SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número3140 anos do PED: Evidência de uma missão (bem) comprida/cumpridaPós-Graduação em educação no Brasil: a marca dos 40 anos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: psicologia da educação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.31 São Paulo ago. 2010

 

40 anos formando docentes e pesquisadores: a contribuição do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP

 

40 years of formation of educators and researchers in the graduate level: the contribution of the Program of Educational Psychology of PUC-SP - Brazil

 

40 años de formación de educadores e investigadores en el nivel de postgrado: la contribución del Programa de Psicología de la Educación de PUC-SP - Brasil

 

 

Ana Maria Saul

Professora titular da PUC-SP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo. E-mail: anasaul@uol.com.br

 

 


RESUMO

O texto apresenta reflexões sobre a experiência que tive como aluna da primeira turma de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP. Como minha formação, em nível de Doutorado, também se deu nesse Programa, alongo-me em considerações que retratam aspectos desse período de estudos. Tenho a intenção de destacar as contribuições desse Programa para minha trajetória de docente e pesquisadora e evidenciar o quanto minha tese de Doutoramento, que apresenta a criação de um novo paradigma de avaliação - a Avaliação Emancipatória - tem tido repercussões importantes.

Palavras-chave: Formação de docentes e pesquisadores; pós-graduação; Psicologia da Educação; avaliação emancipatória.


ABSTRACT

In this text I present reflections about the experience that I had as a student in the first Masters Course of the Post Graduate Program of Psychology of Education at the Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). As I also completed my Doctorate level qualifications within this Program I offer extensive considerations that outline aspects of this experience. I intend to highlight the contributions that this Program had in relation to my trajectory as a professor and a researcher and to demonstrate how my Doctorate thesis, which presents the creation of a new paradigm of evaluation, Emancipatory Evaluation, had important repercussions.

Keywords: Training of educators and researchers; graduate school; Psychology of Education; emancipatory evaluation.


RESUMEN

El artículo presenta reflexiones sobre la experiencia que tuve como estudiante en la primera clase del Programa de Maestría de Posgrado en Psicología de la Educación de la PUC / SP. Como mi formación, el doctorado, también se llevó a cabo en este programa, al detenerse en consideraciones que muestran aspectos de la formación. Tengo la intención de resaltar las contribuciones de este programa para mi carrera como profesor e investigador, y demostrar cómo mi tesis doctoral, que presenta la creación de un nuevo paradigma de la evaluación ha tenido importantes repercusiones.

Palabras clave: Formación de educadores e investigadores; escuela de posgrado; psicología de la educación; evaluación emancipadora


 

 

Primeiras palavras

Minha trajetória acadêmica e profissional se mescla com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde cursei graduação e pós-graduação e na qual sou professora, desde 1970, até hoje.

Como fiz parte da primeira turma que ingressou no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação e defendi a primeira Dissertação de Mestrado, tive o honroso convite para compor a mesa redonda de comemoração acadêmica dos 40 anos desse Programa.

Esse texto surgiu a partir do depoimento que fiz naquele momento.

Como comemorar também é lembrar, em minha exposição evoquei algumas lembranças sobre o funcionamento do curso, condições de trabalho dos mestrandos e processos de ensino desenvolvidos por alguns professores. A partir dessas memórias, pude confrontar diferenças de condições em que se dava o trabalho acadêmico, naquele momento, com aquelas presentes no momento atual, para os alunos da pós-graduação.

Além disso, em meu depoimento, quis destacar as contribuições da Pós-Graduação em Psicologia da Educação em minha trajetória acadêmica e profissional. Nesse texto vou me alongar um pouco e dizer da contribuição que esse Programa teve na minha formação, também, em nível de doutorado.

Antes, porém, quero registrar o meu agradecimento aos professores desse Programa e colegas que estiveram comigo nesse percurso.

Em especial, o meu reconhecimento e a minha homenagem ao professor Joel Martins, pela sua coragem, ousadia e protagonismo em relação à pós-graduação da PUC-SP e do Brasil. Em particular, por ter despertado em mim, desde a escola Normal, no Instituto de Educação Padre Anchieta, onde foi meu diretor e meu professor, o gosto pela vida acadêmica. Devo a ele, também, muito da formação que recebi, como pesquisadora, e muitas das oportunidades que ele me proporcionou em minha carreira docente. O professor Joel Martins foi um dos encontros felizes que tive em minha trajetória acadêmica e profissional.

 

Revivendo algumas lembranças

No final dos anos 60, quando eu terminava o curso de Pedagogia, fui convidada a integrar o grupo de assistentes (assim era chamado) do professor Joel, na condição de auxiliares de ensino. As aulas eram planejadas por esse grupo e discutidas com o professor Joel. Lembro-me ainda, bastante bem, do primeiro tema que preparamos para os alunos do primeiro ano e que se denominava: Como Estudar. Essa experiência em docência no ensino superior foi fundamental para a minha formação, ao longo de minha carreira.

A política de formação de docentes na Universidade, sob a orientação/supervisão de professores experientes, resultou na qualificação de professores que integraram o quadro de professores. Muitos deles se mantém até hoje na PUC-SP e são docentes dos Programas de Pós-Graduação, com produção acadêmica reconhecida em todo o território nacional. Lamentavelmente, essa política se extinguiu, ao longo do tempo.

Nessa ocasião, o professor Joel estava criando e organizando a Pós Graduação da PUC-SP e propôs ao grupo de assistentes que ingressassem na Pós-Graduação. Tenho presente, ainda, que fui chamada para uma entrevista com os professores Joel Martins e José Pastore, na qual me indagavam sobre os meus propósitos acadêmicos e sobre os compromissos que eu estaria disposta a assumir. Fui aprovada nessa entrevista e ingressei no Programa, no primeiro semestre de 1969.

A estrutura do Programa, à época, era composta por sete disciplinas básicas: Lógica do Conhecimento Científico, Psicologia Educacional Avançada, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Aprendizagem, Estatística Aplicada, Metodologia da Pesquisa e Problemas Brasileiros, totalizando 22 créditos. As disciplinas optativas totalizavam seis créditos. Nessa primeira edição do curso, foram oferecidas as seguintes disciplinas optativas: Fundamentos Psicológicos do Currículo e Medidas Educacionais. Completavam os 34 créditos exigidos para a conclusão do Programa, os seis créditos de Preparação de tese.

Como o curso estava sendo organizado, o professor Joel Martins foi o docente das disciplinas relacionadas à área da Psicologia, sua especialidade. A Metodologia da Pesquisa foi ministrada pela professora Menga Ludke; o professor José Pastore assumiu o curso de Lógica do Conhecimento Científico; para a disciplina de Estatística Aplicada, foi convidado o professor José Severo de Camargo Pereira. A professora Carmem Lúcia Barroso foi responsável pela disciplina de Medidas Educacionais.

Considero que tive muito bons professores. Todos eles demonstravam seriedade de propósitos, compromisso com a formação do pesquisador, em nível de pós-graduação, muita competência e experiência nas áreas de conhecimento nas quais atuavam.

As suas práticas evidenciavam estilos diferentes que refletiam as suas concepções do que deveria/estava sendo a pós-graduação, que mal se formava, e as suas visões do que era o ensino no âmbito da formação do pesquisador, nesse nível de ensino.

Algumas lembranças e algumas curiosidades ainda povoam a minha memória.

O professor Joel Martins preparava as aulas e trazia sempre um roteiro/resumo escrito para distribuir aos alunos. Sua aula consistia na análise e discussão desse roteiro. O texto era lido e comentado com os alunos. O grupo pequeno de alunos permitia um contato muito próximo com o professor. As aulas eram dadas na sala do professor Joel, no subsolo do prédio sede da PUC (prédio velho).

Quando a Pós-Graduação foi instalada no prédio novo da PUC, tendo o professor Joel como presidente da Pós-Graduação, as aulas passaram a ser ministradas na sala da Presidência, em torno à mesa de reuniões - que é a mesa que está hoje em uma das salas do quinto andar. O professor Joel emprestava, para alunos que se interessavam, alguns livros de sua biblioteca pessoal. Eu levei, em alguns fins de semana, livros para ler em minha casa. Eram livros muitos bem conservados, que rescendiam a almíscar, indicando o manuseio e a preferência do professor por determinadas fragrâncias.

A exigência da língua inglesa era grande. O principal autor indicado na disciplina Lógica do Conhecimento Científico foi Ernest Nagel e, evidentemente, à época, seus textos estavam em inglês. Para a primeira prova, o professor Pastore distribuiu aos alunos uma cópia do texto "The importance of love", com a proposta de que ele fosse lido, compreendido e formalizado. Não foi fácil!!

Os livros indicados pelo professor Joel, com raras exceções, estavam todos em inglês.

O professor Severo, docente de Estatística, era temido pelos alunos. Sua competência e 'fama', em relação à exigência, se estendia desde a USP, onde era professor titular. Na minha turma, os alunos foram surpreendidos com uma das provas. Os alunos se prepararam para responder questões de estatística e tiveram que resolver um teste de inteligência. E compôs a nota! No decorrer dos semestres, vários alunos abandonaram o curso de pós-graduação porque não conseguiam ser aprovados em Estatística.

A minha dissertação, orientada pelo professor Joel Martins, e defendida em novembro de 1971, teve o seguinte título: Modelo da pesquisa em ação aplicada ao treinamento de professores. Tive liberdade para escolher o tema da dissertação, um tema que gostava, originado em práticas que eu desenvolvia em escolas de primeiro grau (nomenclatura da época). Ao interesse de formação de professores aliei a metodologia da pesquisa em ação, conforme modelo desenvolvido por Stephen Corey, nos Estados Unidos. Pareceu-me importante o trabalho que o autor desenvolvia com os professores, em um centro, na Universidade de Maryland. Os problemas que os professores encontravam em suas práticas eram analisados por meio de um método de solução de problemas, a partir de hipóteses explicativas. Essas eram testadas, com o concurso da teoria e, uma vez validadas, o grupo de professores partia para a elaboração de hipóteses de ação, que significavam ações para solucionar os problemas encontrados em sala de aula. Gostei dessa proposta do autor e a estudei com profundidade. Minha pesquisa resultou em uma proposta que denominei 'Modelo da Pesquisa em Ação para o Treinamento de Professores' e que fazia relações com as deliberações da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). O período em que cursei o Mestrado (1969-1971) foram os anos em que o Brasil viveu os anos mais duros da ditadura militar.

De acordo com Lopez e Mota:

(...) Em outubro de 1969, a cúpula militar escolheu o novo presidente do Brasil, Emilio Garrastazu Medici, da "linha dura" e também gaúcho, que se torna, no dia 30 desse mesmo mês, o terceiro presidente militar. Foram os anos mais negros do regime obscurantista instaurado em 1964 (...). (2008, p. 802)

Minha dissertação precisou, portanto, ser "muito bem comportada" do ponto de vista político, ou seja, sem qualquer menção crítica à situação político-social que o Brasil vivia. Do ponto de vista da rigorosidade acadêmica, porém, seguiu à risca o que foi apresentado no manual: Subsídios para a Redação de Dissertação de Mestrado e Tese de Doutoramento, de autoria do professor Joel Martins. Destaco que a revisão bibliográfica precisou incluir, de acordo com o manual e as exigências do orientador, a referência aos artigos publicados nos periódicos mais importantes de Educação e Psicologia, dos últimos dez anos, relacionados ao meu tema de pesquisa. No período em que fiz o Mestrado, essas revistas eram publicadas nos Estados Unidos e na Inglaterra e tiveram que ser consultadas nas bibliotecas da PUC-SP e da Universidade de São Paulo (USP). Lembro que o advento da internet, que hoje facilita a pesquisa de mestrandos e doutorandos, somente se ampliou, no Brasil, em meados da década de 90. Ressalto, também, que, no período em que estive no Mestrado e Doutorado, a opção para a apresentação das produções, aos professores, para não entregá-los manuscritos, era datilografá-los em máquina de escrever mecânica. Para garantir uma melhor apresentação, da dissertação, porém, contratei o trabalho de uma datilógrafa profissional que trabalhava com máquina de escrever elétrica, com esfera - um luxo -, e paguei caro por isso. A impressão foi feita em um mimeógrafo elétrico. Embora com esses melhores recursos disponíveis, à época, considero que a qualidade da impressão não foi boa.

Da banca de defesa de minha dissertação participaram os professores doutores: Joel Martins (orientador), Dermeval Saviani e Maria Amélia Azevedo Goldberg.

Os ganhos em relação à minha formação, como pesquisadora, foram muitos. O Mestrado me abriu muitas portas. Concluí o curso em um momento em que eram poucos os titulados na pós-graduação stricto sensu. Fui convidada para assumir aulas em vários cursos de pós-graduação em instituições de ensino superior no Estado de São Paulo que trabalhavam com o lato sensu, na expectativa de que esses cursos se transformassem em stricto sensu.

Na área da pesquisa, não me faltaram oportunidades: coordenei o setor de pesquisas da Escola Estadual da Lapa e desenvolvi projetos na Fundação Carlos Chagas e em órgãos públicos, como o INEP/MEC.

Em 1975, quando foi criado o Programa de Pós-Graduação em Supervisão e Currículo na PUC-SP, pelo professor Joel Martins, fui convidada a assumir aulas nesse Programa. Os novos desafios e as exigências da docência em Pós-Graduação não me permitiram dar sequência aos estudos logo após ter concluído o Mestrado. Também, os compromissos familiares contribuíram para essa decisão de adiar o Doutorado.

Ingressei no Doutorado no início da década de 80, também no Programa de Psicologia da Educação, com a intenção de aprofundar minha formação como pesquisadora. Quero destacar, de minha trajetória acadêmica nesse nível de ensino, a produção de minha tese que se intitulou: Avaliação Emancipatória: uma proposta democrática para reformulação de um curso de pós-graduação, orientada pela professora doutora Maria Amélia Goldberg.

O contexto político me permitia, agora, elaborar uma tese que construía um paradigma de avaliação democrática apoiado fortemente nos conceitos de conscientização e emancipação, referenciais da matriz de pensamento de Paulo Freire1. Foram os anos da chamada abertura política.

Lopez e Mota assim se manifestam:

(...) Em face ao clamor popular estimulado por instituições da sociedade civil o governo estabelece, em 1981, eleições diretas para todos os cargos executivos, excetuando-se os de presidente e de prefeito das capitais e das áreas de segurança nacional. (...) em fins de 1984 ocorreria a negociação que levou, em 15 de janeiro de 1985, à eleição indireta, pelo Congresso, de Tancredo Neves, um presidente civil . (2008, pp.804-805).

Nesse contexto político pude ter, na banca de defesa de minha tese, o Professor Doutor Paulo Freire, ao lado dos professores doutores: Maria Amélia Goldberg (orientadora), Joel Martins, Maria Laura Barbosa Franco e José Luiz Domingues.

Em minha tese de doutoramento, apresentei um novo paradigma de avaliação, a Avaliação Emancipatória. A literatura educacional registra, pela primeira vez, a denominação "avaliação emancipatória" criada nessa tese de doutorado defendida em 1985 e publicada em 1988.

O novo paradigma foi construído de forma contrastante, isto é, suas características principais - em termos de "enfoque, definição, objetivos, implicações, limitações, contribuições e papel do avaliador" - foram discutidas à luz das características de outros modelos contemporâneos de avaliação de currículo.

O paradigma da avaliação emancipatória, tendo como referências teórico-metodológicas a avaliação democrática, a crítica institucional, a criação coletiva e a pesquisa participante, constituiu-se em matriz praxiológica que descreve, analisa e critica uma dada realidade, visando a transformá-la. Construído, inicialmente, para a avaliação de programas educacionais, tem se revelado como um referencial valioso também para avaliação de programas sociais, além dos educacionais, bem como para a avaliação de políticas públicas.

A avaliação emancipatória tem dois objetivos básicos: iluminar o caminho da transformação e beneficiar as audiências no sentido de torná-las audodeterminadas. O primeiro objetivo indica que essa avaliação está comprometida com o futuro, com o que se pretende transformar, a partir do autoconhecimento crítico do concreto, do real, que possibilita a clarificação de alternativas para a revisão desse real. O segundo objetivo aposta no valor emancipador dessa abordagem, para os agentes que integram um programa. Esse processo pode permitir que o homem, através da consciência crítica, imprima uma direção às suas ações nos contextos em que se situa, de acordo com valores que elege e com os quais se compromete no decurso de sua historicidade.

O conceito de conscientização, conforme definido por Paulo Freire, é a ideia-força desse paradigma, pois o processo de conscientização é a mola mestra de uma pedagogia emancipadora.

De acordo com Freire,

A conscientização é (...) um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se 'des-vela' a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em "estar frente à realidade" assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece (...). A conscientização não está baseada sobre a consciência de um lado, e o mundo de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo. (1980, pp. 26-27).

O suporte epistemológico desta abordagem apóia-se no diálogo, que, segundo Freire (1978, p. 78), é "encontro entre os homens, midiatizado pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu". Todavia, esse diálogo a que Freire se refere requer um pensamento crítico e é também capaz de gerar um pensamento crítico. Esse diálogo é, na proposta de Freire, condição para a comunicação, e esta, condição para uma verdadeira educação.

O paradigma da avaliação emancipatória inclui os conceitos de emancipação, decisão democrática, transformação e crítica educativa. Não é demais lembrar que a avaliação não é uma prática neutra; ao contrário, é comprometida com valores e, portanto, com intencionalidade.

A esse propósito, Paulo Freire (1997) contribui com uma reflexão sobre a intencionalidade da avaliação, apresentada em seu último livro, escrito em vida, Pedagogia da autonomia, saberes necessários à prática docente:

(...) a questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do "que-fazer" de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que sei estimule o falar a como caminho do falar com. (FREIRE, 1997)

Os pressupostos metodológicos desta abordagem são o antidogmatismo, a autenticidade e compromisso, a restituição sistemática, o ritmo e o equilíbrio da ação-reflexão.2

Três momentos caracterizam esta avaliação: a descrição da realidade (o programa que está sendo focalizado), a análise crítica e a criação coletiva; estes momentos não são estanques; por vezes se interpenetram constituindo-se em etapas de um mesmo e articulado movimento.

Os procedimentos de avaliação previstos por este paradigma, que se localiza dentre aqueles de abordagem qualitativa, caracterizam-se por métodos dialógicos e participantes; predomina o uso de entrevistas livres, debates, análise de depoimentos, observação participante e análise documental. Não são desprezados os dados quantitativos, mas a ótica de análise é eminentemente qualitativa.

É possível dizer que o paradigma da avaliação emancipatória está alinhado com o tipo de avaliação que Daniel Stufflebeam3 denominou "avaliação centrada no objetivo transformador" que contempla abordagens de agenda social e de defesa de direitos. Tais abordagens têm intencionalidades de geração de mudança social. As avaliações, nessa perspectiva, comprometem-se com o "direito à informação" para os participantes dos programas que estão sendo avaliados e demais públicos interessados. O acesso à informação é uma condição de partilha de poder e, portanto, uma oportunidade de fortalecimento dos participantes, tanto para a compreensão e julgamento do programa como para a participação na tomada de decisões. Em pesquisas avaliativas conduzidas com essas abordagens, tanto a perspectiva dos participantes como a dos profissionais avaliadores ganham relevo no julgamento dos programas. Desta forma, proporciona-se o engajamento democrático dos participantes do programa no levantamento e interpretação dos achados das avaliações. Essas são avaliações que utilizam, geralmente, uma orientação qualitativa.

No dizer de Stufflebeam, essas abordagens vêm se destacando no campo da avaliação de programas, marcadamente apoiadas em princípios democráticos, de equidade e justiça social.

Com a intenção de transformar o paradigma da avaliação emancipatória em ato, a tese apresenta uma experiência prática de vivência do próprio paradigma, em ação. A pesquisa empírica realizada em minha tese teve como lócus o Programa de Pós-Graduação em Supervisão e Currículo (hoje, Programa de Pós Graduação em Educação: Currículo) da PUC-SP. Escolhi esse lócus de pesquisa porque, no momento em que iniciei meu trabalho de doutorado, nada me inquietava mais do que algumas questões geradas no âmago de minha própria práxis profissional. Em 1983, em seu oitavo ano de funcionamento, ao lado da avaliação proposta pela CAPES, esse Programa experienciou, portanto, um processo de autoavaliação, a partir da proposição e vivência desse novo paradigma na área da avaliação educacional, a avaliação emancipatória.

A Avaliação Emancipatória permitiu, à equipe do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP, engajar-se em um projeto político-pedagógico de transformação de sua prática e destacar-se na produção de conhecimento sobre a área de avaliação, no contexto da pós-graduação brasileira.

Este paradigma foi amplamente discutido em âmbito nacional, na reunião anual da Associação Nacional de Pós Graduação em Educação (ANPEd), em 1987, e essa discussão estimulou a criação de uma comissão de docentes, em nível nacional, que elaborou uma proposta de avaliação para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão do Ministério da Educação, como forma de aprimorar a sistemática de avaliação da Pós-Graduação brasileira, respondendo às análises críticas que se tinha, naquele momento.

O paradigma da avaliação emancipatória tem sido reinventado no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP, possibilitando a criação de uma sistemática de auto-avaliação. Essa sistemática que se cria e se recria, de tempos em tempos, se insere no cotidiano da vida do Programa, e acontece nas reuniões do Colegiado, em articulação com os resultados da avaliação externa desenvolvida pela CAPES, com o propósito de aperfeiçoamento do Curso.

Esse paradigma de avaliação tem inspirado inúmeras pesquisas, figurando em dissertações e teses, em diferentes áreas do conhecimento. Na área da Educação, tem integrado a proposta de sistemas públicos de ensino que fazem opção pela Educação democrática inserindo-se, pois, na pauta de programas de formação de educadores de diferentes níveis de ensino.

Artigos sobre Avaliação Emancipatória integram a pauta de periódicos nacionais e internacionais, com especial destaque para aqueles que circulam em países da América Latina.

Essa tese teve sua primeira publicação em livro, editado pela Cortez Editora, em 1985, com o título: Avaliação Emancipatória: desafio à teoria e prática de avaliação e reformulação de currículo. Com presença constante e recomendada em bibliografias de cursos de graduação, pós-graduação e de concursos para educadores, esse livro foi reeditado várias vezes, encontrando-se, no momento, na oitava edição.

 

Uma palavra final

Carrego comigo, estimulados pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação, a responsabilidade e o gosto pelo trabalho na Pós-Graduação, no espaço da PUC de São Paulo e o compromisso de formar educadores-pesquisadores críticos, na sociedade brasileira. Estiveram sempre comigo, desenvolvidas, a partir desse Programa, a chama da criatividade, a ousadia, a crítica e, sobretudo, a rigorosidade na produção do conhecimento.

 

Referências

Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3.ed. São Paulo, Editora Moraes.         [ Links ]

______. (1997). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São Paulo, Cortez Editora.         [ Links ]

Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra.         [ Links ]

Lopez, A. e Mota, C.G. (2008). História do Brasil: uma interpretação. São Paulo, Editora Senac.         [ Links ]

Martins, J. (1991). Subsídio para redação de dissertação de mestrado e tese de doutorado. 3.ed. São Paulo, Editora Moraes.         [ Links ]

Saul, A. M. (2010). Avaliação emancipatória: desafio à teoria e à prática de avaliação e reformulação de currículo. 8. edição. São Paulo, Cortez Editora.         [ Links ]

Stufflebeam, D. (2001). "Evaluation Models". In: New Directions for Evaluation. San Francisco, California, Jossey Bass, n.89, pp.7-106.         [ Links ]

 

 

1 Paulo Freire foi perseguido pelo regime militar, acusado de ter criado um método de alfabetização subversivo. Exilou-se por 16 anos durante o período da ditadura militar no Brasil. Nesse período esteve em países da América Latina, Europa e África, trabalhando sempre para a emancipação dos oprimidos. Em 2010, foi anistiado pelo governo brasileiro.Assegurou-se, assim, a possibilidade de compreender que a geração de um paradigma é um processo cumulativo de produção de conhecimento no contexto da teoria de avaliação educacional.
2 Estes princípios, coincidentes com os pressupostos da Pesquisa Participante, conforme descritos por Orlando Fals Borda (1980), são expostos no livro Avaliação Emancipatória, de Ana Maria Saul, indicado nas referências bibliográficas deste texto.
3 Daniel Stufflebeam publicou em 2001 um importante estudo que contribui para a construção do "estado do conhecimento" da avaliação, na atualidade. Identificou e analisou vinte e duas diferentes abordagens avaliativas, classificando-as em quatro grandes grupos, de acordo com a natureza temática. Para o delineamento dos padrões de avaliação utilizados nesta meta-avaliação trabalhou com referendo de comitês formados por dezesseis associações profissionais dos Estados Unidos e demais organizações internacionais.

Creative Commons License