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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.34 São Paulo jun. 2012

 

A necessidade da estética e da ética no currículo escolar do século XXI

 

The need of aesthetics and ethics in the school curriculum in the XXI century

 

La necesidad de la estética y de la ética para el currículo escolar en el siglo XXI

 

 

Branca Jurema PonceI; Alexandre SaulII

IProfessora do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP tresponces@uol.com.br
IIDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP Bolsista FAPESP

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo refletir sobre a necessidade da estética e da ética para o currículo escolar do século XXI. Considera limites e possibilidades do processo histórico da educação escolar e busca localizar a instituição escola como um espaço/tempo formador do ser humano. Afirmando a importância da dimensão técnico-científica, aponta a necessidade da inserção da arte e da construção de um olhar estético que amplie as possibilidades de ler e (re)escrever o mundo; e da ética como fundamental para o desenvolvimento de um sujeito livre e autônomo que preserve princípios fundamentais relacionados à construção da vida digna. Defende que a estética e a ética auxiliam na qualificação e na atualização da educação escolar na direção da construção de um mundo com menos desigualdades e injustiças.

Palavras-chave: estética; ética; currículo escolar; século XXI.


ABSTRACT

The article aims to reflect on the need of aesthetics and ethics for the school curriculum in the XXI century. It considers limits and possibilities of the historical process of school education and seeks to locate the school institution as a space/time to form the human being. Affirming the importance of the scientific-technical, the article points out the necessity of arts and the development of an "aesthetic eye" that could broad the possibilities of reading and(re) writing the world; the need of ethics as critical to the development of a free and autonomous subject that preserve the fundamental principles related to the construction of decent life. It argues that aesthetics and ethics assist in qualifying and the upgrade of school education towards building a world with less inequality and injustice.

Keywords: aesthetics; ethics; school curriculum; XXI century.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la necesidad de la estética y de la ética para el currículo escolar en el siglo XXI. Estima los límites y las posibilidads del proceso histórico de la educación escolar y trata de localizar a la institución escolar como un espacio/tiempo formador del ser humano. Afirmando la importancia de los aspectos científico-técnicos, señala la necesidad de la integración de la arte y la construcción de una mirada estética que amplía las posibilidades de la lectura y la (re)escritura del mundo, y la ética como crítica para el desarrollo de un sujeto libre y autónomo que preserva los principios fundamentales relacionados con la construcción de la vida digna. Sostiene que la estética y la ética ayudan en la calificación y la mejora de la educación escolar y en la construcción de un mundo con menos desigualdades y injusticias.

Palabras clave: estética; ética; currículo escolar; siglo XXI.


 

 

A necessidade da estética e da ética no currículo escolar do século XXI

O pressuposto é de que a escola não é a única responsável pela formação dos sujeitos, embora seja a mais cobrada socialmente por isso. Este século, precedido pelo XX, que empreendeu esforços teóricos e práticos - não sem contradições - de contemplar o processo educativo escolar quantitativa e qualitativamente, recebe um legado de avanços e problemas educacionais, que merecem a continuidade do empenho.

"Todo ser humano tem direito à educação". São palavras amplamente aceitas por pessoas das mais diferentes vertentes políticas, filosóficas, sociais. Chega a transformar-se no mito de uma verdade socialmente consensual.

As construções do valor da cultura e da confiança na educação escolar são uma criação cultural que se constituiu numa das aquisições mais importantes das sociedades do século XX e XXI. O direito à educação, especialmente à escolar, embora reconhecido, não está amplamente garantido. Essas construções e o encaminhamento de ações que traduzem o valor da cultura e a crença na educação não são frutos de acasos, são respostas concretas a modelos emergentes de vida. Os ideais da escola pública, universal, gratuita e obrigatória, assim como os princípios do respeito às capacidades individuais, da igualdade de oportunidades e de direitos, também individuais, acompanhados da negação dos privilégios hereditários, são respostas à superação do mundo medieval e constituíram-se em pilares da doutrina liberal, que foi elaborada, em sua origem, por pensadores europeus no contexto da luta da burguesia contra a aristocracia.

Na esteira da nova organização capitalista, constitui-se o direito à educação, que faz parte do ideário contemporâneo. Legitima-se a importância do acesso à educação escolar.

O legado moderno deixou para o mundo contemporâneo idéias e sentimentos, que têm como substrato a crença na razão como elemento humano fundante, possibilidade ímpar a ser desenvolvida e aprimorada por todos e cada um. "Para participar livremente das tomadas de decisões era preciso ser cidadão e este não se constitui sem o desenvolvimento de sua marca registrada: a razão. A propriedade de si expressa-se na efetivação da razão. Seria, pois, preciso desenvolvê-la e estimulá-la, no mínimo combatendo a ignorância" (Cury, 2002, p. 251).

O indivíduo educado é - neste sentido - mais pleno e humano; é culto, bom cidadão, tem a personalidade formada para o bem e é trabalhador; a educação, nessa concepção, é a alavanca para o progresso do indivíduo e, consequentemente, da sociedade. Sobre essas bases construíram-se o sentimento de fé na educação e a escola.

O ideário da razão, por mais que tenha sido criticamente retratado, ainda é um forte elemento constituinte da crença na educação escolar. Nessa se depositam as ideias de reprodução e produção social.

 

Necessidades demandadas pelo novo século

Em um mundo que mudou sem cessar, aprimorou a percepção desse movimento e o acelerou, vem ocorrendo uma radicalização, que resulta em um novo valor, o da mutabilidade constante e ininterrupta. O que importa é o passo seguinte, o pretensamente "novo", a inovação imediata; é decretada a morte da tradição e da história, o passado é ultrapassado até para ser conhecido.

Phrenetikós1, esse mundo supervaloriza a mudança aparente, nega a memória como valor e afirma positivamente a necessidade de rupturas contínuas. Mudanças velozes, sem a percepção dos passos dados, sem o tempo para digeri-las e interpretá-las, geram instabilidades permanentes, adormecimento das sensibilidades e ausência de significados. A sensação experimentada é de que se é tragado por um turbilhão de fatos inexplicados. Os homens e mulheres tornam-se "estrangeiros na esfera na qual eles são chamados a viver" (Forquin, 1993, p. 18).

A mudança se cristaliza, um verdadeiro paradoxo! A verdade, falsa, despe-se e o que se apresenta é um mundo inflexível, que quanto mais se afirma em sua rotina de mutabilidade, mais é impermeável a transformações de fundo. Em um mundo que ainda abriga a crença na educação pela razão e que, ao mesmo tempo, vem oferecendo resistência à transmissão cultural de valores herdados; que sob a aparência de oferecer um eterno e falso novo, não melhora a qualidade da vida; é fundamental a retomada do papel da educação escolar assim como a busca de um currículo que contemple a formação humana em todas suas dimensões.

No imediatismo do presente, a proposta mais tentadora é a de uma educação que instrumentalize de modo rápido, ofereça tecnicamente habilidades leitoras, faça uma breve viagem por conteúdos científicos e tecnológicos de "pronta-entrega" e, por fim, certifique prontamente. Critérios econômicos serão atendidos, a fé na razão será mantida como ideário e as necessidades frenéticas de mudanças e de produção de resultados serão saciadas. O acolhimento de proposta tão simplista é, no mínimo, perigoso.

Um dos elementos fundamentais que compõe o papel social da educação escolar é a instrumentalização dos sujeitos para compreender o mundo. Ora, esse precisa ser compreendido em toda sua complexidade, o que demanda um desenvolvimento pleno dos sujeitos e a compreensão da racionalidade como não apartada das emoções e dos valores éticos, que são instrumentais e constitutivos da existência.

A educação escolar para o século XXI não poderá prescindir da preocupação com o mais profundo do ato de conhecer, o de conhecer-se em coletividade.

 

O caminho significativo do conhecimento

O primeiro olhar humano sobre o mundo o encontrou em fragmentos, não porque ele assim fosse, mas porque a humanidade não dispunha de possibilidades para enxergá-lo de outra forma. Tratava-se de um olhar primeiro, ingênuo, sem a percepção das relações estabelecidas entre os fenômenos, que propicia o entendimento da unidade2 do mundo.

O caminho do conhecimento inicia-se com a angústia gerada pela sensação da fragmentação e realiza-se na busca da unidade, da compreensão do mundo como uma totalidade. "A totalidade não é um todo já feito, determinado e determinante das partes, não é uma harmonia simples, pois não existe uma totalidade acabada, mas um processo de totalização" (Cury, 2000, p. 35).

Ela é constituída a partir da própria construção do conhecimento e da significação do que está sendo buscado. "A totalidade e seu conhecimento formam um processo que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade" (Kosik, 1976, p. 41).

O caminho do caos (chaos) ao cosmo (kosmos) é o caminho da compreensão das inter-relações entre os vários elementos, fenômenos e pessoas existentes no universo.

Originária da cultura helênica, a palavra caos indica na língua portuguesa grande confusão ou desordem, enquanto cosmo é indicativa de ordem, harmonia, beleza, significando também universo, mundo. Da desordem à ordenação construída, à harmonia criada.

Embora já se encontrem referências à noção de universo como uma determinada ordem nos fragmentos de alguns pré-socráticos3, na antiga Grécia, foi com Pitágoras que se observou pela primeira vez a descrição do universo como um kosmos, assim como foi com Demócrito que vimos, também pela primeira vez, a consideração do homem como um microcosmos.

Ultrapassando o significado grego e tomando-o como inspiração, não se trata da busca da perfeição, mas da construção e da compreensão das relações.

Não há homogeneidade na unidade, assim como não há apenas uma unidade possível, há unidades construídas pelos vários conhecimentos que juntos poderão oferecer uma melhor compreensão do mundo. Conhecer é uma construção coletiva.

Do encontro do mundo (objeto do conhecimento) com os homens e mulheres (sujeitos do conhecimento) resultou a ideia de universo; resultou e continua resultando o mundo (e todos os seus fenômenos) conhecido e reconhecido, nomeado e renomeado, conceituado e constantemente reconceituado.

O conhecimento é elaborado para permitir a compreensão e subsidiar ações que possam tornar a vida melhor, objetivos nobres do processo de produção de conhecimento. Esse caminho não é linear, tampouco se deu sem sofrimentos e alegrias. Trata-se de um caminho humano, de ensaios e erros, acertos e tropeços, avanços e retrocessos.

A tarefa principal da escola não é produzir novos conhecimentos, ainda que isso ocorra, de modo especial, com os de caráter pedagógicos e relacionais. Ela desempenha um papel fundamental no processo de continuidade da construção dos mais variados conhecimentos.

O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas histórico, como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera o outro que antes foi novo e que se fez velho e se "dispõe" a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. (Freire, 1996/2008, p. 28)

 

A educação e o currículo escolar

Arendt (1961/1972; 1961/1979) defende que educar seja um ato conservador / preservador. Nesse sentido, em seu pensamento, é da responsabilidade da escola transmitir e perpetuar a parte da cultura que se tornou necessária e se cristalizou em símbolos inteligíveis, instrumentos aperfeiçoáveis, saberes fundamentais e obras admiráveis. Dando essas formas à cultura, entende que ela seja a fonte, a justificativa e o conteúdo da educação escolar e que essa, por sua vez, teria por função transmiti-la e perpetuá-la.

Tomando a reprodução apenas como uma parte do processo educativo, Severino (2001, p. 67) compreende a educação como um investimento intergeracional, cujo objetivo é o de inserir os educandos no mundo do trabalho, da sociabilidade e da cultura. Os autores afirmam a importância da escola, apontando - com ênfases diferentes - seu papel reprodutor e mediador do mundo.

A humanidade do século XXI tem muito conhecimento acumulado, construiu uma diversidade de unidades e totalidades, uma riqueza inestimável cuja propriedade é (ou deveria ser) coletiva. Mais recentemente, com a presença da tecnologia, esse processo ganhou velocidade, volume de informações e acesso amplo.

Paralelamente, convive-se com falsas crenças: de que a escola pouco ou nada tenha a fazer em um mundo que dispõe de muitas fontes de informação ou, ainda, no extremo oposto, de que ela tenha que se responsabilizar pela transmissão do conhecimento construído pela humanidade.

Ir a extremos não produz soluções. Trata-se de afirmar a importância de seu papel na constituição de um cidadão planetário responsável e criativo, que seja instrumentalizado para dar continuidade à construção de conhecimentos emancipatórios. Investir na boa escola é uma das formas de empenho na construção da contemporaneidade coletiva, garantia da leitura crítica do mundo. Para tanto, novas escolhas curriculares terão que ser feitas. Construir o sujeito autônomo, contemporâneo de seu momento histórico, demanda escolhas criteriosas de conhecimentos.

O que constrói um cidadão contemporâneo de seu tempo, responsável e criativo é o domínio das linguagens do seu momento histórico temperado com a educação dos sentidos e com a sabedoria na escolha de valores éticos. São imprescindíveis conhecimentos que permitam a leitura crítica da realidade, que ajudem os sujeitos a compreender as razões de ser dos fenômenos ligados a suas experiências existenciais, superando o senso comum.

A escola é um lugar privilegiado de construção de cidadania cujo exercício supõe aprender a não ser indiferente, o que não emana de um gesto inato. Refletir e posicionar-se são habilidades que precisam ser adquiridas, são passíveis de aprendizagem. Da mesma forma, a construção da cidadania pressupõe o olhar sensível e criativo sobre o mundo que somente as artes poderão proporcionar. A educação, inclusive a escolar, está necessariamente implicada na construção dos valores e da criatividade dos cidadãos planetários solidários e responsáveis.

Embora a escola seja insubstituível, formá-los não envolve apenas a ação escolar. Oportunidades culturais, artísticas, de convívio, são fundamentais. Não há como pensar em formação humana sem criar oportunidades permanentes para o desenvolvimento profissional, pessoal e intelectual.

 

Potencial educativo da arte

As palavras arte e conhecimento estão ligadas desde sua etimologia. Bosi apresenta esta relação, afirmando que "de acordo com a linguística indo-européia (...) o termo alemão para arte, Kunst, partilha com o inglês know, com o latim cognosco e com o grego gignosco (= conheço) a raiz gno, que indica a ideia de saber teórico ou prático" (Bosi, 2001, p. 27 e 28). Diversos autores e pesquisadores têm se debruçado sobre a problemática da relação entre conhecimento e arte, derivando-se de suas reflexões um rico acervo de diferentes concepções.

Assim como outras formas de conhecer, a arte se vale de memórias, percepções, imagens, afetos, ideias e sensações para estabelecer vínculos cognitivos. Por meio da arte, é possível conhecer fenômenos da natureza e da cultura e, também, expressar um potencial criador. Bosi corrobora a compreensão da arte como forma de conhecimento, dando ênfase ao princípio básico que Coleridge chamou de "imaginação construtiva". De acordo com esse princípio, "o trabalho [artístico] se desenvolve, ao mesmo tempo, no do mundo (ainda a mimese) e no plano da construção original de um outro mundo (plano do conhecimento a obra)" (Bosi, 2001, p. 36).

A arte possibilita um conhecimento estético que amplia a sensibilidade de quem conhece, isto é, estimula os sujeitos a produzirem um pensamento sensível4 e desenvolve seus sentidos orgânicos, condição fundamental para responder às circunstâncias e exigências da vida cotidiana. Marx considera a dimensão estética como essencial à existência humana e argumenta que "o homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos" (Marx, 1844/1987, p. 178). Sobre a compreensão de Marx a respeito da dimensão estética,

"O estético não pode ser alheio [ao] marxismo humanista, já que constitui (...) uma dimensão essencial da existência humana. Por isso Marx devia necessariamente falar dos problemas estéticos numa forma certamente concisa e desarticulada, mas com a profundidade que exigia sua inserção essencial em sua concepção do homem e em sua doutrina da transformação revolucionária da sociedade." (Vázquez, 1978, p. 11)

O conhecimento estético aguça a imaginação, amplia as possibilidades de apreensão da forma e do conteúdo dos objetos de conhecimento, evidenciando a capacidade humana de fazer associações e relações, permitindo que os seres humanos compartilhem experiências e ideias. Exercita a curiosidade e a criatividade, gera sentimentos de reconhecimento, pertencimento e afirmação cultural, dimensões que são importantes para a vida em sociedade. Barbosa, relembrando Fanon5, diz que "(...) a arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual ele pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo" (2008, p. 99).

Conhecer esteticamente permite a apreensão de significados diferentes dos possibilitados por meio do conhecimento científico e filosófico. Vázquez (1978, p. 33) acresce importante informação para o entendimento dessa distinção:

A verdade artística não se determina através de uma correspondência plena entre arte e ideologia, mas tampouco - e nisto se diferencia do conhecimento científico - através da plena concordância com a realidade objetiva tal como existe fora e independentemente do homem. Num quadro ou num poema não entra, por exemplo, a árvore em si, precisamente a árvore que o botânico trata de apreender, mas uma árvore humanizada, isto é, uma árvore que testemunha a presença do humano.

Depreende-se que, em sua especificidade gnosiológica, a arte não pode ser reduzida a mera técnica, a um simples meio cognoscitivo capaz de produzir pensamentos e sentimentos a partir de imagens, sons, cheiros e texturas, porque é um ato de criação e recriação e, nesse sentido, corresponde a um ato de liberdade, de prazer e de necessidade humana. Vázquez (1978, p. 34 e 35) enfatiza que a peculiaridade do conhecimento estético está em seu objeto específico de análise, que é o homem em relação:

(...) se a arte como forma de conhecimento corresponde a uma necessidade, e não é uma mera duplicação - mediante imagens, parábolas ou símbolos - do que a ciência e a filosofia - mediante conceitos - já nos dão, ela só se justifica se tiver um objeto próprio e específico, (...), que condiciona, por sua vez, a forma do reflexo artístico. Este objeto específico é o homem, a vida [existência] humana.

A arte, em sua especificidade, permite conhecer os objetos da realidade representados em sua significação social, naquilo que representam em seus contextos, concretudes e condicionamentos. De forma dialética, permite um conhecimento restrito e abrangente dos objetos.

O conhecimento estético "estranha" a realidade hegemônica, estabelecendo tensões e solicitando opções. A estética implica a ética, elas desenvolvem estreita relação e influenciam-se mutuamente, aquela é potencializada por esta.

Cabe optar por uma estética que não exclua, que não discrimine e não oprima, que estimule a crítica e a mudança; que permita aos sujeitos expressar, com liberdade, os pensamentos, os anseios, os desejos e os medos que são, também, condições para uma vida com alegria e beleza.

No processo criativo os sujeitos se indagarão: por que e para que conhecer? Conhecimento para quem? A quem serve esse conhecimento? Valores e interesses estarão sendo explicitados. Como diz Paulo Freire, que não há neutralidade na produção de conhecimentos, quer por meio da ciência, quer por meio da arte.

Em um tempo de profusão de recursos tecnológicos e midiáticos, a relevância do conhecimento estético está em valer-se de seu poder crítico e criativo para utilizar os recursos disponíveis na direção da transformação da realidade. Nesse sentindo, a arte como forma de conhecimento opõe-se ao uso da arte como mercadoria, que objetiva o consumo de forma alienada. De acordo com Chauí (2010), "A indústria cultural6 vende cultura. Para vendê-la deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência o que ele já sabe, já viu, já fez" (2010, p. 29 e 30).

A arte pode produzir conhecimento significativo e emancipador quando não se contenta em reproduzir a realidade, quando está comprometida com uma ética da vida7. O exercício artístico e a fruição da arte geram oportunidades educativas e expressivas.

 

Potencial educativo da ética

Do ponto de vista antropológico, a vida se dá no interior de um mundo cultural, que é e contém uma rede de significações, de tal forma que os comportamentos, que não são naturais, sofrem uma modelagem imposta. Valores e costumes previamente estabelecidos são incorporados pelos sujeitos e a eles acrescentam-se os que se formam por meio de novas informações e reflexões. Os humanos são bons imitadores uns dos outros, assim como bons inventores. Numa boa hipótese, não aceitam passivamente os valores impostos durante todo o tempo, mas procuram revê-los ou reafirmá-los. Valores são adquiridos e podem ser transformados.

Ao conjunto das normas, regras e leis, que se sustentam a partir de determinados valores, é o que denominamos moral. A moral é o campo em que se encontram as noções de bem e mal, que define o que deve ser buscado e afastado de nossas vidas. A dimensão moral, portanto, está presente no comportamento de todos, individual e coletivamente, e manifesta-se nas relações humanas. A "norma moral tem um impressionante caráter imperativo. Os valores se impõem como força normativa e prescritiva, quase que ditando como e quando as ações devem ser conduzidas. Não segui-las dá a sensação de que se está agindo errado, embora os sujeitos mantenham um nível proporcional de liberdade ante a norma" (Severino, 2001, p. 92).

O caráter imperativo da moral é inibidor, como norma pode ser revisto. O ato moral é composto não apenas pela obrigação social ou obediência às regras, mas pela escolha do sujeito da ação. Caso isso não ocorra, ele perderá o seu conteúdo fundamental: a liberdade. A adesão ou a rejeição à regra constituem parte essencial da ação moral e pressupõem discernimento para optar. Saber escolher entre o que se considera certo e o que se considera errado, para decidir pela adesão ou transgressão às determinações sociais, é uma aprendizagem necessária. É também um exercício da autonomia entendida como uma segurança pessoal construída cotidianamente por meio do aprendizado de um pensar responsável e reflexivo, que pressupõe um repertório cultural constantemente revisto.

No processo educativo, trata-se de preservar espaço para que a regra seja re-pensada. Acolhida ou rejeitada, a regra moral, na educação em valores, é sempre objeto de reflexão, cujo princípio é o respeito ao outro.

A construção do discernimento, a busca do indivíduo esclarecido, não se faz de imediato, é - às vezes - produto de toda uma vida e sempre pode ser aprimorada. De modo que o processo educativo é permanente.

Nem a absolutização nem o relativismo de valores são desejáveis. O bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, não o são em si mesmos nem podem ser banalizados como referências. Os valores são, sim, relativos a cada momento histórico, mas não são apenas subjetivos e individuais. A autonomia construída tem que fundamentá-los em valores universais (princípios), que se renovam historicamente. A solidariedade, a justiça e o respeito ao próximo são três desses princípios sem os quais a humanidade estará em risco e com os quais poderá alcançar o máximo de sua dignidade. Não haverá vida humana livre e de qualidade sem a consideração dessa base moral que considera a liberdade. Educar em valores é educar na e paraa liberdade (Freire, 1996/2008), o que significa dizer, também, com vistas à autonomia e responsabilidade pelos próprios atos.

O conteúdo moral da vida não tem caráter cognitivo (embora possa transformar-se em objeto de cognição). A educação em valores na educação escolar é tarefa complexa que não pode ser pensada como um conteúdo a ser transmitido.

Tanto a língua como os costumes de um povo são tradições públicas, herdadas, transmitidas e cultivadas no próprio convívio social. É evidente que de ambos os campos se derivam estudos sistemáticos, aos quais eventualmente podemos recorrer. No entanto, tanto o uso coloquial da língua como as condutas fundadas em valores não são resultantes de aplicações técnicas de um saber especializado, disponível somente àqueles que a ele se dedicam profissionalmente. (Carvalho, 2004, p. 96)

Não se trata, portanto, apenas de instruir os educandos para a aquisição de uma determinada habilidade nem de levá-los a se apropriarem de um acervo de conhecimentos. Trata-se de instaurar e desenvolver reflexões e de possibilitar o amadurecimento de ações para que elas não sejam frutos apenas de imediatismos. Isso poderá ser conquistado por mediações pedagógicas, nas quais de modo intencional estejam levadas em consideração as subjetividades envolvidas. Também as vivências propriamente ditas poderão auxiliar na construção do sujeito moral.

O potencial educativo da educação em valores não emana da ética normativa, mas da formação do sujeito ético: reflexivo, criativo, livre, que reconhece os direitos e os deveres como iguais para todos. As palavras de ordem para o percurso são reflexão e diálogo, elas devem ser retomadas na sua significação mais viva.

 

O currículo escolar e a construção da contemporaneidade coletiva: retomando e concluindo

Uma educação de "pronta-entrega" e que certifique em curto espaço de tempo é uma opção equivocada para as demandas que o mundo solicita.

O caminho do conhecimento parte da angústia primeira gerada pela busca de compreensão e solução de problemas. O desafio que o chaos do século XXI apresenta é imenso, propostas imediatistas de educação ficam longe de auxiliar na compreensão e nas soluções de problemas humanos demandados. A educação escolar para esse século não pode prescindir da preocupação com o mais profundo do ato de conhecer: a busca de conhecer o mundo e de conhecer-se em coletividade. Inovar sem perder as lições da história, recorrendo a conhecimentos maduros e substantivos.

A urgência é a da formação do sujeito criativo e que tem discernimento. Esse sujeito será capaz de instrumentalizar-se com autonomia para caminhar do chaos ao kosmos na compreensão do seu tempo e espaço históricos.

Em outras palavras, em conjunto com outros conhecimentos, a estética e a ética podem atualizar a educação escolar promovendo a construção de um sujeito criativo e que tenha capacidade de discernir para fazer opções pela construção permanente da vida digna.

 

A urgência é de formar um sujeito capaz de instrumentalizar-se para caminhar do chãos ao kosmos na compreensão do seu tempo e espaços históricos.

Nesse sentido, em conjunto com outros conhecimentos, a estética e a ética podem atualizar a educação escolar promovendo a formação de um sujeito criativo e que tenha capacidade de discernimento para fazer opções pela construção permanente da vida digna.

 

Referências

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1 Impaciente; violento; exaltado; agitado; delirante; fora de si; atacado de frenesi; convulso.
2 A expressão unidade está aqui utilizada com o significado de superação da fragmentação. Alguns dos sentidos oferecidos pelo dicionário Aurélio a este verbete indicam exatamente a significação que usamos: qualidade daquilo que não pode ser dividido; aquilo que num conjunto forma um todo completo; caráter do ser que é uno.
3 Em Anaximandro e Anaxímenos, por exemplo.
4 "(...) temos que repudiar a idéia de que só com palavras se pensa, pois que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma subliminal, inconsciente e profunda! (...) O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia". (Boal, 2009a, p. 16)
5 Frantz Fanon (1925-1961) nasceu em Martinica, uma ilha do território francês, localizada na América Central. Filósofo, psiquiatra e escritor, atuou como revolucionário na luta pela libertação da Argélia do domínio colonial francês. Fanon ofereceu importantes contribuições para o estudo dos mecanismos de dominação e sua influência sobre a formação da consciência do povo colonizado. O livro Os condenados da terra está entre suas principais obras.
6 "Expressão cunhada por Theodor Adorno [1903/1969] e Max Horkheimer [1895/1973] para definir a transformação das obras de arte em mercadoria e a prática do consumo de 'produtos culturais' fabricados em série." (Chauí, 2010, p. 28)
7 A expressão "ética da vida" é aqui compreendida como em Casali: "(...) A vida é para ser vivida e em abundância. A vida é para ser dita e, no dizê-la, poder desenvolvê-la em suas intermináveis possibilidades. Esta é a ética da vida para Freire: converter vida negada em vida afirmada. (...) A ética da vida é a ética da con-vivência, porque assim é o modo de ser humano estando com-o-mundo e com-o-outro" (Casali, 2005, p. 71 e 72).