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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.36 São Paulo jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Investigando trabalho e formação docente na creche: contribuições de Vigotski e Bakhtin

 

Investigating work and education of the teachers of nursery: contributions of Vygotsky and Bakhtin

 

Investigando el trabajo y la educación del maestros de guarderia: contribuciones de Vygotsky y Bakhtin

 

 

Maria Nazaré da Cruz

Universidade Metodista de Piracicaba. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba nazarecruz@bol.com.br

 

 


RESUMO

Neste texto, discutem-se contribuições da psicologia histórico-cultural de Vigotski e da teoria enunciativodiscursiva de Bakhtin para o estudo da formação e do trabalho de professores, a partir do exame de aspectos metodológicos de uma pesquisa sobre as elaborações que professoras de educação infantil realizam a respeito de suas práticas educativas, ao tomarem sua própria atuação com as crianças como objeto de análise. Focalizando um episódio de interlocução entre professoras, coordenadora pedagógica e pesquisadora sobre uma atividade filmada em um berçário, problematizamos, mais especificamente: o que se vê, quando se toma a própria atuação como objeto de análise; o que e de que posição falam a pesquisadora, as professoras e a coordenadora pedagógica; e, finalmente, as possibilidades de desenvolvimento das práticas educativas provocadas pela análise conjunta de situações de trabalho.

Palavras-chave: metodologia de pesquisa; autoconfrontação; professores de educação infantil; Vigotski; Bakhtin.


ABSTRACT

In this paper we discuss contributions of historical cultural psychology of Vygotsky and dialogical theory of Bakhtin to the study of formation and work of teachers starting from the review of methodological aspects of a research about the elaborations that nursery school teachers do about their educational practices, when they take their own activity with the children as object of analysis. Focusing on an episode of dialogue between teachers, educational coordinator and researcher about an activity filmed in a nursery, we question, more specifically: what the subject sees when taking their own performance as the object of analysis; what and from which position the researcher, the teachers and the educational coordinator speak; and finally, the possibilities for educational practices development caused by joint analysis of work situations.

Keywords: research methodology; auto confrontation; Vygotsky and Bakhtin.


RESUMEN

En este artículo se discuten las contribuciones de la psicología histórico-cultural de Vygotsky y de la teoría dialógica de Bakhtin para estudiar la formación y el trabajo del profesorado, a partir del examen de aspectos metodológicos de una investigación sobre las elaboraciones que profesoras de educación infantil realizan sobre sus prácticas educativas, cuando toman su propia acción con los niños como objeto de análisis. Centrándose en un episodio de diálogo entre profesoras, coordinador educativo e investigador acerca de una actividad filmada en una guardería, cuestionase, más específicamente, lo que se ve cuando se toma la propia acción como objeto de análisis; lo que y de qué posición hablan el investigador, las profesoras y el coordinador educativo; y, por último, las posibilidades de desarrollo de las prácticas educativas causadas por el análisis conjunto de las situaciones de trabajo.

Palabras clave: metodología de la investigación; auto confrontación; Vygotsky y Bakhtin.


 

 

Neste trabalho, pretende-se discutir algumas contribuições da psicologia histórico-cultural de Vigotski e da teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin para o estudo da formação e do trabalho de professores, tomando para análise aspectos metodológicos de uma pesquisa cujo objetivo é investigar as elaborações que professoras de educação infantil realizam sobre suas práticas educativas, ao tomarem sua própria atuação, em diferentes atividades com as crianças, como objeto de análise1.

Nesta investigação, parte-se do pressuposto de que o trabalho e a formação docente se organizam coletivamente, marcados pelas relações histórico-culturais em que se realizam: pelos modelos e heranças com os quais se confrontam; pelas inúmeras prescrições e coerções relativas às políticas educacionais, à organização das escolas, à carreira, aos programas de ensino, entre outras; pelas comunidades que atende; pelas tarefas que se apresentam.

Assim, professoras e professores vão se formando e se constituindo em sua singularidade no contexto das relações sociais e de trabalho, em que marcas das formas de organização social do trabalho docente e dos modelos de professor em circulação nas práticas sociais vão sendo internalizadas e, ao mesmo tempo, ressignificadas, num movimento que implica unidade e dispersão, continuidades e rupturas.

Nessa perspectiva, não há uma relação com o trabalho docente que se possa apreender de uma perspectiva estritamente individual. A relação com o trabalho instaura-se e materializa-se em um contexto intersubjetivo: é mediatizada pelo outro, fisicamente presente e/ou incorporado às experiências vividas em diferentes contextos e de diferentes modos, e constituída pela linguagem. É na concretude dessas relações que as reflexões do professor podem ser mobilizadas. Elas não nascem dele, de sua consciência, mas de sua relação com o outro, da experiência que lhe é exterior, mediada pela linguagem (Bakhtin, 1929/1990). Como afirma Vigotski (1929/2000), na mesma linha de argumentação, há que se buscar o que o homem é, não no interior de sua consciência, mas na trama das relações sociais em que se constitui.

Para esses autores, a linguagem se destaca, entre as produções culturais humanas, como meio de comunicação entre os homens e de significação da realidade. Sistema simbólico produzido coletivamente, a linguagem possibilita a comunicação e a ação conjunta sobre o mundo, com base em significados compartilhados pelos indivíduos e, nessa medida, fundamenta e possibilita as demais produções humanas, sejam artísticas, técnicas, científicas ou outras. Na linguagem se baseiam as relações entre os homens, a capacidade humana de criar, projetar e planejar, bem como sua possibilidade de transmitir a experiência e fazer história.

Do mesmo modo, tanto para Bakhtin (1929/1990) quanto para Vigotski (1934/1993), a própria consciência humana, como produção histórica, é de natureza semiótica. Pensamentos, crenças, emoções, cognição, todo funcionamento psíquico do homem constitui-se nas relações sociais, mediadas pela palavra. A partir desses pressupostos, Vigotski "concebe o estudo do homem como ser que se constitui imerso na cultura - nas experiências coletivas e práticas sociais - e como produtor-intérprete de sistemas semióticos" (Góes, 2000, p. 12).

Essas proposições têm decorrências metodológicas, algumas das quais serão exploradas neste trabalho. Para isso, apresentaremos o percurso metodológico da pesquisa realizada com professoras de educação infantil e destacaremos um episódio, construído nessa investigação, de interlocução entre professoras, coordenadora pedagógica e pesquisadora sobre uma atividade filmada em um berçário. As análises incidirão basicamente sobre aspectos metodológicos da pesquisa, a saber: sobre o que se vê, quando se toma a própria atividade como objeto de análise; sobre o que e de que posição falam a pesquisadora e as professoras; sobre as possibilidades de desenvolvimento das significações do gesto da professora que é analisado.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

O desenho metodológico da pesquisa foi construído com base na proposta de Yves Clot e colaboradores (Clot, 1999/2006; Faïta & Vieira, 2003; Clot & Faïta, 2000; Clot, Faïta, Fernandez & Scheller, 2000) sobre a autoconfrontação cruzada assumindo, no entanto, a alteração de certos aspectos da configuração metodológica por eles elaborada, com o objetivo de adequá-la ao escopo desta pesquisa e às situações de trabalho encontradas entre as professoras que participaram como sujeitos desta investigação.

Para Clot et al. (2000), a autoconfrontação cruzada é uma metodologia de co-análise, que implica relações entre pesquisadores e coletivos de trabalho, durante todo o processo de análise das situações estudadas. Sinteticamente, pode-se dizer que o primeiro passo dessa metodologia - que se baseia fundamentalmente no procedimento de filmar situações de trabalho e submetê-las à análise dos próprios trabalhadores - consiste na constituição de um grupo de análise, que começa pela observação das situações e dos contextos de trabalho a fim de produzir concepções partilhadas com os trabalhadores. O segundo passo é o registro em vídeo de sequências de atividade de cada membro do grupo e depois a filmagem dos comentários que o sujeito, confrontado com imagens de sua própria atividade, dirige ao pesquisador (autoconfrontação simples: sujeito/pesquisador/imagens). Em seguida, são reunidos, em pares, os membros do grupo, para que se filme os comentários dirigidos, na presença do pesquisador, por um trabalhador a seu colega, quando é confrontado com o registro do trabalho desse último (autoconfrontação cruzada: dois sujeitos/pesquisador/ imagens). A última fase é a apresentação de uma montagem, construída a partir do conjunto do material filmado, ao coletivo envolvido no trabalho de análise.

É importante destacar que, nessa proposta metodológica, a linguagem, longe de ser somente um meio para o sujeito explicar o que ele faz ou vê, torna-se um meio para levar o outro a pensar, sentir e agir conforme sua perspectiva. Essa metodologia de análise, de acordo com seus propositores, toma forma de uma atividade reflexiva do trabalhador sobre seu próprio trabalho. Assumindo que compreender é pensar em um novo contexto, eles veem a atividade reflexiva sobre o trabalho como a redescoberta do que ele foi, como possibilidade realizada entre outras possibilidades não-realizadas, mas que não cessam de agir. Assim, o realizado não teria mais o monopólio do real, pois é preciso considerar que as atividades suspensas, antecipadas, inibidas formam com as atividades realizadas uma unidade que, embora desarmônica, precisa ser sempre considerada (Clot et al., 2000).

Neste trabalho, apenas alguns aspectos da autoconfrontação acima explicitados são explorados, numa adaptação de seus procedimentos ao contexto da investigação que foi realizada em uma escola pública de educação infantil e fundamental, de um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo, cujas diretora e coordenadora pedagógica buscavam apoio para atender à formação de professoras de educação infantil em Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC). Essa escola havia recentemente expandido seu atendimento, que inicialmente restringia-se ao ensino fundamental, para a educação infantil. Sua diretora e sua coordenadora pedagógica não possuíam experiência de trabalho com a educação infantil e estavam tentando organizá-lo, investindo na própria formação e na formação docente em HTPC.

Assim, a pesquisadora inseriu-se no contexto da escola não apenas como quem busca conhecer o trabalho que lá se realiza, mas também como formadora que se dispõe a trabalhar, em horários de trabalho pedagógico coletivo, com as demandas formativas apresentadas pela escola.

Na escola atuam 15 professoras de educação infantil, das quais 11 trabalham com crianças de 0 a 3 anos. Embora todas as professoras de educação infantil da escola participem do processo de formação em horários de trabalho pedagógico coletivo, na pesquisa foram priorizadas as professoras de creche (0 a 3 anos) para efeitos da análise das elaborações que realizam sobre suas práticas educacionais. Sendo assim, sete professoras que trabalham com crianças de 0 a 3 anos participaram da investigação. Todas são concursadas como professoras de educação infantil e possuem formação em curso superior. Têm entre 24 e 43 anos. O tempo de experiência no trabalho com crianças pequenas é variável, mas não ultrapassa dez anos. As professoras aceitaram ser filmadas após um período inicial de convivência com a pesquisadora nas reuniões semanais de HTPC. Toda sessão de filmagem foi previamente agendada com as professoras, que puderam indicar o momento da rotina e o tipo de atividade que gostariam de analisar. Em alguns casos, ao dar início às filmagens, foi possível perceber uma grande preocupação das professoras em mostrar o que consideravam melhor em seu trabalho com as crianças, tendo planejado com cuidado as atividades que seriam registradas2. As sessões de autoconfrontação envolveram uma ou duas (quando trabalham em dupla com a mesma turma de crianças) professoras, a pesquisadora/formadora3 e, eventualmente, a coordenadora pedagógica.

Neste contexto, cabe esclarecer que à pesquisadora interessava não apenas o potencial formativo do procedimento, mas especialmente as possibilidades, abertas pela metodologia da autoconfrontação, de aproximação das elaborações que se produzem quando as professoras tomam sua atuação como objeto de atenção e análise, a partir de imagens de sua própria atividade e da atividade de seus colegas. Tais possibilidades implicam a linguagem e os diferentes lugares e posições que cada participante da pesquisa, incluindo a pesquisadora, assume nessas elaborações. Ou seja, interessava, do ponto de vista teórico-metodológico, a consideração de que o outro é constitutivo das elaborações do sujeito sobre a própria atividade. No procedimento utilizado, o sujeito não é apenas convidado a assistir-se, colocando-se numa posição de exterioridade em relação a si próprio. O que está em jogo é bem mais que a relação do sujeito com a própria experiência, pois se trata da retomada da experiência como objeto da interlocução com pesquisadores e colegas de trabalho, em um novo contexto.

A participação da coordenadora pedagógica nas sessões de autoconfrontação justifica-se pela sua posição estratégica no processo de formação das professoras e de construção de um projeto para a educação infantil nessa escola. Entendendo esses momentos de autoconfrontação como possibilidades de formação para as professoras e para si próprias, a coordenadora participa deles, buscando sua unidade e suas relações com um projeto mais amplo de formação. Desse modo, as sessões de autoconfrontação, que se configuravam como procedimento central da pesquisa e da qual professoras e coordenadora pedagógica constituíram-se sujeitos, tornaram-se parte do processo formativo desenvolvido na escola.

Assim, embora nessa situação o procedimento de autoconfrontação tenha sido adaptado e inserido num contexto de investigação distinto da proposta de Clot (1999/2006; 2008/2010) para a abordagem do trabalho e da atividade, entende-se que é possível o diálogo, a partir da pesquisa realizada, com algumas das bases teóricas4 em que se sustentam as proposições do autor, mais particularmente, com a psicologia histórico-cultural de Vigotski e com a teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin.

Para isso, selecionamos parte do diálogo desenvolvido durante uma sessão de autoconfrontação realizada com duas professoras de berçário, Fernanda e Ana, que trabalham juntas com crianças de até 12 meses de idade, da qual participou, além da pesquisadora/ formadora, a coordenadora pedagógica da escola. No momento da realização da pesquisa, Fernanda tinha 43 anos de idade e 8 anos de experiência no magistério, tendo iniciado sua carreira na rede privada, na qual ainda lecionava para turmas de ensino fundamental, em período oposto ao de seu trabalho na escola municipal de educação infantil. Ana, com 28 anos de idade, possuía 4 anos de experiência na docência em educação infantil e trabalhava apenas na escola municipal.

A filmagem analisada na sessão de autoconfrontação foi realizada na sala do berçário na qual encontram-se, além dos berços disposto lado a lado encostados à parede, brinquedos distribuídos em prateleiras ou no chão, onde há um grande tapete e também um amplo colchonete encostado à parede. Há ainda uma pia, cadeiras do tipo bebê-conforto, aparelho de som e outros materiais como livros e CDs. No centro da sala, um grande espaço vazio utilizado para brincadeiras e atividades diversas. Uma grande porta dá acesso ao solário.

A filmagem foi realizada em um momento anterior ao horário do almoço das crianças, em que as professoras se revezam trocando suas fraldas. Algumas crianças estavam deitadas em bebês-conforto ou sentadas no colchonete (com ou sem apoio, conforme a necessidade), enquanto outras participavam da brincadeira de atravessar um túnel de pano, organizada pelas professoras. A troca de fraldas e higiene das crianças era feita no fraldário, ao lado da sala do berçário. Nesse momento da rotina, entre o sono da manhã e o almoço, habitualmente as professoras desenvolvem atividades e brincam com as crianças e, no dia da filmagem, contavam também com a colaboração de uma estagiária. Havia música tocando.

 

DESENVOLVIMENTO DAS ANÁLISES

As professoras no processo de "assistir-se": o que se vê

A seguir, serão apresentadas as transcrições de uma cena filmada no berçário e do diálogo entre as participantes da pesquisa sobre a mesma, acompanhadas de análise.

A cena filmada5

No centro do berçário, está estendido um túnel de pano. As crianças estão passando por dentro dele, engatinhando, incentivadas pela professora Fernanda, que está sentada no chão segurando uma das extremidades do túnel. Fernanda sai do berçário e Ana assume seu lugar.

Um menino que está sentado no colchonete, ao lado túnel, começa a chorar. Após um breve tempo, a estagiária aproxima-se do menino chorando, dando-lhe as mãos para ajudá-lo a levantar-se. O menino caminha, sendo apoiado pela estagiária, na direção de Ana, que estende os braços para ele e o senta em seu próprio colo, aconchegando-o junto ao corpo e encostando sua cabeça na dele. Ana continua a falar com as outras crianças.

O diálogo sobre a cena

Pesquisadora: Eu parei nessa parte aí, porque eu achei... Bem, foi logo no começo, não sei se vocês acompanharam, mas eu estava ligada ali no que estava acontecendo com você [dirigindo-se à Ana] e com as crianças. Eu não sei o nome dele ainda... [indicando uma das crianças]

Ana: O Miguel.

Pesquisadora: O Miguel estava chorando... Você acompanhou o que aconteceu ali, vocês viram?

Fernanda: Que ele veio chorando e sentou no colo dela e...

Alice: Se acalmou.

Fernanda: E se acalmou.

Pesquisadora: Isto. É. Mas, olha, quer ver, não é só que ele senta, na verdade... você pega, né? [dirigindo-se à Ana] Ele vinha vindo com a outra [a estagiária] e você esticou o braço e pegou.

Fernanda: Ele acalmou.

Na cena destacada pela pesquisadora/formadora, inicialmente o gesto de Ana, de estender o braço para uma das crianças que chora, não é relevado por nenhuma das pessoas que a assistem. Fernanda, parceira de trabalho de Ana, ressalta na cena o fato de a criança sentar-se no colo da professora. Alice e Fernanda apontam também que, com isso, a criança se acalmou.

Essa situação provoca inicialmente uma indagação a respeito do que é possível ver quando se toma a própria atividade como objeto de atenção. Interessanos especialmente a diferença de visões possíveis: o que a pesquisadora/formadora vê não é o que veem as professoras e/ou a coordenadora. Embora, do ponto de vista espaço-temporal, todas as participantes do diálogo ocupem um lugar exterior à cena assistida, seus olhares não coincidem.

Colocadas numa posição de exterioridade em relação à própria atividade, que se apresenta diante de seus olhos em um filme, as professoras precisam encontrar uma posição de distanciamento, para que possam se relacionar consigo mesmas. Isso, de acordo com Bakhtin, não é algo que ocorra de modo imediato. Ele escreve que mesmo quando nos contemplamos no espelho, "permanecemos em nós mesmos e só vemos o nosso reflexo, um reflexo que não poderia, de maneira imediata, tornar-se um componente de nossa visão e de nossa vivência do mundo" (Bakhtin, 1920-1924/1997a, p. 52). Isso porque nos falta um meio de abordagem de nós mesmos, o que nos leva a buscar no outro uma posição, que é sempre valorativa, a respeito de nós mesmos.

Sendo assim, o que as professoras podem ver de si mesmas é afetado pela presença dos interlocutores, já que é somente a partir do outro que podemos encontrar uma posição relativamente a nós mesmos. Mas isto não significa que o olhar que lançam sobre si mesmas duble ou reitere o olhar de outros. Quando estão no centro da cena observada, o que as professoras podem ver condensa aquilo que sabem e em que acreditam sobre si mesmas, o julgamento e a avaliação que os outros podem realizar a respeito de sua atuação, bem como sua própria atitude em relação a esse julgamento.

Por sua vez, de um lugar exterior, não apenas em relação à cena assistida, mas em relação aos sujeitos dessa cena e à sua experiência, a pesquisadora/formadora pode ver o que elas não veem. Como sustenta Bakhtin (idem, p. 43),

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver (...) Graças a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença dos horizontes, mas para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem.

Logo esse excedente de visão não é determinado exclusivamente pela posição espacial que cada um ocupa em relação ao outro, mas fundamentalmente pela singularidade do lugar de cada um no mundo. É por isso que, mesmo quando todas as participantes do diálogo ocupam uma posição de exterioridade em relação à cena assistida, seus olhares não coincidem. No caso do pesquisador, conforme analisa Amorim (2003), aquilo que percebe e compreende do sujeito da pesquisa e os sentidos que lhe atribui são marcados pela sua posição e por seus valores. Podemos compreender, então, que nessa perspectiva a pesquisa é sempre lugar de tensão, em que a diferença de visões é também diferença de posições, de conhecimentos e de valores.

Se tomarmos para a análise as diferentes posições ocupadas por cada uma das participantes da situação de pesquisa, podemos primeiramente destacar que apenas Ana aparece na cena assistida e ela própria inicialmente não diz o que vê. Fernanda, como parceira de trabalho de Ana, embora não se veja nessa cena específica (havia saído do berçário para trocar uma criança), está também em uma posição de quem tem/terá o próprio trabalho como objeto de atenção e análise. O que cada uma delas faz - Ana e Fernanda - não se (con)funde, mas se articula. Suas posições no grupo que assiste à cena são as que mais se aproximam. Como veremos mais adiante, elas podem falar "a gente", "o nosso trabalho". Nessa situação, elas são "nós".

Alice, coordenadora pedagógica, embora participe do cotidiano da escola, ocupa nele um lugar diferente das professoras. Também na situação em que um grupo assiste à filmagem do trabalho das professoras, ela não é parte desse "nós" que está no centro da cena analisada. Tem sobre ele, no cotidiano da escola, alguma autoridade, e na situação de pesquisa - que é conduzida pela pesquisadora/formadora - sua posição é marcada por ambiguidades. Enquanto nessa situação as professoras têm seu trabalho analisado, a pesquisadora/ formadora atua como aquela que, de acordo com seus objetivos, interesses e intenções, filmou e selecionou a cena em foco, conduzindo assim as análises. Por sua vez, a coordenadora partilha com as professoras a posição de quem vive o cotidiano da escola e de quem recebe formação, mas também partilha/disputa com a pesquisadora o papel de formadora, como veremos mais adiante, na continuidade do diálogo em análise. Assim, ela aparece como alguém que participa do diálogo exercendo algum tipo de controle, mas que, em função de sua experiência muito recente com a educação infantil, também se posiciona como aprendiz, como alguém em formação.

Do mesmo modo, a posição da pesquisadora/ formadora funde diferentes perspectivas, já que os objetivos, interesses e estratégias de pesquisa e de formação, embora possam se aproximar, não são exatamente os mesmos. Também o procedimento de que faz uso é um procedimento, ao mesmo tempo, de formação e de investigação.

A interlocução de professoras, coordenadora e pesquisadora/formadora: de que posição se vê e se fala

Para aprofundar a compreensão desta questão das diferentes posições, são apresentados, a seguir, outros dois extratos do diálogo entre professoras, coordenadora e pesquisadora sobre a cena já descrita, que possibilitam adensar as análises sobre as posições a partir das quais cada uma das participantes do diálogo vê a cena e fala sobre ela, bem como sobre as relações entre essas diferentes posições.

Ana: É que ele é uma criança que... a gente está tirando o soninho dele depois do leite. É que ele está ficando maiorzinho. Então, a gente está tirando o soninho dele depois do leite e, até ele se adaptar, ele está estranhando bastante. [...]

Fernanda: Então, como ele está maiorzinho já, e esse sono depois do leite estava atrapalhando o sono depois do almoço, que a gente acha mais importante, porque nessa hora do sono depois do leite é uma hora que a gente faz também atividade, a gente prioriza a hora do sono depois do almoço. Então, conforme eles forem crescendo, a gente vai tirando esse sono [depois do leite].

Ana: Esse soninho!! E ele está difícil. Porque na hora em que ele se acostuma a ficar sem esse sono, ele falta. Aí, quando ele volta [à escola], ele volta tudo de novo. Então, esse pode ter sido um dos motivos por que ele estava mais chorão.

Pesquisadora: Então! Mas aqui o que me chamou atenção não foi nem ele estar chorão... É que fui selecionando coisas pra gente olhar um pouco o trabalho da professora do berçário, do trabalho de vocês...

Quando focamos o diálogo transcrito acima, podemos notar que as professoras, que não relevaram na cena o gesto de Ana, procuram explicar por que Miguel chora. Uma multiplicidade de sentidos se produz nessa interlocução.

Se lembrarmos que Bakhtin, ao definir a enunciação como produto da interação social, não circunscreve a situação imediata como instância central para a produção de sentidos, seremos levados a considerar a participação de um contexto mais amplo, histórico e cultural, nesse processo. Esse autor, de acordo com Brait (2002, p. 37), "acena com a participação do interdiscurso, ou seja, da história e da memória, nem sempre explícitas na situação, mas sem dúvida participantes ativas na produção de sentidos".

Assim, pode-se dizer que o sentido das enunciações se produz no encontro entre aquele que fala, aquele que ouve (ou a quem a enunciação é dirigida) e as vozes que de antemão ecoam na palavra encontrada pelo falante.

Retomando o diálogo em análise, podemos nos indagar sobre os sentidos da explicação, oferecida pelas professoras, a respeito dos (possíveis) motivos pelos quais a criança chora. Como interpretar essa explicação no contexto desse diálogo? As professoras não foram diretamente questionadas sobre isso. A pesquisadora/ formadora insiste na discussão sobre o gesto da professora. Esse, no entanto, implica necessariamente a criança que chora e que é acalmada. Para Bakhtin (1952-1953/1997b), a relação com os enunciados de outros, que ecoam no que o falante diz, não pode ser separada da relação com o objeto sobre o qual se fala, uma vez que é sobre esse objeto que os enunciados discutem, concordam, disputam, se encontram.

O choro da criança num berçário precisa ser compreendido, precisa ser explicado; o choro deve ser evitado, já que pode ser sinal de maus-tratos, de descaso, de desconforto; o choro da criança, afinal, é sempre sinal de que algo não está bem. Um berçário onde as crianças choram demais pode ser visto como resultado de falhas na atuação das professoras. Essas podem ser cobradas, pela hierarquia escolar, sobre sua atuação em relação a crianças "choronas". Todos esses sentidos sobre o choro que circulam socialmente - nas práticas de atenção à criança, dentro e fora da escola - parecem ecoar nas explicações que as professoras oferecem. Em seus dizeres há ainda uma tomada de posição em relação ao choro da criança e em relação à pesquisadora e à coordenadora. Ao apresentarem os motivos pelos quais a criança chora, elas também explicitam aspectos de seu trabalho, esclarecendo procedimentos que adotam em relação às crianças: "a gente está tirando o soninho dele depois do leite e, até ele se adaptar, ele está estranhando bastante"; "esse sono depois do leite estava atrapalhando o sono depois do almoço, que a gente acha mais importante, porque nessa hora do sono depois do leite é uma hora que a gente faz também atividade".

Ao se explicarem, as professoras referem-se a si mesmas como "a gente", que aqui pode tanto assumir o sentido de "nós duas" (que trabalhamos e fazemos essas escolhas juntas), quanto um sentido mais genérico que remete ao coletivo do ofício. Como escreve Clot (2008/2010, p.254), "essa voz que diz 'a gente' no discurso do 'eu', fala pelas maneiras de fazer comum no coletivo e com elas". Ou seja, quando devem justificar para a pesquisadora/formadora certo modo de fazer, as professoras dispõem de uma história coletiva que lhes serve de apoio. Nesse sentido, os sujeitos observam-se não apenas com seus olhos, mas também com olhos externos - do pesquisador, da coordenadora e do coletivo do ofício.

A pesquisadora/formadora (e, em certa medida, também a coordenadora) é alguém para quem é necessário explicar aspectos de seu ofício, alguém que não partilha das escolhas feitas no trabalho cotidiano das professoras. Mas é também alguém que, em virtude da própria formação e do papel de formadora que exerce junto ao grupo de profissionais da escola, possui alguma autoridade sobre esse mesmo trabalho. Nesse sentido, explicar os motivos pelos quais a criança chora e as escolhas que elas realizam quanto ao sono das crianças, assume o caráter de esclarecer e justificar-se num mesmo movimento.

No entanto, a fala da pesquisadora/formadora, ao final do fragmento de diálogo destacado, parece buscar repor o foco no gesto de Ana, ao assumir que o que lhe interessou não foi o fato de a criança estar chorando, mas aquilo que as professoras fazem. Essa tentativa de repor o foco no gesto da professora parece condensar, de modo tenso, intenções de pesquisa e de formação que não coincidem. Talvez por isso as intenções da pesquisadora/formadora não pareçam claras às suas interlocutoras, como podemos notar a partir do extrato do diálogo a seguir, em que começam a falar sobre o gesto da professora.

Alice: Mas eu percebi o momento que ele... Você percebeu assim? Ele estava chorando, meio andando, na hora que ela encostou a cabeça nele, assim, ó [fazendo gesto com a cabeça]. A questão do toque, da proximidade... ela encostou a cabeça nele assim, não sei o que ela falou direito, não dá pra ouvir, ele parou. Pesquisadora: Sim.

Alice: Um aconchego, sei lá, um chamego de mãe, não sei. Eu percebi assim.

Pesquisadora: Então, mas é chamego de mãe? O que é, né? É isso que eu queria....

Alice: Não sei.

Fernanda: Acho que é meio instinto, não é, N. [dirigindo-se à pesquisadora]? Não sei, a gente tem. Ana: Mas você vê como uma coisa positiva esse negócio de eu ter pegado ele?

Pesquisadora: Não, eu vejo, eu vejo, eu fico...

Alice: Eu vejo mais positivo ainda a questão dela pegar e dar esse afago nele. Eu acho que isso aproxima mais a criança do professor.

Fernanda: É verdade.

Um movimento parece delinear-se na interlocução transcrita acima: o gesto da professora de estender o braço em direção à criança que chora, que inicialmente não é percebido ou destacado na cena assistida, ao ser focalizado pela pesquisadora/formadora, passa a ser explicado - inicialmente pela coordenadora pedagógica - como aconchego, chamego de mãe. Tal explicação, no entanto, é questionada pela pesquisadora/formadora: "então, mas é chamego de mãe?". A coordenadora responde que não sabe e a professora Fernanda, em sua fala, acrescenta a idéia de instinto à explicação do gesto de Ana, para a qual solicita a concordância/confirmação da pesquisadora/formadora.

Nesse momento, Ana, que até então não havia se manifestado sobre o próprio gesto, quer saber a opinião da pesquisadora/formadora sobre ele, indicando que não compreende suas intenções ao problematizá-lo ("Mas você vê como uma coisa positiva esse negócio de eu ter pegado ele?"). Se lembrarmos Bakhtin (1929/1990, p. 96, destaque do autor):

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.

É somente ao conteúdo ideológico, valorativo da palavra que podemos responder. A inteireza acabada do enunciado é necessária para que possamos compreendê-lo e responder a ele. A intenção discursiva do falante, que determina o todo da enunciação, é elemento fundamental dessa inteireza (Bakhtin, 19521953/1997b). Ela precisa ser sentida, interpretada pelo ouvinte, para que esse possa assumir uma atitude responsiva - também carregada de tons ideológicos e valorativos - em relação ao discurso do outro.

Aqui também estão implicadas as diferentes posições ocupadas pelos sujeitos da interlocução. A pesquisadora/formadora responde ao todo do enunciado de Ana e, desse modo, assume uma dada posição em relação a ele e em relação àquilo sobre o que se fala. Mas sua resposta, embora afirme uma visão positiva sobre o gesto da professora, é lacônica, o que talvez indique a tensão entre pesquisa e formação que marca suas intenções discursivas: para a pesquisadora, trata-se de compreender como a professora percebe o próprio gesto; para a formadora, trata-se de levá-la a percebê-lo como gesto profissional que pode e deve ser carregado de concepções e intenções. Assim, se é preciso tranquilizar a professora sobre possíveis julgamentos de seu gesto (já que não se trata - para a pesquisadora/ formadora - de avaliá-lo como certo ou errado), é preciso também que sua resposta à inquietação de Ana não se configure como a imposição de um discurso sobre o gesto, de um dado modo de compreendê-lo e de falar sobre ele.

Nesse contexto, a resposta da pesquisadora/formadora ao questionamento de Ana revela marcas de um processo de elaboração discursiva, de escolha das palavras que possam realizar suas intenções discursivas. Mas esse processo é cortado pela fala da coordenadora pedagógica que também responde à indagação da professora, embora essa não fosse dirigida a ela. A coordenadora manifesta sua concordância e sua aprovação em relação ao gesto da professora e, ressaltando uma de suas características (a de "dar esse afago nele"), dá a ele um sentido de aproximação entre professora e criança, desejável de seu ponto de vista. A resposta da coordenadora parece indicar: um movimento de partilha e disputa do lugar de formadora; a afirmação de um dado modo de ocupar esse lugar, dizendo se o gesto do outro é adequado ou não; certa compreensão do processo de formação como lugar de aprendizado do que se deve ou não fazer, de como se deve agir; uma tentativa de retomar a idéia de aconchego que havia trazido para o diálogo anteriormente. Sua resposta bem como o aval que recebe da professora Fernanda marcam a continuidade do diálogo.

As possibilidades de desenvolvimento do gesto da professora

A seguir, apresentamos a transcrição da continuidade do diálogo sobre o gesto da professora, com o objetivo de analisar as possibilidades de desenvolvimento desse gesto instauradas pela interlocução.

O diálogo sobre o gesto da professora continua.

Pesquisadora: Pois é. Aí eu acho que é uma coisa assim... Na verdade, quando eu paro para olhar e conversar com vocês, é um pouco também pra saber o que vocês pensam desse aspecto do trabalho de vocês. Porque, aparentemente as primeiras coisas que vocês falaram "ah não sei", "é reflexo", "é instinto", é uma coisa que a gente faz sem pensar muito. É isso? De certo modo é, não é?

Fernanda: Eu acho que no berçário é muito isso, é muito colo...

Alice: É muito toque...

Fernanda: É carinho, é aconchego o tempo todo... Ana: Porque a gente sabe que eles sentem a falta da mãe.

Alice: E até eu, que não estou no berçário, nas vezes em que eu vou lá, e são poucas... Hoje na hora que eu cheguei, quando você vê uma criança chorando, o seu instinto é pegar, porque eu peguei ele no colo, e a primeira coisa que você tem que fazer é fazer algum carinho pra mostrar "eu estou aqui e me importo com você!".

Pesquisadora: É, então, mas... Vocês sabem que não é necessariamente assim, né? Tem um monte de práticas educativas tanto em casa, quer dizer de mães, tias e tal, quanto nas escolas que vão defender uma outra linha. Vocês nunca ouviram dizer, por exemplo, que se vocês pegarem [no colo] a criança fica manhosa? Por que eu estou falando isso? Eu achei, eu acho que tem que... Pra todo mundo ficar tranquilo aqui, eu acho que tem que atender a criança! Então, eu achei assim... isso aqui é muito, muito representativo daquilo que vocês fazem. Quer dizer, quando você estica o braço, coloca [a criança no colo], aconchega e continua ali falando com o outro, e daqui a pouco você vai pedir a meia, vai por a meia nele... Acho que esse é um aspecto do trabalho de vocês, que trabalham com a criança pequenininha, que nem sempre é valorizado ou é priorizado, justamente porque a gente tem uma idéia de que é uma coisa de... meio automática, meio de "a gente vê chorar e pega", não é verdade? [Mas] tem quem veja chorar e deixe chorando...

Ana: Eu trabalhei numa escola uma vez, num berçário como auxiliar, em que a diretora não deixava pegar a criança no colo. Você tinha que acalmar a criança no chão sem você segurar ela....

Alice: Acho meio complicado....

Ana: E eu não consigo ser assim, deixar uma criança chorando. Você sabe que muitas vezes ela não se distrai com o brinquedo que está ali, que ela precisa disso, de vir no colo um pouco e se acalmar. É o que você falou, depende muito da visão de cada um.

Ao se assistirem e serem levadas a falar sobre aquilo que fazem, as professoras têm a oportunidade de retomar a experiência vivida em um novo contexto. Na interlocução transcrita acima, o gesto da professora de estender o braço em direção à criança que chora, que primeiramente é explicado como colo, toque, carinho, aconchego, como algo que é típico do berçário, ao ser, mais uma vez, problematizado pela pesquisadora, passa a ser compreendido como significativo de concepções sobre o atendimento à criança pequena em situação de choro.

A exterioridade em relação ao gesto analisado, mediada pelos dizeres da pesquisadora, possibilita uma espécie de redescoberta de sua atividade pelas professoras, num contexto em que "o que era operação incorporada e resposta automática volta a ser questão" (Clot, 2008/2010, p. 254). Assim, pode-se dizer que

A tomada de consciência não é, portanto, a descoberta de um objeto mental inacessível anteriormente, mas a redescoberta - a re-criação - desse objeto psíquico em um novo contexto que o "faz ver de outra maneira". Compreender é pensar em um novo contexto. (Idem, p. 148)

Para Bakhtin (1970/1997d), a exotopia, no espaço e no tempo, daquele que compreende em relação àquilo que quer compreender é fundamental ao ato de compreensão, que é sempre dialógico. Discorrendo sobre o estudo da cultura, na antropologia, ele afirma que:

Na cultura, a exotopia é o instrumento mais poderoso da compreensão. A cultura alheia só se revela em sua completitude e em sua profundidade aos olhos de outra cultura (e não se entrega em toda a sua plenitude, pois virão outras culturas que verão e compreenderão ainda mais). Um sentido revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um sentido alheio (...). (Idem, p. 368)

Nessa perspectiva, rever o próprio gesto e compreendê-lo, atribuindo-lhe novos sentidos, é algo tornado possível, no contexto da interlocução. A pesquisadora/formadora endereça suas indagações sobre o gesto às professoras e à coordenadora, indagações que elas próprias não formulariam, e assim participa ativamente do processo de compreensão dos sentidos do gesto.

Outra experiência profissional é trazida à interlocução, quando Ana relata sua vivência em uma escola onde não se podia pegar no colo as crianças que choravam, devendo-se acalmá-las sem tirá-las do chão. Alice mostra seu desacordo com esse tipo de orientação, e Ana afirma: "eu não consigo ser assim"! Podemos notar que, nesse momento, não se trata mais de "a gente", não é mais o "ofício que se fala". Ao contrário, sou "eu" que não consigo fazer assim, que diante de diferentes modos de proceder numa situação de trabalho, reafirmo minha opção por uma delas. Conforme Clot (2008/2010, p. 160):

Não há apropriação rigorosa e definitiva entre o gesto e o gênero de atividade pessoal em que ele toma lugar. Várias maneiras pessoais de fazer podem, portanto, convergir no âmago do mesmo gesto de ofício e, até mesmo, entrar em conflito. (...) O gesto é, pois, também uma arena social em que se avaliam as maneiras de ver, sentir e fazer.

Nesse quadro, o gesto da professora pode adquirir novos sentidos. Interessa-nos particularmente a passagem que, nesse caso, se pode operar: de reação automática, não percebida, o gesto torna-se gesto profissional que condensa intencionalidades, concepções. Pesquisa e formação se entrecruzam nesse movimento que abre possibilidades de desenvolvimento das práticas realizadas pelas professoras e das significações do gesto de Ana.

Para Vigotski (1933/1996, p. 187), o que determina o desenvolvimento das significações é a "cooperação entre consciências", o "processo de alteridade da consciência". A alteridade constitutiva da dinâmica interlocutiva provoca o desenvolvimento da significação do gesto analisado, num processo - como vimos - necessariamente marcado pelas tensões implicadas nos diferentes modos de ver e de se posicionar de cada sujeito.

Retomando a conhecida frase em que Vigotski cita Blonski - "é somente em movimento que um corpo mostra o que é" -, Clot afirma que o desenvolvimento "só pode ser objeto da psicologia se ele é, também, seu método" (2008/2010, p. 63). Embora, no contexto proposto pelo autor, essa idéia seja traduzida por um método que se caracteriza também como meio para os sujeitos descobrirem suas capacidades ao avaliarem o que fazem, interessa-nos aqui a contribuição de Vigotski que ensina a estudar processos, a "encontrar as condições gerais mediante as quais se produz algo de novo" (idem, p. 63).

Na perspectiva de Vigotski, a análise de processos supõe olhar para os fenômenos como movimento e mudança, numa abordagem genética, e não de apenas descrevê-los. Ele nos convoca a procurar "identificar relações dinâmico-causais, devendo o investigador buscar distinguir a aparência e os processos da dinâmica subjacente" (Góes, 2000, p. 13). A ideia de relações "dinâmico-causais" procura romper com uma causalidade linear, em que há uma causa e seu(s) efeito(s), remetendo, mais uma vez, a processos e transformações. No caso em questão, trata-se particularmente de apreender os processos e os movimentos nos quais os gestos das professoras se constituem e suas práticas profissionais se fazem e se refazem.

No contexto da educação infantil, há toda uma massa de gestos cotidianos - que imediatamente não visam à elaboração de conhecimentos ou ao desenvolvimento de habilidades específicas das crianças - constituindo as práticas educativas das professoras e que, via de regra, não são percebidos como gestos profissionais. São gestos automatizados, cristalizados às vezes, e que escondem a história de sua formação. Vigotski afirma que, no comportamento humano, com muita frequência encontramos "processos já fossilizados":

A fossilização da conduta se manifesta sobretudo nos chamados processos psíquicos automatizados ou mecanizados. São processos que, por seu extenso funcionamento, têm se repetido milhões de vezes e, por isso, automatizam-se, perdem seu aspecto primitivo e sua aparência externa não revela sua natureza interior. (1931/1995, p. 105)

Cabe à pesquisa, então, a tarefa de promover processos de análise, de re-significação e de desenvolvimento desses gestos, para compreendê-los. A análise do gesto de Ana, realizada na interlocução em foco neste trabalho, permite compreender aspectos do processo de sua constituição: o gesto, aparentemente "instintivo, automático", parece condensar práticas e concepções desenvolvidas pela professora em sua trajetória profissional e que, em conjunto com outros elementos das situações vividas, orientam suas escolhas atuais. Permite, ao mesmo tempo, a ressignificação do gesto, abrindo possibilidades de desenvolvimento das práticas educativas das professoras. Como ensina Vigotski, analisar processos é compreender a história, o desenvolvimento, não como passado apenas, mas, sim, como "curso de transformação que engloba o presente, as condições passadas e aquilo que o presente tem de projeção do futuro" (Góes 2000, p. 13).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto para Vigotski quanto para Bakhtin, o conhecimento sempre se produz numa relação entre sujeitos histórica e culturalmente situada. Como afirma Pino (2000), a ciência é histórica, é produto da atividade humana que, como tal, está ligada às condições de sua produção. Se, mesmo quando buscamos conhecer a natureza, esse conhecimento se produz na relação com outros, em dadas condições histórico-culturais - e "a natureza passa a integrar a história humana na forma de ciência da natureza" (idem, p. 49, destaque do autor) - quando se trata da pesquisa em Ciências Humanas, em que não há mais objetos de conhecimentos, mas apenas sujeitos, essa relação ganha contornos específicos. Nesse caso, conforme Bakhtin (1959-1961/1997c, p. 341), "o estudo torna-se interrogação e troca, ou seja, diálogo".

Retomando a intenção inicial de, nesse trabalho, problematizar alguns aspectos da abordagem metodológica em foco - tais como: o que se vê, quando se toma a própria atividade como objeto de análise; o que e de que posição falam a pesquisadora e as professoras; e as possibilidades de desenvolvimento das significações do gesto da professora que é analisado - podemos indicar que o que se vê guarda estreitas relações com os movimentos de interlocução em ocorrência na situação de pesquisa. A imagem, a cena, o gesto ganham significações no diálogo entre os participantes da pesquisa.

Nessa abordagem metodológica, que se baseia na análise conjunta das situações de trabalho docente, estão implicadas formas peculiares de diálogo entre as participantes da pesquisa. Embora, de algum modo, todas estejam envolvidas na análise da cena focalizada, seus processos de elaboração não coincidem, já que cada uma delas assume posições diferentes em relação ao objeto e aos objetivos da análise, bem como em relação às demais participantes da pesquisa. Não há, portanto, igualdade e/ou simetria entre os processos de elaboração de cada uma.

Neste contexto, a confrontação da própria ação configura-se como um processo complexo que implica inclusive a confrontação dos outros participantes do diálogo. A professora tem de lidar com o que ela vê e pensa de sua atuação no acontecimento observado diante dos dizeres das demais participantes que, por sua vez, podem ver e pensar de maneira semelhante, diferente ou divergente, tanto em relação à professora focalizada quanto entre si. Estranhamento, indagação, subordinação, concordância, afirmação, disputa são, como vimos, elementos constitutivos da interlocução analisada e marcam, portanto, os processos de elaboração sobre a própria prática educativa.

Além disso, a abordagem metodológica em análise neste texto, fundamentada em Vigotski e Bakhtin, implica necessariamente a produção, em situação de pesquisa, dos processos que se pretende analisar. Ou seja, as elaborações das professoras e os sentidos que atribuem ao próprio trabalho não são tomados como já dados, mas como (re)construções que se fazem na relação com a pesquisadora e com as demais participantes da pesquisa. Nessa direção, tal abordagem possibilita a articulação entre pesquisa e formação, como atividades que têm como objeto o trabalho docente, uma vez que as significações produzidas nas situações de investigação possibilitam, ao mesmo tempo, a compreensão e a transformação do próprio trabalho.

 

REFERÊNCIAS

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1 Esta pesquisa contou com financiamento CNPq, no período de 2009 a 2011.
2 Ao argumento de que as situações tomadas para análise poderiam possuir alguma artificialidade, não correspondendo ao dia a dia do trabalho docente, é possível responder que a própria metodologia de análise pode e deve dar conta dessas questões por meio da seleção dos segmentos que serão analisados e dos modos de conduzir as sessões de autoconfrontação, bem como pela consideração desses aspectos no próprio desenvolvimento da análise, quando for o caso. Além disso, o desejo e a iniciativa das professoras de mostrar o melhor de seu trabalho, num contexto em que esse será tomado como objeto de análise, parece-nos legítimo.
3 A denominação pesquisadora/formadora procura marcar posições que são distintas, em seus propósitos, interesses e modos de atuação, - a de pesquisadora e a de formadora -, mas que, neste caso, configuram um lugar único, ocupado por uma única pessoa.
4 Como aponta Clot (2008/2010), além de Vigotski e Bakhtin, suas bases teóricas são autores da ergonomia, psiquiatria e psicologia do trabalho, como Wisner, Le Guillant e Oddone, entre outros.
5 Os nomes dos participantes da cena e do diálogo sobre a cena são fictícios, visando manter o anonimato dos participantes da pesquisa. No processo de transcrição das falas, algumas marcas da oralidade, não essenciais para análise, foram modificadas com o objetivo de tornar a leitura dos episódios mais fluente.