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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.21 São Paulo dez. 2005

 

A interação na escola e seus significados e sentidos na formação de valores

 

Meanings of interaction in school and values formation

 

La interacción en la escuela, sus significados y sentidos en la formación de valores

 

 

Vera Maria Trevisan de SouzaI; Vera Maria Nigro de Souza PlaccoII

IDoutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP Professora da Fizo-SP. E-mail: jvfb@ig.com.br
IIProfessora titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP. E-mail: pedpos@pucsp

 

 


RESUMO

O artigo tem como base uma pesquisa empírica, em que se buscou compreender a construção e a manutenção de valores morais e não morais na escola, em que se assume as concepções de Vigotski sobre a constituição da pessoa e se busca uma articulação teórica com Yves de La Taille, que tem estudado o desenvolvimento da moralidade da perspectiva da psicologia. As autoras abordam a construção e a manutenção de valores a partir das interações empreendidas pelos diversos atores da escola: alunos, professores, coordenadora, pais e sistema de ensino, para demonstrar os tipos de valores que circulam na escola e as qualidades de interações que favorecem ou não sua manutenção. Também é ressaltada, na pesquisa, a importância da autoridade na construção de valores.

Palavras-chave: valores e educação; interações na escola; desenvolvimento moral.


ABSTRACT

This article examines the respect in school in its moral qualification - self-respect. It is part of a research in which the investigation was made among its acting parts: children, teachers and coordinator, the values present in school. With a Psychology social-historical theoretical focus, we have applied articulations with assumptions by authors who have studied morality, such as Piaget and Yves de La Taille. It has been found in the investigation that both interactions favouring the construction and maintainance of moral values and the non-favouring interaction of such values are present in the school. Such interactions occur concomitantly in all observed relationships, and more frequently in the ones which do not favour the construction of moral values.

Keywords: values and education; interactions and school; moral development.


RESUMEN

El artículo sostiene una investigación empírica, en la cual se buscó comprender la constituición y manutención de valores morales y no morales en la escuela , por intermedio de formulaciones teóricas de la Psicología, por la que se asumen las concepciones de Vigotski, acerca de la constitución de la persona, buscando una articulación teórica con Yves de La Taille, que viene estudiando el desarollo de la moralidad, por la perspectiva de la Psicología. Las autoras plantean la construcción y manutención de valores a partir de las interacciones emprendidas por varios actores de la escuela; alumnos, profesores, coordinadores, padres y el sistema educativo, para demostrar los tipos de valores que circulan en la escuela y las calidades de interacciones que favorecen o no su manutención. También es resaltada, en la investigación, la importancia de la autoridad en la construcción de valores.

Palabras clave: valores y educación; interacciones en la escuela; desarrollo moral.


 

 

A origem de nossas preocupações: valores e cotidiano escolar

Observando a interação no espaço escolar, nas relações entre professores e alunos e entre coordenadores e professores, em segmentos de ensino de 1ª à 4ª séries e de 5ªà 8ª séries, percebemos a presença constante de conflitos, geralmente denominados indisciplina e que têm como conteúdo os valores. Todavia, o tempo que se tem com os alunos destina-se a ensinar-lhes conteúdos específicos das disciplinas, enfocando-se o ensino e a aprendizagem sob a perspectiva lógicocognitiva; na preocupação em desenvolver habilidades e competências lógicas, lingüísticas, espaciais, motoras, etc.

Em nossas observações na escola, identificou-se serem muito comuns atitudes dos alunos como: "tia, ele me chamou de coca-cola" (menino negro), "mas ele me chamou de branca nojenta" (menina branca). Ou, "sai pra lá, seu fedorento", "essa surdinha é muito folgada" (referindo-se à criança surda). E, ainda, ações como: pegar o material do colega sem pedir, quebrar o material próprio e do outro, jogar lixo no chão, rabiscar as paredes, etc.

Quando ocorriam esses tipos de falas ou atitudes, as professoras orientavam as crianças a pararem ou as repreendiam com vigor, mas não discutiam ou exploravam sobre o que estavam falando, por que falavam, o que aquilo significava, etc. Então, no máximo, a criança deixava de falar na frente da professora, mas mantinha a mesma atitude.

Além disso, no ensino superior, perguntávamo-nos sobre a origem da "resistência ao saber culto" manifestada pelos alunos; por que eles resistiam tanto em pensar, aprender, abstrair? Por que não liam, por mais que facilitássemos o nível dos textos? Por que os alunos só sabiam reivindicar, gritar por seus direitos, sem relacionar direitos a deveres? Por que pareciam tão individualistas, a ponto de dizerem: "eu estou falando por mim, os outros que falem" ou "quanto aos outros, não quero nem saber", ou ainda "eu só estava junto, não fui eu, foi ele". E, ainda, jogavam lixo no chão, sujavam as paredes, rabiscavam as carteiras, não devolviam livros à biblioteca, entregavam trabalhos inteiros tirados da Internet ou de livros, sem citar fonte, etc. Os tipos de falas e atitudes dos alunos do ensino superior pareciam-nos semelhantes àqueles comuns às crianças de 1ª à 4ª séries. Por quê?

Então levantamos a seguinte hipótese: é bem cedo, na escola, que têm origem os problemas observados no ensino superior. A criança vai se auto-regulando nesse espaço conturbado, internalizando (segundo Vigotski) as atitudes sociais, sem que haja uma intervenção efetiva no processo de formação de valores. Como as atitudes não são discutidas, nem os valores, as crianças crescem entendendo que é possível se comportar de determinada forma, mesmo porque convivem com modelos de comportamento semelhantes.

Com base em nossa hipótese e diante do incômodo de tantas questões suscitadas sobre os conflitos de valores nas relações estabelecidas nos espaços da escola freqüentada por crianças de sete a doze anos e da faculdade, cujos alunos são adultos, formulamos nosso problema de pesquisa: qual a origem do conflito de valores entre alunos e professores, professores e coordenadores, em espaços educacionais e que fatores impedem sua superação? Essa pergunta nos conduziu a duas outras: que tipos de valores circulam na escola e como eles se manifestam? Quais qualidades de interação favorecem ou não sua construção e/ou manutenção?

Por entendermos que as questões colocadas eram bastante complexas, além de nos conduzirem à investigação da origem ou construção de valores, optamos por desenvolver a pesquisa, na escola, com crianças de 6 a 12 anos, e observar a circulação de valores também nas interações entre professores, entre professores e coordenadora e entre a escola e o sistema de ensino.

 

As bases teóricas

Utilizamos, neste trabalho, o conceito de valor do ponto de vista psicológico, conforme o postula La Taille (2001). Ele corresponde a investimento de afetividade, tal como, segundo o autor, o concebia Piaget. Destarte os excessos de investimento em si, para La Taille (ibid., p. 74): "um mínimo de investimento em si é necessário e inevitável. Logo, pensar sobre si implica atribuição de valor a si, uma vez que pressupõe a eleição de um objeto do pensar privilegiado [...] sempre nos pensamos em termos de categorias como superior/inferior, desejável/indesejável, certo/errado, bom/mau, etc.".

Machado (2000) explicita a formação da cidadania, não só como preparação para o exercício dos direitos do cidadão, mas, sobretudo, como semeadura de valores e articulação entre os projetos individuais e os projetos coletivos.

O autor refere-se à tradição, ao passado que necessita ser apresentado às novas gerações, tal como postula Arendt (1972). Então, o indivíduo se constitui pela cultura, ao mesmo tempo que a produz; a cultura se constitui pela conservação de valores, ao mesmo tempo em que os produz; o indivíduo passa pelo processo da educação, cujo projeto, a um só tempo, visa a transformá-lo e conservá-lo. Nesse movimento, manifesta-se a dialeticidade do processo na relação intersubjetiva, que provoca a transformação da subjetividade, ao mesmo tempo em que a conserva.

Sobre a constituição do indivíduo, os conceitos de interação e intersubjetividade, tal como postulados pela psicologia sócio-histórica, que tem se envolvido no estudo das relações intersubjetivas, são enfoques que sustentam nossas interpretações. Vigotski (1987) e seus seguidores nos ajudam a compreendê-los.

Três temas compõem o núcleo da teoria de Vigotski: a crença no método genético ou evolutivo, a tese de que os processos superiores de funcionamento mental têm origem no social e a idéia de que os processos mentais só podem ser compreendidos mediante o estudo dos instrumentos e dos signos, que atuam como mediadores. Esses três temas estão intimamente relacionados, e seu estudo articulado é que possibilita a compreensão de como o sujeito se constitui ao longo de seu desenvolvimento.

Rommetveit (1985), abordando a intersubjetividade na comunicação verbal, coloca a linguagem como fenômeno social e afirma que, para que a comunicação se efetive, os interlocutores necessitam alcançar um estado de intersubjetividade possível por meio do compartilhamento de um mesmo foco de atenção. Ou seja, para que duas pessoas, envolvidas em um diálogo, compreendam o assunto em questão, é preciso que estejam sintonizadas em um mesmo ponto de vista.

Rommetveit (ibid.) e seus colaboradores defendem que vários aspectos influenciam a interpretação dos interlocutores de uma situação de fala, como a confiança nas habilidades comunicativas dos demais falantes e suas intenções, boas ou não, ou mesmo o modo como o referente é categorizado e compreendido. Esse fato daria à comunicação um caráter versátil e flexível, à medida que as situações comunicativas são interpretadas e negociadas, ou seja, cada interlocutor pode ser "habitante de mundos diversos" (ibid., p. 87), por habitar várias perspectivas decorrentes dos múltiplos significados caraterísticos da realidade complexa em que vive o sujeito.

É justamente a diversidade de significados que cada indivíduo atribui ao mundo social o que eleva a importância das situações comunicativas, pois, por meio dela, o indivíduo "transcende seus mundos particulares, quando os enigmas são subjetivamente desvendados por um processo comparativo" (ibid., p. 94). Para o autor, a intersubjetividade é a condição para a verdadeira comunicação, à medida que os interlocutores partilham da mesma perspectiva ou há uma crença recíproca em um mundo experimental compartilhado.

Wertsch (1988) retoma Rommetveit para estudar o funcionamento interpsicológico e intrapsicológico. Segundo esse autor, Vigotski não estudou detalhadamente as implicações de sua lei geral do desenvolvimento, uma vez que se deteve no estudo e na explicação da fala interna, não tendo explorado a fala egocêntrica, que seria, exatamente, a passagem ao nível intrapsicológico. Daí Wertsch eleger essa "passagem" como objeto de estudo, ou seja, o nível interpsicológico. Ele parte do princípio de que o nível interpsicológico está intimamente ligado ao nível intrapsicológico e, portanto, "na transição do nível interpsicológico ao nível intrapsicológico, qualquer mudança no primeiro resulta em mudança correspondente no segundo" (ibid., p. 169). Wertsch considera que essas mudanças nem sempre são de caráter quantitativo, mas qualitativas.

Sobre o funcionamento interpsicológico, o autor acredita na necessidade de analisar alguns mecanismos, os quais denomina "mecanismos semióticos". Seriam eles: perspectiva referencial ou modo de apresentação, que equivaleria à maneira como se representam ou definem os objetos, ou eventos em dada situação. Para o autor, duas pessoas em interação não compartilham da mesma definição do objeto em questão, mas têm idéias diferentes sobre ele.

Vigotski, ao postular a "lei geral do desenvolvimento", o faz visando a demonstrar que o indivíduo se constitui pela interação com a cultura. Daí decorrer o conceito de intersubjetividade - as ações ocorrem primeiro fora do sujeito, no nível interpsicológico, para depois serem internalizadas, passando ao nível intrapsicológico. O sujeito de Vigotski desenvolve-se, então, a partir das interações que estabelece com o meio, sempre mediadas pelo outro e, embora haja críticas sugerindo que o conceito alude a uma passagem direta do externo para o interno, estudos mais aprofundados permitem observar que Vigotski deixa clara a ação do sujeito nesse processo - ele internaliza os significados das ações e não as ações, significados esses mediados pelo outro por meio da interação, constituindo-se como construção social que demanda sempre a presença do outro na relação. Os significados são atribuídos pelo sujeito a partir de suas experiências e, como estas são únicas, os significados também o serão, conferindo a cada ação internalizada um caráter sui generis, que, no trabalho do desenvolvimento, constitui um sujeito único e irrepetível.

Também assumindo a vertente da mediação semiótica encontramos Bakhtin (2000), preocupado com as relações EU-TU em seu caráter dialógico e dialético. Para ele, a consciência se constitui somente quando os indivíduos participam de contextos de comunicação: "como o ser humano é originalmente formado no útero da mãe, a consciência do indivíduo desperta envolvida na consciência do outro" (p. 358). Para o autor, é o princípio da alteridade que constitui o sujeito, a princípio, e ele está intimamente ligado à realidade material do signo lingüístico. Sua contribuição para a compreensão da constituição do sujeito é o princípio dialógico, que, relacionado ao princípio da alteridade, dá à relação EU-TU uma nova condição. Assim, no movimento de constituição da consciência individual, por meio do encontro dinâmico de várias vozes em contato, apropriamo-nos das "palavras alheias" que se tornam "palavras próprias alheias", até serem transformadas em "palavras próprias". Esse movimento é que confere à linguagem o caráter polissêmico e polifônico e que justifica o sujeito como constituído pelo outro, pela palavra do outro; palavra essa que nunca é descontextualizada, mas traz em seu bojo o social, o político, o ideológico de seu entorno.

Então, para pensar a constituição do sujeito, podemos adotar a perspectiva de Vigotski e Wertsch em relação à intersubjetividade como o lugar do encontro, do confronto e da negociação de significados e sentidos que serão internalizados, passando a constituir a intrasubjetividade, pela exploração dos mecanismos semióticos. Nessa relação, o movimento não é linear, nem tampouco simétrico, mas é constituído por alternâncias: ora identificação, ora oposição, tal como postula Wallon. Todo esse processo é permeado, desde muito cedo, pela linguagem, que a princípio pertence a OUTROS, para, gradativamente, ser incorporada, até ser esquecida, conforme postula Bakhtin.

As relações que nos interessam são aquelas relativas aos valores que permeiam os espaços educacionais e, como já anunciamos, adotaremos as acepções de La Taille (1999, 2001 e 2002) sobre sua constituição.

La Taille (2001) reconhece as palavras "moral" e "ética" como sinônimas, na medida em que ambas se referem a costumes e condutas sociais embasadas em valores, fato que decorre da própria origem das duas palavras - latim e grego. Também enfatiza a necessária diferenciação dos significados das palavras, remetendo-nos à complementaridade dos conceitos: "pode-se chamar de moral as diversas regras e valores dos homens, e de ética o estudo (seja filosófico, seja psicológico, sociológico etc.) destas regras e valores" (p. 68). Contudo, adota as seguintes definições para os conceitos: "a moral refere-se às 'leis' que normatizam as condutas humanas, e a ética corresponde aos 'ideais' que dão sentido à vida" (p. 69). Assim, enquanto a moral busca dar respostas à pergunta "como devo agir", a ética tenta responder à pergunta "como viver". Propondo-se a uma leitura psicológica dos conceitos, o autor os relaciona às teorias de Freud e Piaget, no que se refere às instâncias da psique humana e ao desenvolvimento moral. Em relação a Freud, LaTaille (2001) cita a segunda tópica (a primeira é aquela do inconsciente, pré-consciente e consciente), em que são postuladas três instâncias da psique humana, quais sejam: Id,1 Ego,2 e Superego ou Ideal de Ego. Essa última instância, denominada por Freud com dois nomes, Superego e Ideal de Ego, é responsável pelas exigências morais. Para La Taille (ibid.), a diferença dos nomes também revela significados diferentes na hipótese de Freud: "o Superego é o lugar psíquico onde residem as exigências da lei... o Ideal de Ego é o lugar psíquico onde residem os ideais" (p. 70).

Para discutir a relação entre as representações do Eu e as leis morais, o autor introduz o conceito de vergonha, destacando quatro aspectos que interessam à moral e à ética: gênese durante a infância, denominada "vergonha-exposição", com início aos 18 meses prevalecendo até 7/8 anos, quando começa a "vergonha-juízo", aquela decorrente de um juízo negativo; a questão do juízo - externo ou interno ao sujeito, ou seja, sentimos vergonha quando nós mesmos nos julgamos negativamente; o valor atribuído ao eu, na medida em que o sentimento de vergonha remete à própria identidade, às representações de si; e, finalmente, à qualificação do sentimento de vergonha como bom ou ruim - "a capacidade de sentir vergonha é vista como característica do que estamos chamando de 'boa pessoa', da pessoa moral" (p. 78).

Assim, algumas pessoas podem agir de forma imoral e sentir vergonha porque suas ações não estiveram coerentes com os valores constituintes da representação de si, ou seja, para o autor, envergonhar-se ante atitudes incoerentes com a moral ou ante a hipótese de tais atitudes, equivale ao que chamamos de honra. A "honra-interior" ou "honra-virtude" corresponde à representação de si como pessoa moral, implicando, assim, uma coerência entre moral e ética: "minhas ações estão de acordo com meus ideais, meu agir e meu pensar são coerentes, no presente ou no passado". É nesse sentido que o autor diz que "a honra representa a ética necessária à moral" (p. 74).

Além de ocupar um lugar central no fundamento da moral, a afetividade, segundo o autor, também tem lugar como resultado de uma ação/pensamento próprio ou de outra pessoa, além da força motivacional para a ação/pensamento. Ainda sobre a vergonha, La Taille (2002, p. 147) diz que: "a vergonha pode ser moral, nela o lugar do outro é o de juiz, ela remete a ideais, remete ao EU, e encontra-se tanto como motivação das condutas morais como conseqüência daquelas imorais". Esses ingredientes da vergonha equivalem a um valor moral muito antigo: a honra ou dignidade.

Isso posto, é possível dizer que o auto-respeito gera a vergonha moral, sendo a vergonha não moral decorrente do sentimento da auto-estima. No caso da vergonha retrospectiva, ela ocorrerá somente quando, para um sujeito, suas ações e/ou pensamentos não estiverem de acordo com seu auto-juízo. No caso do sentimento positivo de vergonha - vergonha prospectiva -, observa-se que se constitui como motivação básica para a conservação do auto-respeito.

Tendo constatado a presença de valores morais em crianças entre 9 e 12 anos, La Taille se pergunta: "como é possível que algumas pessoas tenham pouco auto-respeito ou até nenhum, se durante o desenvolvimento infantil tal sentimento do próprio valor moral parece brotar e evoluir, em idades próximas, em todas as crianças?" (p. 278). Ao que responde: "ele - o auto-respeito - só terá 'vida longa' e desabrochará se encontrar, na sociedade, algum eco, algum apoio, alguma valorização" (p. 279).

Dessa acepção de La Taille decorre nossa hipótese na presente pesquisa: a escola, enquanto espaço de constituição do sujeito, não favorece a construção de valores morais. E utilizaremos a expressão dos sentimentos de vergonha, moral e não moral para identificar os valores presentes nos contextos interativos e suas formas de apresentação. Nesse sentido, pensamos que há duas relações feitas por La Taille que justificam nossa afirmação: a primeira é que o autor atrela moral a leis e ética a valores; a segunda é que ele propõe tanto a moral como a ética como processos imbricados com o "outro", sendo que a moral estaria relacionada a um outro mais concreto, mais presente, e a ética, implicada com um outro mais genérico, o homem, a humanidade. O fato de o autor atrelar a moral ao superego e a ética ao ideal do ego também corrobora nosso pressuposto de que os valores se constroem nos espaços intersubjetivos estabelecidos em contextos interativos.

Do ponto de vista teórico, identificamos nas postulações de La Taille aberturas para nossas articulações com a psicologia sócio-histórica.

Conforme anunciamos no resumo deste artigo, Vigotski e seus seguidores respondem às nossas questões sobre as interações e a intersubjetividade como espaço de constituição do sujeito, em que a mediação é feita pela linguagem. Suas pesquisas sobre a influência do social, nesse processo de constituição do sujeito interativo, têm como enfoque a apropriação dos significados de dados contextos, no que concerne a discursos e/ou conhecimentos (Wertsch, 1988; Vigotski, 1985; Smolka, 1998; Rommeitveit, 1985). Não há, nos estudos e pesquisas que acessamos, referências a estudos que tenham como enfoque a apropriação de valores.

Também como anunciado, encontramos em La Taille (1998, 1999, 2001 e 2002a e b), o enfoque teórico que nos permite compreender a problemática dos valores. Contudo, não do ponto de vista da interação. Embora esse autor busque marcar seu ponto de partida, na pesquisa sobre os valores morais, em muitos autores que estudaram a problemática dos valores, no campo da Filosofia e da Psicologia, é a obra de Piaget que lhe dá maior sustentação, sobretudo o clássico O juízo moral na criança e é justamente essa base de sustentação de sua teoria que nos conduz à necessidade de articulações.

A criança de Piaget é ativa, ou seja, ela se constitui a partir das ações que empreende com seu entorno. A mediação, em seu processo de constituição, corresponde à ação e as condições para essa ação estão de acordo com seu desenvolvimento cognitivo - a cada estágio de desenvolvimento ela é capaz de determinadas operações. Essas ações dirigidas ao meio têm respostas desse meio, que participa, de maneira inconteste, em sua constituição. Tratando-se de valores, as ações da criança em direção ao meio desencadeiam uma série de respostas que ela vai "interiorizando" como regras morais, de acordo com suas habilidades cognitivas para tal, até torná-las suas. O que leva a criança a obedecer às regras, nesse processo de apropriação, é a confiança que desenvolve em relação às pessoas que as impõem, a princípio os pais, e, segundo Piaget, a motivação para obedecer é o medo, "quase material" (o que estaria de acordo com as condições cognitivas da fase de desenvolvimento) de perder o amor dos pais.

É nessa relação com o social que encontramos a possibilidade de articulação teórica, no que concerne à teoria de Piaget. E depreendemos, da teoria de La Taille, várias aberturas para pensar tal articulação. Vejamos.

Primeiro, quando, em seu estudo sobre a gênese do sentimento de vergonha moral, entendida como indício da presença de sentimentos morais na criança, mais especificamente, do auto-respeito, La Taille (2002) chega à conclusão de que há uma gênese da moralidade, ou seja, de uma forma ou outra, todas as crianças, a partir de certa idade, apresentam sentimentos morais, que a princípio são incipientes, mas vão ganhando força como motivação para o pensar e o agir, a partir de 8-9 anos, acentuando-se dos 12 anos em diante, conforme comprova em sua pesquisa.

Tal constatação leva-o a se perguntar se não deveríamos esperar um "paulatino fortalecimento do auto-respeito durante o desenvolvimento e, portanto, na vida adulta..." (ibid., p. 278), ao que responde afirmativamente, "mas ele depende de fatores externos", e remete a Piaget, que, em seu estudo sobre a autonomia moral, identificou o mesmo. Sobre a razão de existirem pessoas adultas que permanecem na heteronomia, Piaget a atribuíra às relações de coação, fortes e perenes, uma vez que a autonomia se constrói nas relações de reciprocidade. La Taille (ibid.) conclui seu estudo atribuindo à sociedade e às formas como vem se relacionando com os valores as razões da ausência de valores morais.

A segunda abertura para articulações diz respeito ao sentimento de vergonha e ao auto-respeito. La Taille (ibid.) associa a manifestação do sentimento de vergonha à comunidade, ou seja, uma pessoa sente vergonha quando pratica determinada ação ou pensamento julgado como depreciável pela comunidade à qual pertence e que comunga seus valores. Logo, o sentimento de vergonha teria caráter social - só o sentimos porque outros o sentem.

Nossas interpretações dessas acepções teóricas e a necessidade de sustentar nossas análises, que intentam compreender as interações que favorecem ou não a construção e/ou manutenção de valores morais e não morais no espaço escolar nos conduziram a uma aproximação e articulação de alguns conceitos que se encontram na base das acepções teóricas de Vigotski e seus seguidores, e de La Taille, quais sejam: o auto-respeito, a vergonha e a intersubjetividade; a interiorização das regras e a mediação semiótica; a autonomia e a auto-regulação.

Ao penetrar no espaço da análise do contexto observado, em interpretações com base nas articulações dessas acepções teóricas, novas possibilidades de interpretação se nos apresentaram e as lançamos como hipóteses, ao longo de nossas análises, tais como: interdependência entre os valores morais e não morais no processo de construção de valores e a vergonha não moral como sentimento que está na base da resistência à mudança manifestada pelos atores do espaço escolar e, ainda, o papel da linguagem como mediadora do processo de apropriação de valores. Tais acepções encontram-se explicitadas em um dos capítulos da pesquisa.

Nosso objetivo aqui é relatar a pesquisa, e o contexto que nos interessa é a escola: logo, torna-se necessário considerar seu caráter institucional e as relações de autoridade nela empreendidas.

Arendt (1972, p. 129) diz que a autoridade, com freqüência, confunde-se com poder e violência, mas que, na verdade, só é possível concebê-la quando se "exclui a utilização de meios externos e coerção, pois onde a força é usada, a autoridade fracassou". Nesse sentido, a autoridade se contrapõe à coerção física ou à persuasão, tendo como ponto comum entre quem manda e quem obedece a hierarquia legitimada pelos atores em relação.

La Taille (1999, p. 10) também toma por base Arendt e diz que "alguém tem autoridade quando seus enunciados e suas ordens são considerados legítimos por parte de quem ouve e obedece". Concorda com Arendt, que nem toda obediência deriva de relações de autoridade, pois muitas vezes somos forçados a obedecer, ou seja, não temos escolha. Também, ainda consoante o que afirma Arendt, La Taille considera que a persuasão confere legitimidade a quem influencia alguém, mas não estaria presente, neste caso, a hierarquia, condição da relação de autoridade. E, por último, pontua a questão da autonomia, dizendo que "quem se submete à autoridade não tem, ou pensa não ter, no momento e no campo da submissão, autonomia" (ibid.).

Logo, para esse autor, o respeito, a hierarquia caracterizada por relações assimétricas e a autonomia são os elementos constituintes da autoridade, ou seja, condição para sua existência.

Outros autores que pesquisamos reforçam esses pressupostos. Araújo (1999) diz que a autoridade está relacionada com o sentimento de respeito, que, por sua vez, se constrói nas relações interpessoais. Ela constituir-se-ia de duas maneiras distintas: como resultado da hierarquização nas relações sociais - como no caso dos cargos ou funções públicas, por exemplo, em que se situariam também os professores - e quando decorre do reconhecimento do prestígio e/ ou competência.

A conclusão a que chegam os autores é que a autoridade é construída nas relações interpessoais e, logo, em um mundo em constante transformação, a autoridade e sua forma de expressão também se transformam. O respeito, a responsabilidade, a assimetria e a autonomia aparecem, na maioria dos autores, como componentes da relação de autoridade e, tal como ela, não podem ser entendidos como permanentes ou estanques, mas como construções e, aí sim, em permanente movimento nas práticas sociais. Logo, em qualquer caso - espaço ou situação -, a autoridade não está dada a priori, mas é forjada nas relações interpessoais.

Todos os autores que abordam o tema da autoridade a inserem na instituição. Lapassade (1977) entende a realidade social dividida em três níveis: o do grupo, o da organização e o do Estado. O primeiro, do grupo, caracterizaria a base das relações cotidianas, tais como: a família, a classe (na escola), o escritório ou departamento (no trabalho). O institucional aqui se manifestaria nos horários, ritmos, normas, sistemas de controle, estatutos e papéis, cujo objetivo é manter a ordem, organizar (a aprendizagem, a produção). O segundo nível - da organização - caracterizar-se-ia por seus regimentos e regulamentos, que contemplam as normas jurídicas, tais como: um estabelecimento de ensino, uma fábrica, etc. Nesse nível é que se situa, segundo o autor, a burocracia entendida como "um certo tipo de relação de poder que atravessa toda a vida social, desde as relações de produção até o lazer, passando pelos partidos políticos, pela pesquisa científica e pela educação" (ibid., p. 54). Pensamos que desvelar como a instituição se manifesta nos diferentes grupos da escola seria importante para compreendermos as interações e suas relações com a construção de valores. É nesse sentido que acreditamos poder recorrer a Lapassade.

Albuquerque (1978) diz que quando observamos os elementos estruturantes da prática institucional, vemos que "a prática dos atores concretos não é resultado, mas componente estrutural da ação das instituições; e que a prática institucional não existe senão encarnada na prática dos atores concretos que a constituem". (ibid., p. 53). A fim de explicar essa estruturação, o autor destaca o que chama de "elementos estruturantes da prática institucional", quais sejam: o objeto institucional, o âmbito de ação institucional e os atores institucionais.

Em relação ao primeiro - objeto institucional -, o autor o diferencia do objeto de uma organização, que equivaleria a determinados tipos de recursos, dos quais ela se apropria para cumprir sua finalidade, transformando-os. O objeto institucional seria "aquilo sobre cuja propriedade a instituição reivindica o monopólio de legitimidade" (ibid., p. 53).

Sobre o âmbito institucional, Albuquerque (ibid.) diz que o que sustenta o objeto são as relações sociais, e a posse do objeto é que autorizaria a ação institucional sobre as relações sociais. O terceiro elemento estruturante da prática institucional corresponderia aos atores institucionais. Albuquerque divide os atores institucionais em quatro grupos: o dos agentes institucionais, o do mandante, o da clientela e o do público. O primeiro, dos agentes, equivale a todos os atores institucionais, independentemente da posição que ocupem. O segundo, do mandante, geralmente corresponde ao Estado.

O último elemento estruturante da instituição referido pelo autor é o que denomina práticas institucionais. Elas seriam o resultado das relações sociais entre seus agentes, mandantes, clientes e público. Como, muitas vezes, a prática de cada um desses atores é divergente ou contraditória à de outros, a prática institucional se caracteriza, via de regra, como conflito.

Em síntese, o autor define a instituição como estrutura construída e mantida por atores institucionais que ocupam diferentes posições nas relações sociais, as quais, por sua vez, determinam não só as formas de relação, mas também a própria instituição. Do mesmo modo, esses atores também são determinados pela instituição, não só em relação aos papéis que representam, mas também às relações que estabelecem.

 

O método

O método que utilizamos no desenvolvimento da pesquisa não segue, a priori, um procedimento predeterminado, mas nasce da necessidade de sistematizar dados, que fomos observando ao longo do processo.

Nossos dados foram coletados em três espaços diferentes: nas reuniões com a coordenadora, a partir de seus relatos sobre a escola e da observação das relações que se empreendiam em sua sala, com professoras, alunos e supervisora de ensino; nas salas de aula, a partir da interação entre a pesquisadora e as crianças no projeto de contação de histórias e também da observação de algumas práticas das professoras; e, nos espaços de intervalo, no pátio ou corredores com as crianças ou na sala de professores, com as professoras. Observamos ainda quatro festas desenvolvidas pela escola.

Para a coleta, utilizamos diferentes instrumentos: registro escrito no ato da observação, gravações em cassete, além de alguns documentos (projeto pedagógico da escola, relatórios produzidos pelas professoras e coordenadora, reflexões escritas das professoras e da coordenadora, sínteses de reuniões de HTPC, propostas da Secretaria de Educação e atividades desenvolvidas pelos alunos). Os dados foram coletados semanalmente, durante dois anos consecutivos, ao longo do período letivo.

No momento da observação, procedemos ao registro escrito, de maneira detalhada, de situações relativas ao nosso objeto de pesquisa - interações que tinham, como conteúdo, o conflito de valores. Uma vez por mês, a depender da situação, realizamos gravação das interações em cassete. Também juntamos, aos registros - escritos ou gravados e transcritos -, documentos, tais como os referidos no item coleta de dados. Em seguida, já fora da escola, trabalhamos na elaboração das cenas: primeiro, complementando o registro com dados que não conseguimos anotar na hora ou com dados transcritos da gravação ou ainda com aqueles contidos em documentos selecionados. Depois, elaboramos uma narrativa em que o pesquisador é o narrador utilizando discurso indireto e direto para reproduzir as interações observadas. Logo, as interações aparecem de duas formas distintas nas cenas: reproduzidas por meio de discurso indireto, narradas pelo pesquisador, e como discurso direto, reproduzindo as situações de fala e/ou diálogo dos personagens. As narrativas contextualizam os dados observados, inserindo elementos que permitem compreender a origem da cena, os objetivos das interações narradas, os personagens que tomam parte dela e o cenário em que se desenvolvem. Desta feita, as cenas foram compondo um conjunto que seguia, a princípio, uma seqüência cronológica, que ia de abril de 2001 a dezembro de 2002. A esse conjunto demos o nome de cenas do cotidiano, fazendo alusão ao cinema e à forma como este nos apresenta os filmes que produz: por meio de várias cenas, ora isoladas, ora sobrepostas, o diretor utiliza-se de recursos de aproximação e afastamento dos cenários e das personagens para chamar a atenção do espectador sobre algumas personagens ou cenas. Contudo, para que se compreenda o filme, é necessário observar todas as cenas - partes - e examiná-las em seu conjunto - todo - por meio de relações que o espectador vai construindo desde o início do filme. Ao final de 2002, tínhamos um universo de 98 cenas do cotidiano.

 

Critérios de análise

Partindo da escolha inicial - interações que revelam conflitos de valores -, nosso primeiro movimento com as cenas do cotidiano foi identificar tais interações dentro das cenas e destacar o que chamamos de atos (pequenos trechos de cenas). Ao proceder a essa seleção, identificamos valores como o respeito (ou sua contrapartida de desrespeito), a competência (ou sua contrapartida de incompetência), o sucesso (ou sua contrapartida de fracasso), a responsabilidade (ou sua contrapartida de omissão). Elegemos, como categorias de análise, o auto-respeito (como valor essencialmente moral), os valores não morais (que agrupamos e denominamos auto-estima) e a autoridade.

Definidas as categorias, nosso segundo movimento com as cenas do cotidiano foi identificar os atos relativos às categorias, por meio de vários níveis de leitura. Formamos três grupos de cenas do cotidiano: um com aquelas em que aparecia o auto-respeito como valor, outro que continha manifestações de valores não morais (auto-estima), e o terceiro, em que apareciam as relações de autoridade. O passo seguinte foi - diferentemente do que pensamos inicialmente, ou seja, estudar as interações que revelam conflitos de valores - identificar, em cada conjunto de cenas do cotidiano, as qualidades de interações que favorecem a construção e/ou manutenção de valores positivos, e as que não favorecem essa construção. No quadro a seguir, sintetizamos nossas categorias e procedimentos de análise.

 

Conclusão

Analisando as interações que concorrem no espaço escolar encontramos dois grupos distintos, no que concerne à construção e/ou manutenção de valores: interações que favorecem a construção e/ou manutenção de valores positivos, morais e não morais, atrelados às representações que os sujeitos têm de si e interações que não favorecem essa construção e/ou manutenção ou favorecem a construção e/ou manutenção de suas contrapartidas.

Classificamos as qualidades de interações segundo a importância que têm para a construção e manutenção desses valores na escola. É claro que todos os elementos que constituem as interações são relevantes para a construção de valores morais e não morais. Contudo, sustentadas por nossas análises, acreditamos que há aspectos que preponderam, quando se trata da apropriação de valores.

Elegemos cinco modos de interações, cujos componentes as caracterizam como de primeira ordem. Quais sejam: interações que se pautam pelo acolhimento e cuidado com o outro; interações que têm em sua base a crença a priori na capacidade do outro; interações em que se investe no que o outro tem de melhor; interações que consideram os valores do outro como ponto de partida para a negociação de significados e sentidos; e interações que têm em sua base a direção, a organização e a clareza nos encaminhamentos.

Em nossa pesquisa, observamos que sempre que esses elementos estiveram presentes nas interações entre os diferentes atores e em diversas situações, valores como o respeito e a responsabilidade, por exemplo, faziam-se presentes, permeando os contextos interativos, além de outros, como a implicação, o compromisso, o reconhecimento e, algumas vezes, o orgulho. Um exemplo desse modo de interação é aquela em que a coordenadora parte do julgamento que as professoras fazem dos alunos, acolhe tais julgamentos sem julgá-los e propõe que elas discutam os encaminhamentos possíveis. Ao fazer esse movimento, a coordenadora atribui a responsabilidade pela aprendizagem dos alunos às professoras, conferindo-lhes competência para tal (crença na capacidade a priori). Os valores que circulam são a responsabilidade e o respeito, sustentados por um outro, maior, qual seja, o dever de fazer com que os alunos aprendam. Essa interação também tem como qualidade o investimento no/do outro e a consideração dos valores do outro como ponto de partida da interação.

A presença desses valores como componentes dos contextos de significação apropriados pelos sujeitos em relação é que nos permite afirmar que interações de primeira ordem favorecem a construção e/ou manutenção de valores morais atrelados ao conjunto das representações que os sujeitos têm de si. O que queremos dizer é que há modos de funcionamento dos contextos interativos que são mais favorecedores da construção de valores. Quando as interações têm essas características, valores positivos circulam, mobilizando as pessoas em relação à experiência desses valores.

Contudo, queremos também sublinhar que o fato de acreditarmos que esses aspectos favorecem a construção e/ou manutenção de valores morais também nos fez considerá-los como de primeira ordem. Isso porque o que as interações de primeira ordem têm em comum é o investimento no/do outro no que ele tem de melhor e daí acreditarmos que favorecem a construção do auto-respeito.

Não menos importantes, temos as interações de segunda ordem, com as seguintes características: garantia de espaço para a expressão de idéias e pensamentos; compartilhamento de perspectivas referenciais comuns; promoção do confronto de diferentes pontos de vista; investimento na criação do diálogo, pela manifestação das contrapalavras; e enfrentamento dos conflitos.

Embora com menos freqüência, observamos em nossa pesquisa que as interações com essas qualidades também favorecem a construção e/ou manutenção de valores morais e/ou não morais. Isto porque é possível, por exemplo, que, ao garantir espaços para a expressão de idéias e suas manifestações, no contexto interativo, possibilite-se que os sujeitos em relação mostrem sua competência e sejam reconhecidos como tal, o que corresponderia à construção de valores, mas não de valor moral e sim de valor não moral.

No capítulo sobre valores não morais, temos vários exemplos desse movimento. Um deles é a interação entre a contadora de histórias e as crianças, cuja garantia do espaço para expressão resulta na confiança das crianças para se expressarem, o que indica que se vêem como competentes para tal, logo, valor não moral positivo atrelado à imagem que têm de si.

Do mesmo modo, podemos considerar o compartilhamento de perspectivas referenciais comuns, quando se assume o mesmo ponto de vista do outro ou outros do grupo, para, avaliando-se uma experiência como de sucesso, favorecer a apropriação desse valor pelo grupo, o qual é positivo, mas não se constitui como moral. Um exemplo é a cena em que a coordenadora solicita às professoras que identifiquem as razões para o desempenho insatisfatório dos alunos e os toma como ponto de partida para a interação.

Todavia, é preciso lembrar que os valores morais, segundo o que nós mesmos afirmamos em nossa análise, estão imbricados com os valores não morais e daí justificar-se a importância das interações de segunda ordem como componentes dos contextos interativos, no que diz respeito à construção de valores morais.

O que essas interações têm ainda em comum é o investimento no diálogo, na palavra do outro como possibilitadora da expressão da subjetividade e da apropriação do que se é pelo significado que o outro atribui à essa expressão.

Identificamos também interações mais desfavorecedoras (ou favorecedoras da contrapartida) na construção de valores. Também elegemos, neste caso, interações de primeira ordem, as quais se apresentam com freqüência como componentes dos contextos interativos.

As interações não favorecedoras da construção e/ou manutenção de valores morais ou favorecedoras de suas contrapartidas têm as seguintes características: apatia, indiferença e omissão em relação ao outro; culpabilização do outro, externo ao grupo, pelos problemas que se manifestam no interior da escola; exaltação do "parecer" como conduta aceita e desejável dos atores da escola; e sanção expiatória como forma de lidar com as atitudes inadequadas.

Em nossa pesquisa, observamos que a presença desses elementos nas interações produziam nos sujeitos sentimentos dolorosos, tais como o desprezo, a humilhação, a incompetência e o fracasso, por exemplo. Esses sentimentos levaram as pessoas que os experimentaram a se verem como inferiores, ou seja, valor negativo atrelado à imagem que têm de si. A freqüência com que encontramos esse tipo de interação na escola leva-nos a afirmar que a escola favorece a construção de valores negativos pelos sujeitos que se envolvem em suas práticas sociais, justamente porque se apropriam de contextos de significação que portam esses valores. Vimos, por exemplo, que as crianças que são denominadas apáticas ou indiferentes pelas professoras ("não fazem nada"), convivem, muitas vezes, com a apatia, a indiferença e a omissão das professoras ("não vou ficar com quem não quer saber de nada; não volte mais para a sala hoje"; ou dito pelo aluno, "ela não me quer mais na classe hoje"). Do mesmo modo, vimos que a indiferença do mandante em relação às necessidades e/ou especificidades da escola é apropriada pelos agentes, que realizam suas propostas mecanicamente, ou seja, com indiferença ou reivindicando recompensas externas (trocar a ida à premiação de poesia pela falta à HTPC, por exemplo). Ou ainda, a criança que "delata" o colega e/ou põe a culpa pelo que fez no outro convive com práticas "autorizadas" de delação (quando se manda uma criança marcar o nome de quem conversa na lousa) e de exposição das más condutas - humilhação (quando se tem o nome colocado no "cantinho feio"). Essas interações têm em comum a depreciação do ser e daí acreditarmos que não favorecem a construção de valores morais pelos sujeitos, podendo favorecer a construção de suas contrapartidas.

Como interações de segunda ordem, favorecedoras da manutenção e/ou construção dos valores negativos, encontramos aquelas que se caracterizam por: provocações e afrontamento constantes; oferecimento de recompensas externas à situação ou evento como motivação para a ação; espera da aceitação incondicional do outro, independentemente da proposta; ou imposição; corporativismo e conformismo; e manifestação de descontrole da situação.

Observamos o sentimento de vergonha moral manifestar-se em várias interações de que participou a coordenadora. Esse fato indica o auto-respeito como central no conjunto das representações que a coordenadora tem de si. Contudo, em relação aos demais atores da escola, embora tenhamos observado o auto-respeito em algumas interações, não é possível dizer que o grupo tenha esse valor como central, visto que, se assim fosse, o desrespeito não encontraria lugar tão freqüente nas interações em que se empreendem esses atores.

Como razão do não investimento na auto-avaliação pelos atores da escola, o que possibilitaria refletir sobre o que se é e assumir novas posturas, encontramos o medo de sentir vergonha, ou seja, o medo de decair perante os olhos do outro a quem se respeita e, logo, aos próprios olhos.

Por exemplo, em relação às professoras, observamos a resistência em expor suas práticas, discutir textos nas HTPCs, realizar atividades diferenciadas com as crianças, participar do projeto de contação de histórias, etc.

O que levava as professoras a resistirem às propostas era o medo de sentir vergonha e temos razões para acreditar que esse fato - medo de sentir vergonha - pode constituir força motivacional para a resistência das professoras a novas práticas e/ou propostas, à mudança, enfim.

Ainda em relação aos valores, vimos que os valores não morais têm lugar privilegiado na escola e, tomando parte dos contextos interativos, manifestam-se, sobretudo, como sucesso, competência, valentia, esperteza e beleza. Esses valores constituem-se como força motivacional, principalmente para as crianças que buscam ser aceitas e vêem nesses valores a possibilidade de aceitação. Contudo, à semelhança do que observamos em relação aos valores morais, as contrapartidas dos valores não morais, tais como o fracasso e a incompetência, aparecem com muita freqüência, nos contextos interativos, e são apropriados pelas pessoas em relação. Esse fato assume maior relevância, em decorrência de a escola valorizar o "parecer" em lugar do "ser". Daí encontrarmos a incompetência e o fracasso como valores atrelados ao conjunto das representações que professoras, coordenadora e alunos têm de si.

As relações de autoridade empreendidas nos diversos espaços institucionais dessa escola - entre o mandante e os agentes, os agentes entre si e os agentes e a clientela - têm como base, via de regra, o mando-medo-obediência, que lhes confere o caráter de totalitárias. Por conseguinte, mantêm a heteronomia como modo de funcionamento das condutas das pessoas.

Consoante essa característica, identificamos a desconfiança e o descrédito permeando as relações de autoridade em todos os níveis analisados. Nossa interpretação é que as relações vividas entre o mandante e os agentes são reproduzidas pelos agentes nas interações entre eles e os alunos. Em decorrência dessa reprodução, as formas de exercer a autoridade pelos agentes, via de regra, limitam-se ao uso de sanções expiatórias, as quais mantêm a heteronomia como única forma possível de conduta.

As relações de autoridade entre os agentes e a clientela não favorecem a constituição dos agentes como autoridade, visto que constatamos a ausência de valores, tais como o respeito e a responsabilidade, e ainda a ausência da autonomia como modo de conduta dos alunos.

Para além da escola: algumas considerações sobre o ensino superior

Anunciamos, no resumo do presente artigo, algumas considerações sobre a questão dos valores no ensino superior. Lembramos que os conflitos que vivenciamos nesse segmento de ensino conduziram-nos a questionar a formação de valores na escola e a levantar a hipótese de que a razão para alunos do ensino superior manifestarem condutas heterônomas, repletas de "desrespeito" e, grosso modo, sem ética ou ideais, estaria na ausência de um investimento da escola no que concerne à formação de valores. Ou seja, os sujeitos passam pela educação básica sem se apropriarem de modos de conduta cidadã e seus valores, apesar dos discursos na educação de que se deve formar para a cidadania.

O que significam os valores para o homem?

O filme O homem bicentenário é um bom exemplo do significado dos valores para o homem. Nele, a personagem vivida por Robin Willians, um robô que vive com uma família durante muito tempo, apropria-se do modo de vida dos humanos e quer se tornar igual a eles. Então, passa sua longa vida (como o próprio nome do filme revela) submetendo-se a experiências de um cientista, com o intento de alcançar a humanidade. Podemos observar, ao longo de sua trajetória, como é difícil para uma máquina se apropriar de sentimentos, valores, sensibilidades, enfim, dimensões do humano que vão muito além da inteligência, capacidade que o robô já tinha desenvolvido muito antes e, portanto, "fácil" de ser imitada.

Quando o robô, por fim, adquire todas as características dos humanos, ele decide envelhecer e morrer, pois acha que a vida não teria sentido sem sua amada, que já envelhecera. Então, dirige-se ao tribunal "dos homens" para reivindicar que reconheçam sua humanidade, pois, embora tenha vivido toda sua vida como robô, ele quer morrer como humano.

Perguntado pelo Ministro do Tribunal sobre o porquê daquele desejo, ele responde: "para ter o direito à dignidade, para morrer como digno de ser humano".

Acreditamos que seja esta a razão maior para a empreender a educação de valores morais: propiciar que nossos alunos possam se constituir como dignos, ou seja, não podemos nos furtar de oferecer às novas gerações a construção e manutenção de valores que conferem ao homem o caráter de humanidade.

Vimos, quando abordamos os valores não morais, que as crianças partem de suas experiência para atribuir significados e sentidos aos conteúdos que circulam nos espaços interativos de que tomam parte. Além disso, os discursos que circulam nesses espaços são, via de regra, contraditórios às condutas das pessoas que os propagam, o que confere ambigüidade aos valores que circulam nesses contextos e são apropriados pelos sujeitos em relação.

Também vimos, em relação à autoridade, que o modo de a escola encaminhar os conflitos de valores favorece a moral heterônoma, uma vez que se investe na sanção expiatória, ignora-se a capacidade das crianças de tomar consciência de seus estados internos e também não se considera que os juízos alheios são mais dolorosos que a privação material. Ao mesmo tempo, não se investe no diálogo em torno dos conteúdos geradores dos conflitos. Logo, a conduta expressa pelas crianças é a heterônoma, a que necessita da vigília do Eu para que se mantenha uma convivência coletiva tolerável. Também no capítulo sobre autoridade, vimos que o respeito mútuo, como valor regulador das relações interpessoais, comparece de maneira esporádica e pontual como conteúdo das interações entre agentes e entre os agentes e a clientela.

Além do mais, sua ausência ou presença como respeito unilateral conduz as pessoas a não se responsabilizarem pelos eventos ou condutas que concorrem no contexto interativo. Identificamos, ainda, nas cenas analisadas, ao longo da pesquisa, a ausência de ideais ou projetos coletivos. Vimos que os agentes, e mesmo a escola como organização burocrática, não têm o reconhecimento social de seu trabalho, não são legitimados como detentores do objeto educação, assim como não seriam competentes para promover sua difusão. Essa falta de legitimação gera o sentimento de fracasso e, por conseguinte, o nível do ideal a se manter parece dissipar-se, não havendo dívida em relação a ele (se já se é ruim a priori, qual o nível a manter?). Ao mesmo tempo em que se é julgado, no âmbito do público, como fracassado, tem-se medo de parecer fracassado como pessoa, no âmbito do privado, e desenvolve-se a resistência. Todos esses sentimentos e movimentos, alguns ambíguos e contraditórios, são apropriados pelos sujeitos que tomam parte nos contextos interativos.

Nesse contexto, o ideal do Ego, enquanto instância que avalia o ser, dá lugar ao Superego, como instância que vigia as condutas do ser. No entanto, nesse contexto mesmo, o Superego é fraco: a autonomia e a auto-regulação que caracterizam a apropriação da ética como resposta ao que se quer ser, aos ideais de futuro e ao amor próprio ou auto-respeito, dão lugar à heteronomia, à regulação externa e à dependência do amor do outro ou busca permanente da aceitação; a honra ou o orgulho como componentes centrais da moralidade e como força motivacional para as condutas, com direito a se exigir o reconhecimento do outro, dão lugar à glória, ao parecer, que condena a pessoa à espera do reconhecimento, que poderá vir ou não; a autoridade como relação assimétrica, cujo objetivo é conduzir o aluno à superação da assimetria, quando poderá prescindir do mestre, dá lugar a uma relação totalitária, que condena à assimetria em relação aos conhecimentos de toda natureza.

Então, encontramos alunos adultos com dificuldades de expressão, sem autonomia para desenvolver tarefas, para negociar com professores, que se utilizam de "jeitinhos" para cumprir seus deveres e capazes de condutas desrespeitosas com os colegas e/ou professores.

Se as atitudes são semelhantes às das crianças, a situação é muito diferente, pois esses adultos estão prestes a entrar (ou já ingressaram) no mundo profissional, levando consigo um diploma que os legitimam como aptos para tal. De outro lado, teria a universidade, com toda sorte de problemas que enfrenta em relação ao nível de conhecimento acadêmico que os alunos apresentam, condições de investir também na formação de valores? E os agentes que planejam, coordenam e ensinam no ensino superior, teriam eles condições de empreender a negociação efetiva de valores, nos moldes das interações de primeira ordem como favorecedoras de sua construção? Ademais, o tempo de que os cursos superiores dispõem para a formação e as condições dos alunos, sobretudo do período noturno, são fatores que desfavorecem ações que envolvam a formação de valores. Mais uma razão para que se invista na escola, tempo em que as crianças estão mais abertas e, conforme demonstramos no capítulo sobre valores não morais, se apropriam com facilidade dos discursos sobre valores.

Isso não quer dizer que não tenhamos que investir no ensino superior, sobretudo nos cursos de formação de professores, a começar pela busca de compreensão de nossos próprios valores e de identificação de nossos projetos de futuro: ideais nossos ou dos alunos? Desejos nossos ou dos alunos? Ambos pela via da articulação dos desejos e ideais, para transformá-los em projetos coletivos que permitam o exercício de uma vida digna.

 

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Recebido em outubro de 2005.
Aprovado em dezembro de 2005.

 

 

1 Instância inconsciente é o lugar das pulsões.
2 Instância consciente, que busca equilibrar as exigências do Id e as imposições do Superego.

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