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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.26 São Paulo June 2008

 

Arquivos da dissidência: os corpos fugidios de crianças e jovens

 

Archives of dissent: the sneaky bodies of children and youngsters

 

Archivo de la disidencia: los cuerpos huidizos de niños y jóvenes

 

 

Flávia Cristina Silveira LemosI; Maria Lívia do NascimentoII; Estela ScheinvarIII

IProfessora da Faculdade de Psicologia do IFCH/UFPA E-mail: flavialemos@ufpa.br
IIProfessora do Departamento de Psicologia/UFF E-mail: mlivianascimento@gmail.com
IIIProfessora da Faculdade de Formação de Professores e do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ. Socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da UFF. E-mail: scheinvar@ig.com.br

 

 


RESUMO

O artigo coloca em análise algumas práticas presentes em conselhos tutelares que fortalecem modalidades de gestão da existência. Busca, também, problematizar as resistências de crianças e jovens às relações de poder exercidas pelos trabalhadores sociais que acionam as práticas administrativas de gestão dos corpos, por meio do governo do cotidiano. Tais resistências operam através do agenciamento político dos desvios das normas e de exercícios de contrapoder que podem ser encontrados nos registros arquivados nos conselhos tutelares.

Palavras-chave: Relações de poder; Resistência; Conselho Tutelar; Crianças e Jovens.


ABSTRACT

This article analyses some practices of the Tutelary Councils that strengthen management arrangements of the existence. It also looks at problematizing resistances of children and youngsters face power relations exercised by social workers that trigger administrative practices to manage the bodies, through the government of the everyday's life. This resistances work out through the political management of deviations from standards and exercises of oppositions, that can be found in record files archived in the Tutelary Council.

Key-words: Power relationships; Resistances; Tutelary Council; Children and Youth.


RESUMEN

Este artículo analiza algunas prácticas presentes en consejos tutelares que fortalecen modalidades de gestión de la existencia. Busca, también, problematizar las resistencias de niños y jóvenes frente a las relaciones de poder ejercidas por trabajadores sociales que accionan las prácticas administrativas de gestión de los cuerpos, por medio del gobierno de la vida cotidiana. Tales resistencias operan a través del agenciamiento político de los desvíos de las normas y de ejercicios de contrapoder que pueden ser encontrados en los registros archivados en los consejos tutelares.

Palabras-clave: Relaciones de Poder; Resistencia, Consejo Tutelar, Niños y Jóvenes.


 

 

(...) cada um, se souber jogar o jogo, pode tornar-se face ao outro
um monarca terrível e sem lei: homo homini rex; uma cadeia política inteira
vem entrecruzar-se com a trama do cotidiano.
(Michel Foucault).

 

O Conselho Tutelar (CT) é um órgão administrativo e municipal, previsto como uma instância de recepção de notificações e encaminhamentos, criado em todo o país desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. É definido como órgão não jurisdicional, autônomo e permanente, composto por cinco membros eleitos diretamente ou indiretamente para gestão de três anos, com direito a uma reeleição (Brasil, 2003).

As eleições para o Conselho Tutelar são organizadas pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Podem se candidatar maiores de 18 anos que tenham experiência no atendimento de crianças e jovens e, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Câmara dos Deputados, 2003), ter idoneidade moral reconhecida. Em vários lugares, as eleições têm sido regidas por outros critérios adicionais, como a exigência de diferentes graus de escolarização, chegando-se a colocar como requisito ter formação superior em áreas específicas (psicologia, pedagogia, direito, administração, etc.) e instituindo a realização de prova escrita de conteúdo, por exemplo.

Cada município, de acordo com seu tamanho populacional, pode implantar um ou mais Conselhos Tutelares, chegando a instalar vários na mesma cidade, em bairros diferentes. Cabe à administração municipal oferecer os meios de funcionamento do Conselho, a definição do salário de cada conselheiro, do espaço adequado para os atendimentos, dos funcionários de apoio, equipamentos e carro para deslocamento até os locais a serem visitados para verificação de denúncia.

Desta forma, o Conselho opera uma triagem social e administrativa fora ou anterior ao Poder Judiciário sobre os corpos de crianças, jovens e seus familiares. Ao mesmo tempo em que desafoga o volume crescente de processos judiciais, a presença do conselho tutelar é vivida como uma disputa de mercado, por lançar mão dos mecanismos de soberania para exercer poderes antes privilégio da justiça.

De acordo com a legislação em vigor (ECA), o Conselho Tutelar teria uma função pedagógica, sendo receptor de denúncias, que poderiam inclusive ser anônimas. Geralmente os denunciantes são integrantes de estabelecimentos escolares; da saúde e da assistência social, mas as denúncias também podem chegar ao conselho através de familiares e vizinhos.

Como em outros espaços de recepção de notificação de violação ou ameaça de direitos humanos, o Conselho Tutelar se tornou um lugar em que um jogo contínuo de chantagens ocorre. Por vezes, se constitui como uma forma de disciplinar os corpos por condutas tidas como fora das normas, inclusive dos próprios conselheiros, já que eles mesmos são vigiados por outros órgãos de fiscalização e também se tornam inspetores entre si.

A chegada desse equipamento social redesenha as questões referentes à defesa dos direitos da infância e da juventude em nosso país, já que coloca em cena um dispositivo que redimensiona a função do Estado nessa área, pois sua estrutura passa a estar vinculada também aos movimentos sociais e à sociedade civil. Porém, novas forças emergem com ele.

No presente artigo buscamos problematizar algumas dessas forças, colocando em análise algumas das práticas presentes nos conselhos tutelares que fortalecem modalidades de gestão da existência. Nosso objetivo é discutir as relações de poder, os processos de subjetivação hegemônicos e as técnicas de governo e de tutela da vida que circulam nesse espaço.

Para tanto, entram em pauta nossas experiências de trabalho junto a conselhos tutelares, a partir de nossos cotidianos como docentes que acompanham estágios de alunos do curso de psicologia que participam durante um ano das rotinas de conselhos tutelares. Nessa função, promovemos intervenções nesses estabelecimentos de gestão de medidas protetivas, e realizarmos pesquisas sobre o dia-a-dia dos conselhos tutelares, sua história e os efeitos de suas práticas.

O conselho tutelar é um estabelecimento responsável pela gestão das medidas protetivas e, nesse movimento, produtor de disciplinarização, sujeição e governo das resistências. Para Michel Foucault (1979), os mecanismos disciplinares não são opressivos, mas produtores de subjetividades e de modos de controle social normalizadores, correlatos a qualquer sistema de seguridade social e de proteção. Deste modo, a proteção é um mecanismo de segurança, de seguridade e, portanto, uma forma de produzir indivíduos e disparar estratégias de controle social.

 

Os desvios começam a ser narrados nos arquivos fazendo emergir o cotidiano

Foucault realizou uma história das práticas de produção do sujeito normalizado pela análise problematizadora da gerência do desvio e das pequenas infâmias, interrogando as práticas de saber-poder-subjetivação produtoras dos documentos-monumentos presentes nos arquivos (Cardoso Jr., 2001).

A fabricação da história como monumento é uma tentativa de enquadrar o passado em uma história universal, apagando as singularidades dos acontecimentos, de acordo com Nietzsche. O monumento, em sua grandeza, se torna o aparato do julgamento em função de um modelo, depreciando tudo que é entendido como pequeno, por fugir à trama insone de uma memória aprisionadora dos corpos em crivos universais (Nietzsche, 2003).

A produção de um regime de escrita e de anotações do cotidiano se torna possível por meio da vigilância de corpos, que até o século XVII estavam ausentes da historiografia porque não eram considerados dignos de memória. A história é a narrativa dos chamados "vencedores" (De Decca, 1981), daqueles enquadrados como modelos a serem seguidos por seus "grandes" feitos expostos em biografias para veneração e inspiração pública.

Michel de Certeau (2007) ressaltou como as artes de fazer operaram um recorte sobre o ínfimo e o minúsculo, confiscados por dispositivos de vigilância, aparecendo como objeto problemático para a historiografia. A antidisciplina cai na rede fina da vigilância disciplinar, constituindo arquivos de vida de cunho biográfico, segundo Artière (1988). Arquivos, entretanto, que reduzem a vida a "algumas linhas ou algumas páginas... recolhidas numa mão cheia de palavras". Vidas que passam a compor uma "antologia de existências" às que, segundo Foucault, se lhes re-institui a intensidade mediante a análise (Foucault, 2006a, p.203/204).

A análise emerge como um dispositivo para desnaturalizar práticas centradas no registro escrito de algumas vidas, problematizando os fatos infames que lhes dão potência e relevo. Da mesma forma como o registro escrito é uma prática poderosa que flecha algumas vidas, deixando-as impressas em narrativas classificatórias, problematizar referências naturalizadas propondo outros sentidos para o que está consignado nos registros também é uma forma de exercício de poder. O registro de pessoas, de suas ações, desejos e movimentos falam de forças, de uma forma de exercício do poder presente nos mais diversos tipos de estabelecimentos (escola, polícia, hospital, justiça, conselho tutelar, etc.), sempre atualizada, cuja emergência é de longa data.

Toda uma história da vida dos corpos considerados desviantes terá início após a entrada em cena do dispositivo da confissão, utilizado pelo cristianismo no século XVI, e apropriado pelo Estado moderno, durante o século XVII, como objeto de administração social e política, em uma "passagem do cotidiano para o discurso, percurso do universo ínfimo das irregularidades e das desordens sem importância" (Foucault, 2006a, p. 213). O registro em prontuários ou processos, documentos administrativos institucionalizados seja por uma figura monárquica ou soberana, seja por estruturas burocráticas disseminadas como secretarias, ministérios, delegacias, refere modalidades de controle em torno do inquérito, de provas, averiguações destinadas ao julgamento e, mais do que isto, a formas de controle dedicadas a rastrear vidas marcadas em folhas convertidas em ameaça eterna. Sua potência maior está na ameaça, haja vista os efeitos questionáveis em termos da intervenção direta nas relações denunciadas. Muitas dessas relações não sofrem qualquer mudança ou nada se faz com elas, mas ficam registradas e o registro ameaça por impor um determinado entendimento dos fatos, sempre disponível para o julgamento e a decorrente punição.

Trata-se de um arbítrio executado por psicólogos, pedagogos, juízes, conselheiros, médicos, enfim, pelas mais diversas estruturas que argumentam e sentenciam, com base no que Foucault (2006b) chama "disponibilização dos mecanismos de soberania", perseguindo no plano microfísico as pessoas e as famílias em sua vida cotidiana. Um processo de controle crescente disseminado pelo corpo social, cuja forma contemporânea leva a que cada pessoa, mesmo despida de qualificação profissional, não só tenha a possibilidade, mas o dever de adotar os mecanismos soberanos. Para além do crescimento e consolidação das corporações profissionais, emergem organizações da sociedade civil, também destinadas ao controle e à manutenção da ordem. Como forma acabada desse movimento, tem-se no Brasil, os conselhos tutelares. Estratégias de governo multiplicadas em nome da ordem; formas de exercício de poder diversificadas com base nos mecanismos de soberania. Relações de poder, enfim, disseminadas pelo corpo social.

 

Das relações de poder

Uma biografia da infâmia aparece nos arquivos das polícias sociais em nome da defesa da sociedade por meio da gestão das populações pobres, em uma rede de anotações de rastros de corpos fugidios que resistiam ao controle (Foucault, 2006a). Dos arquivos monárquicos aos prontuários dos conselhos tutelares, passando por processos da justiça ou laudos profissionais nos mais diversos estabelecimentos cíveis, a infâmia é produzida no plano microfísico.

"a denúncia, a queixa, a inquirição, o relatório, a espionagem, o interrogatório. E tudo o que assim se diz, se registra por escrito, se acumula, constitui dossiês e arquivos. A voz única, instantânea e sem rastro da confissão penitencial que apagavam o mal apagando-se ela própria é, doravante, substituída por vozes múltiplas que se depositam em uma enorme massa documental e constituem assim, através dos tempos, como a memória incessantemente crescente de todos os males do mundo. O mal minúsculo da miséria e da falta não é mais remetido ao céu pela confidência apenas audível da confissão; ele se acumula sobre a terra sob a forma de rastros escritos. É um tipo de relações completamente diferentes que se estabelece entre o poder, o discurso e o cotidiano, uma maneira totalmente diferente de o reger e de o formular." (Foucault, 2006a, p. 213)

No embate com as relações de poder opera-se a produção de uma rede fina de visibilidades destes corpos desviantes e seus atos de resistência por meio dos registros de especialistas da norma, que se tornaram os ouvintes de sussurros ainda que rápidos e fugazes de vidas errantes que interrogavam com seus atos as práticas de controle social. Tratava-se de "vidas singulares, tornadas, por não sei quais acasos, estranhos poemas" (Foucault, 2006a, p. 204).

Inicia-se a produção de saberes sobre o cotidiano com os registros das instituições de administração social, no século XVII, pela via de um conjunto de intrigas, de denúncias realizadas por parentes próximos, amigos, vizinhos, casais em disputa que solicitam auxílio para silenciar e seqüestrar os corpos resistentes. Amplia-se um "apelo para se por em discurso todas essas agitações e cada um dos pequenos sofrimentos" (Foucault, 2006a, p. 216).

Ora, Foucault (1988) sempre alertou que onde há relações de poder há resistências, em um jogo de forças contínuo.

"quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais força, tanto maior astúcia quanto maior for a resistência. De que modo que é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do que a dominação morna e estável de um aparelho uniformizante. Em toda parte se está em luta [...]" (2006b, p. 232)

O poder não é uma propriedade e sim relações de forças; não há uma fonte do poder, mas a circulação de uma microfísica do poder; não há uma subordinação das relações de poder aos modos de produção ou a qualquer outra forma de exterioridade. O poder está presente em todas as relações sociais e não obedece a uma norma central, a uma estrutura central. Ele escapa à noção dicotômica dominador-dominado, instalando-se de forma dinâmica e diversa em todas as relações de acordo com a história, o pensamento, os valores, os sentidos de cada grupo. Assim, uma lei, uma norma, uma ordem é aplicada não necessariamente conforme a idealização da mesma, mas em função das condições específicas do espaço em que opera. Não é suficiente dizer que há uma estrutura determinante e uma superestrutura determinada. As relações, em suas expressões microfísicas, aportam sentidos às práticas que devem ser lidos em sua singularidade.

No caso daqueles que escrevem os registros, se de uma parte obedecem a certo regulamento, por outra a forma como fazem suas anotações também obedece a subjetividades produzidas historicamente, muito além de um centro de dominação. No mesmo sentido, as pessoas que são fixadas nos arquivos não agem homogeneamente (embora às vezes os registros subsumam as singularidades), além de muitas vezes subverterem a idéia de sua subalternidade, desafiando a ordem proposta como universal. Razão pela qual convertem-se em linhas escritas.

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente defina como possíveis violadores de direitos os pais ou responsáveis, o poder público, a comunidade e a própria pessoa que sofreu a violação, os prontuários contêm interpretações e julgamentos dos conselheiros em torno desse dispositivo legal, escapando da centralidade de uma ordem ou de uma visão. Não há uma essência no poder, pois ele não é um atributo dos que o possuem (dominantes) sobre aqueles em que é exercido (os dominados). O poder produz verdades sem necessariamente provirem estas de um pólo, mas da circulação das relações em sua riqueza e multiplicidade. Esta a sua positividade. O poder, de acordo com Foucault, age menos por repressão, por violência, afirmando subjetividades presentes em todas as práticas sociais (Foucault, 1988).

O cotidiano é capturado pela via da resistência às relações de poder de corpos por instituições judiciárias e as que operam em suas adjacências, configurando a sociedade da vigilância generalizada em nome da proteção e segurança, desde o século XVII, pelas tecnologias disciplinares da vigilância hierárquica, do exame e da sanção normalizadora, costurando-se um triângulo entre poderdireito-verdade (Foucault, 1979).

"[...] As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de força de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo. [...] Em toda parte se está em luta - há, a cada instante, a revolta da criança que põe seu dedo no nariz à mesa, para aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se quiserem -, e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à rebelião; e é toda esta agitação perpétua que gostaria de tentar fazer aparecer. [...] Mas há igualmente todo um método, toda uma série de procedimentos pelos quais se exercem o poder do pai sobre os filhos, toda uma série de procedimentos pelos quais, em uma família, vemos se enlaçarem relações de poder, dos pais sobre os filhos, mas também dos filhos sobre os pais, do homem sobre a mulher, e também da mulher sobre o homem, sobre os filhos. Tudo isto tem seus métodos, sua tecnologia próprios. Enfim, é preciso dizer também que não se podem conceber essas relações de poder como uma espécie de dominação brutal sob a forma: 'Você faz isto, ou eu o mato'. Essas não são senão situações extremas de poder. De fato, relações de poder são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre reversíveis. Não relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja dominação seja incontornável. Com freqüência se disse - os críticos me dirigiam esta censura - que, para mim, ao colocar o poder em toda parte, excluo qualquer possibilidade de resistência. Mas é o contrário!". (Foucault, 2006b, p. 231-2)

Os saberes das ciências humanas só podem nascer com o dispositivo da confissão que registra a história de vida e as narrativas dos corpos em dossiês, prontuários, relatórios, pareceres, diários, documentos onde proliferam a discórdia e o embate, em discursos-acontecimentos.

Deste modo, "é preciso considerar o discurso como uma série de acontecimentos, como acontecimentos políticos, através dos quais o poder é vinculado e orientado." (Foucault, 2006, p. 254c). Desta perspectiva, propõe-se situar os discursos em conjuntos táticos e polivalentes de acontecimentos, implicando situá-los em suas relações, em uma dimensão histórica, analisando-os como estratos em arquivos, que são entrecruzamentos de forças heterogêneas.

As práticas de saber-poder se ordenam a partir das normas e, ao mesmo tempo, produzem as normas, se articulam e se rearticulam em batalhas perpétuas, operativas em função de mecanismos disciplinares que se compõem em redes de controle de práticas que sustentam umas às outras, em uma comunicação constante e ampliada, em uma economia de visibilidade onde cada corpo se torna um caso a ser vigiado, avaliado, julgado, corrigido, transformado e normalizado. "[...] A norma é a referência que se institui a partir do momento em que o grupo é objetivado sob a forma do indivíduo" (Ewald, 1993, p. 84).

"[...] O que é a norma, precisamente? A medida, que simultaneamente individualiza, permite individualizar incessantemente e ao mesmo tempo torna comparável. A norma permite abordar os desvios, indefinidamente, cada vez mais discretos, minuciosos, e faz que ao mesmo tempo esses desvios não enclausurem ninguém numa natureza, uma vez que eles, ao individualizarem, nunca são mais do que a expressão de uma relação, da relação indefinidamente reconduzida de uns com os outros. O que é uma norma? Um princípio de comparação, de comparabilidade, uma medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade, sem verticalidade." (Ewald, 1993, p. 86)

As disciplinas se tornam normalizadas com a emergência da sociedade disciplinar, no século XVII. Visam os corpos, buscando adestrá-los e docilizá-los. Deste modo, é a partir da norma que se disciplina. Ambas são diferentes, porém se compõem e recompõem com as relações de saber-poder.

A disciplina não se limita aos limites de um estabelecimento específico. Atravessa os corpos em uma rede de comunicação interdisciplinar. Desta forma, Veyne (1998) nos lembra que as práticas não acontecem sozinhas, mas se apóiam umas sobre as outras, constituindo um diagrama de vigilância e resistência imanentes.

A sociedade disciplinar é a sociedade da inclusão, ela não segrega, mas distribui os corpos, observando-os, comparando-os, corrigindo-os, punindo-os terapeuticamente, examinando-os continuamente e, assim, "o anormal está na norma" (Ewald, 1993, p. 87). A exceção está prevista na regra, tanto o normal quanto o anormal são efeitos de uma partilha que não os encerra em uma natureza, mas os articula e recompõe na mobilidade das relações de força.

 

Corpos dissidentes

Em pesquisa de dissertação de mestrado em psicologia, realizada por uma das autoras do presente trabalho (Lemos, 2003), foram analisados documentosacontecimentos-discursos-poderes-saberes produzidos como efeitos de práticas de conselheiros tutelares, em um município do interior paulista, frente a notificações de violação e ameaça de violação de direitos de crianças e jovens pela família, pelo Estado ou pela sociedade ou, ainda, em função da conduta "desviante" dos mesmos. No mesmo sentido, práticas de alguns conselhos tutelares de alguns municípios do estado do Rio de Janeiro são analisadas por Nascimento e Scheinvar (2007) a partir de suas práticas docentes, de pesquisa e extensão.

Para problematizar as práticas de conselheiros, com a intercessão de Foucault, podemos nos referir aos arquivos trabalhados por Lemos (2003), a partir dos quais foram analisadas narrativas registradas nos dossiês deste estabelecimento quanto ao cotidiano de infâmia de populações pobres marcadas pelas relações de poder/resistências. A pesquisa se pautou no método genealógico e teve como procedimento a análise de 5% do total de dossiês de atendimento de cada um dos três anos selecionados para estudo. Os dossiês foram escolhidos por sorteio e os anos pesquisados correspondem a uma gestão de conselheiros1.

Lemos (2003) analisou como os conselheiros circulavam em meio a uma rede de intrigas com outros estabelecimentos, com o município e com a população por eles atendida, a qual deveria "proteger". As discussões trazidas por sua pesquisa, cujas problematizações são aqui apresentadas, se aproximam dos debates levantados a partir de experiências junto a conselhos tutelares em alguns municípios do estado do Rio de Janeiro, como apontado por Nascimento e Scheinvar (2007).

Relações de poder e resistência se moviam em um campo de forças em composição e/ou em batalha. Como Foucault destaca (2006b) quanto mais resistência, mais intensas são as relações de poder. Desse modo, as escolas encaminham ao Conselho os jovens por condutas consideradas "indisciplinadas", após tentarem administrar/docilizar seus corpos através de mecanismos como advertências e registros de desvios em "livros de ocorrências", como constava em documentos enviados por estas ao Conselho. Frente à resistência dos alunos, acionar o Conselho é inicialmente uma ameaça e, posteriormente, caso continuem a cometer pequenas infâmias, encaminhamentos ao Conselho seriam de fato efetivados, o que acionaria outras tecnologias de normalização (Lemos, 2003).

Estes jovens, ao não aceitarem os encaminhamentos dos conselheiros os desafiam sendo alvo de ameaças e endurecimento de estratégias. Caso resistam e acumulem papéis nos arquivos da dissidência, podem cair nas malhas do Poder Judiciário, onde os registros iniciais do conselho tutelar somar-se-ão aos que a justiça produzirá, reduzindo a vida das pessoas à dimensão da infâmia. Assim, "toda uma cadeia política vem entrecruzar-se com a trama do cotidiano" (Foucault, 2006a, p. 215).

As anotações vão se multiplicando em detalhes, minúcias dos "desvios de conduta". As famílias também se tornam alvo de registro e de controle, mas também controlam e demandam ao Conselho aquilo que não conseguem efetuar - submeter politicamente os corpos de seus filhos e/ou companheiros/companheiras/parentes e discipliná-los. Em meio aos arquivos os corpos indóceis despontam:

Um ex-marido denunciava a "negligência" da ex-companheira com os filhos e requisitava a guarda destes. Uma avó reclamava do neto "rebelde", cuja guarda era dela e solicitava que o Conselho Tutelar a ajudasse a "disciplinar" este corpo em revolta. O jovem fugia, em resistência, viaja para outros lugares e, localizado pelo Conselho de outro município, era encaminhado novamente para sua avó e para o Conselho de sua cidade.

A criança espancada pelo pai fugia e o Conselho acionado a levava de volta para sua casa, dizendo que lá era seu lugar. No entanto, novamente, a criança sofria espancamentos e fugia insistentemente. O Conselho a devolvia para a família, ameaçando-a com o indicativo de encaminhamento ao abrigo. Mais uma cena de violência depois da criança dizer ao pai que não ia obedecer. Desta vez, o Conselho a envia para o abrigo; lá, os "monitores" também querem "disciplinar" este corpo "indócil" e dissidente; as crianças se unem e subvertem, a vigilância aumenta, mas algum "monitor" em conchavo com outro "monitor" denuncia o colega que usa de métodos de suplício destes corpos fugidios ao Conselho Tutelar. O Conselho alerta o monitor simpatizante de suplícios, advertindo-o em função de romper com as normas e o ameaça de representação judicial, no Ministério Público. As crianças fogem do abrigo, o Conselho as leva de volta.

Os registros se multiplicam em memórias heterogêneas do cotidiano das resistências e dos controles intensificados. A batalha continua, pois, os corpos não cessam de romper e escorregar, transbordando pelos cantos e frestas das redes de poder difusas nas quais são capturados e escapam.

"um murmúrio que não cessará começa a se elevar: aquele através do qual as variações individuais de conduta, as vergonhas e os segredos são oferecidos pelo discurso para as tomadas de poder. O insignificante cessa de pertencer ao silêncio, ao rumor que passa ou à confissão fugidia. Todas essas coisas que compõem o comum, o detalhe sem importância, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum, podem e devem ser ditas, ou melhor, escritas. Elas se tornaram descritíveis e passíveis de transcrição, na própria medida em que foram atravessadas pelos mecanismos de um poder político." (Foucault, 2006a, p. 216)

O posto de saúde denuncia que a mãe do bebê não o leva para tomar as vacinas, o Conselho convoca esta mãe e a questiona; ela reclama de se meterem em sua vida; os controles se intensificam sobre ela em ameaças mais incisivas, ela teme e se muda; o Conselho procura seu novo endereço, a vizinha, com a qual a mãe do bebê havia brigado uma vez, conta para os conselheiros onde a ex-vizinha está morando. O Conselho chega à casa indicada e chama pela mãe do bebê, a sogra defende a nora e expulsa os conselheiros de sua casa, estes dizem que vão voltar; a sogra reclama com a nora de lhe arrumar problemas e pede que esta cumpra a agenda de vacinação que o posto de saúde marcou na carteira do bebê.

Estas narrativas ganham visibilidade a partir da captura nas malhas das relações de poder dos corpos em seus desvios, em nome da proteção da criança e dos jovens, em defesa da sociedade, utilizando mecanismos disciplinares que se reportavam sempre às normas de referência para crianças, jovens, família, casal, saúde e proteção, com fins de controle. Porém, tais narrativas são marcadas pelas resistências que se multiplicavam tanto quanto as técnicas de disciplina.

Os conselheiros também eram alvo de vigilância e fiscalização pelos operadores do direito ligados à defesa de direitos de crianças e jovens; pelos familiares das crianças e jovens atendidos; por trabalhadores sociais diversos; e pelos próprios pares. As decisões dos conselheiros eram, em geral, resultado de conflitos e embates de forças entre os mesmos como marca das discordâncias a respeito de que ação efetuar frente às situações que recebiam por meio das notificações. Por exemplo, um conselheiro não queria anotar e registrar detalhes de um atendimento para preservar a criança e/ou jovem dos efeitos da produção de um dossiê, no entanto, outro conselheiro o ameaçava de representação porque entendia este ato como negligência frente às atribuições relacionadas à função exercida. Um conselheiro tinha uma visão marcada por sua trajetória de estudos e vinculações políticas, econômicas, sociais e culturais e os outros conselheiros, respectivamente, o que gerava uma rede fina e dinâmica de forças em deslocamento, constituindo ora lutas e discordâncias ora alianças e composições.

Deste modo, as práticas dos conselheiros faziam parte de um jogo de intrigas em que os seus corpos eram atravessados por relações de poder assim como os corpos que deveriam vigiar e disciplinar também. As resistências não eram exteriores às relações de poder disparadas pelas tecnologias disciplinares, tanto as práticas de escolas, de estabelecimentos de saúde, das famílias de crianças e jovens e de seus vizinhos quanto às ações efetuadas pelos conselheiros agenciavam a composição de um imenso dispositivo de gestão do desvio e fuga do mesmo pela via das dissidências.

 

Referências

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1 De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os conselheiros são escolhidos para uma gestão de três anos podendo ser reconduzidos por apenas mais um período.

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