práticas de laboratório e de pesquisas na disciplina Psicologia da Aprendizagem. Fui um dos responsáveis pelo planejamento e criação do curso de Psicologia e do Instituto de Psicologia da USP na Universidade de São Paulo. A Psicologia Escolar era praticamente desconhecida no Brasil, quando a introduzi na USP nos anos 60 e passei a ministrá-la, com a colaboração de Carlos Roberto Martins e Geraldina Porto Witter, meus colegas no Departamento de Psicologia Educacional. Nessa mesma época, juntamente com Cláudio Zaki Dib, do Instituto de Física da USP, e Nelson Rosamilha, criamos a Matética, Centro de Instrução Programada, dedicando-nos à produção de manuais sob a forma de instrução programada, assim como a ministrar cursos e orientar empresas e pessoas a esse respeito, com excelentes resultados. Durante vários anos promovemos um seminário de instrução programada e tecnologia da educação, nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Desde 1970 incumbi-me de orientar teses e dissertações em cursos de doutorado e mestrado na USP e em outras instituições de ensino superior. O desempenho da função de orientar mais de duas centenas de orientandos constituiu experiência das mais gratificantes (e árduas!). O testemunho desses estudantes de ontem, que atualmente se dedicam ao ensino e à pesquisa de natureza psicológica no país e no exterior, confirmará o entusiasmo e o devotamento com que os orientei, mergulhando fundo nos assuntos que eram objeto de suas pesquisas, na orientação e busca bibliográficas, nas intermináveis discussões, nas sucessivas revisões dos seus textos. É impossível orientar bem uma tese ou dissertação sem o pleno envolvimento do orientador. Guardo carinhosamente na minha biblioteca mais de duas centenas de contribuições dos meus orientandos, bem como numerosos livros que eles publicaram, com base nos textos que lhes garantiram os títulos de Mestre e Doutor.

Nos anos 70, participei ativamente da criação dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia. Como conselheiro, integrei o quadro de responsáveis pelo CRP-6 (São Paulo e Mato Grosso) desde a sua criação e fui um dos seus presidentes, tendo igualmente feito parte da diretoria da Sociedade de Psicologia de São Paulo.

Minha atividade docente não se limitou à USP. Criei e dirigi o curso de Psicologia das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo (1974-80). Lecionei em várias outras escolas superiores no país e no exterior, como professor titular ou professor colaborador, até os primeiros anos do século atual. Realizei inicialmente meus estudos pós-graduados na USP, concluindo o mestrado em 1964 e o doutorado em 1970. Fiz estágios e estudos pós-graduados nos EUA e na Europa em 1963, 1965 e 1974. Lembro-me com saudade e gratidão a acolhida que tive, de várias figuras exponenciais da Psicologia e da mídia educativa que orientaram meus passos, como B. F. Skinner, Carl Rogers, Robert Gagné, Francis Mechner, James Holland, Horace Hartsell, Frank Neusbaum, James Finn, Charles Schüller, Kenneth Christiansen e outros. Atuei como professor visitante e chefe de missões de caráter pedagógico e cultural no Japão (1975, 1992, 1995) e na China continental (1995), tendo ainda sido professor visitante e colaborador da Syracuse University, nos EUA (1998).

Minha atuação como professor universitário liga-se estreitamente aos estudos e pesquisas que fiz e à publicação de livros e artigos em periódicos do país e do exterior, bem como à coordenação de coleções de obras especializadas, como as coleções "Psicologia contemporânea", juntamente com A. L. Angelini para a editora José Olympio, "A Psicologia e você", em doze volumes, da editora Harper & Row, e "Carmichael - Psicologia da criança", em dez volumes, 1975, editado pela EPU de São Paulo. Vi publicados mais de meia centena de livros de minha autoria, sobre Psicologia, Educação, Mídia e História, assim como várias obras didáticas, entre as quais, como co-autor, a cartilha "Vila Sésamo" (1974) e o conjunto de quatro livros "Atividades em matemática", para o ensino fundamental, em quatro volumes (três edições publicadas a partir de 1973). Redigi o capítulo sobre a história da Psicologia no Brasil na obra coletiva em três volumes "História das ciências no Brasil", editada pelo CNPq, EDUSP e EPU em 1979-81. Fui co-autor de uma obra da UNESCO (Paris), "The impact of Brazilian television on children and education" em 1981, em edições em inglês, francês e espanhol.

No território da pesquisa científica em Psicologia comecei com estudos de psicologia, cinema e criança, que resultaram em trabalhos publicados desde os anos cinqüenta, em revistas especializadas e jornais. Desenvolvi igualmente projetos e publiquei livros e artigos sobre Psicologia da Adolescência, Psicologia da Aprendizagem e do Ensino (título de um dos meus livros, editado em 1987 pela EDUSP e EPU), testes psicológicos (sou co-autor de uma Escala de Ansiedade Manifesta para Crianças, baseada no instrumento criado por Taylor) e psicologia da comunicação de massa. Data de 1968 a primeira edição do meu livro "Psicologia da Adolescência", com 427 páginas. Teve sete edições e é o primeiro livro brasileiro solidamente fundamentado em pesquisas científicas sobre esta etapa do desenvolvimento humano. Gravei inúmeros videoteipes, entre os quais os que compõem o curso de Psicologia da Adolescência que ministrei na USP em 1969.

Ao mesmo tempo em que atuava no ensino superior, dediquei-me à mídia educativa, notadamente na televisão, no rádio e na informática a serviço do ensino. Tive intensa e extensa participação em programas e iniciativas em treinamento e desenvolvimento de recursos humanos, no contexto empresarial. Dentre as minhas contribuições nesta área, salientam-se os trabalhos que desenvolvi em empresas e organizações renomadas como a Shell, a Olivetti, o Banco Chase-Mannhatan (Lar Brasileiro), a Editora Abril e as secretarias paulistas da Fazenda, Educação e de Administração e no Cianet, onde atuei como coordenador.

De 1972 a 1975 fui Assessor de Ensino da Presidência da Fundação Padre Anchieta, Televisão e Rádio Cultura de São Paulo, bem como diretor da sua Divisão de Ensino (hoje extinta, sic). Guardo, comovido, as lembranças, nessa época, do recebimento dos Prêmios Japão de Televisão e Rádio Educativos em Tóquio, em cerimônia presidida pelo então Príncipe Akihito (1975), por programas que produzi e apresentei na Fundação Padre Anchieta, e da participação, junto com Nídia Lycia e Wilson Aguiar, da comissão responsável pela produção de Vila Sésamo I, nos estúdios da TV Cultura, em 1972-73. Esses programas mudaram os rumos da tevê educativa e para crianças no país, assim como do rádio educativo entre nós. Em 1984-85 presidi no Rio de Janeiro o Centro Brasileiro de Televisão e Rádio Educativos do MEC. Fui conselheiro de várias entidades, entre as quais a Fundação Padre Anchieta, o Mobral, o Conselho Nacional de Cinema, o extinto Conselho Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo. Juntamente com Carlos Del Nero, criei em fins dos anos 70 a Academia Paulista de Psicologia e fui presidente eleito desta, de 1986 a 1987. Fui também um dos fundadores e membro da primeira diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE).

Em virtude das minhas contribuições, ao longo de mais de meio século, à psicologia, à educação e à área de recursos humanos, cujo detalhamento excede de muito o espaço aqui disponível, tive a satisfação e a honra de receber numerosos diplomas, medalhas e títulos honoríficos. Entre os mais expressivos, destaco a homenagem que me prestaram em Ribeirão Preto, SP, onde meu nome passou a designar uma instituição de ensino, o

"Liceu Samuel Pfromm Netto" (com o qual não tenho nenhuma vinculação); a placa de agradecimento da Comissão Especial de Informática da Presidência da República, pela minha contribuição ao desenvolvimento do uso dos computadores na educação; a comenda e a medalha D. Pedro II do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; e o título de "Personalidade do Ano" em Educação, que me foi atribuído em 1997 pelo Rotary Club de São Paulo. Tive meu nome destacado em um verbete da "Enciclopédia Mirador Internacional" (1976, vol. 7, pág. 3642, "A tecnologia aplicada à educação no Brasil"), que se refere à minha contribuição de pioneiro da instrução programada no país, desde os anos 60.

Um percurso pessoal e profissional de muitas dezenas de anos muito deve a muitas pessoas. Não posso deixar de realçar nesse sentido a minha imensa dívida e o meu fundo reconhecimento a quatro pessoas maravilhosas: meus pais, Augusto e Escholástica (dona Tica); Olga, minha esposa há mais de cinqüenta anos; e Priscila Maria, filha tão querida, incrivelmente inteligente, generosa, culta, superdotada, que em 2006 partiu para sempre deste mundo.