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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.21 São Paulo Dec. 2005

 

Vozes no silêncio: um grupo de formação crítico-reflexiva de professoras de alunos com autismo

 

Voices of silence: a critical-reflexive education for treachers of autistic students

 

Voces en el silencio: un equipo de formación crítico reflexiva de profesores de alumnos con autismo

 

 

Ruth Cabral Monteiro de Castro

Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do GrandeRio. E-mail: ruth_castro@terra.com.br

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo analisar um processo de formação que procurou desenvolver, em professoras de alunos com transtornos autistas, uma postura críticoreflexiva, através da apropriação de conhecimentos e competências de atuação voltados para as características desse aluno. Adotamos as pesquisas ação e participante como métodos investigativos e a coleta de dados foi descritiva. Utilizamos as fundamentações teóricas de Donald A. Schön, Pimenta e Contreras sobre o uso da reflexão nos grupos de formação de profissionais, que foram articuladas com informações sobre as novas políticas de inclusão no ensino público, ressaltando a importância de um espaço que fosse propício à aprendizagem, valorizasse a interação entre os professores, respeitasse os tempos individuais e as formas diversas de aprender.
Concluímos acreditando que foram obtidos indicadores de êxito nessa abordagem crítico-reflexiva de formação de professores, através de depoimentos e avaliações das participantes que expressaram o seu crescimento profissional e pessoal e suas possibilidades de reflexão sobre a prática como professoras de alunos com necessidades educativas especiais, levando-nos a refletir o quanto podemos caminhar para chegarmos mais perto de uma educação que seja realmente um direito de todo e qualquer cidadão.

Palavras-chave: educação especial; autismo e formação de professores.


ABSTRACT

The main objective of this research was the analysis of a formation process for teachers of autistic students intended to bring to these professionals a reflective-critic position through the appropriation of knowledges and competencies targeted to the characteristics of these special-needs students.
The action-research and participant observation procedures were the methodological approaches used and the data collection was done in a descriptive fashion. We have adopted Donald A. Schön, Pimenta and Contreras theories about the use of reflection in the formation professional groups, which were articulated with information about the new inclusion policies on public education.
Our conclusion is based on what we believe are success indicators of this reflective-critic teachers formation approach. The participants expressed their personal and professional evolution process and the possibilities of reflection about their behavior as teachers of students deserving special educational needs, leading us wondering how much we can step further into education as a fundamental right for each and every citizen.

Keywords: Special Education; Autism and Process of formation for teacher.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo analisar un proceso de formación que buscó desarrollar en profesoras de alumnos con trastornos autistas, una postura crítca reflexiva, a través de la apropiación de conocimientos y competencias de actuación volcadas a las características de este tipo de alumno. Como método adoptamos la investigación acción participante y la selección de datos con carácter descriptivo. Utilizamos las fundamentaciones teóricas de Donal A. Schön, Pimenta y Contreras sobre el uso de la reflexión en los grupos de formación de profesional, que se articularon con informaciones sobre las nuevas políticas de inclusión en la enseñanza pública, resaltando la importancia de un espacio que propicie el aprendizaje, valorice la interacción entre los profesores y respete los tiempos individuales y las formas distintas de aprender.

Palabras clave: educación especial; autismo e formación de profesores.


 

 

Aqui se relata parte de uma história que começou quando um dia uma voz saiu ao encontro de outra voz. As vozes começaram a caminhar juntas. Sua relação foi simples, amável e cheia de afeto e de escuta. Porém, de início, esta relação estava afetada pela distância de seus contextos de procedências e, portanto, por intenções, desejos e interesses distintos. Assim, uma voz tomou a iniciativa de conhecer e compreender a outra, de perguntar-lhe, de observar o seu tom, seu volume, sua expressão de júbilo ou de angústia, suas melodias, seus ritmos, suas modulações. As reflexões e decisões que serão expostas estarão baseadas nesta história relacional quando uma voz iniciou a busca de compreensão da outra voz. (Remei Arnaus in Bolzan, 2002, p. 12)

 

Introdução

O presente estudo tem por objetivo desenvolver e analisar, junto a professores de alunos portadores do transtorno autista, um processo de formação que promova uma postura reflexiva e crítica através da apropriação de conhecimentos que incluem desde conteúdos e estratégias didáticas até competências mais específicas de atuação e intervenção.

A pesquisa ocorreu por intermédio de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação do Município de Duque de Caxias - Equipe de Educação Especial e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Mestrado em Educação Especial. Utilizamos a pesquisa ação e a pesquisa participante como métodos de abordagem e contamos com seis professoras como sujeitos do grupo, que se desenvolveu em oito encontros coletivos para a formação proposta. Fizemos a coleta de dados de forma descritiva, a partir das observações participantes, de depoimentos das professoras1 em entrevistas semi-abertas e de registros produzidos ao longo do processo grupal.

Adotamos as fundamentações teóricas de Donald A. Schön, sobre o uso da reflexão nos grupos de formação de profissionais, revistas e ampliadas a partir de uma perspectiva crítica por outros autores, como Pimenta e Contreras. Essas fundamentações foram articuladas com informações sobre a etiologia do autismo, características de pessoas nessas condições, formas de intervenção com destaque para alguns métodos pedagógicos considerados eficazes na educação de alunos com autismo, que são o Tratamento e Educação para Autistas e Crianças com Deficiências relacionadas à comunicação (TEACCH) e a Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA).

Quanto à singularidade e a importância desse processo de formação, considera-se que sejam justificadas com base nos seguintes fatores:

• as inúmeras dificuldades encontradas pelos professores que já trabalham com alunos portadores do transtorno autista e a falta de espaço para colocá-las e discuti-las;

•o desconhecimento sobre essa síndrome, que resiste às recentes investidas em termos de debates e investigações;

•a relevância do tema da formação inicial e continuada de professores para atender às transformações educacionais da atualidade;

•o desafio da inclusão do aluno com autismo no sistema regular de ensino.

Em última instância, quem lida com a criança portadora de dificuldades de aprendizagem é o professor. A ele cabe, muitas vezes, decidir impasses que serão determinantes na vida daquela criança. E, inúmeras vezes, suas decisões são tomadas sem consciência das razões ou das conseqüências.

A realização desta pesquisa vincula-se à necessidade de preparar o professor diante dos novos desafios da educação, sobretudo as atuais políticas de inclusão escolar e social. A proposta da educação inclusiva é possibilitar condições educacionais adequadas para todos, inclusive os portadores de necessidades educativas especiais (deficiência mental, física, auditiva, visual, múltipla, altas habilidades e transtornos2 invasivos do desenvolvimento). É condição sine qua non que essa nova educação esteja inserida numa sociedade inclusiva, onde as desigualdades sociais não atinjam os níveis repudiáveis com os quais temos convivido e que nela exista a celebração da diversidade humana. De acordo com o conceito formulado por Sassaki (1997),

(...) a inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam em parceria equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos. (p. 41)

Nesse sentido, a integração ou inclusão de alunos com necessidades educativas especiais no sistema regular de ensino tem sido causa de freqüentes discussões em nosso país, nas duas últimas décadas. Ao voltarmos nossas atenções para esses alunos, especialmente àqueles que são portadores de alguma deficiência, acreditamos que a desigualdade a eles impingida se legitima pela ausência de iguais condições de acesso e permanência no sistema escolar. Entretanto, reconhecer que a diferença está presente mesmo entre os alunos de uma classe regular é o ponto de partida para que o aluno especial possa ser aceito e respeitado na suas singularidades.

Diante deste impasse, a escola deverá se colocar, prioritariamente, a serviço do seu alunado, proporcionando-lhe uma práxis educativa de qualidade e coerente com o seu contexto sociocultural. Reforçando essa idéia, Müller e Glat (1999) colocam:

Garantir ao indivíduo o direito à educação, entretanto, é uma responsabilidade que vai muito além da oferta de um lugar de transmissão de conhecimentos e regras. Significa a oferta de uma escola de qualidade, que seja capaz de proporcionar a socialização dos saberes e garantir a todos - incluindo-se nesse contexto os portadores de necessidades educativas especiais - o acesso ao conhecimento e aos valores sociais que possibilitem uma vida autônoma e crítica. (p. 15)

Portanto, reconhecer que a diferença está presente, mesmo entre os alunos de uma classe regular, é o ponto de partida para que o aluno especial possa ser aceito e respeitado na suas singularidades. Entretanto, quando a escola é preparada para receber os alunos como se todos fossem iguais, deixando de considerar as características individuais de cada um, acaba por reforçar ainda mais a desigualdade entre eles.

Vale ressaltar que não só aqueles alunos que apresentam algum comprometimento físico, mental ou sensorial são considerados portadores de necessidades especiais. Também estão incluídos todos aqueles que estejam experimentando dificuldades temporárias ou permanentes na escola, a saber, dificuldades emocionais ou sociais, por trás das quais podem existir péssimas condições de vida e completa falta de perspectiva, interferindo seriamente no processo de aprendizagem. Além disso, alguns grupos de alunos com necessidades educativas especiais apresentam características muito específicas, que demandam, na maioria das vezes, um atendimento especializado, com professores capacitados para atendêlos em suas características específicas.

Nesse rol encontram-se os alunos portadores de transtorno autista, que representam um grande desafio aos professores que assumem para si essa difícil tarefa. O transtorno autista ainda é, para a maioria, uma grande interrogação, que gera sentimentos inquietantes e provoca discussões freqüentes sobre a sua etiologia e formas de intervenção. O aluno portador do transtorno autista faz parte de um grupo com características diferentes, o que não significa que sejam inferiores às dos demais; e o professor, diante dessa nova experiência, geralmente se defronta com inúmeras dificuldades, que podem levá-lo a um sentimento de incapacidade e frustração.

 

Ressignificando o papel da educação especial na sociedade brasileira atual

Conhecer e entender fatos e acontecimentos do passado constitui uma das mais antigas preocupações do homem. A história sempre foi o caminho para a dimensão mais profunda da realidade, buscando o grande princípio explicativo para fenômenos sociais e culturais da humanidade. Relatar histórias acerca do que ocorreu no passado implica entender o presente e contextualizar os fatos e acontecimentos, constatando o relativismo de todos os aspectos da cultura humana. Para que haja ciência é preciso haver história e pretendemos refletir e analisar a dinâmica social e relacional que envolveu a história da educação especial na sociedade brasileira.

A deficiência nasceu com a humanidade e o seu percurso através dos tempos sempre foi marcado pelo desconhecimento e pela exclusão social. No passado, após o advento do cristianismo, os indivíduos que eram portadores de alguma deficiência mental, incluindo as crianças, eram misturados aos loucos, aos criminosos e aos possuídos pelo demônio, julgados incapazes de conviver em sociedade e punidos com a morte (Mazzotta, 1996).

Segundo o autor:

A própria religião, com toda a sua força cultural, ao colocar o homem como "imagem e semelhança de Deus", ser perfeito, inculcava a idéia da condição humana como incluindo perfeição física e mental. (p. 16)

Em meados do século XX, a deficiência passou das mãos do misticismo para a responsabilidade dos médicos, imperando, então, o modelo clínico da deficiência.

Segundo esse modelo, os indivíduos deficientes eram considerados portadores de alterações orgânicas (estruturais ou funcionais) e vistos socialmente como enfermos e incapazes. Para Martín e Marchesi (1995),

(...) esta concepção impulsionou um grande número de estudos que tinham por objetivo organizar em diferentes categorias todos os possíveis distúrbios que pudessem ser detectados. Ao longo dos anos, as categorias foram sendo modificadas, ampliadas e especializadas, mantendo-se, entretanto, este traço comum de que o distúrbio era um problema inerente à criança, com poucas possibilidades de intervenção. No fundo desta perspectiva jazia uma concepção determinista do desenvolvimento, sobre a qual se baseava qualquer tipo de aprendizagem. (p. 7)

Ainda segundo os autores, dentro dessa concepção organicista, surgiram os primeiros testes de inteligência, criados para mensurar os diferentes níveis de atraso cognitivo.3 Eles contribuíram para uma maior conscientização da necessidade de uma educação distinta e separada para indivíduos que portassem qualquer tipo de deficiência, fosse ela mental, física, visual, auditiva, múltipla ou decorrente de distúrbios invasivos do desenvolvimento.

As décadas de 40 e 50 foram marcadas por várias transformações importantes nessa área. Embora os testes de inteligência fornecessem dados quantitativos significativos na detecção do nível mental do indivíduo, as posições ambientalistas e comportamentalistas (dominantes na área da psicologia) ganharam força no campo da deficiência, introduzindo a idéia de que esta pudesse ser conseqüência da ausência de uma estimulação adequada ou de processos educativos incorretos.

Assim, de acordo com os critérios dessa nova perspectiva, os alunos que apresentavam qualquer deficiência eram encaminhados para uma "outra" rede de atendimento educacional - as escolas de educação especial (ibid.).

A educação especial, historicamente, em nossa cultura, adquiriu uma conotação médico-terapêutica, que, na realidade, significa dizer que existem dois tipos distintos de educação, uma feita para atender aos alunos considerados "normais" e outra, voltada para os portadores de deficiência, que são atendidos em instituições especializadas, com professores e técnicos devidamente habilitados, onde há uma preocupação crescente com o diagnóstico médico-psicopedagógico desse aluno, a partir do qual se desenvolve a intervenção.

Entretanto, como nos coloca Correia (1997), é importante não esquecermos que:

(...) se a política de exclusão elimina as crianças da sociedade de que devem ser parte integrante, o procedimento de as colocar com estatuto desviante segrega-as: excluindo dos programas de educação públicos, impedidas de interações benéficas para o seu desenvolvimento, crescem em ambientes interpessoais áridos e, muitas vezes, hostis, não existindo serviços que as ajudem ou às suas famílias na tarefa educativa. (p. 14)

Para Mazzota (1982), nesse contexto, a educação especial foi sendo constituída como um subsistema da educação geral, negligenciado nas discussões teóricas sobre os processos educativos regulares. Comungando com essas idéias, Sassaki (1997) lembra que:

A década de 60, por exemplo, testemunhou o boom de instituições especializadas, tais como: escolas especiais, centros de habilitação, oficinas protegidas de trabalho, clubes sociais especiais, associações desportivas especiais. (p. 31)

Entre as décadas de 70 e 80, movimentos sociais apoiados por pais de portadores de necessidades educativas especiais pressionaram o governo a investir em uma política pública de atendimento que desse suporte administrativo social e financeiro ao processo de integração desses indivíduos na sociedade. A idéia de integração surgiu em uma fase de transição, para acabar com a prática da exclusão social de pessoas portadoras de deficiência e tem como princípio diretivo adequá-las para o convívio em sociedade. Porém, foram os novos conhecimentos alcançados pela comunidade científica que entenderam a integração como insuficiente, considerando que essa parcela da população não participava de forma plena e igual na interação social (Mazzota, 1996).

Percorrendo o caminho histórico da educação especial, podemos aferir que, somente da década de 70, com as profundas transformações sofridas nas concepções da deficiência, pôde-se criar uma abordagem mais condizente ao atendimento educacional especializado. Segundo Martín e Marchesi (1995), "necessidades educativas especiais", foi o termo adotado internacionalmente após 1978 para substituir a então terminologia médica, "deficiência".

Mediante as diversas discussões levantadas por grupos populares e minorias excluídas de exercer os seus plenos direitos de cidadãos, o Brasil comprometeuse a iniciar um processo de democratização no ensino, que foi expresso por lei na Constituição de 1988, onde constam vários capítulos, artigos e incisos sobre a educação, habilitação e reabilitação da pessoa com necessidades educativas especiais, além da sua integração na sociedade.

Segundo nos colocam Ferreira e Glat (2003):

Na educação, destaca-se o Inciso III, do art.208, que define como dever do Estado "o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino". É interessante observar que duas palavras do artigo ainda suscitam debates: "especializado" e "preferencialmente". A primeira por lembrar a noção do "tratamento especial" e por identificar a deficiência como um processo educacional diferente (apud Mazzota, 1996); a segunda, por permitir múltiplas interpretações sobre como se configura e se decide esta preferência. (p. 377)

A Constituição trouxe novas perspectivas ao sistema educacional brasileiro, gerando uma série de instrumentos legais que viabilizaram inserções importantes na política educacional brasileira, garantidas de forma mais específica pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9394/96.

Art. 58 - Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação regular, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino para educandos portadores de necessidades especiais.

§ 1º - Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino para educandos portadores de necessidades especiais.

§ 2º- O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.

§ 3º - A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil. (Art. 58, Lei 9394/96)

Ferreira e Glat (2003) fazem uma ressalva no texto da LDB, atentando para a substituição da palavra "deficiência" pela expressão "portadores de necessidades especiais", e abordam também a inclusão, nessa condição, dos alunos considerados com altas habilidades (superdotados) e, em um segundo momento, os alunos com algum desvio de conduta. Ainda sobre o olhar atento dos dois autores, a LDB continuou a manter a idéia inicial do texto da constituinte e, ao invés de ampliar o rol dos beneficiários pela nova lei, manteve a mesma visão generalista e dúbia, que deixa margens para quaisquer tipos de interpretações.

Como constatamos, as iniciativas pautadas no panorama internacional exerceram influências tardias em nosso país, pois em 1994, o conceito de "Educação para todos" já era discutido amplamente na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, onde estiveram presentes 92 países e 25 organizações internacionais. Nessa conferência, também foi elaborado o documento Declaração de Salamanca e Enquadramento da Ação - Necessidades Educativas Especiais (Corde, 1994), destacando-se algumas proposições:

[...] - instituições que incluam todas as pessoas, aceitem as diferenças, apóiem a aprendizagem e respondam às necessidades individuais (Prefácio).

[...] Todos os interessados devem aceitar o desafio e trabalhar, de modo que a Educação para Todos seja, efetivamente, PARA TODOS, em especial para os mais vulneráveis e com necessidades. (Prefácio)

No entanto, teoria e prática ainda estão muito distantes e as inquietações sobre a educação especial vão surgindo na mesma medida em que os professores desses alunos se confrontam com desafios diários em sala de aulas, especiais ou regulares.

No Brasil, vive-se uma fase de transição entre a inclusão e a integração, e esses termos ainda são bastante confundidos. Segundo Glat e Duque (2003):

Tecnicamente, integração e inclusão são duas propostas educacionais distintas. No primeiro caso, os alunos com necessidades especiais (geralmente oriundos do ensino especial) são integrados na sala de aula regular, na medida que demonstrem condições de acompanhar a turma, recebendo atendimento paralelo na sala de recursos. No segundo caso, esses alunos, independentemente do tipo ou grau do comprometimento, devem ser incluídos diretamente no ensino regular, cabendo à escola se adaptar para atender às suas necessidades na própria classe regular. (p. 70)

No caso específico do aluno com autismo, a complexidade das suas manifestações assume um papel relevante na discussão sobre a inclusão, e levanta questões obrigatórias, alvo de intensas controvérsias. Como devem ser educados os alunos com autismo? Existem possibilidades de recebê-los em uma escola regular, onde os professores não estão preparados para atender alunos com esse tipo de problemática? Qual deve ser o espaço educativo mais indicado para um aluno com autismo: a educação regular ou a educação especial?

Temos consciência de que esta pesquisa não se propõe a dar respostas para essas questões, e compreendemos que, no contexto educacional brasileiro, a formação do professor que lida com alunos que apresentam o transtorno autista ainda se apresenta em fase embrionária, em um estado permanente de construção e desconstrução de saberes.

Este estudo pretende, na verdade, permitir que essas discussões caminhem para uma reflexão sobre o principal paradoxo que tem caracterizado a análise da convergência entre autismo e educação: o distanciamento entre a educação regular dos alunos ditos normais e a educação dos alunos com autismo.

 

O que se sabe sobre o autismo

Segundo Leboyer (1987), o psiquiatra Leo Kanner, em 1943, descobriu características raras em um grupo de onze crianças que não se enquadravam em nenhum caso clínico até então conhecido pela comunidade científica. Dentre essas características, a que mais sobressaía era uma enorme incapacidade de comunicação e interação social desde o nascimento. Outras dificuldades foram constatadas, a saber: alterações na linguagem, uso inadequado das palavras, dificuldades de contatos físicos, dentre outras. Sobre a identificação do indivíduo com transtorno autista, a quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 1995 - DSM IV, enumera as seguintes características:

1. destacada diminuição no uso de comportamentos não verbais múltiplos, tais como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com a interação social;

2. dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriadas para o nível de comportamento;

3. falta de procura espontânea em dividir satisfações, interesses ou realizações com outras pessoas, por exemplo: dificuldades em mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse;

4. ausência de reciprocidade social ou emocional;

5. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral, sem ocorrência de tentativas de compensação através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímicas;

6. em indivíduos com fala normal, destacada diminuição da habilidade de iniciar ou manter uma conversa com outras pessoas;

7. ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação social apropriadas para o nível de desenvolvimento;

8. obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse que seja anormal tanto em intensidade quanto em foco;

9. fidelidade aparentemente inflexível a rotinas ou rituais não funcionais específicos;

10. hábitos motores estereotipados e repetitivos, por exemplo: agitação ou torção das mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos;

11. obsessão por parte de objetos;

12. atrasos ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade:

• interação social

• linguagem usada na comunicação social

• jogos simbólicos ou imaginários.

Para o diagnóstico de autismo, o indivíduo tem que se enquadrar em um total de seis ou mais dos itens relacionados acima e, por definição, se houver um período de desenvolvimento normal para a criança, ele não pode se estender além dos três anos de idade (DSM IV, 1995).

A complexidade do quadro de autismo e a carência de uma estrutura adaptada para indivíduos nessa condição acabaram retardando a evolução de alternativas de atendimento no Brasil. As que existem atualmente, convergem na busca de diminuir os comportamentos inapropriados e auxiliar no desenvolvimento de funções atrasadas ou inexistentes, tais como linguagem, formas de expressão emocional e atividades da vida diária. As intervenções, geralmente, são de base psicoterápica, comportamental,4 medicamentosa e educacional, mas, na maioria das vezes, são desenvolvidas em conjunto, podendo variar de acordo com o caso e com a opção escolhida pelos responsáveis e profissionais envolvidos.

Segundo Gauderer (1997), no Brasil, "os primeiros atendimentos especializados aos autistas datam de 1954 e pertencem à iniciativa privada", mas foi somente em 1960, através da Lei de Diretrizes e Bases n. 4.020/61, que o governo iniciou um programa voltado para a educação de indivíduos com necessidades especiais, objetivando sua melhor integração com a sociedade.

Apesar dos avanços constatados, o poder público custou a se envolver no atendimento a indivíduos com autismo e outras necessidades educativas especiais e, ainda hoje, não foram efetivadas ações específicas dignas da magnitude do problema, tais como professores capacitados e especializados, escolas preparadas fisicamente para receber esses alunos, um currículo adaptado às necessidades individuais, orientação para os familiares e a comunidade, incentivo ao desenvolvimento de pesquisas na área junto às universidades, dentre tantas outras.

Por este motivo, a maioria dos atendimentos educacionais para alunos com autismo tem sido realizados por associações de pais e algumas iniciativas privadas (geralmente a um custo muito alto) de vários estados brasileiros, como: Associação de Amigos do Autista (AMA, SP e SE ), Associação de Pais e Amigos dos Portadores de Necessidades Especiais (AMES, RJ), Associação dos Pais de Autistas do Rio de Janeiro (APARJ, RJ), Fundação de Pais Pró Saúde Mental Infantil (FUPASMI, RS), entre outras.

O desconhecimento de métodos pedagógicos alternativos que atendam às dificuldades educativas dos alunos com autismo, a escassez de profissionais especializados, a ausência de um currículo flexível, os espaços reduzidos na sala de aula inviabilizam o atendimento para a grande maioria.

Apesar das diferenças constatadas nas diversas áreas caracteristicamente atingidas pela síndrome, alguns movimentos de adequação recíproca estão sendo feitos entre a escola e a criança com autismo, buscando suprir as dificuldades desse aluno. Dentre esses movimentos está a construção de um currículo dinâmico e flexível, alcançado através das trocas de experiências profissionais que redimensionariam a prática em sala de aula, incentivando movimentos mais livres e com maior significado para o aluno. Também é importante que a aprendizagem continue na casa da criança, com a participação direta dos seus familiares, o que é imprescindível para maior eficácia dos procedimentos.

 

O professor crítico reflexivo

O início dessa nova concepção na formação do professor deu-se na década de 60, como uma variante dos grupos operativos criados por Pichon-Rivière, mas foi na década de 70, através de seu precursor, Donald Schön, que o conceito sobre a prática reflexiva no ofício do professor foi desenvolvido, com base no pensamento epistemológico e pedagógico de autores como John Dewey, Lev Vigotsky, Jean Piaget entre outros.

Desde então, o conceito de professor reflexivo vem sendo discutido e ampliado por vários autores, a saber, Freire e Shor (1986); Ziechener, (1997); Nóvoa, (1997); Garcia, (1997); Gómez, (1997); Gomes e Lima, (2002); Contreras, (2002); Perrenoud, (2002); Pimenta (2002), Sacristán (2002) entre outros.

No Brasil, a divulgação dessa idéia aconteceu em meados da década de 90, através de teóricos europeus, principalmente portugueses e espanhóis, que encontraram na teoria de Schön uma alternativa para ampliar e transformar as condições da formação dos professores e, conseqüentemente, elevar o status da profissão docente. A proposta em questão desenvolveu-se em um período político pós-ditadura, quando a sociedade vislumbrava uma abertura democrática e o professor, por sua vez, enxergava uma chance de ver valorizada a sua condição profissional (Pimenta, 2002).

Schön (1997) discordava da idéia de que o saber escolar só poderia ser proveniente de uma construção científica e que deveria ser usado pelo docente como algo absoluto e irrefutável. O autor, contrariado com essa forma de ensinar, procurou uma alternativa epistemológica para a prática profissional do professor, defendendo um tipo de saber docente que compreende e valoriza o saber do seu aluno, auxiliando-o a fazer uma junção do seu conhecimento na ação e o conhecimento que ele adquire na escola. O autor denominou esse tipo de ensino uma reflexão na ação.

Corroborando com esta análise, descreve Nóvoa (1997):

(...) A pedagogia científica tende a legitimar a razão instrumental; os esforços de racionalização do ensino não se concretizam a partir de uma valorização dos saberes de que os professores são portadores, mas sim através de um esforço para impor novos saberes ditos "científicos". A lógica da racionalidade técnica opõe-se sempre ao desenvolvimento de uma práxis reflexiva. (p. 27)

Gómez (1997) e Contreras (2002) criticam a racionalidade técnica como modelo de atuação do professor. Suas razões se justificam pela presença de casos práticos inesperados que surgem no cotidiano do professor, do tipo que não consta em nenhum manual técnico e que exige que ele aja com a delicadeza de um artesão, construindo com sua própria criatividade, enfrentando situações ambíguas, incertas e conflitantes que vivencia em sala de aula.

A alternativa de Schön para a racionalidade técnica pode ser fundamentada no modelo de racionalidade prática, segundo palavras de Sacristan e Gómez (1998):

A formação do professor/a se baseará prioritariamente na aprendizagem da prática, para a prática e a partir da prática. A orientação prática confia na aprendizagem por meio da experiência com docentes experimentados, como o procedimento mais eficaz e fundamental na formação do professorado e na aquisição da sabedoria que requer a intervenção criativa e adaptada às circunstâncias singulares e mutantes da aula. (p. 363)

Embora cada uma dessas concepções ofereça propostas e destaques diferentes, todas procuram dar ênfase à importância da análise e à compreensão desse profissional quando se depara com problemas complexos em sua sala de aula e os supera através do improviso, ultrapassando a reação linear e mecânica provocada pelo cientificismo técnico.

Schön (1997), ao sistematizar as técnicas dos grupos de reflexão na formação docente, observou que seu objetivo maior era propiciar aos integrantes a oportunidade de viverem a experiência de participar como membros de um grupo, e que esse grupo se constituísse em um espaço no qual pudessem trocar experiências e elaborar as tensões sofridas pela prática em sala de aula.

Ainda segundo ele, o ditado popular que diz que o homem tem dois ouvidos e uma só boca para lembrá-lo de que deve escutar mais do que falar é perfeitamente condizente com a concepção de professor reflexivo. No entanto, estamos sempre à espera de sermos escutados e muito raramente estamos disponíveis para ouvir o que o outro quer nos dizer. Como esse é um desejo individual compartilhado por todos, aprender a conviver e trabalhar em grupo representa, acima de tudo, aprender a conversar. No caso singular da educação, é preciso ouvir o que nossos alunos têm a nos dizer, na formação, dialogar e interagir com outros professores, e, pela experiência mútua da convivência, crescer na determinação de sermos melhores profissionais.

Contreras (2002), com o objetivo de ampliar o conceito do profissional reflexivo, propõe que este, além de refletir sobre sua ação docente, deva ampliar suas perspectivas a fim de atingir uma reflexão mais crítica e abrangente sobre a sua posição na sociedade. Para o autor, é necessário que o docente compreenda a influência organizacional no controle da sua autonomia e de sua prática educativa, muitas vezes interferindo em seus valores e princípios éticos (p. 157).

Desse modo, a prática reflexiva não encerraria uma concepção concreta sobre si mesma, mas serviria de estímulo crítico para superar diversas situações que se perpetuam há muito tempo na profissão docente, tais como: condições precárias de trabalho, falta de valorização do profissional, estrutura hierárquica rígida e completa falta de autonomia do educador. Em palavras proferidas ao professor reflexivo, Alarcão (2003), ressalta, entre as suas virtudes, a de ser um profissional que,

(...) pensa no que faz, que é comprometido com a profissão e se sente autônomo, capaz de tomar decisões e ter opiniões. Ele é, sobretudo, uma pessoa que atende aos contextos em que trabalha, os interpreta e adapta a própria atuação a eles. Os contextos educacionais são extremamente complexos e não há um igual a outro. Eu posso ser obrigado a, numa mesma escola e até numa mesma turma, utilizar práticas diferentes de acordo com o grupo. Portanto, se eu não tiver capacidade de analisar, vou me tornar um tecnocrata. (pp. 45-47)

Para alcançar uma prática reflexiva, a postura de análise sistemática da ação deve se tornar freqüente e, sobretudo, adquirir um caráter fundamentalmente crítico, constituindo-se como uma força e uma forma de identidade profissional.

Abordando a formação do professor que lida com o aluno portador de necessidades especiais, o processo de qualificação desse profissional aparece como requisito indispensável à transformação do nosso sistema educacional. Entre os problemas apresentados na atuação docente inclui-se, também, a inexistência de condições que favoreçam o desenvolvimento de uma competência voltada para a compreensão da diversidade apresentada pelo alunado com necessidades especiais. Em outras palavras, falta ao professor reflexão sobre o seu próprio processo de pensamento, sobre o processo de pensamento de seu aluno e o momento específico da aprendizagem. Somente desse modo, o professor estará preparado para construir uma prática pedagógica adequada a diversidade em sala de aula.

 

O processo de formação: a história de um grupo

A formação proposta foi conduzida através de dinâmicas de grupo, trocas de experiências, reflexões sobre textos, observações e discussões sobre tudo que foi vivenciado pelas integrantes do grupo em sala de aula. As estratégias utilizadas em dinâmicas de grupo, além de priorizarem muitas vezes o lúdico e as expressões espontâneas das professoras no agir e no pensar, também facilitavam a quebra das resistências e dos medos ocasionados por uma nova situação de aprendizagem.

A formação também abriu espaço para novas alternativas pedagógicas na educação do aluno com autismo, reestruturando o antigo saber do professor e ampliando possibilidades para um novo aprender.

Optamos por trabalhar em grupo por entender que os conteúdos da formação deveriam partir das próprias características e necessidades das professoras, e também por acreditar que a formação crítico-reflexiva evidencia que a aprendizagem significativa acontece na interseção do cognitivo, do afetivo e do relacional entre as integrantes do grupo. Não se trata mais de vencer individualmente o desafio de ensinar alunos com autismo, mas de compartilhar histórias e experiências que enriqueçam a vivência de cada participante do grupo. Citando Tatagiba e Filártiga (2002): "Não existe outro modo de exercitar e desenvolver as relações interpessoais senão experimentando as diversas nuances que se manifestam nos grupos que fazem parte" (p. 29).

Um ponto de relevância a ser mencionado foi a "imprevisibilidade" em relação aos temas que iríamos trabalhar; ou seja, apesar de direcionarmos o grupo para o estudo proposto, dávamos às participantes a liberdade de encaminhar seus questionamentos e sentimentos de acordo com o que fosse mais premente para todas. Nessa perspectiva, Alarcão (2003) coloca: "Se a capacidade reflexiva é inata no ser humano, ela necessita de contextos de liberdade e responsabilidade" (p. 45).

Integrantes do grupo

Participaram dessa pesquisa como membros do grupo de formação críticoreflexiva sobre a prática pedagógica com crianças autistas, seis professoras da rede municipal de ensino de Duque de Caxias. Algumas delas atuavam em classes especiais, outras em salas de recursos (onde a prática pedagógica é desenvolvida como um complemento ao trabalho feito nas turmas regulares, sempre de forma individual e com dias e horários previamente estabelecidos entre a escola e os pais) e uma em classe regular, que recebia na sua sala um aluno com autismo acompanhado de uma outra professora, também do grupo, para algumas atividades específicas.

A seguir fizemos uma síntese das informações recolhidas pelas professoras do grupo de formação5:

Débora

Débora tinha, na ocasião, 27 anos e exercia o magistério desde 1985. Tem formação superior em educação física, porém só exerceu por dois anos. Trabalha no município de Duque de Caxias desde 1994, e suas primeiras experiências foram em turmas regulares de 1ª a 4ª séries.

Em 2002, Débora trabalhou em sala de recursos e, entre os seus alunos, um era diagnosticado como autista. Seus resultados durante a aprendizagem eram lentos, mas Débora motivava-se com os desafios que apareciam.

Amélia

Amélia tinha 28 anos e iniciou no magistério por opção, passando no concurso público para professores de 1ª a 4ª séries no município de Duque de Caxias em 1994. Sempre trabalhou em turmas regulares e nunca havia pensado em trabalhar com alunos com necessidades especiais. A professora possui o curso superior em pedagogia e completou alguns minicursos e seminários oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias. Na ocasião trabalhava em salas de recursos com alunos portadores de autismo, mas isso não aconteceu por opção. Mostrou-se interessada em participar da formação, pois gostaria de aprender mais sobre o autismo para poder fazer mais pelos seus alunos.

Helena

Helena sempre quis ensinar, tinha 34 anos e passou para o concurso de professores do município de Duque de Caxias em 1994. Escolheu, depois de um tempo, fazer uma dobra6 na sala de recursos com crianças portadoras de necessidades especiais. Fez sua especialização no Instituto de Surdos e Mudos com alunos portadores de dificuldades auditivas e fez, também, alguns minicursos patrocinados pela Secretaria Municipal de Educação.

Atualmente trabalha em sala de recurso, onde há um aluno portador de autismo, que chamaremos pelo nome fictício de Bruno. O seu contato com esse aluno fez a professora se interessar em estudar mais sobre o autismo e talvez assumir uma turma especial, quando se sentir mais preparada.

Tem obtido alguns avanços, mas são muito lentos, por isso a formação veio em "boa hora", ela falou.

Isa

Isa começou a escola normal aos 17 anos, formou-se em dezembro de 1984 e, em fevereiro de 1985, já estava lecionando. Tinha 37 anos e sempre trabalhou em turmas regulares até conhecer um aluno com autismo na educação infantil, quando optou por trabalhar com alunos portadores de necessidades educativas especiais. Interessou-se de pronto sobre o assunto, passando a ler livros que lhe indicavam.

Isa trabalhava em turmas especiais há bastante tempo e, na ocasião, tinha uma turma só com alunos autistas.

Sílvia

Trabalhava no mesmo colégio que Helena e, como a colega, ingressou no magistério porque era a única coisa que lhe interessava fazer. Tinha 30 anos e passou no concurso de professores de Duque de Caxias em 1994, e, desde então, trabalha na mesma escola.

Sílvia também havia sido professora de Bruno, um ano antes de Helena. Também se envolveu muito com ele, mas teve que interromper o seu trabalho quando engravidou.

Disse que, quando voltou, no ano seguinte, notou um grande progresso no desenvolvimento do aluno, e as duas professoras iniciaram uma parceria. Sílvia, na ocasião da pesquisa, estava trabalhando em uma turma regular e recebia Bruno diariamente para fazer algumas atividades extra-classe com os seus alunos. Helena sempre o acompanhava e ajudava no que era preciso. Na visão da professora, os alunos da turma não se importavam com a presença de Bruno, e ele também demonstrava gostar da sua participação.

Amanda

Estava com 28 anos. Formada em pedagogia, ingressara no magistério em 1990. Passou no mesmo concurso que outras colegas, mas nunca pensou em trabalhar com alunos com necessidades especiais. Sempre trabalhou em turmas regulares e disse ter paixão em ensinar a ler e escrever.

Amanda teve a sua primeira experiência com alunos portadores de autismo, quando resolveu fazer a dobra de turnos, trabalhando em turma regular pela manhã e à tarde numa sala de recursos com alunos com necessidades especiais.

O quadro abaixo caracteriza as professoras que se constituíram sujeitos da presente pesquisa, para que o leitor possa melhor identificá-las.

 

Síntese dos encontros grupais

A síntese das reuniões do grupo que apresentaremos a seguir foi realizada com base em alguns depoimentos registrados pelas professoras, bem como em comentários e reflexões nossas, durantes os encontros de formação.

A mediadora procurou ser sensível às reações do grupo, exercitando a sua capacidade de empatia, respeitando e mantendo o sigilo absoluto sobre os temas que eram abordados durante os encontros. Seus comentários eram feitos dentro do contexto, tentando sintetizar, clara e objetivamente, as verbalizações pessoais e grupais, se o momento assim o exigisse.

Os depoimentos das participantes são muito significativos e demonstram o quanto professoras de alunos com autismo se sentem despreparadas e segregadas dentro da sua profissão. Como mencionado anteriormente, as integrantes do grupo foram identificadas por nomes fictícios, com o intuito de preservar suas identidades e tornar a leitura mais humana.

1º Encontro

"Construção"

Compareceram neste primeiro encontro seis professoras do município de Duque de Caxias. Após a apresentação da proposta pela mediadora, as participantes se apresentaram, colocaram para o grupo suas expectativas e fizeram questionamentos sobre o desenvolvimento do trabalho. Ficou aparente, por parte de algumas, um certo ceticismo quanto à continuidade e a objetividade dos encontros, além de sentimentos de incerteza e insegurança que as novas experiências geralmente despertam. No entanto, no decorrer da reunião, esses sentimentos foram sendo substituídos por sentimentos de identificação com as dificuldades das outras participantes, o que conduziu ao início do rompimento com as defesas pessoais. Esta mudança de atitude nos deu a percepção de um clima mais relaxado entre as professoras, ao ponto de elas próprias sugerirem espontaneamente os temas a serem discutidos nos encontros seguintes; o que ia ao encontro de nossa proposta de valorizar as idéias e os questionamentos trazidos pelo grupo e de não fazer um planejamento rígido dos temas que seriam trabalhados nos encontros. Pretendíamos criar um clima de espontaneidade no grupo, proporcionando às integrantes um espaço e um tempo para falarem das dificuldades que mais as afligiam. Coerente com essa perspectiva, o papel da mediadora durante os encontros se restringiu a ouvir atentamente as professoras e a propor algumas reflexões.

Foram vários os temas considerados relevantes no entender do grupo, o que nos levou a concluir que talvez fossem poucos os encontros estabelecidos para a quantidade de questões a serem discutidas. Entre os tópicos levantados destacamos: a) educação do aluno com autismo; b) informações e bibliografia sobre o transtorno autista; c) fundamentação teórica específica para embasar a prática pedagógica do aluno com autismo; d) necessidade de um planejamento pedagógico sistematizado, para uma prática eficaz; e) participação da família para o desenvolvimento da prática pedagógica; f) sentimentos das professoras no lidar com o aluno portador de autismo.

Utilizamos diversas estratégias para os encontros propostos, tais como: vídeos, filmes, textos didáticos, dramatizações e "tarefas de casa", essas com o objetivo de possibilitar a aplicação da experiência aprendida e de compartilhar com o grupo os resultados obtidos. Os temas priorizados pelas professoras deixaram transparecer claramente a sua insegurança e despreparo para a função que desempenhavam. Este fato nos levou a refletir sobre palavras de Muller e Glat (1999), proferidas a esse respeito:

A atual supervalorização da formação teórica em detrimento da experiência prática certamente também tem sua parcela de influência neste processo. Esse problema é acentuado pelo pouca supervisão e assistência que recebem, uma vez que os especialistas, via de regra, estão distantes do dia-a-dia da escola. (p. 31)

Entretanto, cabe ressaltar que nosso intuito com essa pesquisa foi situar o ato educativo em uma perspectiva multidimensional, crítica e integrada. Nele, competência técnica, compromisso político e dimensão humana se entrelaçam, apresentando-se como um todo unificado.

No primeiro encontro, como esperado, houve receio das participantes em se expor, sendo que as poucas colocações feitas eram geralmente sucedidas pelo silêncio do grupo. Como ressaltamos anteriormente, nem sempre é fácil para o professor - aquele que ensina - se colocar no lugar do aprendiz - aquele que aprende -, pois essa situação envolve uma mudança na sua identidade pessoal e profissional. O silêncio do grupo foi respeitado pela mediadora como um momento de reflexão interna das professoras presentes.

Alguns dos poucos depoimentos foram registrados a seguir:

"É muito difícil falar das nossas dificuldades." ( Débora)

"Acho que é assim mesmo... a primeira vez a gente se sente incomodada e envergonhada de falar, mas aqui as pessoas têm problemas iguais e, às vezes, piores. Foi por isso que aceitei vir, posso aprender alguma coisa." (Sílvia)

Isa, então, complementou o comentário da colega: "E ensinar!".

As colocações das professoras soavam como um desabafo e, ao final do encontro, podíamos sentir que algumas integrantes já conseguiam falar com mais naturalidade sobre suas dificuldades com o aluno autista, sob o aspecto tanto profissional quanto pessoal. É importante assinalar que durante os encontros não surgiram apenas questionamentos teóricos e práticos; muitos sentimentos como aflição, medo, inadequação para a função, solidão, incapacidade, culpa e outros, foram, da mesma forma, expressados.

Uma das questões mais angustiantes levadas pela maioria das professoras foi o tempo em sala de aula do aluno.

"Eu tenho um aluno que só consegue ficar comigo vinte minutos." (Isa)

"Eu sou contra um aluno ficar na sala de aula quatro horas e só produzir duas horas." (Débora)

Em resposta a estas questões, a mediadora levantou uma discussão sobre a necessidade de se fazer um planejamento de aula para que o tempo passado em classe fosse preenchido com atividades produtivas.

Nessa primeira reunião, todos falaram livremente, pois ficou entendido que era o momento de estabelecer novos vínculos tanto entre os participantes do grupo, como também entre a mediadora e o grupo. O encontro encerrouse com a reflexão das professoras de que elas pouco ou quase nada conheciam sobre o transtorno autista e de que muito desejariam aprender para tornar suas práticas pedagógicas mais eficazes.

2º Encontro

"Gente"

Visando clarificar para o grupo a idéia de que não existe uma pessoa igual à outra e o que nos torna iguais é justamente o fato de sermos todos diferentes, neste segundo encontro, em que compareceram oito professoras, apresentamos uma dinâmica denominada: "boneco divertido". Com essa finalidade, compactuamos com Gonçalves e Perpétuo (2002) para quem a utilização de dinâmicas nos processos grupais funciona como um recurso facilitador, possibilitando vivências inovadoras para o grupo, sem, no entanto, ameaçá-lo.

Iniciamos a primeira etapa da reunião, explicando a dinâmica: cada uma das participantes deveria desenhar uma figura de boneco contendo algumas características que seriam ditadas pela mediadora. Alertamos que ninguém poderia olhar o boneco da outra e que as características definidas seriam repetidas somente no final, com o objetivo de que cada professora desenhasse somente aquilo que havia entendido no momento em que recebeu a mensagem.

No decorrer da dinâmica, o grupo parecia estar vivendo uma grande brincadeira. Todos se divertiam com suas criações, escondendo-as uma das outras como se fossem verdadeiras crianças.

"Não vale olhar. Ela está querendo ver o meu boneco." (Amélia)

"Nossa! Eu não sei mesmo desenhar, o meu boneco está ficando um monstrinho." (Helena)

Na segunda etapa da dinâmica, cada uma das participantes deveria mostrar seu boneco e compará-lo com os desenhos feitos pelas demais. Como já esperávamos, foram muitas as diferenças constatadas. Cada professora havia colocado um pouco da sua criatividade no que havia sido solicitado pela mediadora, e o resultado final foi muito curioso.

Passadas as duas primeiras etapas, a mediadora solicitou a reflexão do grupo sobre o objetivo da dinâmica aplicada. Vale observar que, propositadamente, isso não foi explicado no início do trabalho para facilitar a percepção de como a mesma realidade pode ser entendida de forma distinta por diferentes indivíduos, propiciando a contribuição de cada professora com questionamentos e reflexões originais. Neste momento, os semblantes se fecharam demonstrando seriedade e preocupação. Era como se elas estivessem descobrindo naquele instante o que "estava por trás" da brincadeira.

Uma professora, então, falou, assumindo, para si, o papel de porta-voz do sentimento grupal:

"Todos os bonecos ficaram diferentes. Cada um tem uma maneira diferente de ver o seu aluno." (Débora)

Outra professora pronunciou-se logo em seguida, concordando com o depoimento da colega e argumentando:

"Veja o boneco dela, não tem absolutamente nada a ver com o meu ou com o da outra. Exatamente isso que acontece em classe com nossos alunos. Tratamos todos da mesma maneira, quando, na verdade, cada um é único.(Sílvia)

As colocações feitas a partir desse momento enfatizaram, especificamente, as diferenças e a maneira como isso é visto e sentido pelas professoras. Causou um grande desconforto, na maioria das integrantes do grupo, perceber como muitas vezes o professor não se dá conta da diversidade que há em sua sala de aula e por isso age como se todos os seus alunos pensassem e sentissem da mesma maneira ou, melhor, da maneira que ele acha que eles pensam.

A dinâmica reforçou o que todas já pareciam saber, mas que em alguns momentos da prática, por inúmeros motivos, alguns nem sempre conscientes, não se percebiam como capacidades e comportamentos são únicos, devendo ser respeitados como tal.

Muito embora objetivássemos com essa dinâmica levantar questões sobre a heterogeneidade dos alunos em sala de aula, as reflexões se estenderam para um forte sentimento de exclusão e segregação das próprias professoras, o qual foi compartilhado por todas as integrantes do grupo.

"Isso me faz lembrar a maneira como sou tratada pelas outras professoras.(Isa)

"Que bom que você falou! Me sinto tão sozinha naquela escola. Se, por um lado, não obtenho as respostas desejadas dos meus alunos, por outro, não creio que as outras professoras da escola me vejam com bons olhos. O simples fato, de dividirmos o mesmo refeitório na hora da merenda me faz sentir diferente e deslocada. Parece que comentam: lá vem a professora dos doidinhos." (Débora)

"Ninguém se lembra de mim! Já reclamei no conselho, o motivo da minha turma não participar em algumas programações na escola. Foi apresentado um teatro em todas as salas, mas não foi apresentado na minha sala! Eu falo claramente para a direção, mas elas querem me fazer acreditar que é paranóia minha. Paranóia que nada, elas é que têm um baita medo de se misturar." (Amanda)

Durante esse encontro, a mediadora chamou a atenção para um sentimento geral de solidão e para uma sensação de injustiça, já que todas vivenciavam situações de preconceito e segregação semelhantes dentro de sua escola, por serem professoras de alunos com autismo. Essa problemática foi também detectada por outros pesquisadores, como Müller e Glat (1999) que, ao analisar o discurso de professoras de classes especiais observaram:

Esse é um exemplo do que, em outro trabalho (Glat, 1995) foi denominado "estigma por contaminação"; ou seja, todas as pessoas relacionadas diretamente com o deficiente, seja seus familiares, seja, como no nosso caso, suas professoras, são com ele identificadas e igualmente rotuladas. Esse processo contribui ainda mais para o isolamento e a marginalização da classe especial do resto da escola, pois a professora, que é o elemento chave para estimular a integração de seus alunos, fica ressentida e inibida em suas ações". (pp. 41-42)

Prosseguindo com o pensamento das autoras, o estigma da contaminação vivenciado pelas professoras foi reforçado, em parte, por elas também se sentirem diferentes das demais. Uma condição, a princípio negada pela maioria, mas que depois foi enxergada como inconsciente, porém verdadeira. Essa experiência de rejeição compartilhada afiançou ao grupo falar de seus sentimentos mais defendidos, de uma forma mais aberta, evidenciando um novo modo de as integrantes se relacionarem.

3º Encontro

"Reconstruindo o papel do professor"

Para este terceiro encontro, em que compareceram oito professoras, foi solicitado que o grupo pensasse como é vivenciado um típico dia na sala de aula com o seu aluno e, a partir dessa reflexão, que cada uma desenvolvesse uma produção que poderia ser um texto, um desenho ou mesmo uma dramatização, expressando essa realidade. Objetivávamos com essa dinâmica gerar questionamentos e posicionamentos sobre a prática pedagógica exercida na sala de aula com o aluno portador de autismo. Essa tarefa levou as professoras a se defrontarem com suas próprias dificuldades teóricas e práticas, que repercutiram em uma série de depoimentos, como os que se seguem:

"Não sabia por onde começar e me dei conta que acontecia o mesmo em sala de aula." (Helena)

"Desenhei várias exclamações e interrogações, pois é tudo o que eu pude depreender da minha reflexão sobre a prática. É difícil ensinar alguém que nem olha para você." (Isa)

"Faço muitas coisas durante o tempo que estou com eles na sala, mas não sei o que eles realmente estão assimilando e o que realmente servirá para eles usarem no seu cotidiano." (Amanda)

"Acho que falta conhecer mais o nosso aluno, o que é importante para ele saber. Conhecimento e planejamento." (Sílvia)

"É verdade, realmente eu não planejo nada. Sinto falta de mais informações sobre o transtorno autista, de que maneira poderemos intervir no seu processo de aprendizagem, e o que seria funcional para eles aprenderem?" (Amanda)

A partir daí, o encontro prosseguiu repleto de indagações, deixando claro que o grupo sentia a necessidade de conhecer mais sobre o transtorno autista e de desenvolver um planejamento dos conteúdos mais importantes a serem aprendidos por esses alunos.

Essa lacuna demonstrou provocar um grande distanciamento entre a professora e os alunos com autismo, dificultando a possibilidade de criação de um vínculo entre ambos e a realização de um trabalho produtivo. Freire (1996) adverte-nos para a necessidade de assumirmos uma postura coerente e séria inerente ao saber-da competência:

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, ao longo dos tempos, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível - depois preciso - trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu o ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (p. 26)

Nesse sentido, a mediadora ponderou e todas as professoras concordaram unanimente que a prática não poderia ser apenas produto da intuição, deveria ser autônoma e criativa e resultado de um aprofundamento teórico fundamentado e de um planejamento de atividades funcionais dirigidas para as características do aluno com autismo. E, assim, mais uma vez Freire (ibid.), sabiamente proferiu:

Quanto mais criticamente se exerce a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando de curiosidade epistemológica, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto" (p. 27)

Ao final do encontro, conforme sugerido pelas professoras, indicamos uma bibliografia de apoio que as auxiliasse durante o desenvolvimento da prática em sala de aula. Combinamos, também, que levaríamos algumas opções de métodos pedagógicos já utilizadas com relativo sucesso em alunos com autismo, a saber, o método Teaach e a Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA).

4º, 5º E 6º Encontros

"Para que o novo venha, o velho precisa ser transformado"

Os três encontros que se seguiram foram mais voltados às dificuldades da prática pedagógica, e, como já havíamos combinado anteriormente, levamos algumas opções de referências bibliográficas sobre métodos de ensino para alunos com autismo.

Observamos que os primeiros discursos desse encontro pareciam revelar uma direção do grupo à reconstrução do conhecimento pedagógico compartilhado, que foi acontecendo à medida que o grupo se sentia mais confiante em transformar o dizer em fazer, e as professoras começassem a fazer o "gancho" entre a teoria e a prática.

Citando Freire (1996):

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim, com o critério de recusa ao velho não é apenas cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. (p. 39)

As palavras do autor mostram o saber do professor em discernir entre o que se apresenta como novo, e é apenas uma repetição do antigo com uma "nova roupagem", e o que já é considerado velho, mas que ainda mantém a sua prática eficaz e contextualizada.

Uma professora, fazendo referência a um texto sobre Comunicação Alternativa e Ampliada (Gill, 1997), comentou:

"Isso poderia ter sido escrito por qualquer uma de nós: ... ela está me entendendo, mas eu não consigo entender o que ela fala... vejo nos seus olhos, face e corpo que está tentando me dizer algo...Ah! se eu conseguisse entendê-la"! ( Amélia)

Ficaram evidenciados nesse depoimento o sentimento de frustração da professora por não conseguir comunicar-se com seus alunos e a necessidade premente de conhecer e entender uma forma de comunicação que facilite essa interação.

"A Comunicação Alternativa e Ampliada e o método Teacch parece que facilitarão a interação com meus alunos." (Débora)

"Foi justamente isso que a gente estudou nesse texto, formas não convencionais de fazermos nossos alunos se comunicarem. E o interessante é que eu já utilizava este método com criança da pré-escola. Montei livrinhos com gravuras, trabalhei com texturas, cheiros, objetos, bichinhos, etc." (Amanda)

Entendemos que a expectativa em aprender algo novo estava sendo uma tarefa, no mínimo, instigante. A mediadora deixou claro, para o grupo, o desejo de cada professora em quebrar suas resistências e repensar as questões práticas à luz das novas teorias.

Para nossa satisfação, soubemos que as professoras haviam tomado a iniciativa de estudar os textos juntas, levantando questionamentos para serem colocados durante os encontros. Começou a se esboçar, assim, mesmo diante das dificuldades, uma posição mais ativa e autônoma por parte delas. Essa perspectiva construtiva exercitou a ação que permitiu às integrantes do grupo se tornarem agentes coerentes na reconstrução da sua identidade.

Durante este encontro, a mediadora entendeu que havia alcançado o seu objetivo, buscando possibilitar uma ação construtiva de aprendizagem, oferecendo às professoras do grupo espaço e orientação para que elas tivessem a oportunidade de desenvolver com autonomia todas as suas potencialidades.

7º Encontro

"Um mergulho no ser"

Iniciamos o sétimo encontro com a presença de todas as professoras e levamos, para leitura do grupo, um texto de autoria de Angel Riviere Gómez (s/d), que se intitula: "O que nos pediria um autista". Nosso objetivo foi levantar uma reflexão sobre a dificuldade em nos colocarmos no lugar do outro ou ainda da pessoa do autista.

Podemos afirmar que durante esse encontro os depoimentos foram sofrendo as mais diversas e profundas transformações. As participantes já podiam falar, sem tantos bloqueios, como se sentiam lidando com o aluno portador de autismo. Alguns desses sentimentos ficaram registrados nas seguintes falas:

"Geralmente me sinto muito entediada lidando com o autista." (Sílvia)

"A angústia me acompanha até depois das aulas, acho que não me esforço muito para entendê-lo, mas o pouco que faço sinto que é em vão. Mas depois aparece a professora (falou, dando ênfase na palavra) e diz: não, eu não vou desistir assim tão fácil." (Débora)

A mediadora sensibilizou o grupo para a constatação da culpa que essas professoras sentem por não conseguirem resolver as dificuldades dos seus alunos. Ficou registrado, nos depoimentos, que o difícil reconhecimento da falta de preparo levou-as a nível muito forte de emoção.

"Fico muito mal, acho que culpada, quando vejo que ele não compreendeu nada do que eu disse. Tento novamente, mas às vezes cansa. Parece que estou conversando com as paredes." (Helena)

"Qual de nós ainda não se sentiu assim? Incapaz, incompetente e insensível. Às vezes me questiono se é esse o meu lugar, se outra professora não estaria fazendo melhor." (Amélia)

Nesse momento, a mediadora sugeriu que todas lessem um trecho do texto distribuído para a reflexão, no qual um autista supostamente fala: "Não precisas mudar completamente a sua vida pelo fato de viver com uma pessoa autista. A mim nada aproveita o estares mal, que te feches e te deprimas.(...)". Essa passagem de texto levantou uma reflexão sobre o motivo pelo qual elas buscaram o grupo de formação. Todas sabiam que não seria uma missão das mais fáceis. Teriam que abdicar de tempo e estarem abertas às mudanças. O que reforçou a crença de que para estar lá era preciso insistir, persistir, compartilhar, sofrer, alegrar-se com algumas poucas vitórias, mas principalmente persistir no auxílio a esse aluno. A lágrima e o riso fizeram parte desse processo de formação como importantes instrumentos pedagógicos. Elas entenderam que a conquista do aluno não acontece só pelo saber acadêmico, mas também pelo afeto, pelo riso, pela serenidade; ou seja, pelo melhor de cada professora. Professor é aquele que mora na alma do aluno, aquele que fica, mesmo quando não está mais presente em sala de aula.

Assim se expressou a mediadora:

(...) nada impede que vocês façam uso do que julgam ser o mais acertado para os seus alunos. Aqui o importante não é fazer tudo certo, e sim errar para conseguir acertar. Se a interação entre professor e aluno é verdadeira, o restante é conseqüência. Os passos podem ser de formiguinha, indo à frente, retrocedendo, mas nunca desistindo de prosseguir.

Uma professora fez um comentário, emocionada:

"Durante todo o texto, o autista tenta nos ensinar a compreendê-lo e aceitá-lo assim como ele é. Vejam isso: (...) 'minha vida poderá ser satisfatória se for simples, ordenada e tranqüila, desde que não me façam constantes exigências e só me peçam as coisas mais difíceis para mim.(...).'" (Isa)

Müller e Glat (1999) perceberam em sua pesquisa que professoras de alunos com necessidades educativas especiais, por não conseguirem avançar naquilo que haviam se proposto, sentiam-se extremamente culpadas. Como a culpa e a raiva "andam de mãos dadas" em determinados momentos, muitas vezes sem perceberem, essas professoras direcionavam sua raiva para aqueles que elas julgavam serem os grandes causadores do seu fracasso: os alunos.

8º Encontro

"Como uma onda"

Conforme o combinado, utilizaríamos nossa última reunião para uma avaliação do processo de formação. Todas as integrantes compareceram e participaram com alternativas criativas que foram compartilhadas pelo grupo.

As vozes das professoras foram uníssonas na expressão de valorização do trabalho realizado. Também foi visível no grupo o sentimento de solidariedade, já que todas vivenciavam as mesmas dificuldades, e a experiência de ouvir e se colocar no lugar do outro surtira o mesmo efeito de se mirar em um espelho. Helena comentou:

"É necessária uma política mais atuante tanto na Educação Regular, como na Educação Especial. A lei parece que veio para ficar, mas muito pouco ou quase nada foi feito para ajudar na sua implementação."

A negociação explícita para algumas soluções dos problemas práticos vivenciados pelo grupo e a sugestão de idéias criativas baseadas em seu conhecimento adquirido desencadearam uma "chuva" de sugestões e diferentes opiniões, que denotavam explicitamente o processo coletivo das reflexões. Assim, foi possível perceber que as transformações nos dizeres das professoras demonstravam que mudanças qualitativas já estavam ocorrendo nas práticas cotidianas com seus alunos e nos seus posicionamentos críticos.

Alguns comentários significativos sugiram:

"Eu acho sempre muito importante ouvir o que o outro tem a dizer, parece que a gente sozinha não enxerga." (Débora)

"É, eu acho que a riqueza do nosso encontro é justamente essa. São tantas idéias, tantas experiências diferentes. Trocando a gente se ajuda muito." (Isa)

"As reações que os alunos demonstram diante da atividade é o que mais me incomoda. Pareceque estão voando. Não consegui ver nada diferente disso na aula de Débora. Seu esforço foi enorme para conseguir um mínimo de atenção." (Amélia)

"Engraçado, mesmo com todas as dificuldades e esses problemas específicos que Helena falou, eu consegui ver uma interação entre os alunos e a professora, que de alguma forma estava conduzindo a alguma aprendizagem. Os mínimos progressos são gigantescos para nós." (Sílvia)

"OK, talvez eu exija demais dos meus alunos e também de mim. É tudo uma questão de mudar o foco da visão. Pelo que vi e pelo que Débora falou, houve modificações, e isso deve ser o mais importante." (Sívia)

"Gente, o que vou dizer agora é pura verdade! Depois da visita à minha turma e dos comentários que vocês fizeram, eu me senti meio estranha, mas resolvi aceitar aquilo como parte do meu crescimento. Eu pensava assim: nado do que faço está dando certo com meus alunos. Aquele jogo de futebol foi um fiasco!" (Débora)

"Foi o teu sentimento diante da situação? Sobre a nossa observação da sua aula e os nossos comentários, depois?" (Sílvia)

"Sim, isso tudo influiu muito. Foi muita pretensão minha achar que tudo daria certo. Pois, no fundo, era isso que eu queria. Mostrar que não tinha medo de me expor. Venham ver minha aula, como é bonitinha! Vejam, eu tenho o controle. Naquela noite eu pensei muito no que tinha acontecido. É muito importante a gente ter a opinião de outras pessoas, foi um grande passo, apesar de doloroso, eu mostrar o que acontece na minha aula. Começo a achar que estou no caminho certo. Não tenho o controle de nada, ou pelo menos preciso de ajuda. Nada a esconder. Quero aprender com vocês, com eles (os alunos) e com todos que queiram me ajudar. E como existe gente que pode ajudar, é só querer. O governo, a sociedade, as escolas, as organizações, se realmente querem uma sociedade democrática e um ensino para todos, o esforço tem que ser de todos." (Débora)

Diante desses comentários, ficou claro para o grupo que refletir sobre o trabalho pedagógico realmente é uma tarefa complexa que exige uma reconstrução crítica de todo o conhecimento já acumulado. Ao ouvirmos o que a colega tem a dizer sobre o nosso trabalho, podemos buscar internamente nossos pensamentos a respeito de como atuamos na nossa prática e estabelecer relações com o que o outro propôs, repensando o que acreditamos ser uma boa atividade e o que na verdade precisamos modificar para que nossos alunos avancem.

Apesar do clima ser de descontração, observou-se uma tendência à vulnerabilidade e à fragilidade do grupo diante da ameaça de separação e da perda do espaço coletivo construído, evidenciando o quanto aqueles encontros haviam sido significativos.

Foi também um momento em que todas puderam conversar e se relacionar de maneira mais informal, pois a relação estabelecida durante os encontros evidenciou a confiança adquirida de forma parcimoniosa e abriu espaço às integrantes para se conhecerem um pouco mais, além das suas vidas profissionais.

Alguns depoimentos foram registrados como o início de um novo movimento no pensamento daquelas professoras:

"Tinha vezes, que eu achava que estava fazendo terapia. Quando começamos eu não falava nada, agora... Acho que vou fazer terapia..." (Amélia)

Risos!

"Esse espaço deve continuar, estou gostando tanto, a gente precisa, vocês não acham?" (Sílvia)

"Às vezes, pessoas de fora entendem mais a gente do que nossa própria família. Nunca me senti tão valorizada na minha profissão, quanto agora. E, veja só, foi tão pouco perto do que realmente deveríamos receber como educadoras." (Isa)

"Teve um momento que eu pensei que não ia suportar, mas o grupo me deu forças para não desanimar." (Amélia)

"Descobri que posso errar e que a incerteza faz parte do processo. Não preciso saber tudo, aliás, posso até dizer que estou aprendendo e que ainda não sei nada. Sou também uma aluna, uma eterna aluna. E como toda aluna precisa de professor, precisamos também aprender com alguém que saiba mais. Precisamos de mais investimentos na educação, na nossa formação, precisamos tomar parte de todas essas leis que nos são colocadas como as situações mais naturais do mundo. Virem-se." (Helena)

Para finalizar, argumentei que o grupo havia conseguido mudanças profundas e que souberam explorar a situação, a cada instante, transformando-a ou transformando-se se fosse o caso. Em meio a tantos pensamentos, só conseguíamos enxergar que não bastaria apenas o esforço conjunto de algumas professoras para superar o desafio de incluir em classe regular o aluno com transtorno autista. A complexidade dos nossos questionamentos voltava-se diretamente para a qualidade do ensino que poderíamos proporcionar a esse aluno: "O que posso fazer?", "Que devo fazer para melhorar?" e "Que posso esperar?" Pareceu-nos que o sentimento vivido pelo grupo naquele momento era de esperança, esperança por acreditar que ainda existem pessoas que desejam investir o que têm de melhor na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

Conclusões

Olhar para trás, após uma longa caminhada, pode fazer perder a noção da distância que percorremos. Mas, se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos de quanto nos custou chegar até o ponto final, e, hoje, temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas somos mais juntos. Sabemos mais um dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado. Digamos, então, que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente... (Guimarães Rosa)

Diante das novas implementações nas políticas educacionais, trazendo para escola regular crianças com necessidades educativas especiais, algumas questões relevantes devem ser levantadas e urgem por respostas mais concretas: como melhorar a qualidade geral do nosso ensino? Como diminuir o fracasso escolar? Como municiar os professores de uma formação que lhes permita um conhecimento mais abrangente e autonomia suficiente para que eles possam decidir sobre a sua prática? Como transformar a formação inicial do educador em uma formação que inclua conteúdos importantes da Educação Especial, não só como uma disciplina ou especialização, mas sim como uma abordagem sobre diversidade humana?

Podemos depreender que a proposta de uma sociedade inclusiva não é uma empreitada fácil, e que ela só se tornará viável através da preocupação, do interesse e da participação de toda a sociedade, e aí se incluem famílias, escolas, organizações, governo, etc.

Partindo desse pressuposto, no rol dos desafios propostos pela inclusão, encontramos uma modificação estrutural no sistema educacional brasileiro e a redefinição do papel da Educação Especial, na medida em que essa se constitui uma área de conhecimentos específicos e deve encontrar o seu lugar no processo de inclusão, pois, de acordo com Gonçalves e Perpétuo (2002):

No marco de uma sociedade competitiva como a nossa, o termo educação especial adquire, em muitas ocasiões, um caráter pejorativo, que não apenas se reflete no processo de aprendizagem dos alunos como afeta igualmente o processo de ensino por parte dos professores. Talvez, quase sempre em relação com o binômio ensino-aprendizagem, demos demasiada ênfase ao segundo deles quando, às vezes, é detectado falhas no primeiro. (p. 60, grifo nosso)

Compactuando com as idéias dos autores, a frase final é grifada para ressaltar que grande parte dos professores especialistas ainda baseia seu trabalho na minimização das deficiências dos seus alunos, em vez de ir em busca de suas habilidades individuais. Não se está negando, contudo, que existam características e dificuldades inerentes a esta ou àquela deficiência, que muitas vezes necessitam de um atendimento especial. O que se está propondo, porém, é que o professor que lida diretamente com alunos portadores de necessidades especiais possa ter discernimento para entender as dificuldades dos seus alunos e promover situações que o ajudem a evoluir, tanto quanto possível, em torno dos seus interesses e potencialidades.

Como sinaliza Bueno (1999):

Se por um lado a educação inclusiva exige que o professor do ensino regular adquira algum tipo de especialização para fazer frente a uma população que possui características peculiares, por outro, exige que o professor de Educação Especial amplie suas perspectivas, tradicionalmente centrada nessas características. (p. 24)

A proposta deste estudo foi desenvolver e analisar, com professores de alunos portadores de transtorno autista, um processo de formação em serviço, cujo objetivo era compreender em que medida a constituição de uma rede de interações e mediações poderia favorecer a apropriação de conhecimentos que incluem desde conteúdos e estratégias didáticas até um exercício contínuo de reflexão crítica sobre a prática do professor. Acreditamos que o trabalho coletivo e o compromisso com o grupo foram fundamentais para o cumprimento desse desafio da política educacional atual, qual seja um ensino de qualidade voltado aos alunos com necessidades educativas especiais e a valorização e autonomia do professor de educação especial em poder explorar possibilidades práticas, oriundas de um processo de reflexão sobre a ação e deliberar sobre elas.

A metodologia empregada, a pesquisa-ação, completou o quadro que almejávamos com a nossa proposta, mostrando-se eficiente e ajustada aos nossos objetivos. Foi também essencial a parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias - Equipe de Educação Especial, para que a educação, aqui representada pela escola e seus agentes educativos, tivesse a oportunidade de ampliar suas perspectivas de ação, buscando maneiras alternativas de se estruturar também como um enriquecedor pólo de pesquisa. Para os objetivos pessoais e profissionais dessa pesquisadora, este estudo representou um grande avanço na oportunidade de experimentar suas hipóteses sobre o emprego da teoria críticoreflexiva, dentro de uma instituição escolar da rede pública municipal, como uma fonte relevante de intervenção no processo de formação do professor.

A forma como conduzimos a formação proposta, com dinâmicas, troca de experiências, observações de prática em sala de aula e discussões sobre tudo que foi vivenciado, facilitou por parte das professoras o processo de reflexão na ação, fundamental para o crescimento profissional das integrantes do grupo. A formação também abriu espaço para novas alternativas pedagógicas na educação do aluno com autismo, reestruturando o antigo saber do professor de Educação Especial e ampliando possibilidades para um novo aprender. A utilização de teorias pedagógicas específicas que facilitassem o aprendizado do aluno com autismo despertou o desejo das integrantes em aprender mais e em dar continuidade aos encontros de formação, buscando, assim, a valorização do papel do professor de educação especial.

Optamos por trabalhar em grupo por entender que os conteúdos da formação deveriam partir das próprias características e necessidades das professoras e também por acreditarmos que a formação crítico-reflexiva evidencia que a aprendizagem significativa acontece na interseção do cognitivo, do afetivo e do relacional entre as integrantes do grupo. Não se trata mais de vencer individualmente o desafio de ensinar alunos com autismo, mas de compartilhar histórias e experiências que enriqueçam a vivência de cada participante do grupo.

Em nossa experiência aqui relatada, partilhar comportamentos e sentimentos implicou aprendizagem, mas essa nem sempre aconteceu de uma forma muito serena nos nossos encontros, pois envolveu a provocação de mudanças nas identidades pessoais e profissionais das professoras. Um claro exemplo desse fato foi a necessidade de algumas participantes de falarem sobre as dificuldades dos seus alunos como que se eximindo de culpa pelo insucesso deles.

A ansiedade e a vulnerabilidade geradas pela situação fizeram com que as professoras retivessem seus pensamentos e sentimentos, repercutindo em silêncios coletivos ou assuntos descontextualizados. Nesses momentos, houve necessidade da intervenção da mediadora do grupo. Para Schön (2000), a reflexão tanto poderá trazer mais dinamismo na trajetória do grupo, com torná-lo mais lento e refratário às mudanças em determinados momentos. Entendemos, pelas palavras do autor, que diferentes grupos reflexivos poderão ter resultados distintos. Tal fato foi experimentado e comprovado na nossa formação.

Quanto à cooperação, desde o início percebemos que o grupo estava propenso e disponível para se ajudar mutuamente, formando um clima de harmonia e confiança entre as professoras. Foi importante observar que as situações vividas pelo grupo facilitaram a troca de experiências entre as participantes e demonstraram um envolvimento significativo com o processo de formação, que pôde ser constatado pela pesquisadora nos relatos das professoras, nas trocas de experiências, na freqüência e pontualidade das integrantes do grupo.

Assim sendo, além da confiança, a humildade também foi um sentimento necessário para a fluidez do grupo. Percebemos que o grupo estava crescendo com todas aquelas vivências e que esse movimento era algo muito importante para a vida profissional e pessoal das participantes.

Pareceu-nos bastante claro, no levantamento das expectativas das professoras que participariam dos encontros, que elas buscavam agregar conteúdos e técnicas didáticas para auxiliá-las no processo de ensino do aluno com autismo. O grupo acreditava que o bom professor é alguém que tem o domínio da técnica e de muitos conteúdos a transmitir logo e, por não se encontrarem nessas condições, as participantes esperavam que a formação crítico-reflexiva proposta suprisse sua deficiência teórica. Para Muller e Glat (1999), é necessário que o professor que atua com alunos portadores de necessidades especiais:

Tenha o instrumental pedagógico especializado para fazer frente às dificuldades de aprendizagem específicas de seus alunos. O que não pode continuar acontecendo é um professor ser colocado em uma classe especial, ou receber um aluno especial em sua classe, apenas com a "cara e a coragem"! (p. 38)

Deste modo, a possibilidade de o grupo planejar, agir e debater sobre o que era realizado em sala de aula com seus alunos com autismo favoreceu a realização de pequenas iniciativas e projetos pedagógicos, de forma significativa e contextualizada, permitindo a ponte entre a teoria e a prática.

Observamos que o grupo percorreu um caminho sinuoso, no qual algumas professoras manifestavam insegurança e medo em alguns momentos e, em outros, determinação e confiança. Algumas atividades desenvolvidas levaram as professoras a se colocarem no lugar do seu aluno, e isso despertou sentimentos de insegurança e fragilidade no grupo. Nossa intenção não era dar a essa formação um olhar terapêutico e muito menos determinar uma técnica precisa de como ensinar alunos com autismo. O objetivo dessa formação foi proporcionar um espaço em que as professoras pudessem discutindor e refletir sobre suas questões mais prementes, criando uma relação de compromisso com a sua profissão, adquirindo novos saberes sobre a educação de aluno com essas condições e podendo expressar seus sentimentos mais contidos.

A transformação nos vínculos entre as integrantes do grupo foi outro aspecto relevante. Modificações muito significativas na maneira de perceber a si próprio e ao outro despertaram, nas professoras, novas formas de se relacionar. Percebemos que o grupo conseguiu verbalizar seus sentimentos e refletir sobre eles, estabelecendo a verdadeira interação entre pensar, sentir e agir. O encontro das vozes, durante as reflexões dessas professoras, deu-nos a oportunidade de conversar, de expor nossas idéias e de observar a partir dessa conversa uma pessoa "transformada", isto é, enriquecida pela experiência do outro.

Concluímos acreditando que foram obtidos indicadores de êxito nessa abordagem crítico-reflexiva de formação de professores, através de depoimentos e avaliações das participantes que expressaram o seu crescimento profissional e pessoal e suas possibilidades de reflexão sobre a prática como professoras de alunos com necessidades educativas especiais.

A partir da análise do processo grupal, chegamos à conclusão de que a identificação dos obstáculos afetivos e cognitivos que impedem o desenvolvimento da tarefa do professor de educação especial em lidar com a aprendizagem do aluno com autismo não depende somente da sua boa vontade em aprender e se dedicar a esse aluno. O professor não consegue agir isoladamente. Nessa perspectiva, esta pesquisa teve o complexo propósito de ser apenas uma ponta do fio condutor que mobilizará por alguns momentos uma sociedade que parece não ter tempo para querer ouvir, ver e compreender o seu semelhante, como a si própria.

Cabe ressaltar que a Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias - Equipe de Educação Especial deu continuidade ao trabalho iniciado em 2002, com palestras e grupos de estudo, ampliando a proposta da formação crítico-reflexiva de professores de alunos com autismo, também para as famílias e para a equipe de profissionais da saúde.

 

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Recebido em maio de 2005.
Aprovado em outubro de 2005.

 

 

1 Empregamos o termo professora pelo fato de o grupo ser composto exclusivamente de mulheres.
2 Os termos síndrome e transtorno serão tratados como palavras sinônimas ao longo do artigo.
3 O psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911) criou a primeira medição prática da inteligência focalizando as suas observações nas habilidades cognitivas, duração da atenção, memória, julgamentos estéticos e morais, pensamento lógico e compreensão de sentenças.
4 Também chamada behaviorismo. Como o próprio nome sugere, a ênfase era a insistência na primazia do comportamento observável.
5 Lembramos que os nomes das participantes do grupo são fictícios.
6 Dobra significa que a professora trabalhará em dois turnos durante a sua jornada de trabalho.

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