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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.27 São Paulo dez. 2008

 

O psicólogo e o seu fazer na educação: uma crítica que já não é mais bem-vinda

 

The psychologist and its work in the education: a critic that already is not welcome anymore

 

El psicólogo y su que hacer en la educación: una crítica que ya no es más bienvenida

 

 

Rita de Cássia Vieira

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Departamento de Ciências Aplicadas a Educação. Avenida Antonio Carlos, 6627 - Pampulha Cep 31270-900 - Belo Horizonte, MG - Brasil Telefone: (31) 34996370

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo avaliar o trabalho do psicólogo no âmbito da Educação, tendo como referências as críticas que lhe têm sido feitas. Refletindo sobre essa atuação no contexto brasileiro, considera-se que, embora em casos já relatados pela literatura crítica, a psicologia possa efetivamente ter contribuído para justificar processos de exclusão educacional ou social, a atuação do psicólogo não é monolítica. Conclui-se observando que é possível que seu trabalho possa ter o efeito contrário e contribuir para a inclusão escolar e social de grupos desfavorecidos, quando inspirado em perspectivas teóricas que enfatizem a gênese social e cultural dos fenômenos psicológicos.

Palavras-chave: psicologia e educação; atuação do psicólogo; críticas.


ABSTRACT

This article aims to evaluate the work of the psychologist in the field of Education vis-à-vis the current critique to which it has been submitted. Reflecting about this work in brazilian context, one consider that, although in cases already documented in the literature psychology may have contributed for educational and social exclusion, the work of the psychologist is far from being undifferentiated. One concluded that it is possible that they work may, in some cases, follow the opposite direction and contribute for the educational and social inclusion of disadvantaged students, when inspired by theoretical perspectives emphasizing the social and cultural genesis of psychological phenomena.

Keywords: psychology and education; psychologist's work; criticism


RESUMEN

El presente artículo tiene por objetivo avalar el trabajo del psicólogo en el ámbito de la Educación, teniendo como referencia las críticas que le han sido hechas. Reflexionando acerca de esa actuación en el contexto brasileño, considerase que, aunque en los casos ya relatados por la literatura crítica, la psicología posiblemente há contribuido para justificar procesos de exclusión educativa o social, la actuación de lo psicólogo no es monolítica. Concluimos observando que es posible que su trabajo pueda causar el efecto contrario y contribuir para la inclusión escolar y social de grupos desfavorecidos, cuando inspirado em perspectivas teóricas que enfaticen lá gênesis social y cultural de los fenómenos psicológicos.

Palavras clave: psicología y educación; actuación del psicólogo; críticas.


 

 

No Brasil, os anos 1970 foram marcados pela emergência de um movimento acadêmico-científico que questionava pressupostos da ciência vigentes naquele momento. Paradigmas como o racionalismo, a objetividade, a universalidade, a neutralidade, a evidência empírica começaram a ser alvos de tentativas de desconstrução e foram, por conseguinte, colocados em xeque.

Na psicologia da educação, esse movimento refletiu-se de forma a gerar uma tensão que, por sua vez, configurou-se no surgimento de uma corrente de estudiosos questionando a formação e, por conseqüência e principalmente, a atuação do psicólogo no âmbito educacional. Segundo essa corrente crítica, nos primórdios do estabelecimento da vinculação entre a psicologia e a educação, o psicólogo inserido nos contextos educativos/escolares, ao utilizar a psicometria enquanto recurso central de sua prática, acabou por conformá-la como uma atuação predominantemente clínica, curativa, voltada para a tentativa de solução dos problemas de aprendizagem apresentados pelo aluno, visto nesse momento como fonte principal das dificuldades surgidas no decorrer do processo educativo. Em outras palavras, um trabalho considerado como limitado, reducionista, voltado para o atendimento de interesses individuais e distanciado das questões sociais, econômicas, políticas e ideológicas que permeiam as instituições educativas e o próprio processo educativo. É fundamental evidenciar, no entanto, que essa postura mais tradicional e com foco num modelo de atuação direcionado para o individual em detrimento do coletivo não foi exclusividade da área educacional, mas sim da psicologia como um todo, conforme aponta Bock (1999) em um trabalho mo qual descreve como se deu a construção da profissão de psicólogo no Brasil, especialmente a partir da década de 1980.

Na origem e evolução dessa tendência crítica, foram determinantes dois trabalhos produzidos por Souza Patto: Psicologia e ideologia - uma introdução crítica à Psicologia Escolar, de 1984, e A produção do fracasso escolar, de 1991. Concordando com as idéias expostas por essa autora nessas duas obras, vários estudiosos a ela se seguiram e também expuseram os seus pontos de vista, fazendo com que a crítica ao psicólogo e à sua prática no campo da educação adquirisse proporções nacionais. Ainda mais recentemente, é a mesma Souza Patto (2000) que, numa visão que considero bastante ácida e generalizante, afirma que ainda nos dias de hoje o psicólogo que atua na educação vem participando ativamente com seu trabalho dos processos de exclusão social. Segundo ela, quando a escola encaminha crianças a um psicólogo para psicodiagnóstico, apenas dois caminhos se abrem como possibilidades: num deles, essa criança - caso seja de uma classe mais favorecida economicamente - receberá um laudo que forçosamente a levará a se adaptar a uma escola burguesa. No outro extremo, caso a criança seja proveniente de uma classe social baixa, o laudo será conclusivamente um documento que a conduzirá à exclusão escolar. Essa exclusão da escola, ainda segundo a autora, seria justificada cientificamente pelo psicólogo examinador, que "com pretensa isenção e objetividade" e apoiando-se em "explicações que ignoram a sua dimensão política e se esgotam no plano das diferenças individuais de capacidade", assumiria no seu trabalho posturas preconceituosas, desrespeitosas, estigmatizantes e que só contribuiriam para o incremento da desigualdade e exclusão sociais (Souza Patto, 2000, p. 65).

Esse movimento crítico que, como se pôde notar, adquiriu fôlego e proeminência ao longo de toda a década de 1980 e, desde então, vem ecoando até a atualidade, foi a primeira razão que me levou a interrogar sobre minha condição de ser-estar psicóloga a serviço da educação. Durante praticamente uma década, mais precisamente entre os anos de 1995 e 2004, trabalhei como psicóloga no Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (Coltec/UFMG), uma escola de ensino médio e técnico. Nesse espaço, pude conviver diariamente com os desafios impostos ao psicólogo que opta pela educação e, de início, foi esse meu cotidiano de psicóloga numa escola pública que favoreceu minhas reflexões sobre a crítica acima exposta e questões a ela correlatas. Paralelamente a essa atuação direta na escola, também fui conselheira no Conselho Regional de Psicologia (CRP-04/MG) e membro da Comissão de Psicologia e Educação na gestão 2001-2004. Ao desenvolver meu trabalho como conselheira nessa instituição, tive a oportunidade única de conhecer, divulgar e ver divulgadas diversas experiências de outros colegas que atuavam no âmbito educacional. Observando que essas práticas faziam a diferença nos contextos em que elas ocorriam, e totalmente envolvida com o que acontecia na área da psicologia educacional/escolar e com o meu trabalho, fui percebendo que o ideário, as posturas e as práticas da grande maioria de meus colegas de profissão já não eram as mesmas e, a partir daí, comecei a me perguntar se essa crítica ainda era pertinente.

Verifiquei também que muitos profissionais que se dedicam à área da psicologia educacional/escolar, em várias partes do mundo, já alcançaram um reconhecimento social legítimo (Oakland, 1996). Já no Brasil, a situação é diversa e adversa. Numa perspectiva histórica, é sabido que, por aqui, o desenvolvimento da psicologia no campo educacional foi tão acentuado e de tão marcada relevância que foi a partir dele que "ampliou-se para outras áreas, como a organização do trabalho e o atendimento clínico" (Antunes, 2001, p. 63). Nos dias de hoje, esse campo de atuação vem se desenvolvendo assustadoramente, com a literatura especializada mostrando que, nas últimas décadas, cresce cada vez mais o número de profissionais que vêm se utilizando dos recursos da psicologia dentro dos diversos contextos educacionais (Weschler, 1996). E mais: os resultados de uma recente pesquisa de opinião pública realizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que tinha como objetivo, dentre outros, traçar um perfil do psicólogo brasileiro, evidenciaram uma continuidade do âmbito educacional como um dos que mais empregam psicólogos (CFP, 2004). Existe, ainda, a constatação de indícios de um movimento apontando para o reconhecimento, por parte das comunidades escolares, da necessidade da inserção de psicólogos nas instituições de ensino em geral e mesmo em outros ambientes onde se desenrolam processos educativos, como, por exemplo, centros de saúde, associações comunitárias, creches, etc. Durante minha atuação como conselheira no CRP/04, pude observar pessoalmente os indícios desse movimento, reforçado consideravelmente pela apresentação de projetos de lei que, muito provavelmente, ainda se encontram em tramitação no Congresso Federal, propondo a contratação de psicólogos para atuarem nas esferas educacionais municipal, estadual e federal.

Entretanto, e mesmo a despeito de todos esses elementos que informam sobre um crescimento quase que vertiginoso desse campo, pode-se dizer que os psicólogos brasileiros da área têm se deparado constantemente com inúmeras dificuldades na sua trajetória rumo à profissionalização e ao reconhecimento social. Além disso, esses profissionais vêm se dando conta, na atualidade, da perda desse espaço fundamental de atuação - o espaço educativo -, e, como se isso não bastasse, ainda têm que lidar com críticas pouco consistentes e superficiais advindas de outros segmentos profissionais da educação que desconhecem a história da psicologia e, mais especificamente, a história da psicologia da educação.

Pensando nessa situação de maneira mais global, algumas perguntas me ocorreram: o psicólogo envolvido com a educação e a escola semprese "esqueceu" dos determinantes sociais e históricos de sua práxis? Será que ele sempretrabalhou no sentido de consolidar práticas reducionistas e desvinculadas de sua realidade social? Em que momentos isso ocorreu e por que ocorreu? Essa conjuntura predomina até hoje? O que a determinou?

Não desconheço que, mesmo nos dias de hoje, ainda existem práticas que podem ser enquadradas no rol dessa crítica a que me refiro. No entanto, acredito que elas constituem fenômenos isolados. São parte de uma história que já foi contada e recontada muitas vezes e que, até por esse motivo, perdeu a sua atualidade. Num determinado momento, essa crítica foi benéfica pelo fato de haver gerado um movimento reflexivo bastante produtivo. Agora, no entanto, penso que ela tem sido danosa e lesiva, não só ao exercício profissional dos psicólogos envolvidos com a educação, mas também à psicologia enquanto ciência e profissão. Penso que chegamos num momento em que é mais que necessário superar esse discurso. É preciso divulgar e reforçar práticas diferenciadas que vêm sendo realizadas pelos profissionais da área.

Particularmente no que diz respeito aos contextos escolares, estudos indicam que existe uma relação direta entre as primeiras tentativas de se aplicar o conhecimento psicológico à educação com a expansão dos sistemas de ensino de massa (Campos, 2003). No final do século XIX e início do século XX, a Europa e os Estados Unidos da América do Norte acreditavam na psicologia como promotora de muitos benefícios e ainda na sua capacidade de ser de grande utilidade para o ajustamento das pessoas às escolas e ao trabalho, crença essa que ganhou espaço também por aqui. Que fique claro, então, que a primeira solicitação de auxílio à psicologia veio da educação e o atendimento a essa demanda foi levado a termo na época com o trabalho de desenvolvimento dos testes psicológicos. É importante deixar marcado, ainda, que essa aplicação da psicologia no campo educacional, assim como outras, "eram conduzidas por profissionais com treino científico rigoroso" (Gomes, 2003, p. 4).

Em síntese, o psicólogo inseriu-se num campo que o solicitava, que legitimava sua competência e lhe abria novas e únicas possibilidades de trabalho e que, no final das contas, poderia lhe render reconhecimento social, fator importante e necessário para qualquer profissão em qualquer fase de desenvolvimento que ela se encontre. Não é possível pensar um saber científico e um profissional à deriva de seu tempo, com todas as implicações que disso decorrem. O psicólogo, como qualquer outro profissional, é um ser social, mergulhado num tempo social que lhe é devido e que orienta suas ações. Naquele instante, cabia a esse profissional, então, executar a tarefa que lhe era pedida, ou seja, a ele cabia diagnosticar, dizer quem era normal ou não, quem era educável ou não.

E para qualificar melhor essa controvérsia, penso que, primeiramente, é preciso resgatar alguns aspectos relativos à história da interlocução entre a psicologia e a educação, pois poderão clarificar o fio argumentativo que vem sendo exposto.

Nos últimos anos do século XIX e início do século XX, a Europa e os Estados Unidos da América do Norte conviviam com a crença de que a psicologia poderia promover muitos benefícios e ser de extrema utilidade para o ajustamento das pessoas às escolas e ao trabalho. A educação era considerada central no desenvolvimento das sociedades modernas. No Brasil ocorria o mesmo, e a filosofia educacional proposta pelos governantes privilegiava os recém-surgidos instrumentais de medida psicológicos - os testes -, tomando-os como subsídios importantes para nortear suas ações. Para Gebrim (1996), havia, por parte dos governantes, um interesse em retirar do processo educacional sua dimensão política e social. De maneira geral, pode-se dizer que a psicologia contribuiu com esse projeto educacional vigente naquele momento e, ainda, estabeleceu para si um espaço adequado para desenvolver-se enquanto ciência e profissão. Entretanto, essa não é a única história a ser contada, mas apenas parte dela.

Aqui, acho imprescindível apontar também uma questão correlata, que é a que se refere ao processo de profissionalização do psicólogo brasileiro, pois ela se encontra no núcleo dessa discussão. Para isso, vou me apoiar inicialmente num artigo produzido por Pereira e Neto (2003). Nesse trabalho, os autores utilizam-se do referencial teórico da sociologia das profissões para analisar esse processo e apresentar uma proposta de periodização para a história dessa profissão, dividindo-a em três momentos: pré-profissional, de profissionalização e profissional.

No período pré-profissional, que vai de 1883 a 1890, ainda não existia a profissão de psicólogo no Brasil e sim pessoas interessadas em temas e questões relativas à psicologia. No cenário científico internacional, o positivismo ganha destaque e a psicologia busca, com os meios que tem ao seu dispor naquele momento, aproximar-se das ciências naturais, no intuito de se afirmar como ciência. "O interesse pelos 'desvios' e 'erros' individuais passou a atrair maior interesse do que as descrições generalizadas do comportamento humano" (ibid., p. 5), tendência essa que tem como expressão marcante o advento dos testes de inteligência. Já o segundo período, o de profissionalização (1890-1906-1975), tem como marcas a institucionalização da prática psicológica, assim como a regulamentação da profissão juntamente com a criação de seus dispositivos formais. Esse momento, caracterizado também pela incorporação da psicologia ao currículo dos cursos de pedagogia e pela implantação dos laboratórios experimentais, é de suma importância para a consolidação profissional: aqui se concretiza efetivamente o vínculo psicologia-educação e, por conseqüência, um rico espaço de trabalho se revela para o psicólogo. É nesse momento que ele se insere efetivamente no mercado da educação, compartilhando-o inicialmente com os médicos e assentando nele as bases de uma atuação em dois pilares de sustentação que viriam lhe render inúmeras críticas: a psicometria e a clínica individual. Os autores observam ainda que, em termos de mercado de trabalho, a partir das décadas de 1940 e 1950, o psicólogo passou a atuar, cada vez mais, nas áreas de educação e trabalho. Outro momento importante nasceu com o Decreto nº. 53.464, de 21/01/1964, que dispunha sobre a profissão de psicólogo, o que deu a esse profissional

[...] a possibilidade de trabalhar em diferentes campos, como a clínica, a escola, o trabalho, a área acadêmica e a jurídica. Isto representou um amplo leque de alternativas no mercado de trabalho, que gerou, ao mesmo tempo, disputas com outras atividades profissionais em diferentes ramos do conhecimento e atividade. (Pereira e Neto, 2003, p. 9)

O terceiro momento (1975 em diante) marcou a organização e o estabelecimento da profissão. O aspecto político afirmou-se como a rubrica dessa ocasião e, sem dúvida, foi determinante e marcante para a consolidação da psicologia:

Na história do Brasil, esse período foi marcado pela repressão da ditadura militar. Segundo Langenbach (1988), esse contexto favoreceu o crescimento da profissão: "num primeiro momento, o sistema autoritário aqui instalado e a concomitante expansão e o enriquecimento da classe média criaram condições propícias para o surgimento de uma demanda do novo profissional - o psicoterapeuta. A própria ausência de canais de participação - o silenciar sendo uma palavra de ordem - tornava atraente e válido este tipo de espaço. Tal validade era reafirmada pelo próprio Estado, por serem consideradas as práticas em psicologia provavelmente pouco ameaçadoras, já que, privilegiando a esfera íntima e privada, nela ficariam camufladas complexas questões sociais. (Pereira e Neto, 2003, p. 10).

Esse texto que, enfatizo, tem como referencial teórico a sociologia das profissões, mais do que propor uma periodização diferente das conhecidas (como, por exemplo, a apresentada por Pessotti em 1988), focaliza as implicações do fato de uma profissão encontrar-se inserida numa sociedade e num tempo que determinaram sua emergência e o viés de seu trajetória.

E é esse mesmo tempo que se configura como um elemento indispensável na análise que ora encaminho e, para tal, resgato primeiramente a etimologia de um termo da língua portuguesa que me será de muita utilidade nesse percurso. É o termo anacronismo, do grego anachronismós, que significa "ato de pôr algo fora do tempo correspondente".1 Do meu ponto de vista, olhar e pensar o presente com os olhos no passado revela uma postura conservadora, um pensamento cristalizado, anacrônico. É preciso estar atento para o fato de que uma ciência, uma profissão e todo um ideário científico-profissional encontram-se num lugar social, num tempo que lhes é determinado e que lhes determina, conseqüentemente, paradigmas e formas de agir condizentes com aquele tempo histórico. Voltando o foco para esse contexto mais global, é fundamental relembrar que a psicologia se constituiu como ciência a partir de sua inserção num tipo de pensamento hegemônico - o da racionalidade - que deu origem e sustentou a ciência moderna desde o século XVI e se estendeu às ciências humanas e sociais no século XIX. Naquele momento, só era aceito como cientificamente relevante aquilo que pudesse ser quantificado, medido, provado através de números. Esse foi, sem dúvida, o cenário adequado e ideal ao surgimento e à expansão da psicometria no início do século XX. Por sua vez, o olhar clínico que focalizava apenas o sujeito também era perfeito para se inserir nesse cenário que se descortinava para a nova ciência da psicologia, já que ele simplificava, prognosticava e permitia diagnósticos amparados em recursos e crenças que, também por seu turno, eram aceitos pela grande maioria da comunidade científica.

Naquele momento, e até mesmo na história mais recente da psicologia e da educação brasileiras, certas atitudes e posturas profissionais eram impossíveis de serem pensadas e, mesmo assim, o foram, ainda que em dimensões mais particularizadas. Para exemplificar essa minha assertiva, cito apenas os reconhecidos trabalhos desenvolvidos por Antipoff e Poppovic,2 propostas pioneiras e inovadoras que se pautaram por uma compreensão abrangente, diferenciada e socialmente contextualizada do fenômeno de educar, sob o ponto de vista da psicologia. E é oportuno citar esses exemplos do passado pelo simples fato de que, conforme aponta a vertente crítica, foi lá que tudo começou. Confirmando essa minha visão, cito uma recente pesquisa histórica, ainda em andamento (Sass, 2005): esse estudo enfoca a inserção da psicologia no campo educacional brasileiro e tem como hipótese a assertiva de que, no final do século XIX, já havia uma preocupação da psicologia em se constituir como uma ciência social e não meramente biológica. A análise destaca o fato de que a psicologia social não é uma especialização tardia da psicologia geral, mas, sobretudo, uma resultante de lutas entre tendências científicas e políticas que se enfrentam desde o início do século XX.

Pensando nessa direção, afirmo que esse questionamento encerra em si um caráter generalizante e, por isso mesmo, preconceituoso. Além disso, entendo também que a crítica opera com uma imagem errônea, que sugere uma classe de psicólogos trabalhando toda ela de forma unificada, pasteurizada, uniforme. Isso, por sua vez, aponta para uma realidade que não existe, já que fala de um fenômeno universal, único, indiferenciado. É, portanto, uma crítica que ultrapassou os seus limites no momento em que, sendo uma interpretação, passou a ser tomada como uma verdade.

Outro fator importante quando se examina a atuação do psicólogo na educação diz respeito à demanda que lhe é dirigida pelos contextos educativos e escolares. Construída com base em representações fragmentadas acerca da ciência psicológica e do fazer psicológico, essa demanda se constitui num verdadeiro desafio a ser enfrentado por esse profissional quando o assunto diz respeito à mudança de práticas. Na maioria das vezes, as exigências dirigidas ao psicólogo e advindas dos contextos educativos e escolares assentam-se em expectativas irreais e desinformadas sobre a ação desse profissional. Assim, muitas vezes o psicólogo é visto nesses espaços como dotado de um poder quase mágico e que lhe possibilitará intervir - sempre (?) - com sucesso na solução dos conflitos presentes nas relações interpessoais da comunidade escolar, assim como no encaminhamento das dificuldades surgidas ao longo do intrincado processo educativo. Em minha própria trajetória num ambiente escolar, pude comprovar que essa situação ainda persiste, e a vi também confirmada na exposição de vários autores que já tiveram a oportunidade de narrar suas experiências e reflexões (Guimarães e Vieira, 1997, 2000; Cabral e Sawaia, 2001; Correa, Lima e Araújo, 2001; Santos, 2002).

De maneira explícita, as instituições educativas exigem do psicólogo, quase que única e exclusivamente, que gerencie o chamado "fracasso escolar". Isso, a meu ver, constitui-se num ardil que deve merecer total atenção desse profissional e, nesse ponto, é preciso que o psicólogo se encontre preparado para perceber o que há de implícito nessa solicitação que lhe é dirigida. É preciso que ele saiba que o fenômeno educativo é extremamente amplo e complexo e, sendo assim, sua compreensão só pode ser vista e pensada numa perspectiva de ação conjunta e compartilhada, em que a psicologia se apresenta como apenas umsaber em meio a tantos outros. Nessa direção, a qualificação profissional merece ser cuidada e necessita da atenção especial, não apenas dos psicólogos ligados à educação, mas de toda a categoria.

Penso que também não posso deixar de me referir à crítica desmedida e desinformada aos testes de inteligência, já que esses, juntamente com a postura clínica adotada pelo psicólogo nos contextos educacionais, constituem-se nos dois principais eixos de sustentação da crítica relacionada como problemática dessa investigação. Esses instrumentos podem constituir grandes aliados ao trabalho do psicólogo, em qualquer ambiente em que ele esteja atuando. Para isso, é necessário que esse profissional se capacite para usá-los, o que, no Brasil, parece não acontecer na maioria das vezes. Apenas a título de exemplo, um estudo atual, realizado nacionalmente (Oliveira, Noronha, Dantas e Santarém, 2005) evidencia que, em sua maior parte, psicólogos que fazem uso de testes psicológicos com fins de diagnóstico e intervenção, fazem-no em dissonância com a abordagem adotada, sem compreender que

[...] instrumentos de medida são construídos à luz de uma teoria psicológica e que seus resultados serão analisados tendo essa teoria como referência. Em vista disso, parece ficar claro que os instrumentos projetivos têm como base as teorias psicanalíticas, que, por sua vez, em muito se diferenciam dos conceitos anunciados pela abordagem comportamental/cognitiva. Causa-nos estranheza que profissionais possam fazer uso de um instrumento sem comungar, ou mais enfaticamente, sendo contrário aos pressupostos teóricos usados em sua construção. Diante do exposto, restam duas questões, a saber: os psicólogos desconhecem as teorias de construção de recursos de avaliação ou não compreendem que há uma extensa incoerência em sua atuação profissional. (Oliveira, Noronha, Dantas e Santarém, 2005, p. 11)

Isso posto, uma questão salta aos olhos: por que não repensar e empreender esforços no sentido de qualificar efetivamente o psicólogo para o trabalho com testes? Mesmo que incipientes, algumas iniciativas referentes à atualização, construção e adequação de instrumentos apropriados à realidade brasileira vêm sendo desenvolvidas, mas isso não surtirá os efeitos desejados se não se dispuser de profissionais qualificados que saibam lidar com esses instrumentos.

Assim, mais do que criticar ações e pensamentos já ocorridos e, por isso mesmo, impossíveis de serem modificados, é preciso que se pense em estratégias que possibilitem ao psicólogo resgatar por inteiro o espaço educacional como um locusfundamental para seu desenvolvimento científico e profissional. Dentro dessa perspectiva, novas práticas, condizentes com os tempos atuais e suas demandas, estão surgindo e merecem ser divulgadas como contraponto ao pensamento crítico marcante até o momento. Essas práticas falam por si e indicam caminhos nos quais os psicólogos podem contribuir efetivamente para que a escola cumpra a sua função social. O vínculo entre a psicologia e a educação deve ser tomado pelo psicólogo como uma relação afetiva que se pretende manter, com todos os seus percalços, dificuldades, sonhos, limites e possibilidades. Como tal, essa relação deve ser cuidada, construída continuamente (porque não dizer diariamente?), repensada, analisada e discutida por ambas as partes. Nesse sentido, não apenas os psicólogos pioneiros podem servir de exemplos a serem apontados, mas já hoje se encontram experiências marcantes e bem-sucedidas que demonstram as muitas possibilidades de se implementarem estratégias de atuação condizentes com o tempo presente e com a realidade social do nosso país.

É imprescindível também que se ultrapasse a visão reducionista que restringe a ação do psicólogo na educação apenas a uma psicologia escolar. Como adverte Maraschin (2003, p. 239), o campo da educação é pleno de possibilidades e "por que privilegiar um espaço-tempo socioeducativo específico se existem inúmeros outros agenciamentos educacionais ativos no social?". Ainda nessa direção, é preciso enfatizar um aspecto apontado por Meira e Antunes (2003) e que diz respeito ao entendimento do que realmente seja o campo da disciplina aqui em questão, como se configurando em uma

[...] área de estudo da Psicologia e de atuação/formação profissional do psicólogo que tem no contexto educacional - escolar ou extra-escolar, mas a ele relacionado - o foco de sua atenção, e na revisão crítica dos conhecimentos acumulados pela Psicologia como ciência, pela Pedagogia e Filosofia da Educação, a possibilidade de contribuir para a superação das indefinições teórico-práticas que ainda se colocam nas relações entre Psicologia e Educação. (Meira e Antunes, 2003, p. 11)

Outro elemento importante colocado por essas autoras diz respeito ao local de trabalho do psicólogo. Ressaltando que o que importa é o compromisso teórico e prático desse profissional com as questões da escola, elas afirmam que

[...] o melhor lugar para o psicólogo escolar é o lugar possível, seja dentro ou fora de uma instituição, desde que ele se coloque dentro da educação e assuma um compromisso teórico e prático com as questões da escola, já que independente do espaço profissional que possa estar ocupando, ela deve se constituir no foco principal de sua reflexão, ou seja, é do trabalho que se desenvolve em seu interior que emergem as grandes questões para as quais deve buscar tanto os recursos explicativos, quanto os recursos metodológicos que possam orientar sua ação. (Meira e Antunes, 2003, p. 12)

Em linhas gerais, penso que é esse o cenário que se apresenta nesse debate ainda tão atual sobre o fazer do psicólogo na/para a educação. No entanto, reafirmo mais uma vez que cabe a esse mesmo psicólogo transformar essa crítica ao seu exercício em reflexões e ações que o levem a resgatar para si e para a psicologia um espaço de atuação e produção de conhecimento que, no passado, foi-lhe precioso e ainda o é na atualidade!

 

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Wechsler, S.M. (org.) (1996). Psicologia escolar: pesquisa, formação e prática. Campinas, SP, Alínea.         [ Links ]

 

 

1 Verbete consultado no Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
2 A psicóloga e educadora russa Helena Antipoff (1892-1974) foi pioneira no estabelecimento e na consolidação da psicologia no estado de Minas Gerais e no Brasil e deixou como legado uma extensa obra que ainda hoje vem sendo objeto de descoberta e estudo. Já a educadora Ana Maria Poppovic (1928-1983), apesar de ter como país de origem a Argentina, naturalizou-se brasileira e por aqui construiu toda a sua vida. Formou-se em pedagogia, mas logo após se graduar inicia um vínculo expressivo com a psicologia, especialmente com a psicologia clínica e a psicologia da educação. Foi fundadora da Sociedade Pestalozzi em São Paulo (1953) para atendimento a crianças excepcionais e também da Clínica de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica daquele estado (1959). Nessa última instituição, deixou as marcas de seu pioneirismo no atendimento aberto ao público, sempre realizado numa perspectiva psicossocial e multidisciplinar. O fato de realizar simultaneamente as atividades de pesquisadora e psicóloga clínica conferiu a Poppovic uma sensibilidade especial que lhe permitiu compreender e caracterizar os problemas com os quais se defrontava na prática do atendimento clínico e que também eram objeto de sua atividade docente. Isso lhe possibilitou desenvolver uma intensa e diversificada gama de atividades, tais como publicações, palestras, conferências dentro e fora do Brasil, adaptações de testes para a realidade brasileira, etc. Sua trajetória profissional foi marcada pela preocupação de colocar a psicologia a serviço da sociedade, buscando, particularmente, melhorias no campo educacional (Pimentel, 1997).

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