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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.19 São Paulo dez. 2004

 

COMPARTILHANDO

 

Devolutiva de entrevistas: o biograma na pesquisa em educação

 

Interviews feedback: the biogram in education research

 

Devolutiva de encuestas: el biograma en la investigación en educación

 

 

Maria Auxiliadora Á. dos S. SáI, *; Laurinda Ramalho de AlmeidaII, III, **

I Universidade de Taubaté
II Programa de Estudos Pós Graduados em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
III Faculdades Oswaldo Cruz

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Introdução

Não é nossa pretensão, neste texto, discutir a entrevista como um dos instrumentos básicos para a coleta de dados na pesquisa, mas, sim, apresentar uma proposta para a sua devolutiva nas entrevistas biográficas.

A utilização das narrativas autobiográficas na pesquisa em educação, colhidas através de entrevistas ou de depoimentos escritos, que teve início na segunda metade do século XX, possibilitou a compreensão das formas como os professores dão sentido ao seu trabalho e como atuam nos diferentes cenários educacionais. Como aponta Bueno (2002), os estudos e pesquisas passaram, então, a ter como eixo aglutinador a subjetividade do professor e, nessa perspectiva, surgiram publicações sobre as vidas dos professores, suas carreiras, suas trajetórias profissionais e seu desenvolvimento na docência.

A realização das entrevistas biográficas, por sua própria dinâmica e objetivos (conhecer vidas – ou parte delas – mediante as inter-relações entre entrevistador e entrevistado), produz um volume extenso de dados que passam a constituir um complicador para a devolutiva aos sujeitos entrevistados. As pessoas, ao concederem entrevistas, nem sempre dispõem de tempo para ler o vasto material produzido. Da mesma forma, o pesquisador trabalha sob a pressão dos limites de tempo impostos pelas instituições financiadoras das pesquisas, necessitando de instrumentos que facilitem o retorno aos sujeitos e também a análise dos dados.

Um recurso que tem se mostrado facilitador para a organização dos dados e para sua devolutiva é o biograma.

Bolivar (2001, 2002), professor coordenador do grupo de pesquisa Force, da Universidade de Granada – Espanha, conduziu investigações com professores espanhóis do curso secundário nas quais utilizou esse procedimento. Para ele, a trajetória profissional de um professor é representada por sua própria cronotopografia, termo que utiliza para indicar “os tempos e os espaços que lhe configuram diacronicamente a identidade profissional” (2002, p. 194). Ou seja, nos relatos biográficos são reconstruídos (a posteriori, portanto) conjuntos de acontecimentos que, na perspectiva do presente, contribuíram para configurar a vida pessoal e profissional. Nos estudos de Bolivar, os biogramas – sínteses esquemáticas desses acontecimentos – apresentaram-se como uma excelente forma de mapear as trajetórias (histórias biográficas – profissionais) dos professores investigados.

 

Um exemplo esclarecedor

Em investigação (Sá, 2004) que buscava conhecer as vidas profissionais de 24 professores engenheiros de universidades públicas brasileiras, foram utilizadas entrevistas biográficas, as quais, realizadas em dois momentos, garantiram aos entrevistados ampla liberdade para contar suas trajetórias. A primeira entrevista, com duração média de uma hora, trouxe, no ritmo próprio da memória, a narrativa das vidas profissionais. A transcrição daquele movimento espiral, de idas e vindas ao passado e ao presente, própria desse tipo de entrevistas, produziu extenso material, cuja organização em biogramas mostrou ser esse um recurso inestimável, não somente para o tratamento e análise dos dados, como também, e especialmente, para a devolutiva dos registros das narrativas aos sujeitos. Nesse sentido, os biogramas representaram procedimento apropriado para a maximização da credibilidade da investigação, um dos critérios propostos por Lincoln e Guba (apud Alves-Mazzotti e Gewandsznajder, 2002), para garantir ao máximo a confiabilidade da pesquisa.

As primeiras entrevistas, presenciais, pretendiam estabelecer o vínculo necessário para que o professor relatasse e reconstruísse sua trajetória. As segundas entrevistas – as devolutivas – foram realizadas presencialmente com a maioria dos professores, e, com uma minoria, via correio eletrônico. Forma alternativa, essa opção de contato possibilitou a superação de alguns obstáculos postos para esse segundo momento da entrevista, pois alguns professores afastaram- se provisoriamente de suas atividades profissionais, e outros haviam se ausentado do país ou da cidade onde residiam. Esta foi uma das vantagens da utilização dos esquemas biográficos para o segundo contato com os sujeitos.

A segunda entrevista buscava preencher as lacunas da primeira. Era apresentada aos professores uma síntese esquemática que ordenava cronologicamente os acontecimentos relatados por eles no primeiro encontro. Originado da transcrição das entrevistas, esse esquema – o biograma – era submetido à revisão dos professores durante esse segundo momento, ocasião em que eles podiam confirmar ou alterar esse tipo de registro.

Foi possível a eles, inclusive, comentar o impacto e/ou as reflexões geradas pela primeira narrativa concedida. Ao receber uma cópia do biograma, o professor era convidado a:

1. preencher as lacunas que o primeiro momento da entrevista havia deixado;

2. ler e analisar o instrumento quanto à fidelidade em relação ao encontro anterior;

3. indicar as alterações necessárias, inclusive os acréscimos;

4. indicar os incidentes críticos (acontecimentos marcantes e decisivos na escolha e rumos de sua trajetória como docente);

5. organizar os acontecimentos que compunham a trajetória em períodos ou fases principais.

Importante ressaltar que esse segundo encontro não foi gravado. No transcorrer da primeira devolutiva, a certa altura, foi desligado o gravador, pois o professor precisou interromper a entrevista, por um instante. Ao retomar a leitura de seu biograma, sem estar o gravador ligado, o professor fazia apontamentos no mesmo e falava sobre aquele registro, retomando aspectos interessantes, concentrando-se inteiramente no biograma, à vontade para manuseálo, alterá-lo, reconstruí-lo. A partir dessa experiência, o procedimento para a devolutiva aos demais professores foi modificado: duas cópias do biograma eram levadas, uma para o professor fazer as anotações que julgasse pertinentes, outra para o pesquisador seguir a lógica do entrevistado; o gravador não foi mais utilizado. Em alguns casos, via correio eletrônico, os biogramas eram anexados à mensagem principal e os professores eram convidados a confirmar seus dados, alterá-los, comentá-los. Sua forma esquemática facilitou não só a devolutiva, como o tratamento dos dados.

Entretanto, é possível que a propriedade de seu uso tenha ficado evidenciada por se tratar de sujeitos acostumados a trabalhar com esquemas. Um dos professores, que não parecia muito disposto a falar sobre sua vida no primeiro momento da entrevista, no segundo momento leu e alterou todo o seu biograma, e o fez com muito interesse. Comentou o quanto achava interessante aquele esquema, pois estava acostumado a trabalhar com representações gráficas. Ao final, solicitou uma cópia do mesmo. Aliás, essa solicitação se repetiu com outros entrevistados, fato que soou como uma aprovação, pelos sujeitos, do instrumento utilizado para a devolutiva dos dados. É provável que, se na devolutiva dos dados já tratados fosse utilizada a transcrição propriamente dita, os professores engenheiros não se dispusessem, como o fizeram, a ler, comentar e alterar o registro escrito das entrevistas. Como a trajetória era reformulada, durante a entrevista, numa tarefa conjunta de pesquisador e entrevistado, essas sínteses esquemáticas otimizaram o tempo das entrevistas e permitiram o aprofundamento necessário aos objetivos da pesquisa.

 

A elaboração dos biogramas

Os relatos decorrentes das primeiras entrevistas foram ordenados em seis colunas, que compreendiam, em ordem seqüencial, as fases, a cronologia em anos, a idade vital, a idade profissional, os acontecimentos e a valoração dada aos acontecimentos, passíveis de visualização no biograma do professor A6, que segue depois destas considerações. A partir das informações coletadas na primeira entrevista com o professor A6, a pesquisadora elaborou o biograma 1. O biograma 2 é o resultado do diálogo pesquisadora-entrevistado, no momento da devolutiva. Na primeira coluna foram organizadas as fases identificadas pelo professor ao rever o biograma construído pela pesquisadora. Confrontando os biogramas 1 e 2, percebe-se que no 1 aparece apenas, ao final, momento de revisão. Já no biograma 2 foram acrescentadas as fases: formação, comprovação da escolha, intensa dedicação profissional. Na segunda, terceira e quarta colunas estão indicados, com alguns acréscimos ao biograma 1: 1) os anos a que se referem os acontecimentos relatados; 2) a idade vital (calculada a partir de seu nascimento); e 3) a idade profissional (contada desde o momento em que iniciou a carreira docente na Engenharia). Nas duas colunas seguintes estão registrados os acontecimentos relatados e a valoração atribuída pelo sujeito a esses acontecimentos. Os trechos em negrito representam os incidentes críticos indicados pelo professor durante a devolutiva.

Embora a discussão dos incidentes críticos não constitua objetivo deste texto, é importante ressaltar a importância dos biogramas para captá-los e compreendê-los nos relatos dos professores. Na concepção de Bolívar (2001; 2002), incidentes críticos são considerados aqueles acontecimentos cruciais ou sucessos-chave que determinam decisões e rumos nas trajetórias profissionais ou na própria vida. Referem-se, portanto, a momentos marcantes e, freqüentemente, são identificados como momentos de crise que provocam a mudança de uma etapa a outra. Por sua característica espaço-temporal, o sujeito não lhes atribui o significado de críticos no momento em que eles acontecem, mas depois, quando os fatos vivenciados são relatados, e, no relato, reconstruídos. É no momento/ movimento de recriação que se imprime ao acontecimento seu caráter marcante. A síntese biográfica representada pelos biogramas constituiu instrumento apropriado para a identificação desses incidentes pelo pesquisador, ao transcrever e tratar os relatos, e principalmente, para a sua confirmação pelos sujeitos.

A seguir, o biograma do professor A6 (no relatório de pesquisa, A identificava a Universidade e 6 o número do professor dessa Universidade).

 

 

 

Algumas conclusões, ainda que provisórias

A utilização dos biogramas como recurso de devolutiva dos dados aos professores engenheiros mostrou inúmeras vantagens, entre elas:

• o biograma organiza, põe ordem nos dados fornecidos;

• o biograma ajuda o entrevistado a imprimir coerência à vida narrada;

• a devolutiva, em forma de esquema, exige menor disponibilidade de tempo para o entrevistado rever as informações fornecidas;

• o biograma é uma arma potente para fortalecer o diálogo pesquisadorpesquisado;

• o biograma conduz o entrevistado a pensar sobre sua vida pessoal e profissional;

• o retorno dos dados aos entrevistados, permitindo-lhes aprová-los ou alterá-los, maximiza o grau de confiabilidade da pesquisa.

A utilização dos biogramas na pesquisa com professores engenheiros trouxe alguns questionamentos:

• seu sucesso deveu-se ao fato de os entrevistados estarem acostumados a trabalhar com esquemas? Profissionais sem tal hábito apresentariam a mesma aceitação pelos biogramas como forma de devolutiva?

• O biograma revelou-se um recurso promissor, com as vantagens referidas. Mas reduziu a possibilidade de movimento, deixando de lado os depoimentos, na sua riqueza de construção oral, ou seja, diminuiu a percepção das idas e vindas do pensamento reveladas nas falas. Como dar este movimento, juntando biogramas e depoimentos? Incluir nos biogramas uma coluna com as falas dos sujeitos relacionadas às sínteses dos relatos?

Vantagens e questionamentos possibilitaram-nos algumas afirmações

• o biograma é um bom recurso para a devolutiva de entrevistas nas pesquisas em educação, mas, como todos os recursos disponíveis, pode e deve ser adaptado às finalidades próprias de cada investigação; essa adaptação lhe trará novos formatos, novas possibilidades;

• o biograma pode ser também um potente recurso para a formação, mobilizando o formando para compreender seu percurso pessoal, acadêmico e profissional, seus processos formativos e suas tomadas de decisão;

• o biograma é um recurso para a autoformação do pesquisador, pois, ao provocar a reflexão sobre a trajetória do outro, leva o pesquisador a refletir sobre sua própria trajetória profissional.

 

Referências

Alves-Mazzotti; A. J. e Gewandsznajder, F. (2002). O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2 ed. São Paulo, Thompson.        [ Links ]

Bolivar, A. (org.) (2002). Profissão professor: o itinerário profissional e a construção da escola. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. Bauru, Edusc.        [ Links ]

Bolívar, A.; Domingo, J. e Fernández, M. (2001). La investigación biográficonarrativa em educación: enfoque y metodologia. Madri, La Muralla.        [ Links ]

Bueno, B. O. (2002). O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. São Paulo. Educação e pesquisa, v. 28, n. 1, pp. 11-30, jan./jun.        [ Links ]

Sá, M. A. A. S. (2004). Trajetórias docentes: avanços, recuos e desvios na vida profissional de professores engenheiros. Tese de doutorado. Programa de Estudos Pós- Graduados em Educação: Psicologia da Educação. São Paulo, PUC.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Auxiliadora Ávila dos Santos Sá
E-mail: dora-sa@uol.com.br

Laurinda Ramalho de Almeida
E-mail: laurinda@pucsp.br

Recebido em setembro de 2004.
Aprovado em novembro de 2004.

 

 

* Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP Professora na Universidade de Taubaté – Unitau
** Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP Coordenadora da área de Educação do Centro de Pós-Graduação das Faculdades Oswaldo Cruz

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