SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número2Entrevista com Beatriz Belluzzo Brando Cunha índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.13 n.2 Campinas dez. 2009

 

RELATOS DE PRÁTICAS PROFISSIONAIS

 

A doença do Tom Cruise: uma experiência de estágio em intervenção psicoeducacional

 

Tom Cruise´s sickness: an experience of internship in psychological intervention

 

La enfermedad de Tom Cruise: una experiencia de práctica profesional en intervención psico-educacional

 

 

Deborah Rosaria BarbosaI; Moacir José da Silva JuniorII; Karolina Murakami AngelucciIII

IUniversidade de São Paulo
IIFaculdade Católica de Uberlândia
IIIUniversidade Federal de Uberlândia

Endereço para correspondência

 

 

O caso apresentado neste relato é fruto de um de estágio em Psicologia Escolar que tinha como objetivo o atendimento a crianças com problemas no processo de escolarização. O estágio intitulado: “Intervenção psicoeducacional com crianças/adolescentes com queixas escolares/sucesso escolar” era coordenado por uma das autoras deste relato e ocorreu nos anos de 2004 e 2005 no serviço-escola da Universidade Federal de Uberlândia (MG). O mesmo era parte dos requisitos para formação de psicólogo da referida instituição e atendeu mais de 30 crianças em dois anos de existência, tendo passado por este 15 estagiários ao todo, 12 estudantes do curso de Psicologia, 2 alunas da graduação em Artes Plásticas e 1 da Matemática. A ideia de ter alunos de outros cursos de graduação tinha como intuito promover um espaço de intervenção multidisciplinar. O personagem deste relato, aqui nomeado de Tom Cruise da Silva (nome fictício), é um menino de 11 anos de idade (3ª série inicial), que foi atendido pelos autores no ano de 2005.

A atuação psicológica proposta no estágio tinha como prerrogativa o atendimento psicoeducacional e não o tipicamente clínico, geralmente mais enfocado na graduação em Psicologia. Esta diferenciação começava com a avaliação psicoeducacional, baseada em pressupostos de não individualização da queixa escolar, problematizando sua indicação e investigando todo o contexto buscando compreender as raízes sociais, históricas, culturais e pessoais da queixa. Nosso arcabouço de fundamentação teórico- metodológica incluía as contribuições de Patto acerca da produção do fracasso escolar e do papel do psicólogo (Patto, 1984, 1996). Também utilizamos as produções sobre fracasso escolar e atendimento a queixas escolares de Angelucci e cols. (2004), Freller (1997a, 1997b), Machado & Souza (1997) e Souza (1996).

Desde a avaliação, buscava-se intervir de forma diversa do molde tradicional de atendimento baseado em anamnese, aplicação de testes ou escuta analítica (como criticam Machado, 2000 e Patto, 1997). Para tanto, o processo avaliativo e interventivo ocorriam simultaneamente e iniciava-se com a problematização da própria queixa junto ao queixante inicial, sua produção, e eram ouvidos todos os personagens envolvidos no processo de escolarização: a escola, os pais, o aprendiz.

Tom é uma criança criativa que adora desenhar, sabe fazer contas “de cabeça” e, quando chegou ao serviço-escola, tinha uma queixa escolar de que não sabia ler e escrever, mesmo estando na 3ª série do ensino fundamental (primeiro ciclo), com 11 anos de idade. Num primeiro acolhimento à mãe, feito por outra psicóloga, que depois nos encaminhou Tom, a profissional relata que a mãe, ao ser questionada por que procurava o serviço-escola, disse: “...ele tem a doença do Tom Cruise, tá escrito aqui neste papel, eu não sei falar direito esta palavra, mas a doutora me explicou que é a doença do Tom Cruise... (sic)”. A fonoaudióloga que atendeu Tom pela primeira vez, num serviço de saúde público da cidade, diagnosticou-o como portador de dislexia e deu um encaminhamento e uma explicação que a mãe ali repetia.

Nota-se que esta fonoaudióloga aprendeu bem o modo tradicional (baseado no modelo médico) utilizado por muitos profissionais, neles inclusos os psicólogos, em que, para conhecer o fato psicológico, abstrai-se o doente. Neste modelo de atendimento, a doença é definida por intervalos, lacunas, distâncias (Moysés & Collares, 1992, 1997). Baseia-se no que falta, naquilo que a pessoa não consegue fazer adequadamente (segundo alguns padrões pré-estabelecidos, geralmente arbitrários). Como ele não sabia ler e escrever, portanto era disléxico, na visão da fonoaudióloga. É possível ver no papel encaminhado que não há nenhuma menção ao que Tom sabia fazer. Geralmente, uma avaliação tradicional não considera as habilidades que a criança tem, muito menos relata quais são as condições do meio escolar e não reflete sobre o peso que um diagnóstico como este tem e como pode ser internalizado pela criança e mãe.

Tom Cruise é um ator americano conhecido por trabalhos como Missão Impossível, Top Gun e Magnólia. A mãe do nosso Tom pode ter pensado várias coisas ao ouvir esta explicação da fonoaudióloga. Pode ter pensado: será que é grave o que meu filho tem? Será que tem cura? Como será esta doença? Ou milhares de possíveis outros pensamentos que nem ao menos conseguimos imaginar. Um profissional que trabalha na perspectiva tradicional pouco exploraria o modo como esta queixa se apresentou e iria logo perguntando com que idade a criança sentou e falou, se mamou no peito ou na mamadeira, e muito menos iria problematizar esta queixa junto a todos os personagens presentes na produção da mesma. E nisto o nosso trabalho se diferenciava.

No estágio, buscamos atuar com todos os que podem contribuir na a produção da queixa e também na produção de um sucesso escolar. Neste sentido, o passo inicial era refletimos junto a todos sobre esta queixa e seus possíveis múltiplos sentidos representacionais. Iniciávamos com um acolhimento, seguido de uma visita à escola, os professores da criança eram convidados a participar, bem como a criança e os seus pais. Neste caso, também intervimos junto à fonoaudióloga que nos encaminhou o aluno.

Um dos focos iniciais da intervenção foi desmitificar Tom, “desrotular” o seu “não saber ler e escrever” como uma patologização individual. Buscamos levar a todos, à escola, à família, à criança e aos profissionais que estão ligados ao caso, um novo olhar sobre Tom enfocando o que ele sabia, o que era capaz, destacando suas habilidades, interesses, gostos, desejos, que sequer foram levados em consideração até então (congruentes com a visão prospectiva como apontada por Vygotsky, 1987, 1999). Logo no início, Tom nos trouxe sua pasta com mais de 100 desenhos produzidos e assim iniciamos o trabalho com o que Tom sabia, ele sabia ler e escrever sim, entretanto, uma escrita iconográfica, seus desenhos. Na sequência, foram feitas visitas periódicas à escola, análise do material escolar e intervenções junto à escola, com a professora de Tom, e também a integração de sua mãe no grupo de pais e dele no grupo de crianças.

Na avaliação inicial, Tom demonstrou conhecer algumas letras e desenhava o próprio nome com a omissão de uma vogal importante. Foi proposto que ele montasse um alfabeto de palavras com desenhos que ele mesmo produzisse, exemplificando cada letra. Este alfabeto móvel do Tom tinha, por exemplo, a letra I e o desenho de uma igreja, a letra A e o desenho de um abacaxi e assim por diante. O material foi utilizado nas atividades de jogos e brincadeiras como: bingo de letras, jogo da “forca”, dominó com palavras e outras inventadas junto com a criança num processo construtivo. E outras palavras foram sendo escritas e lidas conjuntamente, assim como a história de Tom foi sendo reescrita.

Um dos estagiários, hoje autor deste relato, que havia feito curso de desenho, contribuiu ensinando a Tom técnicas de desenho em perspectiva, de rostos, mesclando-as à leitura e escrita, ação que muito atraiu a atenção da criança. Antes das intervenções, via-se que o material escolar despertava pouco interesse e só a partir do momento em que passamos a produzir junto com ele materiais escritos articulados aos seus desenhos, é que ele foi se interessando mais. Aproveitava-se a semelhança da grafia de algumas letras com certos desenhos como M e montanha, B e barriga, para ir ajudando-o a compreender letras que não conhecia. Foram sugeridas à professora atividades a serem desenvolvidas com a criança e esta recebia orientações (quinzenalmente) para seu trabalho com ele e os outros alunos, de forma a contribuir com o seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Nas oficinas realizadas com as crianças e com seus pais (em separado), utilizávamos arte, dança, música, pintura, expressão corporal, fantoches, jogos de ler e escrever, jogos matemáticos, contação de estórias etc (inspirados em Silva, 2005). Também foi realizado ciclo de palestras com todos os professores na escola de Tom. Nem tudo foram flores e nem sempre acertamos, principalmente porque, ao mesmo tempo em que construíamos um trabalho para Tom (e as outras crianças), também era construído o próprio estágio, a supervisão do mesmo e a (trans)formação dos estudantes em profissionais. Mas, destacando o que tivemos de bom, a professora nos relatou que ele “copiava” palavras do quadro aparentemente sem entender e entregava exercícios e provas em branco. Depois, viu ele escrever a palavra “banana” com a grafia: “banaa”, denotando seu aprendizado.

Assim, decidimos que Tom podia seguir sozinho e ele nos deu um presente de despedida: um desenho (sua linguagem escrita favorita) e uma cartinha assinada por ele, não mais omitindo a vogal em seu nome pois já não mais desenhava o próprio nome, mas sabia escrevê-lo. Era um começo para ele e um fim para o nosso encontro. Na carta, uma cópia de um texto bíblico, ele ainda confundia “f” com “t”, “m” com “n” e “i” com “e”, mas o que importava agora? Ele tinha sido restituído de sua condição de aprendiz e trouxe com orgulho as primeiras provas que não deixou em branco. Respondendo-as “errado”, mas tentando fazê-las.

Concluindo, compreendemos que, em todo este estágio e este período com Tom, apesar dos tropeços e retomadas, idas e vindas, erros e acertos neste processo de reinventar o trabalho do psicólogo escolar, nem sempre coroado só de sucessos, acreditamos que também conseguimos avanços, em alguma medida. E terminamos pensando realmente que ele tinha a doença do Tom Cruise: para nós, era um mocinho bonito, criativo, esperto, talentoso e que transforma missões impossíveis em possíveis.

 

Referências

Angelucci, C. B., & cols. (2004). O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar (1991-2002): um estudo introdutório. Educação e Pesquisa USP, 30, 52-72.        [ Links ]

Freller, C. C. (1997a). Crianças portadoras de queixa escolar: reflexões sobre o atendimento psicológico. Em A. M. Machado & M. P. R. de Souza (Orgs), Psicologia Escolar: em busca de novos rumos (3ed., pp. 63-77). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Freller, C. C. (1997b). Grupos de crianças com queixa escolar: um estudo de caso. Em A. M. Machado & M. P. R. de Souza (Orgs), Psicologia Escolar: em busca de novos rumos (3ed., pp. 123- 137). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Machado, A. M. (2000). Avaliação psicológica na educação: mudanças necessárias. Em E. R. Tanamachi, M. P. R. Souza & M. L. Rocha (Orgs.), Psicologia e Educação: desafios teóricopráticos. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Machado, A. M., & Souza, M. P. R. (Orgs.). (1997). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos (3a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Moyses, M. A. A., & Collares, C. A. L. (1992). A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos CEDES, 28, 31-47.        [ Links ]

Moyses, M. A. A., & Collares, C. A. L. (1997). Inteligência abstraída, crianças silenciadas: as avaliações de inteligência. Psicologia USP, 8, 63-72.        [ Links ]

Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T.A. Queiroz.        [ Links ]

Patto, M. H. S. (1996). A produção do fracasso escolar: história de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz.        [ Links ]

Patto, M. H. S. (1997). Para Uma Crítica da Razão Psicométrica. Psicologia USP, 8(1), 47-62.        [ Links ]

Silva, S. M. C. (2005). Psicologia Escolar e Arte – uma proposta para a formação e atuação profissional. Campinas, SP: Alínea/ EDUFU.        [ Links ]

Souza, M. P. R. (1996). A queixa escolar e a formação do psicólogo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1987). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1999). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Deborah Rosaria Barbosa
Endereço: Rua Caraíbas, 172 – Perdizes
São Paulo/SP – CEP: 05020-000
E-mail: deborahbarbosa@yahoo.com.br

Moacir José da Silva
E-mail: moacirmatiole@hotmail.com

Karolina Murakami
E-mail: karol.murakami@yahoo.com.br

Recebido em: 25/11/2009
Aprovado em: 23/12/2009