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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.30 São Paulo jun. 2010

 

Psicanálise e educação: análise das práticas pedagógicas e formação do professor

 

Psychoanalysis and education: analysis of pedagogical practices and teacher training

 

Psicoanálisis y educación: análisis de prácticas pedagógicas y formación del profesor

 

 

Regina Lucia Sucupira Pedroza

Universidade de Brasília. E-mail: rpedroza@unb.br

 

 


RESUMO

A relação entre psicanálise e educação vem possibilitando, desde que Freud demonstrou seu interesse pela pedagogia, melhor compreensão dos educadores sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente. A premissa fundamental da psicanálise é a diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente. Este trabalho objetiva apresentar possibilidades de atuações clínicas na formação do professor a partir da análise das práticas pedagógicas, visando oferecer condições aos professores para o enfrentamento de problemas do cotidiano escolar. Os grupos clínicos de análise das práticas docentes abordam a questão do cuidado e do terapêutico estabelecendo o grupo e a prática profissional como objetos de trabalho psicanalítico. Eles ocorrem no estabelecimento de ensino ou no contexto de formação continuada ou pessoal.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; análise das práticas docentes.


ABSTRACT

The relation between psychoanalysis and education has existed since Freud demonstrated his concern for pedagogy. This allowed educators to have a better understanding of child and adolescent development. The fundamental psychoanalytical premise is the differentiation of the conscious and the unconscious. The goal of this work is to present possibilities for clinical practice on teacher training based on an analysis of pedagogical practices, in such a way as to allow teachers to face every day school issues. The clinical groups which analyze teaching practices address issues of care and therapeutics, establishing the group and the professional practice as psychoanalytic objects. They take place in the education establishment or in the context of continued education or personal development.

Keywords: Psychoanalysis; Education; analysis of pedagogical practices.


RESUMEN

La relación entre el psicoanálisis y la educación viene, desde que Freud demostró interés por la pedagogía, posibilitando una mejor comprensión de los educadores sobre el desarrollo de los niños y de los adolescentes. La premisa fundamental del psicoanálisis es la diferenciación del psíquico en consciente e inconsciente. Este trabajo tiene como objetivo presentar posibilidades de actividades clínicas en la formación del profesor a partir del análisis de prácticas pedagógicas destinadas a ofrecer condiciones a los profesores para el afrontamiento de problemas del cotidiano de la escuela. Los grupos clínicos de análisis de las practicas docentes abordan la cuestión del cuidado y del terapéutico estableciendo el grupo y la práctica profesional como objetos de trabajo psicoanalítico. Ellos ocurren en el establecimiento de la enseñanza o en el contexto de la formación continuada o personal.

Palabras clave: Psicoanálisis; Educación; análisis de las prácticas pedagógicas.


 

 

A relação entre psicanálise e educação vem de longa data, desde que Freud demonstrou seu interesse pela pedagogia na intenção de possibilitar uma melhor compreensão por parte dos educadores sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente (FREUD, 1913). Os professores exercem grande influência sobre a criança por estarem investidos da relação afetiva primitivamente dirigida ao pai. Os sentimentos de admiração e de respeito são transferidos do pai para o professor, assim como a "ambivalência afetiva" que reside na antítese amor-ódio.

A transferência, primeiramente tratada na relação médico-paciente, foi vista por Freud como se dando também nas mais diversas relações estabelecidas pelo indivíduo na sua vida. Freud (1912a) fala de "clichês" ou "séries" psíquicas formadas pelo indivíduo a partir de vivências infantis e que determinam a modalidade especial de sua vida erótica. Dessa maneira, podemos dizer que o professor é objeto de transferência e está ligado a "protótipos", principalmente à imagem do pai, mas que podem também estabelecer-se conforme a imagem da mãe, do irmão, etc., ou seja, as pessoas estimadas ou respeitadas.

Freud, no artigo intitulado Prefácio à "juventude desorientada", de Aichhorn, de 1925, reconhece que as aplicações da psicanálise na teoria e prática da educação infantil despertaram grande interesse, trazendo importantes colaboradores para sua teoria. Em substituição ao estudo da neurose, com o qual a psicanálise iniciou seus estudos, a criança tornou-se o principal objeto de investigação para vários psicanalistas. Ainda que a contribuição pessoal de Freud tenha sido escassa no campo da pedagogia, ele considera o grande valor social do trabalho de seus colegas pedagogos (FREUD, 1925).

Mesmo sem nos ter deixado escrito algum sobre a educação, podemos dizer que, em toda a obra de Freud, há uma preocupação constante com as questões desse campo, no sentido de que a psicanálise, nascendo de uma prática clínica, constrói um corpo teórico fundamentando uma nova concepção de mundo e de homem, como ser histórico, social e cultural, e tenta compreender como se dá a inserção desse homem na cultura. Em diferentes artigos Totem e tabu (1912b), O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na civilização (1929), Freud expõe sua visão evolutiva tanto do indivíduo como da cultura, considerando o desenvolvimento do homem numa interação com o meio social.

O problema da educação sempre esteve presente no pensamento de Freud, sendo o texto de 1927, O futuro de uma ilusão, considerado como testamento pedagógico. A pressão que a sociedade exerce sobre o indivíduo desde sua infância, a partir da educação, faz com que a criança se conforme a uma realidade, que, é, de regra, a de dissimular sua investigação e seu conhecimento de tudo o que possa se relacionar à sexualidade. A finalidade da educação é a instauração do princípio de realidade, ou seja, é permitir ao indivíduo, submetido ao princípio do prazer, a passagem de pura satisfação das pulsões para um universo simbólico, que faz referência a uma lei, a lei da castração. A entrada no universo simbólico se dá pela linguagem. É pela mediação da palavra, à qual, desde sempre a criança encontra-se submetida, que é possível a simbolização das relações afetivas (ARMANDO, 1974).

É essa condição de ser submetido à linguagem que diferencia o homem dos outros animais, caracterizando-o em sua especificidade ao mesmo tempo em que permite a constituição de sua subjetividade. A psicanálise, ao colocar a linguagem como marca do humano, possibilita uma aproximação com as questões da educação, principalmente no que diz respeito à importância que o professor deve atribuir àquilo que a criança diz, bem como ao que é dito a ela.

Outra importante contribuição da psicanálise para a educação é encontrada em autores que foram influenciados também pela releitura lacaniana da obra de Freud. Mannoni (1973) observa que, na relação professor-aluno, é criada uma barreira entre o um professor "que sabe tudo" e um aluno "que não sabe nada", que garante e contém um conjunto de proteções e resistências. A pedagogia funciona como um drama que repete muitas vezes situações da família. Na escola, o desejo de saber do aluno se confronta com o desejo do professor, que está ligado a um ideal pedagógico colocado por ele mesmo, desde o início, e que se interdita ao mesmo tempo em que se mostra ao aluno. O professor espera do aluno um saber que lhe falta, e o aluno, por sua vez, se defende com medo de se ver frustrado no produto do seu trabalho. O aluno se encontra numa relação de poder, sujeito a um desejo inconsciente do professor, que pode chegar a ser bloqueador.

Para Mauco (1979), o educador age sobre a criança muito mais no nível do inconsciente do que do consciente. Ele não age apenas pelo que diz ou pelo que faz, mas sim pelo que é. As relações afetivas acontecem de formas variadas. Cada um procura satisfazer seus desejos inconscientes. Porém, a criança, por ser mais fraca psiquicamente, com um eu que deve se construir à imagem dos adultos em sua volta, é particularmente atingida pelos desejos inconscientes de seus educadores.

Sendo assim, podemos afirmar que não basta à criança possuir uma inteligência e uma saúde física satisfatórias para se desenvolver e se afirmar na aprendizagem escolar. É necessário também que tenha uma educação afetiva que lhe permita desenvolver uma sensibilidade relacional com os outros, podendo se servir de suas capacidades físicas e intelectuais. A escola é um meio de grande importância para o desenvolvimento das relações afetivas da criança com os adultos, assim como também com as outras crianças da mesma idade. É também na escola que a criança deve aprender a se relacionar com o outro em diálogo permanente, se constituindo em trocas com todos aqueles a sua volta (PEDROZA, 1993).

A criança, ao chegar à escola, traz consigo uma experiência relacional vivida com a família, com um inconsciente com todas as suas frustrações e recalcamentos de seu drama interior, com seus desejos, sua história, se exprimindo pela sua simbolização. A pedagogia, portanto, poderia procurar se articular com essa expressão simbólica do aluno a partir das múltiplas situações oferecidas pelo grupo escolar e suas diferentes formas de atividade, oferecendo à criança oportunidade de verbalizar suas tensões. É dessa maneira que a psicanálise pode ajudar o educador, permitindo a possibilidade de uma compreensão em profundidade do sujeito, no que ele tem de mais pessoal e de mais íntimo. Para tal, é necessário que a escola não mantenha os alunos numa relação de submissão passiva à autoridade do professor. Este deve lembrar que as dificuldades encontradas pelo aluno, na escola, podem ser de origem afetiva. A relação professor-aluno depende, em grande medida, da maturidade afetiva do professor. Se esta lhe permite resolver suas próprias dificuldades, ele poderá ajudar a criança a viver e a resolver as suas.

Mauco (1979) ainda acrescenta que, ao reagir afetivamente - "eles me põem doida" - o adulto perde sua superioridade e a autoridade de sua função educativa, que exige, ao mesmo tempo, "muito apego para compreender a criança, e muito desapego para não reagir subjetivamente" (p. 167). É numa relação de diálogo e de escuta que a educação será uma relação de respeito à pessoa da criança. Respeito e compreensão ao seu comportamento e às etapas de seu desenvolvimento psíquico e afetivo.

Para Bigeault e Terrier (1978), a contribuição da psicanálise para a educação é um fato, como também o é para outros campos, como a arte e a publicidade, por exemplo. Segundo esses autores, a psicanálise deu uma nova visão para os seguidores de Rousseau, os do movimento da Escola Nova, passando pela psicologia social. No entanto, ao mesmo tempo em que essas duas posições parecem se aproximar, há entre elas um grande abismo. O que falta nessas pedagogias modernas é considerar questões de grande importância para a psicanálise, tais como a frustração, a agressividade, o conflito e o Édipo, como constituintes da estruturação da personalidade. Por outro lado, elas se aproximam, principalmente, ao acentuar a importância da energia no interior do sujeito e sua relação com o mundo exterior.

A premissa fundamental da psicanálise é a diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente. E sua grande utilidade é, sem dúvida alguma, a tentativa de trazer o inconsciente até o consciente levando as repressões e preenchendo as lacunas mnêmicas. Pois, como Freud (1915) nos disse, seu objetivo era de traduzir em teoria os resultados da observação, sem nenhuma obrigação de sua parte de alcançar, numa primeira tentativa, uma teoria completa que se recomende por sua simplicidade. Para a psicanálise toda e qualquer ligação do sujeito com o mundo significa investimento afetivo. Dessa maneira, são de grande importância para a educação os resultados das investigações psicanalíticas, que reivindicam para os processos afetivos a primazia na vida psíquica.

A revista de pedagogia psicanalítica, Zeitschrift für Psychoanlytische Pädagogik, que circulou entre 1926 e 1937, reuniu vários textos de célebres psicanalistas como A. Freud, S. Ferenczi, A. Balint e de outros terapeutas infantis e de adultos, de educadores e de professores. Estes se mostraram entusiasmados em relação às descobertas da psicanálise e buscaram se apoiar nos seus ensinamentos modificando seus olhares sobre eles mesmos e sobre suas práticas a partir de uma formação clínica ou de uma análise pessoal.

Nessa época, surge a formação do tipo clínico criada por M. Balint com os "grupos de análise da personalidade profissional" que eram destinados inicialmente aos trabalhadores sociais e aos médicos e que passaram depois a outras profissões, como a dos professores. Dessa forma, a psicanálise deixa de ser apenas direcionada a um tratamento com o objetivo da cura individual e passa a atuar em outros contextos, ocupando-se da elaboração psíquica.

Este trabalho tem como objetivo apresentar possibilidades de atuações clínicas na formação do professor a partir da escuta clínica de orientação psicanalítica das práticas pedagógicas, visando oferecer condições aos professores no campo da educação para o enfrentamento de problemas e situações do seu dia a dia na escola. Pois, pensar a formação do professor é também pensar a formação da pessoa do professor. Significa compreender os processos a partir dos quais esses profissionais passam a se constituir como sujeitos sociais da construção de uma proposta de educação. Ser professor não é apenas ser um mediador entre o aluno e o conhecimento já construído socialmente. Ser professor é ser agente do processo de construção do conhecimento que leva à formação de sua personalidade e a dos alunos envolvidos nessa relação. Tal formação exige um compromisso constante de pensar as práticas educativas para que sejam formativas dos sujeitos. O grande desafio na formação do professor é, pois, entendê-lo para poder prepará-lo para assumir sua condição de sujeito de saber que deve atuar em sala de aula.

O interesse pela temática da formação do professor no que concerne sua formação pessoal, neste trabalho, é o de desenvolver recursos de personalidade que permitam o enfrentamento das dificuldades encontradas na escola, sobretudo no que diz respeito ao conhecimento de si mesmo, de sua história pessoal, de suas lembranças de quando era criança e de seus afetos. Muitos são os trabalhos nesta área a salientar que o ato de ensinar não é apenas um simples gesto técnico com o qual o professor poderia ter um controle perfeito de tudo aquilo acontece em sala de aula (CIFALI, 2007).

O lugar da sala de aula constitui um encontro de vários sujeitos com múltiplas ocasiões de transferência. A relação entre o sujeito do inconsciente e o sujeito social deve ser tratada a partir de diferentes abordagens complementares (Psicologia, Psicanálise, Antropologia) que permitam a elaboração de uma real articulação entre um pensamento crítico e a ação profissional. É preciso, portanto, construir espaços de escuta que possibilitem o desvelamento do inconsciente dos sujeitos envolvidos na relação professor-aluno. A escuta clínica pode permitir a tomada de consciência e o deslocamento psíquico na subjetividade profissional que tem efeitos de diminuição de angústia. Por isso, acreditamos ser necessário desenvolver subsídios para uma formação do professor que lhe permita criar uma prática pedagógica que atenda suas necessidades e as dos alunos como sujeitos em desenvolvimento.

 

Formação do professor

O tema da formação do professor tem ocupado lugar de destaque nas pesquisas desenvolvidas na área de educação. As discussões a respeito desse tema versam sobre a tentativa de buscar soluções para os problemas que assolam a escolaridade básica brasileira. Muitas vezes, procura-se encontrar um fator que seja a causa dessa situação, achando-se que, solucionando o mesmo, o problema estará sanado. A visão tem sido de que há um mal e que, uma vez diagnosticado, há a possibilidade de uma solução (PEDROZA, 2003).

Não se trata de identificar, ou mesmo isolar uma causa. Os problemas encontrados na educação decorrem de vários fatores inter-relacionados numa complexidade que vai além dos detectados pela academia. Muitas vezes o professor tem sido apontado como o responsável pelas mazelas do fracasso escolar e muito tem sido proposto para alterar essa situação. No entanto, acreditamos que a qualidade da educação depende necessariamente da qualidade do professor.

A formação docente, além de estar ligada aos aspectos científicos e epistemológicos, também é um problema político, à medida que os professores são formados para atuar em uma escola que por sua vez exerce determinadas funções na sociedade. Também se torna um problema filosófico, uma vez que toda educação e toda formação de educadores remetem a um determinado conceito de ser humano e das suas relações com o mundo (ESTRELA, 2002).

As pesquisas na área de formação de professores têm se voltado para a promoção de mudança na prática pedagógica a partir da indagação sobre a natureza do trabalho docente (BOLÍVAR, 2002; ALMEIDA, 2006; AGUIAR e ALMEIDA, 2008). Enfatizam-se idéias e práticas de uma formação reflexiva do professor visando uma compreensão do significado de sua atividade pedagógica. Há uma preocupação em construir novas relações de trabalho na escola, em aprofundar o estudo teórico-metodológico e criar uma unidade entre teoria e prática, valorizando-se mais as experiências do professor e do trabalho coletivo.

Os trabalhos também indicam o interesse da formação de um profissional comprometido e responsável no que diz respeito ao acadêmico e ao pessoal. Um profissional capaz de dar conta de sua realidade com a finalidade de transformá-la, a partir de processos avaliativos de sua ação. Tal formação implica uma mudança de atitude diante da realidade e uma maneira diferente de perceber e atuar no mundo. É preciso levar em consideração as relações sociais que pressionam e perpassam o cotidiano escolar e se concretizam na prática pedagógica, influenciando na forma como os professores atuam na escola. A prática pedagógica é permeada por jogos de poder que muitas vezes fazem da sala de aula um espaço de cumprimento de ordens, de disciplina, e deixa de ser o espaço de produção de conhecimentos e de formação de sujeitos (NÓVOA, 1999; IMBERT, 2003; PRIOSTE, 2006).

Uma coletânea de artigos assinados por influentes pensadores na questão da formação que destacam o professor como profissional reflexivo foi reunida por Nóvoa (1992) em seu livro Os professores e a sua formação. Segundo esse autor, a formação de professores tem ignorado o desenvolvimento pessoal, confundindo "formar" e "formar-se". A lógica da atividade educativa nem sempre coincide com as dinâmicas próprias da formação que deixa de ter como eixo de referência o desenvolvimento profissional dos professores, tanto da perspectiva individual como da coletiva.

A formação do professor foi sempre influenciada pela abordagem da ciência positivista que tem se mostrado simplista e limitada para a prática social e para a ação do profissional que é chamado a enfrentar problemas de grande complexidade e incertezas no cenário escolar. A dimensão técnica da ação pedagógica reduziu a profissão docente a um conjunto de competências e de capacidades (PEDROZA, 2003).

Os professores têm enfrentado grandes dificuldades no sistema educacional principalmente quando se deparam com o surgimento de novos programas e currículos. As novas exigências requerem tempo para uma adaptação e acentuam as pressões institucionais, políticas e pedagógicas (CURI, 2007).

A partir dos anos 80, de acordo com Nóvoa (1995), a literatura pedagógica foi invadida por estudos sobre a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e autobiografias docentes e o desenvolvimento pessoal dos professores. Esses estudos recolocam os professores no centro dos debates educativos e das problemáticas da pesquisa. Eles ajudam na compreensão da situação em que se encontram os docentes e, desse modo, podem propor ações de formação condizentes com suas necessidades. A utilização das abordagens biográficas dá voz aos próprios professores através de suas "histórias de vida". É importante que se escute a pessoa a quem se destina a formação.

A importância da prática reflexiva e de outros estudos na escola está ligada à necessidade da criação de um espaço onde o professor possa ser ouvido. Um espaço onde encontre um apoio para realizar essa reflexão. Não somos conscientes de todos os nossos atos e precisamos de um outro que nos faça ver nossas ações. A reflexão que propomos não é a mesma que cada pessoa realiza de modo espontâneo sobre sua prática. A proposta é de uma análise metódica para tomada de consciência de conteúdos do inconsciente que se interpõem na prática pedagógica.

A partir de grupos de discussão é possível realizar uma análise dos nossos atos e, coletivamente, pensar estratégias de soluções para os problemas que envolvem a prática pedagógica. Nesse sentido, faz-se necessário uma escuta clínica para assegurar aos professores uma ajuda, pois que não é fácil admitir nossas falhas, nossas angústias e medo de perder o respeito dos outros ao nos depararmos com a realidade de um desempenho "ruim". É preciso conduzir um procedimento clínico que seja capaz de desenvolver uma análise de práticas evitando receios de magoar colegas ou formas grosseiras. O professor deve estar seguro da sua prática e de si mesmo, como educador e adulto, para que, ao se sentir ameaçado não ameace, e possa ocupar o lugar de autoridade, de detentor do conhecimento e, nesta condição, ser reconhecido pelo aluno (PEDROZA, 1993; ALMEIDA, 2003; CIFALI, 2001).

 

A Psicanálise e a formação do professor

Desde a proposta de Freud de fazer da Psicologia uma ciência natural, a contribuição da Psicanálise se dá com o estudo do comportamento em função da história individual, em termos de acontecer humano. Com Freud, um fato psicológico adquiriu movimento, integrou-se em um processo porque se relacionou com os outros fatos psicológicos da mesma pessoa, no plano atual e histórico. O que temos em Freud é a valorização da natureza ativa dos processos inconscientes, sua qualidade dinâmica, influenciando e modelando o pensamento e a ação conscientes (PEDROZA e ALMEIDA, 1994).

Encontra-se no texto de Freud, de 1913, Múltiplo interesse da Psicanálise, a apresentação da pedagogia como uma das ciências não psicológicas de interesse da Psicanálise. Essa contribuição está principalmente na descoberta dos desejos, dos produtos mentais e dos processos evolutivos da infância e fundamentalmente na importância dada à sexualidade em suas manifestações somáticas e anímicas. Com a Psicanálise, o sujeito retoma seu próprio discurso, torna-se autor de sua palavra e do seu desejo no confronto com a realidade. O sujeito é visto como um ser histórico, social e cultural, dotado de inconsciente e desejos que influenciam e modelam o pensamento e a ação conscientes. Sendo assim, em contraposição a outras propostas de formação de professor que se constituem praticamente em técnicas de intervenção da realidade, fornecendo um instrumental teórico e prático, visando principalmente à adaptação ao contexto da escola, surge a Psicanálise, através do seu conceito de inconsciente, como um saber transgressor ao ideal das ciências experimentais.

A tentativa de Anna Freud (1958) de aplicação da psicanálise à pedagogia é na contribuição de uma visão crítica das normas pedagógicas existentes, por ser a doutrina da pulsão. Ela amplia o conhecimento que o pedagogo tem do homem, aguçando seu entendimento sobre as relações complexas entre a criança e os adultos que a educam. A tarefa de uma professora baseada nos fatos revelados pela análise consistiria em achar um equilíbrio entre os extremos do consentimento das satisfações do indivíduo e a proibição da manifestação da pulsão. O que ela defendia era uma análise pedagógica.

A importância da escola para a criança faz com que todo seu cotidiano gire em função da mesma. Nesse sentido, é preciso destacar seu papel e o do professor para com a criança. A criança ao entrar na escola, transfere para a figura do professor o respeito e a veneração antes dirigidos ao pai, de maneira a tratá-lo como se fosse seu pai (FREUD, 1914). A transferência acontece de forma natural na relação educador-educando, assim como nas outras relações humanas.

É a partir da noção de transferência que podemos identificar o pensamento dinâmico em Freud (1912a), quando ele discute a possibilidade de evolução e mudança nos quadros clínicos. A transferência funciona como motor do tratamento permitindo, por meio da fala, a reorganização do modo de funcionamento psíquico. Num sentido mais amplo, o tratamento implica a concepção de uma direção de mudança de personalidade.

O educador baseado em idéias psicanalíticas tem que renunciar à atividade excessivamente programada, obsessivamente controlada. Ele pode, a partir da Psicanálise, obter uma ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa. O que for ensinado será confrontado com a subjetividade de cada um, o que permitirá o pensamento renovador, a criação e a geração de novos conhecimentos (KUPFER, 1989; 2001; LEGNANI & ALMEIDA, 2002; PECHBERTY, 2003).

Tradicionalmente, a formação do professor passa por disciplinas curriculares que consideram a aprendizagem como um processo puramente consciente e como produto da inteligência, desenvolvendo apenas os componentes cognitivos do indivíduo, negligenciando ou negando os afetivos e desconsiderando os processos inconscientes. É preciso enfatizar a necessidade de uma formação que parta da própria experiência pedagógica, buscando-se uma análise dos conflitos em sala de aula. As relações entre professor e alunos envolvem aspectos do inconsciente que interferem no processo ensino-aprendizagem (CROISY, 2006; NETTER, 2006; BLANCHARD-LAVILLE & NADOT, 2000).

A contribuição da Psicanálise, cujas origens como teoria encontram-se na prática clínica, certamente não é a de uma aplicabilidade direta às situações educativas. No entanto, sua contribuição está na possibilidade de trazer ao consciente, a partir da análise das práticas educativas, conteúdos do inconsciente do professor de forma a elucidar o porquê de algumas ações em sala de aula. Portanto, a importância da Psicanálise na formação dos educadores não está no sentido de lhes proporcionar mais uma técnica pedagógica, desenvolvida a partir de uma teoria desvinculada da prática, mas, sim, de remeter-lhes a um constante questionamento sobre sua prática pedagógica e sua relação com o educando.

Se concebermos a aprendizagem acontecendo numa relação com o outro, é necessário cultivar nessa relação o respeito mútuo, o reconhecimento das necessidades, buscando a expressão dos desejos e encontrando prazer no processo ensino-aprendizagem. Não nos cabe, simplesmente, dizer ao professor como deve fazer sua prática. É necessário propiciar-lhe as condições para que ele desenvolva uma sensibilidade que lhe permita assumir, diante das situações educativas, todas as suas contradições, buscando a construção do novo. O professor não deve se anular como sujeito desejante ou impedir que o aluno deseje. O reconhecimento mútuo é que permitirá, ao professor, ensinar verdadeiramente e, ao aluno, desejar aprender e construir o saber.

 

Grupos clínicos de análise de práticas pedagógicas

Os grupos clínicos de análise das práticas docentes abordam a questão do cuidado e do terapêutico estabelecendo o grupo e a prática profissional como objetos de um trabalho psicanalítico possível. Segundo descrição feita por Pechberty (2007), os grupos têm lugar no estabelecimento de ensino, ou fora, no contexto de formação continuada ou pessoal. A abordagem clínica de orientação psicanalítica leva em consideração prioritariamente os processos psíquicos, na sua maioria inconscientes, nas situações profissionais estudadas além dos conceitos de transferência e realidade psíquica (BLANCHARD-LAVILLE, 2005).

Os grupos de análise apresentados neste trabalho se caracterizam pela influência dos grupos criados por M. Balint, psicanalista médico que nos anos 1950, em Londres, aplicou no campo do trabalho social um dispositivo de formação de médicos generalistas (BALINT, 1996). O grupo clínico Balint é o exemplo mais característico de orientação psicanalítica sobre as práticas de educadores. Constitui-se em um dispositivo clínico que reúne profissionais de uma mesma categoria, com um coordenador, analisado ou analista que conduzirá a reflexão no grupo. Nesse quadro clínico preciso, cada participante apresenta um relato sobre um momento de sua prática pedagógica conflitante ao qual o grupo vai reagir. Esse relato pode dizer respeito à relação com um aluno, com a classe ou com a instituição e deve seguir o propósito metodológico da associação livre.

As situações trazidas remetem-se ao íntimo de cada um. Os desvios psíquicos que emergem abrem para falas e sentidos inesperados e afetos passados e presentes. Cada um se reconhece de modo diferente a partir do que emergiu do inconsciente graças ao "espelho" do grupo. O relato profissional e a palavra pessoal tornam-se significantes de outra realidade psíquica que se repete e age na experiência da classe, das atitudes e decisões tomadas no cotidiano. Ao falar sobre sua prática pedagógica esta se torna concreta diferenciando-se daquela que a pessoa desejaria ter e que por diferentes razões desconhece porque não faz.

O papel do coordenador do grupo é de identificar no discurso dos participantes os significantes específicos utilizados, os lapsos, as associações pessoais de cada um, nos limites de sua própria escuta, com a esperança de abrir ao outro possibilidades de novos sentidos. Ele não ensina e nem dá opiniões porque não há uma verdade a ser alcançada. Os participantes do grupo são vistos como seres autônomos que farão suas próprias análises com a ajuda do coordenador e o conjunto do grupo. A atitude do coordenador é deliberadamente e sistematicamente empática e calorosa por levar em consideração a dimensão de culpabilidade e de perseguição dentro da instituição escolar. As palavras do discurso são entendidas no nível dos efeitos que elas produzem e não a partir do sentido propriamente do que veiculam.

 

Considerações finais

A análise das práticas educativas de base psicanalítica ajuda a reflexão e permite ao professor que ele faça suas escolhas de atuação em sala de aula. Apesar de partir de um posicionamento teórico, a análise feita no grupo não impõe a aplicação de uma determinada teoria na prática do professor. Ela apenas possibilita a reflexão e a conscientização do porquê de uma determinada prática, que corresponderia a uma teoria ou a um fazer imposto por um imaginário. Da mesma forma, o coordenador também se apóia em saberes teóricos, saberes de referência que guiam o processo de análise, assim como o domínio de sua concepção de sujeito, da realidade psicológica e institucional.

No entanto, o que está realmente em jogo, e é a própria finalidade da análise das práticas, é o saber fazer e não o saber teórico de cada um do grupo. O grupo passa a ser um lugar de transformação da queixa uma vez que o professor pode falar sem medo de julgamentos e conta com a compreensão que a psicanálise oferece. O objetivo do grupo Balint não é solucionar de imediato os problemas dos professores, mas fazer com que possam discernir o que é concreto na relação educativa daquilo que lhe faz sofrer psiquicamente. No entanto, o autor ressalta que esses grupos não tratam da história singular de cada um, mas da sua posição profissional e as ressonâncias pessoais em jogo nos grupos.

O trabalho é terapêutico no sentido do acompanhamento clínico e na noção de terapia profissional visando à tomada de consciência e de deslocamento psíquico na subjetividade profissional que tem efeitos de diminuição da angústia. Segundo Pecheberty (2007), na relação professor-aluno, o conflito psíquico está presente em cada um e incide sobre o desvio entre o ideal e a realidade, e recobre experiências diferentes de dissociação ou de ligação entre o si-docente de hoje e o si-aluno inconsciente sempre ativo. Os grupos clínicos elaboram os traços do aluno imaginário que cada um foi e, eventualmente, fragmentos da história familiar que fazem laço com a situação profissional presente.

A Psicanálise por ser uma teoria que privilegia a escuta da palavra e da relação do sujeito com o saber tem em comum com a educação a preocupação da pessoa na sua singularidade, uma vez que provoca investimentos e emoções que permitem análises. A Psicanálise nos inspira antes de tudo um método de trabalho que exige que se faça um permanente retorno a si mesmo. Torna-se mais fácil ao professor de compreender sua prática pedagógica quando ele pode ser escutado por alguém de fora da situação pedagógica. No grupo de análise é possível uma modificação mesmo que limitada, mas extremamente importante da personalidade do professor que permite entender a relação com seus alunos em sala de aula (BALINT, 1996).

 

Referências

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