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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.19 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Formação contínua de professores: aspectos simbólicos

 

Continuing education of teachers: symbolic aspects

 

Formación continua de profesores: aspectos simbólicos

 

 

Ecleide Cunico Furlanetto*

Universidade Cidade de São Paulo - Unicid

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo está pautado numa pesquisa que foi desenvolvida numa Escola de Ensino Fundamental localizada em Heliópolis na cidade de São Paulo cujo objetivo foi contribuir com novos elementos para repensar a formação continuada de professores, ampliando, dessa maneira, a compreensão de como se dá essa formação. A investigação foi iniciada a partir do exercício da escuta simbólica das falas dos professores. A Indisciplina emergiu como um problema. A partir de movimentos, referendados em Jung, denominados de circundação, ampliação e reconstelação, fomos nos aproximando do problema o qual foi se transformando num símbolo que, ao ser elaborado, possibilitou que os professores construíssem novos sentidos para as atitudes dos alunos, bem como desenvolvessem práticas pedagógicas mais sintonizadas com as necessidades da comunidade educativa.

Palavras-chave: Símbolo, Formação continuada de professores, Educação.


ABSTRACT

This article is based on a study developed in an Elementary School located in Heliópolis in the city of São Paulo. The objective of this study was to contribute with new elements with wich to rethink the continuing formation of teachers, and in this manner increase the understanding of how this formation is given. The investigation began with an exercise of symbolic listening to what the teachers were saying. One of the problems to arise was insubordination. Through Jungian movements, known as circumduction, amplification and reconstellation, we began to approach the problem which was transformed into a symbol. Through the elaboration of this problem, the teachers were able to give new meaning to the attitudes of the students, as well as develop pedagogic practices which are more syntonized with the needs of the educational community.

Keywords: Continuing formation of teachers, Symbol, Education.


RESUMEN

Este artículo tiene su base em uma investigación que fue desarrollada em uma escuela de enseñanza fundamental localizada en Heliópolis, en la ciudad de San Pablo, cuyo objetivo fue contribuir con nuevos elementos para repensar la formación continuada de profesores, ampliando, de esta manera la compreensión de como se da esa formación. La investigación fue iniciada a partir de el ejercício de escucha simbólica de los relatos de los profesores. La indisciplina emergió como un problema. A partir de movimientos, respaldados em Jung, denominados de circundación, ampliación e reconstelación, fuimos aproximandonos del problema que fue transformandose em un símbolo que, al ser elaborado torno possible que los profesores contruyesen nuevos sentidos para las actitudes de los alumnos, bien como que desarrollasen prácticas pedagógicas más sintonizadas con las necesidades de la comunidad educativa.

Palabras clave: Símbolo, Formación continuada de profesores, Educación.


 

 

Este artigo referenda-se numa pesquisa interdisciplinar1 que surgiu da observação de que a Formação de Professores, principalmente daqueles que trabalham com crianças das camadas sociais menos favorecidas, ainda necessita de ser revisitada, na medida em que estas colocam o professor diante de situações existenciais pouco estudadas e compreendidas por educadores formados disciplinarmente. Para contextualizar essa investigação, procurarei relatar alguns aspectos de minha trajetória de pesquisadora e o caminho que venho percorrendo, no sentido de aproximar os horizontes da Educação e da Psicologia Analítica.

 

Traçando o caminho

Retomando minha trajetória de pesquisadora, posso perceber que adentrar e compreender o que ocorre nas regiões invisíveis dos espaços pedagógicos tem sido para mim um desafio. Na década de 80, trabalhando como coordenadora pedagógica de uma Escola de Ensino Fundamental, observava e ouvia relatos de que, apesar de um trabalho cuidadoso realizado por muitos professores, grande parte dos alunos, após curto espaço de tempo, estava dispersa.

Sentia que, para compreender essas questões em sua profundidade, necessitaria de parcerias epistemológicas que fornecessem recursos que me permitissem adentrar níveis de realidade não explorados ainda pela Educação. Fui em busca da Psicologia Analítica, que me parecia possuir alguns recursos de que eu necessitava. Procurei criar uma zona fronteiriça entre a Educação e a Psicologia Analítica, na qual um novo tipo de conhecimento fosse gestado e retornasse ao território da Educação transformando-o.

Para realizar essa tarefa, procurei o Mestrado e realizei uma pesquisa intitulada: Uma tentativa de leitura simbólica da escola (Furlanetto 1989), através da qual me aproximei do espaço escolar. Fui apreendendo o cotidiano pedagógico, que analisei e interpretei a partir do referencial teórico da Psicologia Analítica.

O primeiro conceito a ser revisitado foi o de símbolo, ferramenta que me pareceu importante para poder pesquisar as questões que me intrigavam. Os símbolos pareciam se apresentar como enigmas, escritos em linguagem cifrada que, ao ser decifrados, nos permitiriam adentrar outros níveis de realidade que não se mostravam de forma literal e explícita. Um símbolo pode ser uma idéia, uma emoção, um acontecimento ou um objeto que, além de seu significado literal, possui outros significados ocultos e até mesmo inconscientes.

O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além de seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga desconhecida e oculta para nós. (Jung,1964: 20).

Partindo do material coletado, procurei desvelar alguns símbolos expressos no cotidiano escolar e, através deles, percebi que a dimensão simbólica nos permitia explorar em alguns aspectos pouco explorados da prática pedagógica. Através dos símbolos, fiz uma leitura do processo de estruturação da escola, leitura que me permitiu ir além do aparente e detectar os movimentos que poderiam ser até mesmo arquetípicos2.

Fui encaminhada também, pelo meu referencial teórico, a aprofundar-me na compreensão do princípio da sincronicidade, descrito inicialmente por Jung. Este viveu no início do século, e os métodos científicos de que dispunha estavam pautados, em sua maioria, no princípio da causalidade. Como analista e profundo observador da alma humana, percebia que esse não era o único caminho para se produzir conhecimento; não negava sua utilidade para as Ciências Físicas, para compreender o mundo exterior, mas as Ciências Humanas careciam de outras ferramentas para ampliar sua capacidade de compreensão.

Ele começou a perceber a sincronicidade em sua vida cotidiana e no trato com seus pacientes. Notava que, quando certos estados gerais energéticos se instalavam, diversos acontecimentos ocorriam, sem nenhuma relação causal aparente, mas que pareciam ligados pelo significado do momento.

“Emprego, pois, aqui o conceito geral de sincronicidade, no sentido especial de coincidência, no tempo; de dois ou vários eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo, em contraste com “sincronismo” cujo significado é apenas o de ocorrência simultânea de dois fenômenos.” ( Jung, 1984: 19 )

Enquanto isso, a Física também passava por grandes transformações. Para a Física Clássica (Capra 1993), a realidade externa consistia em elementos independentes e espacialmente separados; a Quântica, explorando o mundo atômico e subatômico, colocou os cientista em contato com uma inesperada realidade que pulverizou os alicerces do pensamento anterior. Palavras como probabilidade, tendência tiveram que ser mais pronunciadas. O mundo atômico não dava as respostas costumeiras. Levou um tempo para que os cientistas fizessem as perguntas adequadas para poder se comunicar com esse novo nível de realidade. Quando essas perguntas foram formuladas, os cientistas puderam começar a entrar em contato com a unicidade básica do Universo. Não podemos mais decompor o mundo em unidades ínfimas e independentes; ele se apresenta como um complicado tecido, no qual eventos e suas conexões de diferentes tipos ocorrem, alternam- se, combinam-se para compor uma textura em constante movimento.

Von Franz nos diz que o caminho percorrido por Jung se assemelha, em alguns pontos, ao da Física Quântica. Ele também foi construindo, durante sua trajetória, as maneiras adequadas de se comunicar com as dimensões mais profundas da psique.

Como exemplo final da evolução paralela da microfísica e da psicologia, podemos considerar o conceito de Jung de significado. Onde, anteriormente, os homens buscavam explicações causais (isto é, racionais) dos fenômenos, Jung introduziu a idéia de procurar-se significado ( isto é o “propósito” ). Vale dizer que, em lugar de perguntar por que alguma coisa acontece ( o que causou ) Jung pergunta: Para que ela acontece? Esta mesma tendência aparece na física: inúmeros físicos modernos procuram na natureza mais as “conexões” do que as leis causais ( o determinismo). (Von Franz, 1964: 309)

Foi esse princípio que me possibilitou pesquisar de uma outra maneira: lendo os símbolos que se constelavam, naquele momento, na escola, e procurando compreendê-los nas suas relações e significados, procurei detectar o movimento percorrido pela escola, qual o tecido que se compunha. Pude perceber que, apesar de ela buscar um novo movimento, não contava com recursos teóricos e metodológicos para executá-lo. O que percebíamos era a existência de algumas práticas intuitivas que nasciam e morriam sem serem comprendidas e sistematizadas.

Ingressei no Doutorado em Educação, e comecei a freqüentar o GEPI Grupo de Estudos e Pesquisas Interdiciplinares, coordenado pela Profª. Ivani Fazenda. Frequentar esse espaço me possibilitou entrar em contato com as pesquisas que ali estavam sendo desenvolvidas. Minha primeira atitude, ao fazer parte do grupo, foi a de observar, e o que mais me chamou a atenção foi o grande potencial de formação do Núcleo. Senti-me instigada a investigar novas formas de formar professores. O conceito de formação pode nos remeter à idéia de fôrma. Nessa perspectiva, pode se transformar num processo de “enformar” o professor, a partir de modelos pedagógicos pré-concebidos que lhe possibilitam lançar suas próprias sementes à terra, cultivá-las e ser senhor de sua colheita. Por outro lado, o mesmo conceito de formação pode nos remeter à palavra forma. Resgatando esse novo significado, podemos pensar num movimento de formação que permita ao professor buscar seus próprios contornos.

 

A formação simbólica do professor

Observando o processo de formação do pesquisador que dialoga com a interdisciplinaridade, percebi que ele se iniciava com uma revisão do velho para torná-lo novo. Essa revisão, muitas vezes, se constituía no resgate das histórias de vida dos pesquisadores. Esse movimento me fascinou e relacionei-o imediatamente a um conceito desenvolvido por Jung denominado de Processo de Individuação que descreverei mais adiante. Movimento que ele buscava desencadear nos espaços analíticos e que implicava também uma revisão das histórias de vida. Percebi que isso poderia também acontecer em espaços pedagógicos.

Resolvi iniciar minha pesquisa de doutorado explorando esse território. Fui percebendo que, ao recuperar sua trajetória, acontecia uma estimulação do contato do pesquisador com símbolos do Processo de Individuação. Compreendendo-os e elaborando-os, ele ampliava sua consciência a respeito de como foi se transformando no educador que era hoje. Essas descobertas lhe proporcionavam um sentido de inteireza e de consistência, o que lhe estimulava a avançar com mais clareza e determinação. Os pesquisadores que realizavam esse resgate passavam por um processo de transformação que ia além das dimensões cognitivas, alcançando dimensões existenciais. Foi se tornando claro para mim que poderíamos levar essas descobertas também para o campo de formação de professores.

Também constatei que ainda não compreendíamos em profundidade esse processo. Optei por realizar minha pesquisa (Furlanetto 1997 )buscando desdobrar esse movimento. Para iniciá-la, resolvi viver esse processo, para em seguida teorizar a respeito dele. A Interdisciplinaraidade já tinha me apontado a importância de vivenciá-la para compreendê-la. Busquei resgatar meu percurso, mas também de outros educadores para compreender a trajetória que vínhamos percorrendo coletivamente.

Para compreender a importância do resgate das trajetórias no processo de formação, pedi auxílio novamente à Psicologia Analítica. O primeiro conceito a ser revisitado e aprofundado foi o de processo de individuação, descrito inicialmente por Jung como uma tendência inata que o sujeito tem de buscar sua unidade, sua totalidade, o que vai realizando sempre de forma gradativa e parcial. Buscar o si-mesmo é um fim e um princípio, é um movimento que surge como um acordo entre a semente de totalidade que existe em cada um de nós e o mundo exterior.

Ele dizia que, mesmo sendo a situação analítica um espaço privilegiado para a individuação, ela não é a única. A melhor análise é a vida: a alma humana se constitui e se conhece na experiência, tal como ela é vivida com todas as suas implicações. Percebi que o resgate das histórias de vida nos permite entrar em contato com nossas vivências, bem ou mal elaboradas; ao construir novos significados para elas provocamos uma reconfiguração psíquica. Essa posição de cooperação que assume o Ego, centro da consciência, com a personalidade total, o Self, proporciona um sentido de inteireza e uma possibilidade de existência mais profunda. É uma entrega ao caminho.

Outro conceito importante a ser resgatado foi o de self cultural e grupal, que nos permite perceber a dimensão social dessa pesquisa. Somos partes operando no todo. Percebi que, ao realizar uma pesquisa pautada em trajetórias individuais, não estamos falando só desses percursos, mas explicitando-os junto com seus nichos. A fala de cada um é, ao mesmo tempo, original e única, pois cada ser tem suas próprias marcas, mas os conteúdos nela presentes são partilhados por aqueles que fazem parte do Self Cultural no qual cada um está inserido. Através de um discurso, outros falam. Suas perguntas não são só perguntas de um indivíduo, mas indagações mais amplas feitas pela cultura na qual o Self individual está contido. Detectei que, quando uma pesquisa está conectada com a criação, ela se conecta com o mundo arquetípico e, consequentemente, transcende o indivíduo. Esses conceitos nos permitiram perceber o valor social de uma pesquisa pautada em trajetórias individuais.

Analisei e interpretei o material, obtido através de entrevistas e do resgate da memória, procurando observar os símbolos que estruturavam esse processo; ao desvelá-los, pude perceber novas possibilidades no que se refere à capacitação docente. A partir da análise realizada, detectei que o sujeito, para aprender, necessita de pensar, identificar, classificar, observar, aplicar, e de outras mais habilidades cognitivas, mas necessita também de relacionar, fascinar-se, sentir, sonhar, imaginar, vivenciar, indiscriminar-se, significar, re-significar, elaborar, ler indícios, habilidades muitas vezes pouco estimuladas pela escola.

Construí também o conceito de matrizes pedagógicas, que tem a ver com o professor interno de cada um, que não é construído somente a partir de estudos teóricos, mas que, principalmente, começa a se constituir a partir das vivências com os mais diversos tipos de ensinantes, tais como pais, professores ou qualquer adulto significativo. Essas matrizes contêm aspectos criativos bem como defensivos, e partes delas são conscientes enquanto outras inconscientes. Elas parecem ser responsáveis pela prática pedagógica do professor, e qualquer transformação passa por uma revisão e uma reelaboração das mesmas.

A fim de que essas matrizes possam ser transformadas, é necessária a construção de um espaço que permita mudanças. Para tal, desenvolvemos outro conceito, denominado de vaso formador, com suas raízes no conceito de vaso pedagógico, desenvolvido por Galiás (1989). Esta, por sua vez, se inspirou no conceito de Vaso Terapêutico (Byington,1996). O conceito de Vaso Formador aponta para algumas condições que devem ser consideradas num processo de formação: elas têm a ver com a escuta e o olhar simbólicos, com o diálogo, com a espera e com o processo de elaboração. Percebi que essas condições permitem criar um espaço de confiança, de entrega ao conhecimento e de parceria possibilitando transformações nos sujeitos envolvidos como também no objeto da prática pedagógica.

Notei que projetos de formação, com o objetivo de colocar o professor numa fôrma, não permitindo a construção de Selfs Grupais que operem o crescimento dos indivíduos envolvidos, não parecem ser os mais indicados para desencadear um compromisso do professor com seu percurso profissional. Ao acontecer em espaços e tempos contidos por um Vaso Formador, no qual as informações técnicas e teóricas não se transformam em modelos, mas em possibilidade de análise da prática dos envolvidos, que podem buscar sua forma, tendem a ser mais fecundos. As transformações ocorrem quando criamos as condições necessárias que, nesse caso, implicam o processo de reflexão teórica e de elaboração da prática.

 

Novas perspectivas para a formação de professores

No ano de 1998, havia interesse, por parte da Secretaria Municipal da Educação da Cidade de São Paulo, em apoiar pesquisas comprometidas com o produzir conhecimentos que favorecessem uma melhoria do Ensino Público. Esse interesse veio ao encontro do compromisso pessoal e profissional com o estudo e com a pesquisa, assumido pelo Programa de Mestrado em que trabalhava. Duas pesquisadoras do mestrado optaram por realizar uma pesquisa, sobre formação contínua de professores, numa escola municipal, localizada perto da favela de Heliópolis. Ana Gracinda Queluz dedicou-se ao estudo das questões temporais, enquanto eu dediquei-me ao estudo das questões simbólicas.

Procuramos inicialmente, criar condições para que um espaço intersubjetivo pudesse ser construído; para isso, dispusemo-nos a escutar. Procuramos uma porta de entrada e, para descobri-la, perguntamos aos professores o que os inquietava, e eles contaram que a indisciplina dos alunos os incomodava e os “tirava do sério” A indisciplina não foi vista como um problema , mas como um símbolo. ( Furlanetto, 2001) Aproximamo-nos da indisciplina, através de um movimento que pode ser nomeado de circundação. Esse movimento foi descrito por Jung (1983) e implica circular ao redor do objeto traçando uma linha “sulcus primigenius” ao redor do centro, que se constitui no templo ou “temenos”, uma área sagrada. Esse movimento inicial possibilita a construção de um “Vaso Formador”, conceito que desenvolvi em minha tese de doutorado.

O movimento de circundação busca compreender a realidade, compreender no sentido de abraçar e de acolher o real, uma forma mais matriarcal de produzir conhecimento, diferente do sentido de entender, talvez mais comprometido com o penetrar, um movimento patriarcal de conhecer.

Para Jung, à maneira nietzschiana, o intelecto é de incontestável utilidade, mas é também um grande embusteiro e ilusionista, ou como diria Nietzsche, um “mestre do disfarce” sempre que tenta manusear valores. Já compreender (verstehen) significa colocar-se ao redor de alguma coisa. Exprime idéia semelhante ao erfassen, alemão (abranger, entender). O que essas expressões têm em comum é o envolver e o abraçar. O conflito entre entendimento e compreensão não se resolve, porém, com uma alternativa exclusiva – “ou ,ou”- e sim por uma via dupla do pensamento: fazer uma coisa sem perder de vista outra. (Maroni, 1998. p. 123 )

Ao circular em torno do objeto de pesquisa, diversas dimensões subjetivas e objetivas são percebidas e relacionadas, iniciando-se, também dessa forma, a construção do Self Grupal, que não se constitui a partir da simples justaposição dos indivíduos, mas sim do encontro de sujeitos que, através de suas trocas conscientes e inconscientes, compõem uma totalidade na qual as partes funcionam articuladas.

Realizamos esse movimento através de atividades expressivas. Compusemos, com barbante, uma teia. O rolo de barbante era jogado de um participante para outro, e, ao jogar, cada um pronunciava uma palavra associada a indisciplina. Dessa forma, ela foi se desdobrando em múltiplos sentidos: o espaço vazio, no centro do círculo, foi preenchido com o medo, a transgressão, a carência, o barulho, a incompreensão, a fome e outros tantos mais. Esses novos elementos foram nos dando pistas de que a indisciplina era a ponta aparente de algo muito mais complexo. Dessa forma, fomos compondo a base de nossa pesquisa.

Após essa atividade, assistimos a um filme de uma professora que também enfrentava problemas de indisciplina. Ele teve a função de um espelho, no qual os professores puderam, ao olhar a outra docente, se olhar e expandir sua percepção a respeito da indisciplina. Em seguida, levamos à escola chocolates com diversos nomes: Sonho de Valsa, Diamante Negro, Sonata de Outono, Kids e outros. Cada professor escolheu um e procurou relacionar sua escolha com o tema que estávamos tratando. Ao desembrulhar o chocolate e explorá-lo pelos órgãos dos sentidos, os professores concretizaram um movimento que vínhamos fazendo. Foi necessário tirar invólucros para se aproximar do núcleo. Com os papéis, fizeram uma mandala. Qual a nossa surpresa! No centro da mandala estava o papel de Kids. O centro não era mais a indisciplina e sim os alunos. Nesse momento, percebemos que estes deveriam também participar de nossa pesquisa.

A partir daí, introduzimos os alunos “indisciplinados” em nosso círculo. Eles passaram a ser ouvidos, com a mesma escuta que abraça, compreende para depois entende. Símbolos que emergiam de suas trajetórias passaram a ser elaborados juntamente com os professores. Essa elaboração coletiva nos mostrou um aluno real que tem fome, apanha, sente medo, que sonha muito pouco, às vezes não tem esperança. Essa criança nos pôs em cheque, obrigou-nos a revisões profundas. Percebemos que os alunos conheciam e viviam a partir dos códigos da sobrevivência. Grande parte de suas energias eram gastas na resolução de problemas básicos da vida, tais como comer, vestir-se, enquanto os professores estavam comprometidos com os códigos da convivência relacionados às normas e aos limites. Era como se um grupo não conhecesse os fios com os quais era tecida a linguagem do outro. Esse desconhecimento provocava incompreensão e afastamento.

Ao nos depararmos com esse aluno real, com suas histórias de vida permeadas por perdas e carências, desde as mais literais, como comida, agasalhos, materiais didáticos, até as menos perceptíveis, como a afetiva, a de relacionamentos estáveis, a de oportunidade de ser ouvido, ficamos impactadas. Tínhamos a sensação de que nada poderia ser feito. As causas para os problemas que apresentavam eram inúmeras, e muitas de suas raízes não se encontravam nem na escola nem nas famílias, mas no tecido social ao qual elas pertenciam. Ficamos por um tempo paralisadas. O que fazer nesse contexto? Buscamos a ajuda de alguns serviços da Universidade de Serviço Social, de Odontologia, de Enfermagem, mas eles não dariam conta de tantas necessidades.

Aos poucos, fomos percebendo que as crianças, ao ser escutadas, se ouviam, puderam ouvir suas vozes, recuperar suas histórias, falar de seus sonhos, conectar-se com seus desejos. Esse pequeno espaço foi se constituindo num vaso alquímico, e transformações foram acontecendo nas crianças e em nós. Introduzimos a palavra, o desenho, a leitura de histórias infantis como possibilidade de expressão; para alguns essas possibilidades surgiram como uma alternativa para os tapas e os empurrões.

Demos um caderno, a um menino que ficava com a coordenadora da escola; quando ele sentia raiva, ao invés de atrapalhar a aula, podia descer até o térreo e desenhar. Numa segunda – feira, chegou muito irritado à escola e queria uma tampa de caneta, que tinha sumido dias antes. Não deixava a professora dar aula. Ela também se contagiou com a irritação dele e o colocou para fora da classe. Ele desceu, pediu o caderno e fez um desenho representando uma cena que tinha vivido no final de semana: seu pai tinha bebido e expulsado de casa a mãe com os filhos. Ele tinha dormido na rua, sem agasalho. Só tinham conseguido entrar em casa naquela manhã, com a ajuda da polícia. A tampa da caneta era um símbolo que poderia fornecer pistas de que outros significados ocultos estavam nela contidos. Era necessário que esse menino pudesse elaborar as vivências do final de semana, sem o que ele não poderia se abrir para aprender os conteúdos que estavam sendo trabalhados em sala de aula.

As falas dos alunos e esses acontecimentos começaram a ser discutidos com os professores, os quais puderam conhecer o aluno real que tinham em sala de aula. Começamos a perceber um outro movimento que Jung denominava de ampliação. Ele percebia que inúmeros problemas da vida parecem insolúveis e os são se ficarmos fixados em soluções comprometidas com determinados estados de consciência, mas, ao ampliá-la, podemos olhar nossos problemas de um outro lugar e descobrir novas maneiras de lidar com eles.

No meu trabalho, sempre mantive a convicção, talvez por causa de meu temperamento, de que não há problemas insolúveis. Até agora, a experiência confirmou esta expectativa. Vi muitas pacientes superarem problemas aos quais outros sucumbiram por completo. Tal “superação” ou “ampliação”, como denominara anteriormente esse fenômeno, revelou-se depois de experiências posteriores como uma elevação do nível de consciência. Algum interesse mais alto e mais amplo apareceu no horizonte, fazendo com que o problema insolúvel perdesse a urgência. Sem que este encontrasse uma solução lógica, empalideceu em confronto com um novo e forte rumo de vida. Não foi reprimido, nem submergiu no inconsciente, mas simplesmente apareceu sob outra luz tornando-se outro. Aquilo que num primeiro degrau levara aos conflitos mais selvagens e a tempestades pânicas de afetos, parecia agora, considerado de um nível mais alto da personalidade, uma tempestade no vale, vista do cume de uma elevada montanha.Com isto a tempestade não é privada de sua realidade, mas, em lugar de se estar nela, se está acima dela. Mas como, de um ponte de vista anímico, somos ao mesmo tempo vale e montanha, parece uma presunção nada convincente sentir-se o indivíduo além do humano. Certamente, sentimos o afeto (a emoção), que nos sacode e atormenta. Mas ao mesmo tempo é-nos dada uma consciência mais alta, que impede nossa identificação com o afeto. (Jung, 1983. p. 31)

Ao procurar fazer algo, inicialmente circulando ao redor do conceito de Indisciplina para, juntamente com os professores, compreendê-lo em suas manifestações e relações e em seguida escutando os alunos, através de entrevistas compartilhando essa escuta com os professores, deixamos que os “eventos novos” fossem adentrando no espaço escolar e provocando uma reconstelação do Self Grupal da Escola. Ao ouvir, através do gravador, o material das entrevistas dos alunos, os professores também se abriram para a compreensão mais profunda de suas atitudes. Isso fez com que ocorressem mudanças na postura e nos procedimentos pedagógicos dos professores: a queixa sobre o comportamento dos alunos foi substituída por relatos de atitudes, assumidas diante de situações- limite e pela descrição de atividades realizadas em sala de aula, procurando-se criar ambientes de trabalho mais adequados ao aluno real que está sendo descoberto. À medida que os professores escutaram seus alunos, aqueles comportamentos considerados indisciplinados foram percebidos de uma outra dimensão.

Para entender esse movimento, necessitei de retomar o conceito de Sincronicidade, já estudado em minha dissertação de mestrado. Percebi que, por não poder atuar resolvendo as causas sociais dos problemas dos alunos, acabamos possibilitando a ocorrência de fatos novos que provocaram transformações não planejadas nem controladas por nós, pesquisadoras.

Percebemos, no decorrer da pesquisa, que olhávamos e escutávamos os alunos e professores com uma atenção flutuante, disponível a não se ater ao literal. Dessa forma, fomos notando que alguns instantes, povoados por idéias, emoções, lembranças, ganhavam um colorido diferente como se fossem revestidos de uma energia mais intensa que os destaca dos demais. Esses instantes que aparecem e desaparecem, quando captados, parecem ser uma das portas de entrada para as transformações, eles nos anunciavam qual era o caminho a seguir e o que fazer para abrir novas janelas, na tela da existência.

A recuperação das histórias de vida dos alunos nos levou a executar um outro movimento que disse respeito à recuperação das histórias de vida dos professores. Cada um escreveu um relato a respeito de sua trajetória, procurando recuperar alguns momentos responsáveis pelo professor que é hoje, de como foi fazendo suas escolhas pessoais e profissionais para ser quem é. Uma professora fez este relato:

Morava no sítio e não tinha escolas próximas. Brincava de escola no quintal de minha casa, Reunia meus amiguinhos e “ensinava-os” a escrever. Começávamos pelos nomes das pessoas que nos eram familiares. Tínhamos como recurso o carvão e o chão. Cortávamos bananas em pedacinhos para aprender a fazer continhas. Quem acertava comia a banana, quem errava dava para a professora que era eu. Com sete anos, fui para a escola de verdade, vestido novo de chita vermelha com pintinhas brancas. Lá encontrei a professora Madalena, muito carinhosa e comprometida. Havia na escola só uma sala de aula improvisada, porém tinha livros, lousa e giz de verdade!!! Eu sonhava em ter uma lousa. Lembro do dia que li “cachorro” e “indústria brasileira”. Essa última, vi numa folhinha que estava pendurada numa parede da sala. Após esse período, veio um de muita tristeza. Não tinha na minha cidade o “Ginásio” . Eu tinha que crescer mais para ir para casa dos outros para estudar ( palavras da minha mãe). Eu tive que esperar cinco anos para crescer mais.

Dessa forma, os professores conectaram-se com aspectos de suas matrizes pedagógicas (Furlanetto, 2003). Essa atividade pareceu aproximá-los mais dos alunos, ao descobrir seus medos de provas, ao relembrar professores de quem gostavam ou que os paralisavam, de suas brincadeiras infantis, de seus sonhos e do que possibilitou realizá-los ou do que os impediu de alcançá-los. Ficaram mais disponíveis para se aproximar dos alunos.

Nesse momento da pesquisa, começaram a ficar mais freqüentes relatos de transformações na prática pedagógica. Começaram a surgir projetos de trabalho favorecendo a autoria dos alunos, mais próximos do aluno real que eles estavam descobrindo. Essas atividades permitiram que eles revelassem nos alunos competências, habilidades e atitudes que não conheciam, tais como capacidade de buscar informações, capacidade de se locomover na cidade, iniciativa, interesse, capacidade de elaborar as informaas relações estabelecidas no Self Escolar. Ao perceber as capacidades dos alunos, abriam espaços para que outras também se constelassem no espaço pedagógico.

Vivemos um problema sério na escola: a mudança constante de professores. Essa mobilidade prejudicou o andamento da pesquisa.. Por ser uma escola próxima a uma favela, que periodicamente é controlada por traficantes de drogas, os problemas de segurança são inúmeros, e os professores estão sempre de passagem por esse local. Logo que possível, procuram ser transferidos para outros estabelecimentos escolares. A rotatividade de professores desorganiza o Self Escolar que, a cada saída ou entrada de um novo membro, necessita de se reconfigurar. Os caminhos que estavam sendo percorridos muitas vezes são interrompidos ou desviados, prejudicando a construção de um Projeto Pedagógico.

Analisando o material recolhido, (Furlanetto 2000, 2001) descobri algumas pistas que me mostram possibilidades de transformações, na escola. Percebemos que, ao entrar nessa escola, exercemos um papel que eu definiria como de testemunha. Nós testemunhamos as histórias, de vidas, de lutas existenciais e pedagógicas dos professores bem como as histórias de vidas de alguns alunos. Ao ouvirmos com aceitação, parecia que validávamos suas histórias, suas esperanças, seus sonhos. Algumas crianças, ao ser ouvidas pareciam deixar o lugar de excluídas e se autorizavam a pertencer à comunidade humana. Pareciam necessitar de que alguém testemunhasse suas vidas para se sentirem pertencentes ao mundo. Essa experiência não foi unilateral. Nós também nos sentimos tocadas por esse encontro. Para compreender verdadeiramente a experiência de outra pessoa, é necessário ser tocada por ela. A principal ferramenta que fomos descobrindo e aperfeiçoando foi o ouvir: criar um tempo para o sujeito poder se escutar parece abrir possibilidades internas para que ele também ouça o outro com quem convive.

Percebemos que, na escola, existe muito pouco diálogo. O discurso pedagógico contempla, na maioria das vezes, monólogos que se justapõem mas que não se articulam. Descobrimos que ouvir de verdade é muito difícil. Exige que abandonemos, momentaneamente, o lugar de Narciso, preso a sua própria imagem, e passemos para uma outra polaridade, a de Eco, personagem também presente no mito grego, incapaz de pronunciar suas próprias palavras, capaz somente de ecoar o outro. Caso possamos circular por essas polaridades, ao invés de nos fixarmos em uma delas, talvez o aluno possa, além de ecoar o professor e o livro didático, olhar sua própria imagem, perceber sua beleza, relacionar-se criativamente com o conhecimento e pronunciar suas próprias palavras.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ecleide@terra.com.br

Recebido em fevereiro de 2004
Aprovado em março de 2004

 

 

* Doutora em Educação: Supervisão e Currículo – PUC-SP, Docente do Programa de Mestrado em Educação e Currículo da UNICID
1 Trabalho apresentado ao GT de Psicologia da Educação na 25ª reunião da Anped, 2002.
2 Movimentos arquetípicos: dizem respeito aos arquétipos que foram descritos, inicialmente por Jung, como matrizes do inconsciente coletivo que se mostram à consciência aravés de imagens (contos de fada, mitos, obras de arte, sonhos, etc.). Estão descritos diversos arquétipos, entre eles, os quatro considerados responsáveis pelas relações estabelecidas entre os indivíduos e o meio: Matriarcal, Patriarcal, Alteridade e Totalidade. Eles estruturam os dinamismos que têm o mesmo nome.

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