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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.19 São Paulo dez. 2004

 

AMPLIANDO

 

Plantão psicoeducativo: novas perspectivas para a prática e pesquisa em psicologia da educação

 

Psycho-education on call: new perspectives for practice and research in psychology of education

 

Atención psicoeducativa: nuevas perspectivas para la práctica e investigación en la psicología de la educación

 

 

Heloisa Szymanski

Programa de Estudos Pós Graduados em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Este artigo propõe-se a apresentar, segundo perspectiva fenomenológica existencial, a proposta de desenvolvimento do plantão psicoeducativo que desponta como um novo campo de prática e pesquisa em psicologia da educação. De um modo geral, caracteriza-se como o oferecimento de um locus de escuta especializada, de reflexão e atenção para educadores1 responsáveis pelo processo de criação/socialização/educação de suas crianças e adolescentes. Antes de apresentar suas origens e o processo de constituição dessa prática, serão definidas as bases que orientarão sua implantação, que são as mesmas que norteiam um projeto de intervenção educativa já em andamento e ao qual o plantão virá a agregar-se.

 

Bases para a constituição do plantão psicoeducativo

A proposta dialógica de Paulo Freire constituiu um dos eixos para a implantação do plantão. A orientação fenomenológica, outro, e um terceiro, a metodologia de pesquisa intervenção. Serão apresentados brevemente a seguir os três eixos orientadores da proposta.

A proposta dialógica de Paulo Freire

Acreditamos que a prática dialógica, tal como proposta por Freire (1970, 1977, 1989, 1996) é a expressão de um modo de ser entre educadores e educandos que favorece a humanização ou hominização, como diz Freire, de todos os protagonistas da ação educacional. As concepções de educação bancária e educação problematizadora podem ser inspiradoras para a compreensão de uma práxis autoritária ou libertadora não só em instituições de educação formal, mas também na família e em outras organizações que se propõem a oferecer uma atenção educacional a crianças e adolescentes.

A proposta foi que o plantão se constituísse num lugar de diálogo, que, nas palavras de Freire, se mostra como um “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto na relação eu-tu” (1987, p. 78). Trata-se do diálogo como “exigência existencial” (ibid., p. 79). As palavras seguintes, de Freire, apontam para a dimensão criadora, transformadora, que o encontro pessoal no plantão pode assumir:

E, se ele [diálogo] é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir- se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. (Ibid., p. 79)

Trata-se de uma abertura legitimadora do outro e de si mesmo , na qual se constituem novas compreensões, novos significados, o desvelamento de novos sentidos para a ação e, conseqüentemente, a possibilidade de elaboração e efetivação de novas escolhas existenciais. Considera-se que esta seria a meta de toda situação educacional e a condição mais favorável à aprendizagem significativa, e é o que se persegue nas atividades da Ecofam. Morato e Schmidt (1999) lembram que tal aprendizagem encontra-se “numa região de articulação entre o psicológico e o pedagógico” (p. 118), na medida em que nela as noções de intersubjetividade, experiência e criatividade ocupam um lugar central na “transmissão, elaboração e avaliação do saber” (ibid.). É significativa aquela aprendizagem que se constitui numa experiência voltada para o cuidado de si e para a solicitude com o outro, no bojo de uma situação educativa humanizadora.

O trabalho educativo se dá como um processo que, ao mesmo tempo, transmite um mundo e prepara uma nova geração para transformá-lo. Jovens e crianças são orientados para habitarem um mundo e para nele se constituirem como si mesmos, numa incessante troca intersubjetiva, constituindo significados e sentidos. No plantão, é a reflexão sobre esse processo que se oportuniza: Que conflitos emergem? Que impasses se apresentam? Que situações novas se delineiam? De que forma as soluções tradicionais não mais dão resultado? Que novos significados e sentidos podem se desvelar? Que impactos para a constituição de si mesmos provoca o próprio desempenho da prática educativa? Como é experienciada a situação de carregar o peso, de suportar (sofrer) uma tarefa delegada pela sociedade, sem se sentir à altura dessa missão?

A perspectiva fenomenológica

Propõe-se o método fenomenológico para defrontar-se com o acontecimento que se apresenta no momento da entrevista, com a experiência daquele educador – na escola, creche ou família – sem interpretações baseadas em teorias estabelecidas a priori. Merleau Ponty refere-se à postura fenomenológica como a suspensão do “conjunto de afirmações implicadas nos dados de fato de sua vida. Suspendê-las, porém, não é negá-las e, menos ainda, negar o vínculo que nos liga ao mundo físico, social e cultural; ao contrário, é vê-lo e ser dele consciente” (1973, p. 22). “A redução fenomenológica é a resolução não de suprimir, mas de colocar em suspenso, e como que fora de ação, todas as afirmações espontâneas na qual vivo, não para negá-las, e sim para compreendê-la e explicitá-las” (ibid., p. 30).

Essa postura propicia uma escuta compreensiva, um reconhecimento do outro e a compreensão da própria subjetividade do plantonista na troca intersubjetiva durante a entrevista. A compreensão vai além da consciência, mas implica, nas palavras de Heidegger, o “pensamento que pensa o sentido. Este significa mais do que simples consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser questionado” (2002, p. 58). Certamente, os caminhos da ciência e os sentidos buscados por ela diferem dos da filosofia, mas, como lembra Heidegger, “como ser pensante, todo pesquisador e mestre da ciência, todo homem, que atravessa uma ciência pode mover-se em diferentes níveis de sentido e manter-lhe sempre vivo o pensamento” (ibid., p. 59).

A compreensão se dá pela reflexividade da situação dialógica, na troca intersubjetiva entre a pessoa que traz sua história e o plantonista. A compreensão está em contínua elaboração, posta em linguagem, buscando formular a situação de estar no mundo como educador. A linguagem não cumpre apenas a função comunicativa, mas constitui-se na explicitação da compreensão do mundo e de si mesmo, e isto é válido para ambos que participam da entrevista. “A linguagem é o pronunciamento do discurso”, nos diz Heidegger (1988, p. 219), e este é constitutivo da existência humana, assim como a compreensão e a disposição. “O ser humano é falante”, diz Nunes (2002, p. 20) e “O discurso é a articulação dessa compreensibilidade” (Heidegger, 1988, p. 219), sendo a escuta e o silêncio possibilidades intrínsecas da linguagem. O discurso se comunica naquilo sobre o que discorre e que constitui o que Heidegger chama de “o dito dos desejos, das perguntas, dos pronunciamentos” (ibid., p. 220).

É na escuta que se torna clara a conexão do discurso com a compreensão, “Escutar é o estar aberto existencial da pre-sença enquanto ser-com os outros” (...) a pre-sença escuta porque compreende” (ibid., p. 222). Essa possibilidade primordial de escutar possibilita o ouvir, que pode se dar de muitas formas, como “o não ouvir, resistir, defender-se, fazer frente a” (ibid., p. 222) lembrando que a escuta é sempre compreensiva, no sentido de que não ouvimos ruídos puros, pois a pre-sença “enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto à “sensações” (ibid., p. 223) sem significado. Heidegger (ibid.) traz o silêncio como outro fundamento existencial do discurso, que pode significar a elaboração da compreensão: “Silenciar, no entanto, não significa ficar mudo. [...] Silenciar em sentido próprio só é possível num discurso autêntico”. Para poder silenciar, a pre-sença “deve ter algo a dizer, isto é, deve ter uma abertura própria e rica de si mesma” (ibid., p. 224). É do estar em silêncio “que provém o verdadeiro poder ouvir e a convivência transparente” (ibid., p. 224).

É nessa perspectiva de discurso, escuta e silêncio que se inspirou para compreender o encontro interpessoal no plantão, na busca do que Amatuzzi chama de “fala autêntica”, na qual “o pensamento está se fazendo no ato de falar e não apenas se traduzindo externamente” (1989, p. 27). Refere-se ao caráter criativo da fala original, autêntica, que muitas vezes está bloqueado naqueles que vêm procurar o plantão, mas cuja disponibilidade para a abertura manifesta-se já no movimento de busca de compreensão. É certo que não é possível esperar-se apenas a fala autêntica. O discurso se dá também no modo de ser cotidiano, no obscurecimento, no que Heidegger chama de desenraizamento de suas “remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença e com o próprio ser-em” (1988, p. 230). São as distorções, esquecimentos, o palavrório, os clichês, que também são reveladores da abertura da pre-sença para o impessoal, o já dado, “que revelam assim uma tendência essencial do ser da cotidianidade” (ibid., p. 226).

O plantão se constitui numa ruptura desse cotidiano e convida à fala autêntica, incluindo a possibilidade de ciclos de desvelamento e ocultamento da compreensão que se quer adquirir. A fala, a escuta e o silêncio na entrevista do plantão propiciam e revelam a alteridade como co-presença, e delimitam o eu. O confronto com as próprias palavras na boca do outro remete os participantes a si-mesmos, possibilitando tanto a compreensão como a estranheza em relação a si e ao outro dentro de si.

O ser da pre-sença é constitutivamente ser-com e é interpretado pelo fenômeno da cura, do cuidado (ibid., p. 172) ou preocupação, que poder ser vivida como “ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros” (ibid., p. 173). Heidegger refere-se àquelas como formas deficientes de preocupação, freqüentes no modo de ser cotidiano. Mas o cuidado, a preocupação, pode também assumir a forma de substituir o outro, “tomar-lhe o lugar nas ocupações” (ibid., p. 173), gerando dependência e dominação. A cura propriamente “não substitui o outro, mas (...) se lhe antepõe na sua possibilidade existenciária de ser, não para lhe retirar o cuidado e sim para devolvê-lo como tal” (ibid., p. 174). Tal cuidado “ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela”. Inspirando- se nessa proposta de compreender o ser-com o outro, pretende-se, no plantão, tanto o desvelamento dos modos de cuidado, preocupação com o outro e consigo, como a experiência de uma preocupação autêntica. O plantonista cuida do cuidado que aquele que o procurou oferece a si e ao outro.

A pesquisa intervenção

O plantão psicoeducativo insere-se numa proposta de apoio aos educadores para realização de sua tarefa socializadora e é ele mesmo um objeto de estudo por parte da equipe da PUC-SP. Assim sendo, é por meio da pesquisa intervenção que essa prática psicológica está sendo implantada e investigada. Temos aqui o terceiro eixo do processo de inauguração dessa prática em psicologia da educação.

A pesquisa intervenção mostrou-se como uma possibilidade tanto de formação de profissionais como de pesquisadores, além de oferecer serviços psicológicos para uma população mal atendida pelos serviços públicos. A implementação dessa modalidade de pesquisa qualitativa possibilitou o desenvolvimento de procedimentos de pesquisa que se converteram em práticas. O inverso também ocorreu, indicando o fértil intercâmbio entre pesquisa e prática além da contribuição teórica que esse diálogo proporcionou. (Szymanski e Cury, 2004)

Pesquisar os fenômenos em seus contextos naturais supõe o mesmo o rigor de procedimentos de pesquisa, os mesmos conhecimentos teóricos e metodológicos tanto da prática da pesquisa como da profissional, o mesmo compromisso de construção do conhecimento científico, o mesmo respeito à ética da prática profissional e científica que qualquer outra modalidade de pesquisa. Exige, entretanto, a criação e adequação de uma metodologia de pesquisa apropriada e a adaptação do procedimento de entrevista para a situação do atendimento de plantão. “Exige, principalmente, a consideração dos usuários/participantes como pessoas que são foco de cuidado, co-construtores de significados e não ‘objeto’ ou ‘sujeitos’ de uma pesquisa” (ibid.).

Origens: o plantão psicológico

Assim como se propõe o plantão psicoeducativo como uma inovação na prática da psicologia da educação, a instalação do serviço de plantão psicológico também foi uma novidade na psicologia clínica. Teve seu início nos anos 60 do século passado, quando Rachel Rosemberg o constituiu, no Serviço do Aconselhamento Psicológico (SAP) do Instituto de Psicologia da USP (Ipusp), tendo como referência a Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers.

Como lembra Rosenthal, desde o início, o SAP oferecia um tipo de acolhimento nos moldes de plantão, na “disponibilidade mais atenciosa de recepção aos clientes que procuravam inscrição para atendimento regular em aconselhamento psicológico” (1999, p. 16). A perspectiva rogeriana permitia a consideração de que, mesmo em um curto espaço de tempo, seria possível oferecer ao cliente um espaço de expressão livre de seus problemas e possibilitar a articulação do que está se passando com ele. Para isso, segundo Rogers, contribuiria a atitude do psicólogo de reconhecimento da “dignidade e significação do indivíduo” (1966, p. 36) e que este “tem uma capacidade suficiente para manejar de forma construtiva todos os aspetos de sua vida que potencialmente possam ser reconhecidos pela consciência” (ibid., p. 36).

A implantação do serviço de plantão psicológico no Ipusp inaugurou uma nova forma de trabalho, que, nas palavras de Eisenlohr, “foi fruto de um grupo de profissionais que teve a coragem de romper com o estabelecido e propor uma nova forma de atendimento psicológico, tão criteriosa quanto [as demais], só que diferente” (1999, p. 137).

Para Mahfoud:

A expressão “plantão” está associada a um certo tipo de serviço, exercido por profissionais que se mantêm à disposição de quaisquer pessoas que deles necessitem, em períodos de tempo previamente estabelecido e ininterrupto. Do ponto de vista da instituição, o atendimento de plantão pede uma sistematicidade do serviço oferecido. Do profissional, esse sistema pede uma disponibilidade para se defrontar com o não planejado e com a possibilidade (nem um pouco remota) de que o encontro com o cliente seja único. E, ainda, da perspectiva do cliente, significa um ponto de referência para algum momento de necessidade. (1987, p. 75)

Referindo-se às caracteristicas de acolhimento da experiência, em vez de se focalizar o problema, e de se responder já no momento mesmo do encontro, Mahfoud afirma:

O conjunto dessas características possibilita, então, realizar um plantão psicológico, onde o trabalho do conselheiro psicólogo é no sentido de facilitar ao cliente uma visão mais clara de si mesmo e de sua perspectiva ante a problemática que vive e gera um pedido de ajuda. Nisso, a forma de enfrentar a problemática se definirá no próprio processo de plantão e com a participação efetiva de ambos, cliente e conselheiro. (Ibid., p. 76)

Tal prática inspira-se na proposta de atendimento clínico breve, fora dos moldes consultoriais, conforme proposta de Morato (1999) e, como lembra Cury (1999) , “viabiliza um atendimento de tipo emergencial (...) e que funciona sem necessidade de agendamento, destinado a pessoas que a ele recorrem, espontaneamente, em busca de ajuda para problemas de natureza emocional”. Como afirma Schmidt, “a entrevista do plantão visa facilitar que o cliente clarifique a natureza de seu sofrimento e de sua demanda por ajuda. O tipo de elaboração e o grau de elaboração que são alcançados nesta primeira entrevista são o critério norteador dos desdobramentos possíveis deste encontro inicial” (1999, p. 100).

Uma característica importante desse plantão é a população para quem tem sido oferecido – aquelas pessoas que necessitam de ajuda psicológica mas que raramente, no momento da demanda, encontra um serviço que a atenda. Como aponta Mahfoud (1987), os limitados recursos de saúde mental são canalizados para o atendimento de casos mais graves e não há espaço para interlocução a respeito de problemas existenciais, que causam muita angústia e sofrimento, mas não se configuram como “doenças” mentais, mas que poderão vir a ser. Daí a importância social desse serviço, que apresenta enorme potencial preventivo.

Cury, relatando pesquisa sobre o processo de implantação do plantão na clínica- escola do Instituto de Psicologia da Pucamp, refere-se à população que busca esse atendimento como

(...) pessoas desorientadas, que chegam aos prantos, que precisam de alguém naquele momento, mães desesperadas, pessoas que esperam vaga para psicoterapia, ou aquelas que apenas querem conversar para tirar dúvidas e receber informações sobre o trabalho do psicólogo e as forma de atendimento da instituição. (1999, p. 123)

Morato refere-se ao Aconselhamento Psicológico como um lugar de fronteira, que “expressa trânsito, pois na linha de mudança de território, tudo e todos podem ser ou pertencer. Como uma metáfora, revelando possibilidade de dirigir-se com liberdade de escolha” (1999, p. 88). O mesmo pode ser dito sobre o plantão, uma prática psicológica que supõe uma troca intersubjetiva ou, como sugere Mahfoud, uma presença que mobiliza e que terá características especiais dependendo da natureza da demanda: clínica, educacional, comunitária ou organizacional/institucional.

A escola já foi lugar de oferecimento de plantão (Mahfoud, 1999), com o objetivo de constituir “um espaço para o aluno como pessoa” (p. 30) e um “método de presença entre alunos e professores” (p. 31). O objetivo era “possibilitar aos alunos um espaço a oportunidade de se cuidar, de estarem atentos ao que é realmente importante para eles naquele momento, e então se posicionarem diante disso” (p. 53). Esse trabalho constituiu-se em uma pesquisa- ação que desvelou temas existencialmente relevantes para os jovens, tais como “preocupação com conseqüências de ações ou decisões passadas”, “dificuldade em fazer escolhas”, “elaboração de perdas”, “arrependimento e culpa”, “sexualidade”, “dificuldades com a escola”, “busca de reconhecimento”, “desconfiança nos relacionamentos”, “insatisfação nos relacionamentos com a família”, “falta de correspondência nos relacionamentos amorosos”, “falta de reciprocidade nos relacionamentos já estabelecidos”. Essas categorias dirigem o olhar para os adolescentes como pessoas e não como estereótipos ou meramente seres impessoais que devem aprender conteúdos escolares. São pessoas situadas, diante do desafio de aprender o mundo, e o conhecimento desses adolescentes por parte da escola pode ajudar sobremaneira sua inter-relação. Nesse relato é apontada a grande receptividade do plantão entre professores e diretoria e seu interesse em também participar dele.

As experiências de Mahfoud (1999) em duas escolas, uma da rede privada e outra da rede pública, o plantão psicológico desenvolvido em clínicas escola e em outras instituições educativas (Febem) e de saúde, mais a demanda entre os educadores que participavam de pesquisas realizadas pelo grupo de Pesquisa Ecofam serviram de base para a instalação de um projeto de apoio psicoeducativo para famílias e educadores do sistema formal de ensino.

O plantão psicológico compartilha muitas das características do plantão clínico citadas acima, como a orientação rogeriana de respeito à dignidade dos educadores e confiança na sua capacidade de manejo construtivo daqueles aspectos de sua vida trazidos à consciência pela reflexão, pela livre expressão de seus problemas, mesmo em um processo que ocorra durante um curto espaço de tempo. Uma outra condição em linha com o plantão psicológico refere-se à coragem de se propor uma nova forma criteriosa de atenção psicológica, de caráter emergencial, exercida por profissionais disponíveis para acolher quaisquer pessoas que deles necessitem, em períodos de tempo previamente estabelecido, constituindo-se em um ponto de referência para algum momento de necessidade. Como plantão clínico, oferece uma possibilidade de atendimento sem necessidade de agendamento prévio, destinado a pessoas que o procurem espontaneamente.

O plantão psicoeducativo, entretanto, apresenta algumas especificidades: sua definição de um espaço para reflexão sobre a prática educativa como elemento organizador da demanda; sua apresentação como um serviço de apoio para educadores e famílias; sua inserção institucional em uma instituição educacional (creche e escola).

 

A constituição do plantão psicoeducativo

A proposta do plantão psicoeducativo, como parte do conjunto de práticas psicoeducativas desenvolvidas e pesquisadas pelo Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Escola, Comunidade e Família (Ecofam), tomou forma a partir dos encontros com o Grupo de Trabalho Práticas Psicológicas em Instituições: Atenção, Desconstrução e Invenção da Anpepp. Ao se tomar conhecimento das pesquisas realizadas por alguns componentes do grupo, a partir do trabalho com plantão psicológico em clínicasescola, hospitais, na Febem, como um contexto de atenção psicológica a pessoas em situação de sofrimento ou em busca de desenvolvimento pessoal, surgiu a interrogação sobre sua utilidade em situações educacionais, nas quais tanto o sofrimento como o desejo de aprimoramento pessoal estão presentes.

Essa proposta veio responder a uma demanda de famílias e educadores de uma comunidade em que já se desenvolvia um trabalho de apoio psicoeducativo, que será explicitado abaixo. Já se havia notado a necessidade de um espaço de interlocução, de fala, escuta e compreensão, tanto por parte de famílias como de demais educadores, onde pudessem trazer as dúvidas, desafios, possibilidades e limites surgidos no dia-a-dia de seu trabalho e de sua lida. Deu-se então início a um projeto que teve como objetivo principal oferecer um espaço de escuta e apoio para pessoas que cuidam da socialização de crianças e adolescentes provenientes das camadas populares e que, muitas vezes, se sentem acumulados com uma responsabilidade para a qual não se vêem com a preparação e apoio que gostariam de ter. Essa sobrecarga acaba por gerar neles conflitos e sofrimento.

A tarefa socializadora, a cargo de educadores nas famílias e escolas incluem dificuldades encontradas por seus protagonistas e o sofrimento que emerge quando eles se sentem oprimidos por uma sobrecarga. A palavra sofrimento vem do latim sufferre, sub+ferre ou suportar por debaixo, que o dicionário Houaiss (2001) apresenta junto com os significados de dificuldade, desgosto, inquietação, dor. Refere-se tanto à dor física como a moral, na forma de uma emoção desagradável (desgosto, inquietação, amargura, angústia, padecimento), associada a experiências consideradas difíceis demais para suportar (dificuldade) ou contra as quais não se tem força ou condição para reagir (permitir, suportar, agüentar, não evitar ou criar impedimento para), além da submissão a conseqüências danosas (perder, degradar, decair, ter danos ou prejuízos).

Serão apresentadas a seguir algumas falas de professores e pais que expressam a sobrecarga sentida por professores e mães, retiradas de pesquisas que colheram dados referentes à experiência de ser educador ou mãe:

O professor não deveria ficar preocupado com outras coisas a não ser ensinar, mas como o aluno é muito carente, o professor é obrigado2 a ser psicólogo, dar comida, dar carinho, e é claro que o professor não dá conta, nosso trabalho fica muito sobrecarregado. (Sodelli, 1999, p. 92)

Cada vez se exige mais do professor, Eu acho difícil, as salas são numerosas, dificulta o trabalho. (Ibid., p. 92)

Está difícil trabalhar porque eles não sabem ouvir e a gente está tentando mudar isso, mas é difícil. (Sparti, 1995, p. 106)

A gente fica numa ansiedade, numa expectativa, porque a gente queria atingir muito mais coisas com eles... só que quando a gente vê, tem que voltar muito, então não conseguimos”. (Ibid., p. 57)

É uma coisa assim, que eu ia conseguir e uma coisa que eu sempre tentei ser uma mãe diferente da minha. Eu queria ter essa oportunidade para provar para mim mesma que se pode criar um filho, mesmo com dificuldade, sem tanto sofrimento. (Casellato, 2004, p. 548)

Observe-se a freqüência das expressões “difícil”, “dificuldade”, o sofrimento associado à criação de filhos, o sentimento de impotência, sobrecarga e ansiedade. Em várias situações de encontro com famílias e educadores ao longo do projeto Ecofam observou-se que, ao longo do processo de educar e socializar crianças e jovens, o sofrimento assumiu muitas vezes a sensação de impossibilidade de suportar a experiência de conduzir uma família ou uma classe de alunos. Tal sofrimento pode expressar-se na forma da queixa, pranto, silêncio, omissão, fuga, adoecimento físico ou mental e na sensação de não poder ser si mesmo, de estar “coisificado”, submetido a uma pressão insuportável (Szymanski, 2003).

A proposta do plantão constituiu-se num espaço que se pôs disponível para ouvir essas pessoas e possibilitar-lhes a explicitação do que as aflige no cotidiano de sua experiência de educadores, situados em um mundo de relações sociais envolvendo compromissos e expectativas em relação ao seu desempenho. Como aponta Michel, em alguns momentos essas pessoas se questionam sobre “o que se passa em situações nas quais eles somente apreendem os efeitos. O ‘o que se passa’ concerne tanto a situações em que são autores como aquelas de que são presas (jogos, regras do jogo)” (1981, p. 247).3 A demanda, para Michel, refere-se à interrogação sobre o sentido das situações vividas e das práticas implementadas. Para essa autora, demanda remete à interlocução e daí emerge uma situação de intervenção e, nesse sentido, o plantão propôs-se a tornar-se um espaço de reflexão sobre a própria prática e de orientação para busca de recursos de apoio na região.

O plantão psicoeducativo foi idealizado como mais uma possibilidade de atenção psicoeducativa oferecida às famílias e educadores de creche, numa comunidade de baixa renda situada na zona norte da cidade de São Paulo. O plantão somou-se às seguintes atividades: entrevistas individuais com famílias para elaboração de genograma e história de vida, tendo as práticas educativas como eixo: encontros com as educadoras da creche para discussão de sua prática e para orientação pedagógica; entrevistas reflexivas com base em observação do trabalho de educadoras da creche; observação de crianças e orientação para as educadoras. Tais atividades faziam parte de um projeto amplo de pesquisa intervenção: “A relação família-creche: práticas educativas e a constituição da identidade”, e, depois, de outro projeto, ora em desenvolvimento: “Participação e Diálogo: das práticas dialógicas na família à gestão participativa na educação em tempo integral”.

Quanto a procedimentos e à organização, deve estar aberta a possibilidade de constante invenção, dada sua característica de atenção à demanda e de adaptação às condições de atendimento. Como diz Schmidt:

Em termos institucionais o plantão requer uma disponibilidade constante para sua reinvenção. Pois, a medida de sua abertura para as demandas tem como contrapartida a criatividade e a flexibilidade nos modos de responder, bem como o diálogo constante com as dimensões socioculturais que se apresentam e se configuram nessa abertura. (Schmidt, 1999, p. 101)

Experiências anteriores de Mahfoud (1999) e Morato (1999) podem ser utilizadas como referências iniciais para elaborar a proposta inicial quanto à forma de divulgação do serviço à comunidade, regras de atendimento,4 local, etc., que serão adequadas às características da população, à urgência das demandas e ao escopo educativo do plantão. O longo conhecimento da comunidade e a possibilidade de oferecimento desse serviço em meio a outras atividades de apoio, já em andamento, constituem-se em condições favorecedoras da implantação do plantão.

 

Considerações finais

Procurou-se neste artigo estabelecer as idéias norteadoras do plantão psicoeducativo. Tal prática faz parte de um projeto de atenção psicoeducativa a instituições responsáveis pela criação/educação/socialização de crianças e adolescentes e, como prática, constituir-se-á em um elemento a mais de apoio, oferecendo insumos para as demais atividades a partir das análises das informações trazidas.5 Como pesquisa, oferecerá, numa perspectiva individual, um contexto diferenciado para o conhecimento das questões que desafiam os educadores em sua prática.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: pedpos@pucsp.br

Recebido em setembro de 2004.
Aprovado em novembro de 2004.

 

 

* Docente do Programa de Estudos Pós Graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP, Professora e vice-coordenadora do PED-PUC-SP.
1 Considerou-se educadora toda pessoa ou instituição a quem a sociedade atribuiu uma missão socializadora, expandindo-se, assim, o significado escolar do termo e incluindo a família e instituições que se propõem a atender crianças e jovens fora do período escolar.
2 Todos os grifos são nossos.
3 Grifo no original; tradução nossa.
4 Como ordem de chegada, duração da entrevista e número de retornos.
5 Deve ser ressaltado o caráter sigiloso das entrevistas, que será sempre respeitado, quer na pesquisa, quer na prática.

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