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Psicologia Escolar e Educacional

versión impresa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.13 n.2 Campinas dic. 2009

 

HISTÓRIA

 

Entrevista com Beatriz Belluzzo Brando Cunha

 

Interview with Beatriz Belluzzo Brando Cunha

 

Entrevista con Beatriz Belluzzo Brando Cunha

 

 

 

Entrevistadora: Marilene Proença Rebello de Souza

BEATRIZ BELLUZZO BRANDO CUNHA é docente aposentada do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis. Foi Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista e fundadora do NEPPEI – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação Infantil, pesquisando temáticas relativas à Educação Infantil, questões de gênero e atuação do psicólogo na educação. É conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (gestão 2007-2010). É membro da diretoria da ABRAPEE estando nesta gestão no cargo de Presidente Atual.

Por sua história de atuação na área de Psicologia Escolar, convidamos para ser a nossa entrevistada deste número da Revista Psicologia Escolar e Educacional.

Marilene Proença: Como ocorreu sua aproximação com a Psicologia Escolar no curso de Psicologia?

Beatriz Belluzzo: Minha aproximação com a psicologia escolar se deu antes do curso de Psicologia. Fui intensamente influenciada pelo meu pai, que era um grande estudioso. Para ele, a escola vinha em primeiro lugar e sempre trazia - em livros - tudo o que era do nosso interesse. No meu caso, meu interesse se voltava para os livros de desenvolvimento infantil que encontrava em sua estante. Ele era pediatra e algumas vezes eu o auxiliei em seu consultório. Tinha uma atração pelo saber acerca da criança.

Educação e psicologia sempre foram do meu interesse. Saber mais sobre a infância, desenvolvimento e a aprendizagem – especialmente a escolar – levaram-me a fazer o curso Normal. Trabalhar com crianças, contribuindo para o seu desenvolvimento, sempre me motivava. Sonhava em ser professora de crianças. Então, durante o curso secundário, comecei a estudar Psicologia e Educação. Fazer a graduação em Psicologia foi uma decorrência do interesse em me aprofundar nesta área. Assim, meus estágios, cursos de extensão e atividades extracurriculares eram todas voltadas para a infância, para a aprendizagem e escola.

Marilene Proença: Como se deu sua formação profissional na área? Quem foram os seus principais interlocutores?

Beatriz Belluzzo: Fiz minha graduação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, na época – início da década de 70 – ainda não era UNESP, mas um dos Institutos Isolados da USP. A teoria comportamental era predominante, talvez, por decorrência dessa hegemonia, tínhamos grande curiosidade e interesse por outras abordagens, assim absorvíamos com muita motivação as disciplinas que traziam autores piagetianos e psicanalistas. Desta época, lembro-me dos estudos sobre a criança carente cultural e também, em especial, dos trabalhos de Ana Maria Poppovic sobre alfabetização e ensino pré-escolar.

Tudo que se referia à criança tinha grande significado para mim, então os teóricos como Melanie Klein, Aberastury, Piaget, estudei com muito empenho. Mas também as disciplinas pedagógicas, que traziam os teóricos da educação, eram especialmente caras para mim. Lembro-me dos estudos sobre Paulo Freire e práticas alternativas, como as comunidades escolares e a crítica radical, como as propostas pela sociedade sem escolas de Ivan Illich e das análises de Demerval Savianni acerca das concepções de educação.

Entretanto, minha formação na área consolidou-se com o curso de pós-graduação no Instituto de Psicologia da USP, quando tive a oportunidade de, sob a orientação da professora Maria Helena Souza Patto, estudar de forma mais sistemática os autores que faziam a crítica à psicologia escolar que até então eu conhecia.

Pesquisar o processo de estigmatização produzido pelas Classes Especiais para Deficientes Mentais existentes nas escolas públicas nos anos 80 – baseando-me em autores que desconhecia e que foram muito importantes para mim, como Erving Goffman, Howard Becker e Gilberto Velho –, em minha dissertação de mestrado, foi decisivo para que pudesse compreender como a psicologia poderia prestar um desserviço à sociedade e aos estudantes produzindo excluídos, não só na e pela escola, mas da sociedade.

Este foi o momento fundamental, de grande entusiasmo e descoberta para mim. Estudava avidamente os mais diferentes autores: da Sociologia estudei textos de Althusser, Bourdieu, Establet; da Sociolinguística, os textos de William Labov – discutidos com o professor Jürn Philipson – revolucionavam tudo o que havia aprendido. Foram os estudos sobre Psicologia Institucional, baseados em Loreau, Lapassade, Bleger e Pichon Rivière que, aos poucos, me auxiliaram a delinear uma forma de trabalho possível para a Psicologia Escolar em uma escola pública, objeto do trabalho de doutorado defendido em 1994, no Instituto de Psicologia da USP.

Mas, muitas ideias são necessárias para uma psicologia que se quer útil para a educação e para o desenvolvimento de crianças, de forma a contribuir para uma nova sociedade, como nos ensinava Paulo Freire. Foi preciso aprender mais, muito mais, de história e também entender qual história estávamos construindo. Assim, depois de beber na fonte de autores que contribuíram para a história da educação brasileira como Otaíza Romanelli, Jorge Nagle, Celio da Cunha, dentre tantos, fui entender que era preciso estudar a história construída no cotidiano escolar. A abordagem etnográfica trazida para o estudo na área da Educação, como Justa Ezpeleta, Elsie Rockwell e Marli André nos ensinava que era preciso compreender como cada história era construída para podermos atuar na transformação.

Quando isso foi ficando mais claro para mim, estava envolvida com trabalhos em uma escola pública que implantava o Ciclo Básico, proposta considerada inovadora para a época, que enfrentava grande resistência dos professores. Analisando essa experiência, pude entender o quanto é fundamental o conhecimento das políticas públicas e os mecanismos produzidos com elas e apesar delas. E, dentre estes mecanismos, o peso da subjetividade nesta construção.

Marilene Proença: Um de seus interesses de pesquisa centra-se principalmente no campo da Educação Infantil. Como você entende as contribuições da Psicologia Escolar e Educacional para este segmento da educação?

Beatriz Belluzzo: O trabalho com a Educação Infantil – objeto das pesquisas e do meu trabalho como pesquisadora e docente junto ao programa de pós-graduação em Psicologia da UNESP de Assis – foi um retorno ao primeiro interesse na área da Psicologia. Curiosamente, meu primeiro trabalho profissional foi como professora de uma classe de Jardim da Infância de uma escola da cidade de Assis, onde morava.

No curso de Psicologia, lecionava a disciplina de Psicologia Escolar e orientava estágio em instituições de Educação Infantil de Assis e de municípios vizinhos, buscando formar psicólogos comprometidos com a criança enquanto cidadão de direito. Aos poucos, entendemos que era uma área carente de trabalhos no campo da Psicologia, havia muitas perguntas e poucas respostas. As convicções construídas com os trabalhos de pesquisa realizados com crianças das primeiras séries do ensino fundamental – como o compromisso com a criança-cidadã, o trabalho com os educadores e comunidade escolar em uma relação intersubjetiva simétrica e a consideração pela história construída – transferem-se para o estudo, a pesquisa e a prática profissional em creches e pré-escolas.

Para sistematizar o trabalho que desenvolvia juntamente com a colega Elisabeth Gelli Yazlle, na UNESP de Assis, criamos o grupo de pesquisa denominado NEPPEI – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação Infantil – com pesquisadores e alunos de graduação e pósgraduação do curso de Psicologia. Pesquisamos temáticas decorrentes dos trabalhos de inserção nas instituições e também da militância política para que estas instituições fossem efetivamente espaços educativos a serviço da criança, como propõe a LDB.

O sentido da profissão de professor de educação infantil para seus agentes, as concepções de infância para os educadores e para as crianças, as questões de gênero e raça, as práticas de leitura e escrita implantadas, dentre outras temáticas, foram trabalhadas por este grupo, do qual participava intensamente, oferecendo um trabalho na interface da Psicologia e da Educação, visando aprofundar as possibilidades para uma educação de qualidade nesta etapa de ensino. Além dos textos sobre história da educação, recorremos à sociologia da infância para subsidiar os estudos que revelavam a cultura infantil produzida. Também os trabalhos da abordagem socio-histórica ofereciam grandes contribuições para nossas pesquisas.

Destes trabalhos, guardo a certeza de que a Psicologia pode e dever contribuir de forma fundamental ao se colocar a serviço dos educadores e comunidade escolar enquanto instrumento que auxilia na compreensão das construções subjetivas que determinam relações interpessoais definidoras de destinos, crenças, projetos e políticas organizadoras das regras de vida social, neste caso, nas creches e pré-escolas.

Marilene Proença: Que experiências você menciona como mais significativas no campo da Psicologia Escolar e que contaram com sua participação direta?

Beatriz Belluzzo: Em minha opinião, a Psicologia Escolar Brasileira tem uma história que se divide em antes e depois de uma abordagem crítica: antes, quando se acreditava em uma educação neutra e se adotava uma prática adaptacionista, enquanto instrumento que poderia contribuir para o ajustamento e a harmonia do ambiente escolar e para o aumento da produtividade educacional, sem questionar a serviço de quem; depois, quando se revela o caráter segregador e perverso das ciências humanas, em especial quando se aplicam os parâmetros de ciências naturais, “naturalizando” processos sociais de exclusão e discriminação produzidos historicamente. A partir de então, todo o esforço é no sentido de reverter o efeito negativo produzido e construir formas de trabalho que humanizem as relações, ou seja, que considerem a história construída produzindo novas organizações mais participativas e positivas.

Eu faço parte dessa história, penso que sou e fui sujeito e objeto desse processo. Das experiências por que passei, a mais definitiva para minha história de vida foi um caso muito negativo. Refere-se a avaliações psicológicas que fazíamos para as escolas na Clínica de Psicologia Aplicada da Universidade, visando ao encaminhamento de crianças para classes especiais. De posse dos laudos psicológicos, várias professoras negaram-se a receber as crianças com o argumento de que não eram formadas para lecionar para crianças com as dificuldades ali apresentadas. Penso que todo trabalho que fiz a partir de então foi para não permitir que esta situação se repita, para que as crianças possam ser acolhidas, respeitadas e incluídas; para que os professores possam ver e rever os sentidos que atribuem a si, enquanto professores, às crianças, enquanto sujeitos de direitos e à educação como instituição historicamente construída em benefício do desenvolvimento humano.

Marilene Proença: Do seu ponto de vista, quais seriam as principais questões a serem enfrentadas ainda pela Psicologia Escolar e Educacional?

Beatriz Belluzzo: A Psicologia Escolar e Educacional tem ainda muito a enfrentar. Talvez o primeiro passo tenha sido dado quando os psicólogos reconheceram a possibilidade da Psicologia ser um instrumento que pode contribuir para a emancipação humana, em uma perspectiva crítica; que, enquanto construção histórica, pode mudar sua história e traçar novas metas.

Talvez a primeira questão a ser enfrentada seja pelo reconhecimento enquanto ciência a serviço da educação. O profissional da psicologia precisa encontrar um espaço institucionalmente delimitado que viabilize sua prática profissional. É preciso que o cargo de psicólogo escolar seja reconhecido e regulamentado do ponto de vista legal.

Outra questão refere-se à formação permanente. Não basta a graduação, para uma atuação efetiva, um profissional não pode estar só, precisamos de interlocutores, de estudo, de pesquisa e articulação constante. A comunidade científica e as associações têm investido em espaços de formação para diversas áreas de atuação do psicólogo, mas pouco na área escolar e educacional. Talvez seja um reflexo do próprio campo de trabalho, mas temos que fazer um esforço nas duas direções – em abrir possibilidades de intervenção na educação e também de desenvolvimento dos psicólogos e dos estudos na área – para que possamos avançar com a Psicologia Escolar e Educacional a serviço da educação para todos, como um direito.

Marilene Proença: Você está na Presidência da ABRAPEE. Que desafios você considera que estão postos para a Associação?

Beatriz Belluzzo: Para que possamos enfrentar os desafios postos atualmente para a Psicologia Escolar e Educacional, é preciso ampliar o grupo, ou seja, envolver mais psicólogos e profissionais de áreas afins na luta por uma psicologia que possa efetivamente contribuir para a educação de qualidade como direito do cidadão brasileiro.

Isto significa uma batalha política para que seja aprovada uma lei nacional, com efeito para todos os estados brasileiros, que garanta um espaço institucional do psicólogo no âmbito da educação, por compreender a Psicologia como uma profissão que pode efetivamente contribuir para a melhoria da qualidade do processo educacional e escolar.

Significa ainda que teremos que aumentar e qualificar esse grupo. O aumento de espaços de debates e estudos na área é um dos desafios a ser perseguido. A continuidade do nosso Congresso, tornando-o cada vez mais participativo; a ampliação das representações estaduais, fortalecendo e ampliando os grupos de psicólogos escolares e educacionais em vários estados brasileiros; a manutenção da publicação da nossa Revista, com inserção de todos os fascículos na base de dados eletrônica; trabalhar para a criação de cursos de especialização e atualização na área; ampliar a articulação com as universidades brasileiras e com o Fórum Nacional de Entidades de Psicologia, visando manter e expandir a presença da psicologia em nosso campo; e, também, fazer gestões para maior presença da psicologia escolar e educacional brasileira na sociedade científica internacional, com a manutenção dos vínculos com a ULAPSI, a CIP e a ISPA são metas colocadas para esta gestão.

Metas que, temos certeza, não se esgotarão em dois anos, mas que terão que ser mantidas por nossos colegas que continuarem nosso trabalho, da mesma forma que hoje estamos buscando cumprir uma empreitada já iniciada por psicólogos e estudiosos da área que compreenderam a necessidade de somar, de agrupar os profissionais nessa missão, por meio da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional.

 

 

Beatriz Belluzzo Brando Cunha (beatrizbelluzzo@gmail.com)
Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis
Marilene Proença Rebello de Souza (mprdsouz@usp.br)
Universidade de São Paulo.