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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.26 São Paulo jun. 2008

 

Subjetividade de professoras/es: sentidos do aprender e do ensinar

 

Subjectivity of teachers: mean of learning and teaching

 

Subjetividad de profesoras/es: sentido del aprendizaje y de la enseñanza

 

 

Beatriz Judith Lima Scoz

Doutorado em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP - São Paulo - Brasil. Professora titular do curso de pós graduação stricto sensu - mestrado - no Centro Universitário Fieo - UNIFIEO - São Paulo - Brasil. CENTRO UNIVERSITARIO FIEO, Centro de Est. Psicopedagogicos, Pós Graduação, Centro de Estudos Psicopedagogicos do UNIFIEO - Pos Graduação, Centro de Estudos Psicopedagogicos, Pos Graduação. Av. Franz Voegelli, 300 - Vila Yara CEP 06020-190 - Sao Paulo, SP - Brasil Telefone: (11) 38127919 Fax: (11) 30377845 E-mail: beatrizscoz@uol.com.br

 

 


RESUMO

A questão da subjetividade vem sendo discutida com muita ênfase nas últimas décadas. Ela permeia o modo de o sujeito estar no mundo e no trabalho em geral, afetando, no caso do professor, suas perspectivas em relação à formação e suas formas de atuação profissional. Entretanto, constata-se dificuldade, por parte do sistema educativo, em perceber que os professores são indivíduos com subjetividades pessoais e profissionais. São sujeitos que vão produzindo sentidos em seus processos de aprender e de ensinar. Este estudo discute teorias e concepções sobre a construção da subjetividade em professoras/es, com base na configuração de sentidos que produzem em seus processos de aprender e de ensinar em suas famílias, em suas comunidades de convivência, escolas e em sua formação. A breve apresentação de aplicação da técnica do jogo de areia com professoras/es ilustra uma possibilidade de abertura de espaços facilitadores de produção de sentidos para, talvez assim, superar as situações problemáticas relativas à formação de professores e, conseqüentemente, à qualificação do ensino e da educação.

Palavras-chave: formação de professores; jogo de areia; subjetividade.


ABSTRACT

The issue of subjectivity has been extensively discussed of late. It permeates the ways individuals relate to the world, to their work, etc. In the teacher's case, it affects their perspectives on their own education as well as their professional activity. However, educational systems seem to fail to acknowledge teachers' personal and professional subjectivity. They are subjects that produce meanings in their learning and teaching processes. This study discusses theories and conceptions of teachers' subjectivity and identity, drawing on meanings they produce in their learning and teaching processes with their family, their community, the school, or in their teaching education. A brief presentation of the sandplay technique with teachers illustrates how possible it is to make room for their production of meaning, which can overcome problems related to teaching education and, thus, improve the teaching and educational quality.

Keywords: sandplay; subjectivity; teacher education.


RESUMEN

La cuestión de la subjetividad es un tema muy discutido en las últimas décadas. En este proceso se plantea el modo cómo el sujeto se posiciona en el mundo y en el trabajo en general, afectando, en el caso del profesor, sus perspectivas en relación a la formación y a sus formas de actuación profesional. Sin embargo, se constata una dificultad por parte del sistema educativo, en percibir que los profesores son individuos con subjetividades personales y profesionales. Son sujetos que producen sentidos en sus procesos de aprender y de enseñar. Este estudio discute teorías y concepciones sobre la construcción de la subjetividad en profesoras/es, con base en la configuración de sentidos que producen en sus procesos de aprender y de enseñar en sus familias, en sus comunidades de convivencia, escuelas y en su formación. La breve presentación de aplicación de la técnica de la Caja de Arena con profesoras/es ilustra una posibilidad de apertura de espacios facilitadores de producción de sentidos para superar, tal vez, las situaciones problemáticas relativas a la formación de profesores y, en consecuencia, a la calificación de la enseñanza y de la educación.

Palabras claves: formación de profesores; subjetividad; caja de arena.


 

 

A questão da subjetividade vem sendo discutida com muita ênfase nas últimas décadas, quando se percebeu que diversas situações humanas vividas pela sociedade contemporânea podem ser compreendidas quando analisadas com base na subjetividade. Essas permeiam o modo de estar no mundo e no trabalho humano em geral, afetando, no caso do professor, suas perspectivas em relação a sua formação e suas formas de atuação profissional.

Tentar traduzir os componentes da subjetividade implica ter presentes os processos dinâmicos aí envolvidos, como a confluência de uma série de sentidos que se articulam na história do sujeito e nas condições concretas dentro das quais esse mesmo sujeito atua no momento. Como resultado dessa confrontação, surgem situações em que se apresenta a necessidade de o sujeito se reconhecer a si mesmo, delimitar seu espaço, o espaço em que encontra a congruência consigo mesmo na situação que está enfrentando. Segundo González Rey (2003, p. 263), esse sentido de reconhecimento que o sujeito experimenta ocorre no curso irregular e contraditório de suas próprias ações. Assim, para ele, a subjetividade não é algo ordenado e definido de uma vez por todas, mas se expressa na confluência de uma série de sentidos que podem aparecer de variadas formas, dependendo do contexto de sua expressão.1

Ainda segundo González Rey, a subjetividade pode ser compreendida como algo em construção, com base nos sentidos que os sujeitos vão produzindo na condição singular em que se encontram inseridos em suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, em suas diferentes atividades e formas de relação. Assim, é o resultado das complexas sínteses das experiências individuais dos sujeitos em diferentes contextos de expressão.

Este artigo discute essa questão, focalizando a construção da subjetividade de professoras/es, com base na configuração de sentidos que produzem em seus processos de aprender e de ensinar. Apresenta a técnica do jogo de areia e exemplos de sua aplicação com professoras, ilustrando a possibilidade de abertura de espaços facilitadores de produção de sentidos para, talvez assim, superar situações problemáticas relativas à sua formação.

 

Configuração e produção de sentidos

Segundo González Rey (ibid., p.127), "qualquer experiência humana é constituída por diversos elementos de sentido que, procedentes de diferentes esferas da experiência, determinam em sua integração o sentido subjetivo da atividade atual desenvolvida pelo sujeito". Minha proposição, ao realizar este estudo, foi a de tomar a categoria "sentido" tal como explicitada por González Rey (ibid., p. ix), para quem "o sentido exprime as diferentes formas da realidade em complexas unidades simbólico-emocionais, nas quais a história do sujeito e dos contextos sociais produtores de sentido" é essencial à sua constituição.

No que se refere ao professor, trata-se de compreender os sentidos que vai produzindo em seus processos de aprender e de ensinar em suas famílias, comunidades de convivência, escolas e em seus processos formativos, bem como as possíveis relações que estabelece entre esses sentidos.

Ainda de acordo com González Rey (ibid.),

As criações humanas são produtoras de sentido que expressam de forma singular complexos processos da realidade. Esses processos são criações humanas que integram diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive, aparecendo em cada sujeito ou espaço social de forma única, organizados em seu caráter subjetivo pela história de seus protagonistas.

Essa maneira de conceber o estudo da subjetividade "concretiza no campo da Psicologia a visão de complexidade defendida por Edgar Morin" (apud González Rey, 2003, p. 273), ou seja, trata-se de expressar aquilo que é tecido em conjunto. Essa concepção assume importância cada vez maior nos tempos atuais, pois constitui uma tentativa de superar o que foi artificialmente cindido na história do pensamento - por exemplo, a cisão homem-sociedade -, apresentando na Psicologia uma visão diferente, capaz de romper com toda reificação essencialista do fenômeno psicológico. Trata-se de uma visão que enfatiza ao mesmo tempo a complexidade da organização simultânea e contraditória dos espaços individuais e sociais.

Nessa perspectiva, na produção dos sentidos em seus processos de aprender e de ensinar, pode se compreender como os professores expressam os diferentes aspectos do mundo em que vivem e, a partir disso, como constituem suas subjetividades. Além disso, os sentidos que os professores produzem em seus processos de aprender e de ensinar podem ser compreendidos como uma unidade indissociável que pode ser definida como um sistema dialógico e dialético, ao mesmo tempo constituinte e constituído. Essa idéia é condizente com dois princípios do pensamento da complexidade sugeridos por Morin (2000, p. 204): o princípio dialógico, unindo duas noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir, mas que são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão de uma mesma realidade; e o princípio da recursão organizacional, representando por um círculo gerador, no qual os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz.

Para explicitar com mais clareza a dimensão de integração contida no conceito de sentido subjetivo, González Rey (2003, p. 267) propõe o conceito de configuração de sentidos que, para ele, representa "as formações psíquicas dinâmicas e em constante desenvolvimento nas diferentes práticas sociais dos sujeitos estudados". Com esse conceito, é possível compreender o sentido como núcleo dinâmico de organização da subjetividade, evidenciando-se a contínua processualidade do sujeito em suas complexas operações construtivas. Além disso, cumpre ressaltar que o termo configuração reflete o caráter de integração do diverso e possui um valor heurístico que está presente em sua enorme flexibilidade. Ademais, para González Rey, o conceito permite dar conta de processos organizativos da subjetividade que têm natureza processual.

Esse conceito de configuração de sentidos reforça a idéia de que, na qualidade do subjetivo, aparecem, dentro de uma mesma configuração, elementos de sentido gerados em tempos e espaços diferentes da vida da pessoa. Além disso, os elementos de sentido procedentes de outras zonas ou espaços da vida social afetam os sujeitos que habitam cada agência social, os quais, por sua vez, empreendem novos caminhos. Esses caminhos acabam sendo elementos de transformação do status que os engendrou.

Para dar força a essas idéias, González Rey (ibid., p. 253) toma a concepção de sistema dinâmico de sentido de Vygotsky, com base na qual este produziu muitas construções relevantes. Com essa concepção, Vygotsky rompeu com a lógica da fragmentação elementar e com os princípios universais para definir a organização geral da psique. De acordo com o autor russo, essa organização da psique transcende a dicotomia do externo e interno. Ele oferece uma nova definição ontológica da psique, de caráter sistêmico e processual, que se mostra, de forma simultânea, como organização e processo. O conceito de zona de desenvolvimento proximal que ele propôs é um exemplo disso: recorrendo-se a este, pode-se dar conta de funções do sujeito que estão em vias de se desenvolver, ou seja, idéias e sentimentos incipientes podem ser organizados, sistematizados e objetivados. Para isso, ocorre uma ligação entre os estímulos externos e as respostas internas: a interação e a comunicação do sujeito nos contextos sociais em que vive são fatos que o incitam a explicitar suas intenções.

Assim, fica cada vez mais claro que a teoria da subjetividade assumida por González Rey orienta-se por uma dialética entre o momento social e o individual. O chamado "momento individual" representa um sujeito que está implicado de forma constante no processo de suas práticas, de suas reflexões e de seus sentidos subjetivos. Em outras palavras, o sujeito não é a priori, nem é puro reflexo do social, mas representa um momento de contradição e de confrontação com o social e, ao mesmo tempo, com sua própria constituição subjetiva. Nessa confluência entre o social e sua própria constituição subjetiva, o sujeito gera novos sentidos que vão modificando a si mesmo e às suas práticas (ibid., p. 240).

Há, portanto, um modo de conceber o sujeito que, em sua produção de sentidos, demonstra uma capacidade de permanente tensão com o estabelecido, capaz de representar inúmeras alternativas de ruptura. Esse modo de ver o sujeito é uma posição que tem inclusive implicações políticas, pois não há projetos sociais progressistas, de mudança, sem a participação de sujeitos críticos que exercitem seu pensamento e, a partir da confrontação, gerem novos sentidos que contribuam para modificações nos espaços sociais dentro dos quais atuam. Ou seja, sem manter a capacidade geradora de sujeitos críticos que facilitem a tensão vital e criativa em um espaço social, os projetos sociais tornam-se conservadores e, o que é ainda pior, levam ao enquadramento de tudo que surpreende; enfim, ao bloqueio dos processos de singularização.

O pensamento e as emoções também estão presentes na produção de sentidos. Reconhecer um sujeito ativo é considerar sua capacidade pensante, reflexiva. O sujeito aparece nos momentos de sentido em que pensa e sua capacidade geradora de sentidos por meio do pensamento é um dos elementos centrais no desenvolvimento de sua capacidade para produzir rupturas. Ou seja, os sujeitos críticos que exercitam e confrontam seus pensamentos podem gerar novos sentidos, que contribuem para modificações neles mesmos e nos espaços sociais onde atuam. Assim, no exercício de sua capacidade pensante, o sujeito se constitui como elemento central de caráter processual da subjetividade.

A expressão do sujeito por meio do pensamento não é automática, mas construída por ele mediante desenhos intencionais e conscientes que se organizam em complexas operações reflexivas ou de um "diálogo consigo mesmo". A reflexividade é uma característica do indivíduo, comprometida com a produção de sentidos subjetivos em todas as esferas de sua vida. É a reflexividade que mobiliza a consciência de si e engaja o indivíduo em uma reorganização crítica de seu conhecimento ou mesmo na interrogação dos seus pontos de vista fundamentais. Essa situação pode levar o sujeito a reassumir posições e a definir constantemente novas posições dentro dos contextos sociais em que se desenvolve.

Além disso, o pensamento, ao se objetivar em uma percepção consciente, converte-se em uma pertença individual que permite ao sujeito construir-se como parte diferenciada do "outro" e do contexto social, assumindo seu pensamento como próprio, percebendo assim sua subjetividade em construção.

De acordo com González Rey (ibid., pp.128, 162, 164), o reconhecimento da capacidade pensante do sujeito tem implicações na sociedade atual. As formas de totalitarismo dominantes e o poder manipulador dos meios de comunicação dificultam a participação do sujeito como protagonista de seus pensamentos, impedindo-o de produzir novas opções para viabilizar projetos sociais de mudanças. Eu acrescentaria: também na escola, quando o professor não é reconhecido como sujeito pensante, ele tende a repetir modelos padronizados e pré-estabelecidos, tornando os projetos pedagógicos conservadores, limitando, ao mesmo tempo, sua capacidade para construir conhecimentos. Disso advém algo mais grave: o professor, agindo assim, dificilmente reconhecerá os alunos como sujeitos pensantes.

Outro aspecto essencial na produção de sentidos são as emoções do sujeito. As emoções são fenômenos complexos que abrangem múltiplas dimensões e que, portanto, não aparecem somente como momentos de expressão da pessoa ante estados biológicos, mas também associadas a estados subjetivos. Essa idéia é assim evidenciada por González Rey (ibid., p. 249): "As emoções representam um momento essencial na definição dos sentidos subjetivos dos processos e relações do sujeito. Uma experiência ou ação só tem sentido quando é portadora de uma carga emocional".

Esse autor ressalta que as emoções são uma expressão inconsciente da síntese das histórias pessoais, constituídas nas configurações subjetivas do sujeito, e expressam a síntese complexa de um conjunto de estados sobre os quais o sujeito pode ou não ter consciência. De toda forma, tais estados são essencialmente afetivos e podem ser definidos por categorias como auto-estima, segurança, interesse, autonomia, etc. Esses estados é que definem o tipo de emoção que caracteriza o sujeito para o desenvolvimento de uma atividade e desses estados vai depender a qualidade da realização do sujeito nessa atividade. Assim, González Rey (ibid., p. 237) destaca que a emoção é um dos aspectos mais desafiantes do sujeito e um dos que mais conseqüências provoca na organização de suas diferentes práticas sociais e profissionais.

Na produção de sentidos subjetivos, há uma relação de pensamento e emoção superando a forma fragmentada e analítica em que historicamente apareciam. Essa idéia é condizente com o pensamento de Vygotsky, segundo o qual o que ocorre durante o desenvolvimento do sujeito é que "mudam não só as funções psicológicas por si mesmas, mas em primeiro lugar variam os nexos interfuncionais e as relações entre os diferentes processos, em particular, entre o intelecto e o afeto" (apud González Rey, 2003, p. 249).

A consideração do pensamento e das emoções na produção de sentidos subjetivos remete também à relação entre a consciência e o inconsciente presente na construção da subjetividade. Embora as configurações de sentidos sejam constituídas por elementos inconscientes, como, por exemplo as emoções, a consciência representa um momento de intencionalidade, reflexividade e vivência do sujeito em relação a seu complexo mundo psicológico. Nessa perspectiva, consciência-inconsciente não formam uma dicotomia, mas dois momentos diferentes da experiência subjetiva que se constituem dentro de uma nova unidade, que são os sentidos subjetivos.

Além da relação entre consciência e inconsciente, há um aspecto central na construção da subjetividade que é o das relações entre sentido e significado. O sentido está presente em processos de significação, mas não é definido por esses processos. González Rey chama a atenção para esse fato porque, como diz (ibid., p.128), "a categoria sentido tem tentado se integrar historicamente à linguagem e ao significado". Como exemplo, toma a perspectiva sociocultural, em que o indivíduo aparece como agente da ação e como uma "voz" do discurso. Portanto, o individuo sempre está "encaixado" em uma produção cultural em que ele não aparece como produtor em sua produção individual. Assim, segundo González Rey (ibid., p. 182), mais do que resolver a dicotomia indivíduo-sociedade, a perspectiva sociocultural subordina o individuo à cultura, compreendida como processo de significação.

A compreensão do sentido como uma expressão particular de uma ontologia da psique, que não se reduz aos processos de linguagem nem às instâncias discursivas em que o psíquico também se apresenta, evidencia-se nas seguintes palavras de Vygotsky (apud González Rey , 2003, p.129):

O sentido de uma palavra é um agregado de todos os fatores psicológicos que surgem em nossa consciência como resultado da palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa, que tem inúmeras zonas de sentido que variam em sua instabilidade. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto da fala.

Desse modo, o sentido e o significado devem ser tomados como unidade e não separados. Assim, evita-se um caminho que já foi transitado por outras correntes de pensamento, as quais mostraram a insuficiência da unilateralidade de qualquer categoria, sobretudo na explicação de fenômenos complexos, como é o caso da subjetividade. Tomando-se o sentido e o significado como unidade, chega-se à conclusão de que, na organização subjetiva, integram-se o pensamento do sujeito, as emoções, as situações vividas por ele, as quais aparecem numa multiplicidade de sentidos subjetivos, processos que não podem se reduzir a linguagens nem a discursos.

Venho enfatizando a definição de sujeito e subjetividade como um sistema complexo e dinâmico em que, simultaneamente, vários elementos entram em contradição, gerando um caminho de tensões múltiplas dentro do qual um elemento nunca se reduz a outro. Entretanto, é importante lembrar que as contradições nem sempre podem ser ultrapassadas, pois, como diz Morin (2000, pp. 86-87), embora reconhecendo a possibilidade de ultrapassá-las, há a possibilidade de um trabalho em suas fronteiras e de superação das carências e dos limites pelo recurso a um sistema mais rico e mais complexo. Ao transitar pelas fronteiras, pelas "frestas", pelos "espaços entre" sociedade e indivíduo, consciente e inconsciente, pensamento e emoção, sentido e significado, talvez possamos dar um passo além, para tentar compreender a subjetividade do sujeito professor.

Ao apresentar o conceito de zona de desenvolvimento proximal, Vygotsky também remete à existência de um espaço intermediário entre o mundo interno e o externo no processo de desenvolvimento da criança, o qual define aquelas funções que estão presentes em estado embrionário ou em vias de se desenvolver. Esse espaço intermediário ajuda a compreender como ocorrem processos de criação e transformação, enfim, o próprio processo de aprendizagem da criança, uma vez que, segundo o autor (1998, p. 98), incita-a a "organizar, sistematizar e objetivar sentimentos incipientes, explicitando suas intenções e significados". Vygotsky (ibid., p. 97) evidencia a importância de se transitar por espaços intermediários - pelas "frestas", pelos "espaços entre" - ao se referir às funções que ainda estão em estado embrionário como "brotos", ou seja, como algo que posteriormente se transformará em frutos do desenvolvimento.

Pode-se então dizer que o próprio referencial que norteia este estudo também é complexo e, portanto, por sua própria natureza, não nos dá um conjunto de regras de aplicação imediata. Apenas marca um caminho que dá segurança para transitar pelas "fronteiras" para tentar compreender a subjetividade dos professores em construção.

 

A questão da subjetividade na atuação e na formação de professores

A natureza complexa do sujeito e da subjetividade tem sido pouco considerada na educação. De fato, algumas análises sobre formação de professores continuada ou em serviço (Gatti, 2003), que visam a mudança em cognições e práticas, têm revelado que, em geral, os mentores e implementadores de cursos de formação têm a concepção de que, ao oferecer informações e conteúdos ou trabalhando apenas a racionalidade dos profissionais, visando o domínio de novos conhecimentos, produzirão mudanças em suas posturas e formas de agir. Essa concepção, essencialmente intelectual, não dá conta de perceber que os professores são indivíduos com subjetividades e identidades pessoais e profissionais. São, enfim, sujeitos que vão produzindo sentidos em seus processos de aprender e de ensinar, nos quais se integram suas condições sociais e afetivas, seus pensamentos e suas emoções. Essa pode ser uma das razões pelas quais tantos programas que visam mudanças cognitivas, de práticas e de posturas mostram-se ineficazes, causando, além disso, desperdício de tempo e dinheiro. De fato, análises dos resultados de alguns programas de formação de professores (Placco e Silva, 2000, p. 29) apontam que são poucos os aspectos trabalhados que se têm traduzido em ações diferenciadas ou transformadoras em sala de aula.

Talvez, por detrás dessas concepções, esteja presente a dificuldade do sistema educativo em reconhecer, tratar e pensar a complexidade do ser-existir humano. Um exemplo disso é a fragmentação das disciplinas, reduzidas a conteúdos isolados, quebrando a sistemicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos. Desse modo, isolando e/ou fragmentando seus objetos, esse mundo de conhecimentos acaba por eliminar não somente seu contexto, mas, também, sua singularidade, sua localidade, seu ser, sua existência. É o que Morin (1999, p. 47) quer dizer quando afirma que "um pensamento unidimensional desemboca num homem unidimensional".

Algumas alternativas têm sido apontadas para ampliar a compreensão da formação de professores. Uma delas refere-se ao estudo e à investigação do modo como os professores aprendem (Placco e Silva, 2000, p. 29). A Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica (Conselho Nacional de Educação, 2001, p. 28) expressa uma idéia semelhante, ao criar o conceito de "simetria invertida", para ressaltar o fato de que a experiência do professor, como aluno, não apenas nos cursos de formação docente, mas ao longo de toda a trajetória escolar, define o papel que futuramente exercerá como docente.

Essas idéias podem ser enriquecidas se os processos de aprendizagem e de ensino forem considerados, não da maneira mais freqüente, como algo que está "fora" do professor, mas como um momento constitutivo essencial, definido pelo sentido que esses processos têm para ele, dentro da condição singular em que se encontra, ou seja, inserindo os processos de aprendizagem e de ensino em sua trajetória de vida. Ao discutir a questão da identidade na formação do professor, Gatti (2003, p. 202) complementa essa idéia, pois, para ela,

É preciso ver os professores não como seres abstratos, ou essencialmente intelectuais, mas como seres essencialmente sociais, com suas identidades pessoais e profissionais, imersos numa vida grupal na qual partilham uma cultura...

A autora sugere, adiante, que as intervenções socioeducacionais (como a formação de professores), "que incidem necessariamente sobre um modo psicossocial específico de valorar fatos ou conhecimentos", podem se tornar mais significativas "se levarem em conta essas questões e os elementos de entrelace necessários" (ibid., p. 203).

Considerando-se os sentidos que os professores produzem em seus processos de aprender e de ensinar, também podemos ter acesso à maneira como se situam como sujeitos pensantes, bem como às emoções produzidas em diferentes situações de ensino e aprendizagem em diferentes momentos e espaços de suas vidas. Essas situações podem definir-se como segurança ou insegurança, interesse ou desinteresse, entusiasmo ou desilusão, etc. Um quadro afetivo que não pode ser ignorado, pois interfere na prática docente.

Na perspectiva teórica de González Rey, como resultado da confrontação de sentidos, também surgem momentos em que os sujeitos - neste estudo, os professores - se reconhecem a si mesmos. Essa experiência leva-os a delimitar seus espaços, ou seja, os espaços em que encontram a congruência consigo mesmos na situação que estão enfrentando. Como resultado, poderemos ter um momento fundamental dos professores, em que se defrontam com suas próprias subjetividades e, portanto, podem reconhecer suas próprias crenças, expectativas, valores e atitudes, refletindo sobre elas. Ao mesmo tempo, poderão entrar em contato com os estados afetivos que permeiam seus processos de aprender e de ensinar, reposicionando-se diante de suas práticas e de seus alunos.

Cabe aqui um comentário: há urgência na superação de dicotomias e preconceitos nas referências ao afetivo na formação de professores. Nos processos de aprender e de ensinar, os professores se envolvem com seus alunos ou com seus ensinantes, com as dificuldades dos alunos e com suas próprias dificuldades, enfim, com as relações e com as solicitações afetivas que permeiam essas relações. Negar esse quadro afetivo significaria, a meu ver, virar as costas para qualquer possibilidade de transformação das ações docentes.

O momento reflexivo provocado pela produção de sentidos pode levar os professores a superar a alienação, que é um forte componente no cotidiano das escolas. Como sugere Heller (2000, pp. 31, 37), a vida cotidiana de todas as esferas da humanidade é a que mais se presta à alienação. Nela, ação e pensamento tendem a ser econômicos e funcionam na exata medida para garantir a continuidade da cotidianeidade. Além disso, o predomínio da ritualização de comportamentos cristalizados e acríticos nas escolas faz com que os professores tenham poucas possibilidades de se reposicionarem diante de seus processos de aprender e de ensinar.

Outro fator presente na escola que pode atuar como um empecilho para o confronto dos professores com eles mesmos - portanto, elemento de constituição de suas subjetividades - é uma forte tendência ao enquadramento ou, como diz González Rey (2003, pp. 114-115), "à supressão da singularização". A eliminação da singularização acaba fazendo com que professores e alunos sejam percebidos como elementos padronizados e, conseqüentemente, tudo que surpreende, ainda que de maneira leve, termina por ser classificado em algum enquadramento de referência.

Há, por vezes, resistência por parte dos próprios formadores de professores a aceitar uma produção original, que escapa às delimitações impostas por tendências dominantes do pensamento pedagógico. Agindo dessa maneira, não abrem espaços para perguntas, ou seja, deixam de lado o elemento surpresa, fundamental para que ocorram aprendizagens significativas, uma vez que pode provocar novas e cada vez mais ricas interrogações. Como propõe Bruner (apud Schnitman, 1996, p. 291), "a surpresa (...) nos permite refletir acerca do que damos por certo, por óbvio, por evidente: surpresa é uma reação ante a transgressão de uma certeza". Há ainda, por parte dos educadores em geral, o temor ao confronto, por julgá-lo agressivo ou pela dificuldade de entrar em contato com a própria ignorância de uma maneira positiva ou ainda, segundo Paín (apud Parente, 2000, p.134), "como algo que determina o lugar do enigma onde o conhecimento deve chegar". Dessa maneira, como já mencionado, o professor não reconhece sua capacidade pensante, limitando suas ações docentes e suas possibilidades de transformação.

Assim, torna-se urgente um envolvimento direto, também, dos formadores de professores, em repensar seus modos de ser e sua condição de estar numa dada sociedade - o que implica um trabalho com suas subjetividades. Sem isso, como diz Gatti (1996, p. 89), as alternativas possíveis, na direção de uma melhor qualidade da educação e do ensino, "não se transformarão em possibilidades concretas de mudança. Veremos, como temos visto, ao continuarmos com os mesmos métodos de formar professores e prover seu aperfeiçoamento, simulacros de mudança, mas não transformações reais".

Torna-se também necessária a abertura, nos programas de formação de professores, de espaços facilitadores da produção de sentidos, que "podem levar o sujeito a reorganizar sua vida de uma maneira mais saudável" (González Rey, 2003, p. 233), contribuindo para a melhoria da qualidade de suas ações docentes.

 

Professores e produção de sentidos no jogo de areia

Para compreender a construção da subjetividade e identidade dos professores, é preciso buscar caminhos que permitam lidar com a complexidade aí contida. Há outros canais de expressão, além das entrevistas, que possibilitam visualizar a forma indireta e complexa em que aparecem os indicadores da subjetividade e da identidade. Reason (1998), pesquisador norte-americano, menciona em seus estudos atividades como a narrativa de histórias, sociodrama, teatro de bonecos, desenho, pintura, etc., considerando-as valiosos canais de expressão para ressignificar as histórias de vida e para validar dados que não podem ser obtidos por processos ortodoxos de pesquisa. Além disso, ressalta um aspecto dessas atividades: a condição que oferecem para trabalhar com oprimidos - eu acrescentaria, muitas vezes é o caso das professoras - que não encontram canais de expressão apropriados para contar e ressignificar suas histórias de vida.

Como ilustração, apresento uma técnica vivencial denominada jogo de areia (Sandplay), que utilizei como meio de pesquisa em minha tese de doutorado (2004) e que venho utilizando em grupos de formação de educadores. Nessa técnica, os participantes criam cenas com miniaturas variadas - de pessoas, animais, vegetação, construções, meios de transporte, mobiliário, figuras religiosas e mitológicas, objetos do cotidiano e da sala de aula, etc. - em uma caixa com areia, vivenciando seus processos de aprender e de ensinar.

O jogo de areia (Sandplay) foi criado por Dora Kalff, analista suíça formada pelo Instituto C. G. Jung, que a utilizava nas sessões de psicoterapia. Entretanto, desde que a técnica seja convenientemente estudada, vivenciada pelo mediador e acompanhada de uma mediação cuidadosa, pode servir a outras formas de aplicação mais abrangentes.

No jogo de areia, a produção de sentidos pode ser compreendida pela dimensão simbólica, pois não há construção simbólica fora de uma rede de sentidos já constituídos pelos sujeitos. A preparação dos cenários é, por si só, um ato simbólico e os símbolos são representados pelas construções na areia ou pela forma como as miniaturas são utilizadas como ferramentas de expressão: "através dos símbolos, coisas diferentes podem significar umas às outras e podem mergulhar umas nas outras; eles permitem uma variabilidade infinita" (Jovchelovitch, 2002, p. 74). No momento em que os símbolos emergem, podem produzir emoções relacionadas com registros de sentidos que exprimem as diferentes formas de realidade do sujeito. Como diz González Rey (2003, pp .266-271), "a dimensão simbólica deixa de ter um caráter externo ao indivíduo e as integra em um registro diferente, o dos sentidos subjetivos; e, nesses sentidos, a realidade aparece mais além dos significados que medeiam a relação dela com o sujeito".

Weinrib (1993, p. 49), discípula de Dora Kalff e introdutora do jogo de areia nos Estados Unidos, de certa forma corrobora as palavras de González Rey, com base em sua experiência de trabalho com o jogo de areia. Para ela, "quando um conteúdo interno se torna simbolicamente objetivado, isso parece causar uma mudança na dinâmica interna, como se algo se movesse e liberasse um impulso psicológico". Eu acrescentaria: esse impulso promove uma compreensão do subjetivo que se explica simultaneamente no social e no individual. Além disso, evidencia-se ainda uma dinâmica processual no jogo de areia ou um evento sincronístico: a imagem interna recebe a expressão física e, aí, nasce o próximo passo. A síntese entre o físico e o psíquico torna-se a tese para a próxima etapa do processo (ibid., p. 67).

Nesse sentido, pode-se dizer que a dimensão simbólica presente no jogo de areia resulta em vivências muito intensas, que facilitam a compreensão dos sentidos produzidos pelos sujeitos e, ao mesmo tempo, a leitura de suas emoções. Um comentário de uma cliente de Weinrib (ibid., pp. 39-40) expressa bem essa situação:

Você escolhe um objeto, coloca-o na caixa e se torna mais consciente de um sentimento. A caixa torna-se uma extensão de você mesma. Eu sei o que é certo para colocar nela. Se não parecer direito, eu retiro. Ela torna meus sentimentos acessíveis a mim mesma, me ajuda a distingui-los. Ela me diz que eu tenho um sentimento - esteja ou não celebrando alguma coisa. Eu sei como me sinto quando faço um cenário. Ele me conta. Assemelha-se a um diálogo silencioso entre mim e eu mesma...

Nesse depoimento, a expressão "no diálogo silencioso entre mim e eu mesma" demonstra como a reflexividade pode ser facilitada no jogo de areia. Os objetos do cotidiano presentes nas cenas ajudam a criar e a fixar uma representação simbólica concreta do mundo interior, fazendo com que o sujeito participe intencional e reflexivamente em relação a seu mundo psicológico, aos processos de sua vida, suas crenças, etc. Além disso, o sujeito reflexivo pode analisar os mecanismos simbólicos presentes nas cenas e entender por que e a que ele reage, onde isso o afeta, em que nível. Enfim, trata-se de um trabalho de produção de sentidos que evidencia as subjetividades e identidades em construção. As palavras de González Rey (2003, p. 226) explicitam bem essa situação:

O sujeito, em sua atividade consciente, caracteriza-se pelo exercício constante de sua atividade pensante, reflexiva, o que não é um processo cognitivo, mas um processo de sentido, pois a construção se produz sempre dentro de um sistema de sentido, que é precisamente o que define sua extraordinária importância para o desenvolvimento do sujeito.

Essa situação também expressa a relação entre consciência e inconsciente presentes no jogo de areia, pois apresenta os elementos inconscientes do sujeito, como suas emoções, relacionadas com a consciência, ou seja, com um momento de reflexividade em que o sujeito participa intencionalmente nos processos de sua vida, de seu complexo mundo psicológico. Ou ainda, o jogo de areia permite expressar o inconsciente na amplitude com que Jung o concebe. Para ele (apud González Rey, 2003, p. 32), "as forças dinâmicas que definem o inconsciente aparecem como forças heterogêneas, cujos conteúdos se associam ao cenário da vida atual do sujeito e de sua própria condição histórico-social".

Talvez uma das mais importantes especificidades do jogo de areia, de certa maneira implícita nas anteriores, é a possibilidade de transitar por "espaços intermediários". O espaço simbólico promove uma zona de encontro entre sujeito e objeto, entre mundo interno e realidade externa, entre emoção e pensamento, entre consciência e inconsciente, discriminando, ao mesmo tempo, uns dos outros. Além disso, as próprias características do material - as dimensões da caixa de areia, os cenários representando figuras e paisagens do mundo interior e exterior, situando-se aparentemente entre esses dois mundos - também contribuem para que isso ocorra. A existência desse espaço intermediário no jogo de areia assemelha-se ao "espaço potencial" concebido por Winnicott, onde se instala um movimento dinâmico e criativo. Isso também se evidencia no seguinte comentário de Ammann (2002, pp. 75-76):

No jogo de areia realiza-se em pequeno espaço aquilo que o ser humano precisa fundamentalmente fazer, no caso transformar, ou seja, tornar real a energia amorfa do seu mundo (...) interior por meio do mundo concreto (...) e transformar novamente essa criação concreta em imagem interior. Essa imagem interna agora tem forma nova, é nova criação, pois a idéia, inicialmente amorfa, foi se transformando pela força criativa (...), levando em consideração o mundo concreto existente. Dessa forma, com a força da imaginação e o cenário, cria-se o mundo pessoal participando-se, ao mesmo tempo, da contínua criação do mundo.

Lembrando Vygotsky (1988, p. 94), pode-se dizer ainda que no jogo de areia se constitui uma zona de desenvolvimento proximal, que pode dar conta de funções do sujeito que estão em vias de se desenvolver, ou seja, idéias e sentimentos incipientes podem ser organizados e objetivados, sentidos podem ser produzidos.

Ainda outra característica do jogo de areia, que atua como elemento facilitador para a compreensão da construção da subjetividade e identidade, é a dimensão do fazer. Ela se expressa pela transformação visível da matéria: os cenários e a areia. Paín, em diálogo com Sonia Parente (2000, p. 86), explicita bem essa situação: "aquele que (...) transforma a matéria propõe algo novo, original, algo que sem ele não teria existência. Quer dizer que ele, com essa atividade, pode recobrar-se como original e único". Segundo Ammann (2002, pp. 67-68), o trabalho com as mãos, ao produzir cenários na areia, tem um papel importante, pois são órgãos muito sensíveis que mobilizam as energias criativas, fazendo com que fluam, pois "podem absorver forças e também passá-las adiante (...); fazem com que uma imagem interna seja captada ou um acontecimento interno seja estimulado". A importância das mãos como mediadoras entre o mundo inconsciente e a consciência, entre o mundo interno e a criação concreta, tem sido enfatizada em um dos princípios que embasam o jogo de areia. De acordo com esse princípio, por meio da criação com as mãos, as forças que atuam nas profundezas da alma se tornam visíveis e reconhecíveis. A possibilidade de trabalhar com as mãos é importante, principalmente, para as pessoas que sentem dificuldade de comunicar sentimentos pela verbalização. Segundo Ammann (ibid., p. 22):

A pessoa pode, por exemplo, ficar rígida e paralisada de medo... Todavia, a própria pessoa não tem palavras para descrever sua situação, não consegue expressar verbalmente o que fez surgir seus medos, pois os motivos lhe são inconscientes. No entanto, suas mãos podem dar forma ao "inconsciente" (...) por meio de uma imagem e, assim, torná-lo visível.

Por outro lado, para Ammann (ibid., p.11), a "mão na massa" também tem efeito positivo em pessoas muito intelectualizadas, habituadas a se expres-sarem ou até mesmo a "controlarem" diversas situações apenas por meio das palavras. Weinrib (1993, p. 69) também tem notado que essas pessoas, muitas vezes, precisam de coragem para enfrentar o "vazio" da caixa de areia, isto é, para serem lançadas em direção a seus recursos criativos; e, quando isso ocorre, é preciso estabelecer rapidamente com elas um relacionamento de confiança. Entretanto, o jogo de areia também pode beneficiar pessoas que se expressam mal verbalmente pois, segundo Weinrib (ibid., p. 69), nesses casos, a expressão verbal pode ficar prejudicada pela ansiedade. Na verdade, as abordagens nãoverbais são muito importantes numa sociedade como a nossa, que privilegia o pensamento racional, a organização lógica e a linguagem verbal, esquecendo-se que há produções que transcorrem por outras vias - musical, gestual, encenação. Muitas pessoas, quando se deparam com essas produções, por quererem logo traduzi-las em palavras, como se fosse o único modo de produzir sentido, ficam com uma visão parcial e empobrecida da situação.

Alguns analistas junguianos perceberam há algum tempo a importância de integrar outras formas de expressão à análise verbal. Por essa razão, utilizam o jogo de areia como uma forma de tratamento e comprovam que essa técnica aprofunda e acelera o processo terapêutico. No Instituto C. G. Jung de Zurique, como na maioria dos institutos junguianos estrangeiros, o jogo de areia foi reconhecido e integrado ao currículo como complementação valiosa da análise verbal (Ammann, 2002, p. 17). A descrição de uma situação analítica realizada por Maroni (2001, p. 56) explicita como as palavras nem sempre dão conta de expressar nossos sentimentos:

O analista percebe claramente que, em determinado momento da análise, uma reação ou um discurso ou um sentimento, alguma manifestação, não tem qualquer conexão com a cadeia regular das associações ou do discurso do paciente. Isso significa que algo atua neste momento e é incapaz, como tal, de emergir no nível da consciência.

O próprio Jung relata que uma de suas pacientes lhe disse o seguinte, durante o processo de análise: "Sei perfeitamente do que se trata, vejo e sinto tudo, mas é totalmente impossível encontrar as palavras correspondentes" (apud Maroni, 2001, p. 57).

Algumas pesquisas recentes (Mitchell e Friedman, 2003) sobre o funcionamento cerebral e trauma comprovam a eficácia do uso de técnicas não verbais no tratamento de pessoas que têm dificuldade de se expressar verbalmente. Isso foi possível graças às técnicas de imagem do cérebro recentemente desenvolvidas, em particular a imagem multimodal, que permite aos pesquisadores mapearem o cérebro vivo e em funcionamento, ou seja, localizar a região exata que corresponde às experiências específicas e produz reações de comportamento. Essas pesquisas revelaram que, no momento do trauma, as pessoas são tomadas por emoções tão intensas que se tornam incapazes de verbalizar o que está acontecendo.

Apoiadas nessas pesquisas, Mitchell e Friedman (2003, p.15) demonstraram que o jogo de areia pode ser eficaz no tratamento daquilo que denominam "traumas com 't' minúsculo, ou traumas menores": abuso verbal e emocional, discordâncias entre os pais - e eu acrescentaria: bloqueios nos processos de aprender e de ensinar. Segundo essas autoras, a expressão não verbal presente no jogo de areia cria possibilidades para um maior conhecimento e melhor interpretação do que ocorre com a pessoa submetida ao "trauma", criando-se uma nova percepção da situação (ou produção de novos sentidos) para ela mesma.

Há uma especificidade central no jogo de areia que precisa ser ressaltada - sua capacidade como procedimento projetivo. Entretanto, convém lembrar que Jung (apud Von Franz, 1997, p. 9) qualifica a projeção como um fenômeno psicológico verificável, em princípio, no cotidiano de todos os seres humanos. Von Franz (ibid., pp. 9, 69) a define como uma transposição involuntária de alguma coisa inconsciente no objeto externo. Assim, como diz Gambini (2000, p. 28), pode-se dizer que a projeção não é patologia, mas um fato natural, por meio do qual tudo o que é desconhecido na psique pode se manifestar, ou seja, não se faz uma projeção, ela simplesmente ocorre. Ora, o jogo de areia é reconhecido por sua capacidade como procedimento projetivo, uma vez que o sujeito é posto na presença de situações simbólicas e pouco estruturadas e de estímulos que possibilitam ler certos traços de seu caráter e certos sistemas de organização de seu comportamento e de suas emoções (Anzieu, citado por Laplanche e Pontalis, apud Franco e Pinto, 2003, p. 96).

O jogo de areia revela-se ainda como um meio educativo. O reconhecimento das professoras como protagonistas e participantes de suas produções faz com que reconheçam suas capacidades pensantes, facilitando a construção de conhecimentos - enfim, a capacidade de realizar um trabalho lúcido (e lúdico) sobre si mesmas.

Alguns comentários das participantes deste estudo ilustram essa questão.

Comentando uma ponte que colocou em uma cena que atribui à sua infância, Rita (os nomes são fictícios) diz:

No início olhei a cena e pensei: "Será que a ponte tem a ver com a cena? (...) Por que eu coloquei ela na praça, se a praça de minha infância não tinha uma ponte? (...) Mas também pode ser uma questão subjetiva (...) Estou querendo ligar o que com o quê? (...) Será que eu estou querendo fazer uma ponte com a minha infância?"

Em seu comentário final, Rita conclui:

Foi muito bom...(...) Pensei em várias etapas que estavam guardadas lá atrás. Acho que, se não fosse esse trabalho, nem sei como ia pensar nelas para avaliar, para fazer essa ponte. Agora sei que sou um pouquinho do que guardei: do que eu quero que permaneça; do que eu não quero que permaneça e, também, do que já consegui transformar.

Clara, em quem o trabalho na caixa de areia "mexeu muito, foi mexer com coisas que eu pensei que já tinha resolvido", explicita que "comecei a reelaborar alguns significados e sentimentos em relação à aprendizagem". E comenta ao final:

Acho o trabalho muito importante, porque na nossa fala a gente mascara muito aquilo que está pensando, a gente quer mostrar para o outro aquilo que a gente quer que ele veja, a gente não quer mostrar o que a gente é. E se alguém pergunta alguma coisa, a gente coloca uma máscara. Mas nesse trabalho não deu... Na hora que você vivencia, você não consegue mascarar. Isso também me fez pensar nas crianças, acho que é isso que acontece com elas. Elas são elas... Elas são muito verdadeiras!

 

Considerações finais

O jogo de areia, devidamente embasado teoricamente e acompanhado por uma mediação cuidadosa, é um recurso muito rico para compreender a construção da subjetividade de professoras/es. Por suas características citadas, essa técnica permite tanto ao pesquisador tentar compreender os sentidos que produzem em seus processos de aprender e de ensinar quanto às/aos professoras/es perceberem suas próprias produções de sentido, suas subjetividades em construção.

Além disso, as vivências em geral possibilitam às/aos professoras/es uma percepção delas/es mesmas/os diante da situação em que se encontram: reconhecem suas crenças, expectativas, valores e atitudes refletindo sobre elas. Assim, surgem oportunidades para sair da situação paralizante e padronizada em que muitas vezes se encontram em seus contextos profissionais.

No caso desta pesquisa, é importante observar que os procedimentos projetivos presentes no jogo de areia foram direcionados para os sentidos que as/os professoras/es produzem em seus processos de aprender e de ensinar, os quais estão permeados por suas emoções. A eficácia das ações formadoras depende de compreender as/os professoras/es, não como seres abstratos ou essencialmente intelectuais, mas como seres com identidades pessoais e profissionais, derivando seus conhecimentos, valores e atitudes dos sentidos que vão construindo em seus processos de aprender e de ensinar. Esta análise parte do pressuposto de que cada um e todos os âmbitos do sujeito - pessoal, interpessoal, social, cognitivo, afetivo -, em qualquer interação, estão sincronicamente presentes e nenhum deles é afetado ou se transforma sem que os outros sejam também transformados.

Assim, a ação da escola - e, acrescentaria, a dos formadores de professores -, como nos lembram Almeida e Mahoney (2000, p. 78), "não se limita à instrução, mas se dirige à pessoa inteira e deve converter-se em um instrumento para seu desenvolvimento; desenvolvimento esse que pressupõe integração entre as dimensões afetiva, cognitiva e motora".

É importante que esse movimento seja captado e transformado em ações concretas que propiciem a abertura de espaços facilitadores de produção de sentidos para, talvez assim, superar as situações problemáticas relativas à formação de professores e, conseqüentemente, à qualificação da educação e do ensino.

 

Referências

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1 As concepções de Fernando González Rey sobre a construção da subjetividade permeiam o presente estudo. Minha opção por esse autor deve-se à sua perspectiva abrangente e pensamento complexo que permitem compreender e aprofundar a questão.

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