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Psicologia da Educação

versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.35 São Paulo dez. 2012

 

Indivíduos talentosos: o filme Gênio indomável como fonte de análise

 

 

Rosemeire de Araújo RangniI; Maria da Piedade Resende da CostaII

IProfessora do Curso de Licenciatura em Educação Especial e do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos rose.rangni@uol.com.br
IIProfessora do Programa de Pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos

 

 


RESUMO

As dificuldades dos indivíduos talentosos podem ser evidenciadas, sob a perspectiva socioemocional, por possuírem, muitas vezes, assincronia da idade cronológica e intelectual. O não reconhecimento de suas diferenças pelos pais, escola e sociedade e, por vezes, de si próprios, os levam a ter atitudes que não condizem com o potencial elevado que possuem, sendo ignorados e deixados à margem sem orientação educacional e psicológica. Nessa ótica, este ensaio apresenta o filme Gênio indomável como fonte de análise para as características emocionais dos indivíduos talentosos. Os resultados indicam que pode haver vários indivíduos com o mesmo perfil emocional e as dificuldades de convivência com as diferenças apresentadas pela personagem.

Palavras-chave: Talento; dificuldades emocionais; Gênio indomável.


ABSTRACT

The difficulties of talented individuals may be showed, under the social-emotional perspective because they have, many times, chronological and intellectual asynchrony. The no recognition of their differences by parents, school, society, and themselves can take them to have actions that aren't according their potentials, and they can be ignored without educational and psychological orientation. This essay presents the movie Good Will Hunting as source of analysis for the emotional characteristics of the talented individuals . The results indicate that there may be various individuals with the same emotional profile and the difficulties presented by the character.

Keywords: talent; emotional difficulties; Good Will Hunting.


RESUMEN

Las dificultades de las personas talentosas pueden evidenciarse, bajo la perspectiva socio-emocional, por tener, muchas veces, asincronia de la edad cronológica e intelectual. El no reconocimiento de sus diferencias por los padres, escuelas y sociedad y, por veces, de si propios, los llevan a tener actitudes que no están de acuerdo con el potencial superior que poseen, siendo ignorados y dejados a la margen sin orientación educacional y psicológica. Este ensayo presenta la película Genio indomable como fuente de análisis para las características emocionales de los individuos talentosos. Los resultados indican que puede haber muchos individuos con lo mismo perfil emocional y las dificultades de convivencia con las diferencias presentadas por el personaje.

Palabras clave: talento; dificultades emocionales; Genio indomable.


 

 

Introdução

O Cinema, considerado a Sétima Arte, tem proporcionado divertimento, alegria, emoção, cultura, educação e tantos atributos que essa Arte apresenta.

A indústria cinematográfica, criada no início do século XX, com a realização do cinema mudo, tem evoluído pela aplicação e alta tecnologia na produção de filmes com efeitos especiais e qualidade de som e imagem impecáveis.

O Cinema é um veículo forte na expressão e transmissão cultural que pode ter o poder de influenciar positiva ou negativamente a sociedade. Também, os temas abordados nos filmes podem gerar discussões, polêmicas e referências para estudos sobre o comportamento humano, ciências, tecnologia, entre outros.

O filme Gênio Indomável, com nome original em inglês Good Will Hunting, produzido em 1997, nos Estados Unidos, teve nove indicações para o Oscar e ganhou duas categorias: melhor roteiro e melhor ator coadjuvante para Robin Williams.

O filme traz a estória de um jovem de vinte anos que foi descoberto pelo seu talento matemático quando resolveu um exercício colocado na lousa pelo professor de uma conceituada instituição universitária, em Boston, EUA.

O professor desafia seus alunos para resolver o problema matemático, enigma da pirâmide, sabendo que seria quase impossível a resolução pelos alunos. Alguns dias depois, o professor vê a resolução do exercício resolvido no corredor da instituição e se indigna querendo saber quem o resolveu.

Descobre-se que o problema matemático foi resolvido por Will Hunting, um jovem de vinte anos, faxineiro da instituição.

Após essa descoberta, desenvolve-se a trama. Os professores querem saber quem é aquele jovem. Descobrem que Will tem várias passagens pela polícia por pequenos delitos, tem um comportamento rebelde e trabalha apenas em atividades que não exijam capacidade intelectual. Inicia-se a busca para recrutá-lo a fazer parte da equipe de matemática da universidade.

Quando Will é descoberto, abandona o emprego e envolve-se em brigas de rua. Ele é preso, e o professor de matemática, Gerald Lambeau, assume a responsabilidade em tirá-lo da prisão com a condição de que ele frequente as aulas de matemática avançada e terapia.

Diante da história de Will Hunting, apresentada no filme, este ensaio busca discorrer e refletir os aspectos: o conceito de talento e o comportamento dos indivíduos talentosos fazendo uma interface com a temática do talento ou altas habilidades/superdotação, termo esse adotado nos documentos oficiais brasileiros. Para tanto, utilizará a terminologia talento e apresentará o termo altas habilidades/superdotação para citações literais.

 

Talento e inteligência

A conceituação da temática do talento cerca-se de polêmicas e controvérsias por conta, essencialmente, da ausência de uma definição definitiva sobre a inteligência. Muitos estudiosos tentam defini-la.

Alencar & Fleith (2001) expõem sobre inteligência e sua mensuração que:

[...] não se observa um consenso a respeito do que estariam efetivamente medindo e nem tampouco a respeito do que seria inteligência. Pode-se notar que centenas de definições já foram propostas para o termo e mesmo simpósios já foram realizados com vistas discutir o problema. (p. 2)

As autoras mencionadas esclarecem que em 1921 foi realizado um simpósio e proposta a definição do que é inteligência e a melhor maneira de medi-la. Nessa época, a mensuração de Stanford-Binet estava em evidência. Os estudiosos aceitaram as possibilidades de testar a inteligência, mas não ocorreu o mesmo em relação à definição.

Alencar e Fleith (2001) e Gama (2006) apresentam algumas definições de inteligência que marcaram o século XX, quais sejam:

1. poder de dar boas respostas do ponto de vista da verdade ou dos fatos (E. L. Thorndilke);

2. habilidade de pensar abstratamente (L.M. Terman);

3. capacidade sensorial, capacidade de reconhecimento perceptual, rapidez, extensão ou flexibilidade de associações, facilidade e imaginação, extensão da atenção, rapidez ou estado de alerta nas respostas (N. F. Freeman);

4. aprendizado ou habilidade para aprender e adaptar-se ao ambiente (S. S. Colvin);

5. habilidade para adaptar-se adequadamente a situações relativamente novas da vida (R. Pintner);

6. capacidade para conhecer e conhecimento adquirido (B. A. C. Henmon);

7. mecanismo biológico cujos efeitos de estímulos complexos são organizados e passam a ter um efeito harmônico no comportamento (J. Peterson);

8. capacidade para inibir um ajustamento instintivo; capacidade para redefinir adaptações de instintos inibidos à luz de experiências imaginadas de ensaio e erro; e a capacidade para realizar ajustamentos nos instintos modificados através de comportamentos vantajosos para o indivíduo como animal social (L. L. Thrustone);

9. capacidade para adquirir capacidade (H. Woodrow);

10. capacidade para aprender ou para beneficiar-se de experiências (W. F. Dearborn);

11. sensação, percepção, associação, memória, imaginação, discriminação, julgamento e raciocínio. (N. E. Haggerty)

Averigua-se que as definições são apropriadas pelos seus autores, e os únicos sinais de consenso, na grande maioria, são as palavras habilidade e capacidade.

Um grande marco para conceituar a inteligência são os estudos de Binet e Galton, na virada do século XX. Galton baseou-se na obra Origem das espécies, de seu primo Charles Darwin, cuja pesquisa versou sobre o desenvolvimento da inteligência humana que define como as características gerais distinguem os mais capazes dos menos capazes (Gama, 2006).

Em 1904, autoridades francesas solicitaram que Alfred Binet criasse um instrumento de avaliação das crianças para que fosse definido se teriam ou não sucesso nos liceus parisienses. Junto com seu colega Simon, Binet criou o instrumento que deu origem ao primeiro teste de coeficiente intelectual (QI), desenvolvido por Lewis Terman, na Universidade Stanford, na Califórnia. O teste enfatizava o desenvolvimento da linguagem e da matemática (Gama, 2006).

Vários estudos foram construídos ao longo do século passado para definir a inteligência, dos quais se destacam as definições de Sternberg e Howard Gardner. Sternberg vê a inteligência como localizada no indivíduo em sua interação com o meio ambiente. Propõe que os indivíduos se governem de tal forma que seus pensamentos e ações se apresentem de maneira organizada, coerente e apropriada para lidar com necessidades internas e externas (Gama, 2006).

Gardner, por sua vez, propõe uma visão de inteligência que tenha abrangência em aspectos biológicos e de funcionamento mental do indivíduo, as interações do indivíduo com o meio ambiente e as formas como a cultura pode influenciar os conceitos e desenvolvimento. Gardner expõe que não existe apenas uma inteligência e que essas estão enraizadas nos planos biológicos e psicológicos do indivíduo, e seus potenciais realizam-se por fatores culturais e motivacionais. As inteligências assinaladas por Gardner são: linguística, lógico-matemática , musical, cinestésica, interpessoal, intrapessoal, espacial e naturalística (Gama, 2006).

Pode-se inferir, sob a perspectiva dos dois estudiosos citados, que os aspectos de cunho biológico e ambiental são concomitantes no constructo da inteligência, inclusive determinantes para aqueles indivíduos que estão acima da média.

Ao analisar a personagem apresentada no filme em questão, constata-se que Will não tinha ambiente propício ao desenvolvimento de sua capacidade lógico-matemática saliente. Sua cultura geral significativa, além da lógico-matemática, vinha de atividade altíssima em leitura o que se conclui que, de certa forma, havia estimulação por via da leitura que ele mesmo proporcionava para si. Esse aspecto combina com o que Sternberg assinala como autorregulação das necessidades internas e externas.

Renzulli (1986), na sua Teoria dos Três Anéis, explica que a interrelação de habilidade acima da média, comprometimento com a tarefa e criatividade configura capacidade superior, assim, pode explicar a superioridade de Will, principalmente o alto comprometimento com assuntos de seu interesse e a criatividade em resolução de problemas matemáticos por caminhos não imaginados pelos professores da universidade. Além do que, o potencial natural acima da média.

Guenther (2011) aponta que o talento é:

Um constructo definido em termos de desempenho superior e habilidade natural, o que implica comportamentos, ações e atitudes visíveis e captáveis. Em essência, um talento é capacidade natural e expressa por uma via de ação concreta, diferenciada no contexto em que a vida acontece. Desenvolver talento só é possível quando existe capacidade natural, ou potencial para a ação, e condições ambientais favoráveis àquela área de atividade. (Guenther, 2011, p. 43)

Como exposto, os estudos sobre inteligência ainda não respondem, definitivamente, sobre o que é inteligência. Além disso, quanto ao talento, os estudos decorrem paralelamente. O fato é que há indivíduos que se sobressaem, e o talento pode ser captado por suas ações.

 

Implicações do uso da terminologia e o conceito de talento

Não há consenso quanto à definição para os indivíduos com capacidade superior. Além, do conflito no uso de terminologias referente à área do talento como: gênio, precoce, prodígio, excepcional, entre outros, se estabelece, também, o dissenso ao uso do termo empregado a essa população. Pode-se dizer: altas habilidades/superdotação, superdotação, talento, dotação, altamente habilidosa, alta capacidade, excepcionalidade, entre outros. Qual será o termo mais apropriado?

Nos últimos anos, mais precisamente desde 2001, quando foram definidas as Diretrizes Nacionais de Educação Especial, verifica-se regularidade no uso terminológico para o termo altas habilidades/superdotação que tem permanecido em outros documentos mais recentes como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). Esse documento define altas habilidades/superdotação como:

Alunos com altas habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes, além de apresentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse. (p. 9)

Porém, quanto ao uso pelos especialistas brasileiros, ainda há algumas variações. A variação mais acentuada, comparando-se ao recomendado oficialmente, são as terminologias dotado e talentoso empregadas por Guenther ( 2011), baseadas no pesquisador canadense Francoys Gagné que pontua a seguinte definição:

Dotação designa posse e uso de notável capacidade natural, em pelo menos um domínio de capacidade humana, e talento designa desempenho superior, conhecimento aprendido, habilidades desenvolvidas sistematicamente, implicando alto nível de realização em algum campo de atividade humana. (Guenther, 2011, p. 28)

Guenther (2011) assinala que esses dois conceitos, dotação e talento, têm o sentido de notável e são referidos às capacidades humanas as quais apontam indivíduos que diferem da norma e indicam pessoas fora do normal por produção notavelmente superior.

A referida autora alerta que podem ser encontradas definições em dicionários para dotação e talento como sinônimas; no entanto, há diferenciação no conceito.

Sabatella (2005, p. 59) adverte que: "ainda hoje, há algumas diferenças, principalmente no discurso dos diversos especialistas brasileiros e não vemos, em curto prazo, possibilidades de uniformizar a terminologia". Assim, acredita-se que, assim como a definição para esse grupo de indivíduos está atrelada aos avanços científicos sobre inteligência, também a terminologia empregada necessita haver consenso entre os estudiosos.

Neste contexto conflituoso, o título do filme Gênio indomável remete às discussões quanto ao uso do termo para definir a parcela de pessoas mais capazes.

O título original em inglês Good Will Hunting, que em tradução para o português quer dizer "O bom Will Hunting", não condiz com o título adotado para a obra no Brasil. Normalmente, o mercado cinematográfico faz uma versão do título original para atrair os expectadores ou faz uma adequação ao idioma do país onde vai ser exibido.

Essa versão do título para Gênio Indomável constitui-se em problema conceitual grave para a área de talento.

Em termos teóricos, Sabatella (2005) assinala que gênio é a pessoa reconhecida por uma produção ou contribuição que causa transformação em um campo do conhecimento e pode mudar conceitos estabelecidos, permanecendo por gerações. Sabatella ainda assinala que essa terminologia é mais apropriada ao se referir às pessoas como Einstein, Leonardo da Vinci, Marie Curie, Stephen Hawkins, entre outros. Portanto, a personagem Will Hunting, do filme em questão, não se adequaria à terminologia empregada na versão em português.

Sabatella (2005) pontua que gênio foi anteriormente muito usado e não é adequado para a superdotação.

Sinaliza que foi utilizada uma versão baseada no senso comum, sem bases científicas. Usos como esse são prejudiciais ao desenvolvimento da área causando confusões junto às pessoas que podem entender e aceitar que para serem talentosos devem ser semelhantes aos eminentes cientistas acima mencionados. Nem todos talentosos são geniais.

Talvez, não só o desconhecimento da temática sobre o talento seja barreira para o entendimento conceitual desse grupo de indivíduos, como também, o alto interesse por eles no início do século passado quando houve os primeiros estudos sobre alta inteligência como expõem Alencar e Fleith (2001):

O gênio, que também foi objeto de interesse maior nos primeiros estudos relativos à alta inteligência, deu lugar a uma visão mais ampla de superdotação, com ênfase na idéia de que existe um continuum em termos de habilidade, seja ela na área intelectual, social, musical, artística etc. (Alencar & Fleith, 2001, p. 53)

Há o mito de que todo talentoso possui genialidade; entretanto, essa perspectiva foi refutada com os estudos de Hollingworth (apud Alencar & Fleith, 2001, p. 87), nos quais se assinala que: "Termo gênio seja reservado para descrever, apenas, os indivíduos que já deram contribuições originais e de grande valor".

Esclarecido o equívoco cometido quanto ao termo empregado no filme Gênio Indomável e um olhar mais cuidadoso na personagem Will Hunting, sinaliza-se que não se trata de um gênio, mas que pode vir a ser. A resolução do complexo exercício matemático de grau elevado para os alunos daquela instituição de ensino superior não causou nenhuma transformação para um conceito já estabelecido e, sim, apresentou um indivíduo com capacidade lógico-matemática elevada.

No entanto, vale ressaltar a influência que os filmes produzidos pelo cinema podem representar em importante contribuição para o conhecimento. Nessa trilha de entendimento Redondo (2006) pontua que se pode conceber o cinema como um meio de comunicação que integra a linguagem verbal e não verbal, além de uma obra criadora e criativa, o qual pode ser utilizado como "recurso didático que atende ao conhecimento porque oferece uma variedade de possibilidades informativas já que se pode ensinar com o cinema" (s/p).

Em relação às áreas do talento, elas podem se manifestar ou se expressar, superiormente, em uma área ou mais combinadas e em outras apresentarem capacidade mediana ou abaixo da média. Não há evidências que todas as áreas contempladas da capacidade humana se manifestem superiormente em um indivíduo.

As áreas de domínios de capacidade humana são apresentadas por Guenther (2011, p. 40-42), baseadas nos estudos de Gagné (2008), que sinaliza cinco áreas, quais sejam:

1. inteligência - tem raízes na função cognitiva do cérebro. Inclui habilidades mentais para conhecer, entender, compreender, abstrair, apreender por diferentes vias, tais como pensamento analítico e senso de observação, pensamento linear e não linear, estabelecimentos de relações, memória, julgamento e meta-cognição.

2. criatividade - está enraizada na função intuitiva do cérebro. Diferencia-se de outras funções cerebrais por estar 'fora da razão' sem ser propriamente 'emoção'. Criatividade inclui capacidade divergente para configurar, colocar e enfrentar situações pela imaginação e pensamento intuitivo, sem necessidade de apoio em dados concretos, tece conexões amplamente e prontidão para evocação fluente de muitas fontes e redes de relação complexas, originalidade, criação e inovação.

3. socioafetividade - compreende elevada capacidade para lidar com situações de convivência grupal e pluralística, agir com segurança e estabilidade no grupo, encontrar caminhos para experiência de vida em comum, satisfatória e aperfeiçoada. Há expressões de liderança, energia pessoal, persuasão em situações grupais e coletivas, relações humanas, convivência, empatia, interação pessoal e qualidades associadas à maturidade e inteligência emocional.

4. físico - âmbito da percepção sensorial, uma função mental conectada ao aparelho sensorial externo, ou interno e outra no âmbito do aparelho motor.

5. percepção - domínio de transição entre capacidade essencialmente física e mental.

As impressões sensoriais físicas acontecem no cérebro como um processo mental, em áreas destinadas a cada um dos sentidos, ou seja, inicia no cérebro guiando impulsos ao corpo e justifica a capacidade física. Segundo Guenther (2011), o quinto domínio, Perceptual, foi acrescentado por Gagné na última revisão de seu Modelo Diferenciado de Dotação e Talento, em 2008.

O talento, por sua vez, indica desempenho superior e habilidade notável (Guenther, 2011), e o talento só se desenvolve se houver capacidade natural ou dotação.

Com esses campos conceituais, infere-se que a personagem Will Hunting é possuidora de notável dotação em áreas de domínios como a inteligência; com alto pensamento abstrato que Guenther (2000) pontua como:

Associa-se ao desempenho nas áreas das ciências e matemática, com capacidade de analisar, associar e configurar símbolos e conceitos, boa organização interna, raciocínio e lógica e notável capacidade no estabelecimento de relações e identificação de causas nos fenômenos observados, chegando à formação de conceitos a partir dos fatos. (p. 48)

Além da dotação, capacidade natural, Will possui talento que se caracteriza por desempenho superior em realizar com notável capacidade o exercício matemático proposto pelo professor.

Sobre o conhecimento aprendido, habilidades desenvolvidas sistematicamente implicando alto nível de realização em algum campo de atividade humana, observa-se que Will obteve o conhecimento sem auxílio formal de uma instituição escolar.

As reflexões recaem sobre alguns questionamentos: as leituras de Will podem ser consideradas habilidades desenvolvidas sistematicamente das quais se apropriou, chegando ao alto desempenho em matemática e aos conhecimentos gerais? As habilidades podem ser desenvolvidas desde que haja uma sistemática de aprendizagem, treinamento, e Will o fazia por meio das leituras e estudo por conta própria.

Existe realmente um autodidata? O autodidatismo é compreendido como estudo espontâneo, sem ensino formal oferecido por professores. Desta forma, Will é um autodidata.

A capacidade natural de Will é suficiente para se desenvolver? Indivíduos que possuem capacidade natural superior e com alto envolvimento em áreas de seu interesse podem se desenvolver, independentemente de treino sistematizado. Porém, com estímulo e ambiente propícios essa capacidade pode chegar a alto nível.

O professor de matemática, que queria ajudar Will, considerava-o melhor que ele, dizendo-lhe que poderia conseguir as premiações que não conseguira. Cogitava comparar Will aos eminentes da matemática como o gênio indiano Ramanujan1 que tinha uma história semelhante à de Will e deu grande contribuição aos estudos matemáticos.

Após insistência, Will fazia parte da equipe de matemática e conseguia se desenvolver com facilidade; no entanto, manipulava os terapeutas fazendo piadas e agressões verbais.

O adjetivo indomável utilizado na versão do título em português denota a característica de rebeldia de Will.

Dificuldades comportamentais e emocionais de pessoas mais capazes são vastamente assinaladas na literatura especializada, supostamente, porque a maioria dos estudiosos tem origem na área de Psicologia.

De fato, é possível verificar desvios nos comportamentos dos indivíduos mais capazes; no entanto, essas características não são próprias de pessoas de capacidade superior. Idéias errôneas sobre essa parcela de indivíduos, como a insanidade, foram refutadas na primeira metade do século XX por Terman e sua equipe (Alencar & Fleith, 2001).

Alencar (2001) explicita que as pesquisas de Terman, em estudo longitudinal, indicam que "os superdotados apresentavam além de uma inteligência superior, um desenvolvimento físico mais acelerado, eram mais ajustados socialmente e mais estáveis do ponto de vista psicológico" (p. 176). Entretanto, o referido estudo apontava para uma amostra de QI médio de 150 e condição socioeconômica média.

Outra pesquisa realizada por Hollingworth com alunos que apresentavam QI elevado, média de 180, constatou na amostra pesquisada a ausência de hábitos adequados no ambiente de trabalho escolar. Esses alunos passavam muito tempo sonhando, alheios e com dificuldades nas relações sociais; embora tentassem ter amigos, não compartilhavam os mesmos interesses do grupo. Também averiguou-se vulnerabilidade emocional por se envolver com questões éticas e filosóficas antes do amadurecimento (Alencar, 2001).

Alencar e Fleith (1999) apontam um estudo realizado por Alencar em um educando com alta capacidade em matemática e com QI 172, (semelhante à pesquisa desenvolvida por Hollingworth), que apresentava características comportamentais de isolamento.

O aluno que, na época em que coletamos os dados a seu respeito, tinha 12 anos, era, segundo seus professores, reservado, quieto e preferia trabalhar isoladamente. Tinha poucos amigos, o que era explicado por seus professores em função da diferença de idade entre ele e suas colegas de classe. (Alencar & Fleith, 1999, p. 92)

Terrasier (apud Alencar & Virgolim, 1999) assinala que a influência do grupo de colegas pode gerar pressão, levar os mais capazes ao desempenho muito aquém de sua capacidade e gerar dificuldades de natureza emocional. O desajustamento dessa parcela de indivíduos, gerado pela assincronia entre o desenvolvimento intelectual e emocional, pode ser fonte de tensões e desajustamentos. Assim, Landau (apud Alencar & Virgolim, 1999) orienta que "o superdotado seja compreendido com relação a este aspecto" (p. 93).

Possivelmente a dissincronia nesses indivíduos é devida às várias áreas de domínio. Ser altamente capaz em uma área não quer dizer ser capaz no mesmo nível em todas. Esse é um mito ou falso conceito comum entre os leigos por não conhecerem a temática da área de talentos.

Terrasier (apud Alencar & Virgolim, 1999) que expõe a Síndrome da Dissincronia para caracterizar disparidade entre diferentes faces do desenvolvimento que se configuram de ordem interna e de ordem externa relacionada ao ambiente, podendo ser familiar e escolar.

Com isso, é possível observar alunos notáveis em matemática e medíocres em ortografia e escrita ou em outras áreas.

Problemas de ordem emocional e social são apontados por Webb (apud Alencar & Virgolim, 1999) e revela que nenhuma das características apontadas é "inerentemente problemática", e algumas combinações delas podem levar ao padrão de comportamento problemático, conforme apresenta a Figura 1.

 

 

Nos limites desse ensaio, é difícil o aprofundamento de análise nas características e dificuldades emocionais e comportamentais dos indivíduos talentosos, mostrados na Figura 1, entretanto destacamos as características - Amplo vocabulário e proficiência verbal; tem amplas informações em áreas avançadas - as quais foram apresentadas pela personagem analisada. Além de conhecimentos matemáticos, Will surpreende: na cena em que um estudante de Harvard tenta humilhar seu amigo, Will supera-o em discussões sobre Economia como também mostra um alto conhecimento, originados de leitura, nos diálogos com os professores e terapeuta. Em contraponto, os problemas decorrentes das características referidas na Figura 1 - torna-se entediado com a escola e colegas; visto pelos outros como o sabe-tudo -, denota em grande parte o comportamento de Will que não frequentava uma instituição escolar e buscava ajustar-se a colegas de menor nível intelectual fora do ambiente escolar, possivelmente para obscurecer-se e se sentir pertencendo a um grupo, como é característico entre adolescentes e jovens.

Fleith (2007) levanta alguns outros aspectos relacionados às características emocionais dos talentosos, que podem ser observados na personagem, quais sejam:

• senso de humor desenvolvido como meio de lidar com incongruências do dia a dia;

• perseverança, envolvendo grande concentração em atividades de interesse e desejo de superar obstáculos;

• multipotencialidade, habilidade para obter êxito em diferentes áreas, o que pode dificultar a escolha profissional;

• não conformismo, que se reflete na tendência a questionar regras e autoridades;

• tendência à introversão, expressa pela preferência em trabalhar sozinho em tarefas de seu interesse e, assim, desenvolver seus talentos;

• consciência aguçada de si que pode levar o indivíduo a se perceber como diferente;

• grande sensibilidade e intensidade emocional, que possibilita um conhecimento mais aprofundado de si mesmo e do ambiente ao seu redor. (p. 44)

Observando-se por essa ótica, Will tem várias dificuldades de ordem emocional. A primeira delas é a rebeldia, tanto é que deu origem ao adjetivo indomável na versão em português.

O comportamento rebelde se caracteriza fortemente na não aceitação de sua capacidade superior, preferindo trabalhos menores em que não precisasse utilizar seu potencial. Ele prefere o trabalho e estudo solitários.

Will tem quatro colegas, de companhia constante, e tem preferência por conversas sem profundidade.

É considerável apontar que, não é incomum os indivíduos com capacidade superior esconderem seus talentos. Possivelmente, para não chamar a atenção (cristalizando a diferença) ou não se sentir fora do grupo, especialmente entre os adolescentes que nessa idade estão construindo suas identidades, conforme mencionado anteriormente.

Pode ser receio de serem estigmatizados? Goffman (2008, p. 13) define o estigma como: "Um atributo profundamente depreciativo que estigmatiza alguém e pode confirmar a normalidade de outrem, portanto, ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso".

Mas como os indivíduos talentosos podem ser estigmatizados se normalmente são alvos de admiração?

Goffman (2008) ao se referir ao estigma direcionou seus conceitos aos indivíduos com marcas depreciativas como as deficiências, por exemplo. No entanto, em direção contrária, aqueles que possuem capacidades que se salientam podem ser estigmatizados, pois sobressair por apresentar capacidade superior remete à diferença, e essa nem sempre é aceita.

O estigma em indivíduos talentosos pode ser conhecido ou não pelo indivíduo. Nesse sentido, Goffman (2008, p. 47) assinala sobre o encobrimento que:

O estigma é escrupulosamente invisível e conhecido só pela pessoa que o possui que não conta nada sobre ele a ninguém. Se fizermos um exame descobriremos que, ocasionalmente, ele terá que optar por ocultar informações cruciais sobre sua pessoa.

O estigma, como construção social, pode ocorrer nas situações em que a diferença se apresenta.

Uma das características dos indivíduos talentosos é o senso de humor. Will o possui em alto nível e utiliza a ironia ácida para livrar-se de pressões. Utilizou-a em alto grau com os terapeutas contratados para orientá-lo e nas entrevistas em instituições renomadas.

Inconformado, sempre questionava regras que o colocassem à prova.

O terapeuta perseverante, Sean Macguire, na base do diálogo, consegue vencer o senso de humor ácido e a agressividade de Will, e eles se tornam grandes amigos.

Para Will que não tem família constituída, os quatro amigos se tornaram sua referência, sendo companheiros constantes, como também se desencadeia uma relação de amizade com seu terapeuta Sean Macguire.

Para Fernandes (2011), os indivíduos que não possuem uma família constituída, nos padrões considerados normais, devem ter alguém como referência forte para se desenvolverem. Pode ter sido esse, o caso de Will.

 

Considerações finais

Os fatores emocionais das pessoas mais capazes são normalmente assinalados sob o prisma da dificuldade ou até mesmo do distúrbio que essa parcela de indivíduos pode ter.

De fato, os problemas emocionais e sociais dos indivíduos não são características próprias dos que possuem inteligência superior em qualquer área de domínio humano. Problemas emocionais podem ocorrer em qualquer pessoa, seja ela talentosa ou não. Na verdade, potencial superior denota diferença, e essa é relação conflituosa nos âmbitos pessoal e social.

Mitos refutados por pesquisas, como ser emocionalmente fraco, ser inadaptável socialmente ou ter algo de louco, infelizmente ainda povoam o imaginário popular.

O filme, ora utilizado como pano de fundo para reflexões, apresenta uma personagem com graves dificuldades de comportamento, apesar de seu brilhantismo intelectual. Por via da orientação psicológica, a obra expõe que os indivíduos que apresentam características de alta capacidade necessitam de acompanhamento que subsidiem aceitação e harmonia para conviver com suas diferenças.

A partir da situação fictícia colocada pelo filme Gênio Indomável, pode-se repensar a realidade cotidiana. A literatura especializada da área do talento indica que pode haver Wills, pelo menos, 3 a 5% colocados no extremo direito da curva de Gauss ou mesmo de 15 a 20% de qualquer população nas seis áreas de domínio da capacidade humana.

No âmbito educacional, percebe-se que os potencialmente capazes não são contemplados em programas sistematizados de reconhecimento e serviços educacionais, pois ficam à margem esperando serem vistos nas salas de aulas ou nos corredores de alguma instituição de educação de nosso país.

Espera-se, com este ensaio, chamar a atenção para os Wills reais que não são frutos de ficção oriundos de uma mente fértil de diretores de cinema e, sim, realidade possível em nossas escolas e sociedade que persistem em ignorá-los.

 

Referências

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1 Sriniva Ramanujan - matemático indiano e sem formação acadêmica que realizou contribuições substanciais nas áreas de análise matemática, teoria dos números, séries infinitas e frações continuadas.