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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.37 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Cartas reflexivas: um recurso de intervenção em psicologia educacional

 

Reflective letters: resource intervention in educational psychology

 

Cartas reflectantes: recurso de dispositivos en psicología de la educación

 

 

Paula Cristina Medeiros RezendeI; Laena Guilherme OliveiraII; Layla Raquel Silva GomesIII

IUniversidade Federal de Uberlândia. Professora da Universidade Federal de Uberlândia. lalamedeiros@netsite.com.br
IIUniversidade Federal de Uberlândia. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia
IIIUniversidade Federal de Uberlândia. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

A partir das contribuições do Construcionismo Social, especialmente das produções referentes à terapia narrativa, este trabalho relata uma experiência de atuação em Psicologia Educacional, dando visibilidade ao uso de um recurso de intervenção no contexto da educação infantil, que foi denominado "cartas reflexivas". A prática, que se deu por meio de um estágio supervisionado, foi realizada em uma escola de aplicação, envolvendo duas salas de educação infantil, durante aproximadamente um ano. A imersão no cotidiano escolar, acompanhando semanalmente as atividades realizadas, alimentou e sustentou a produção de diálogos que, por meio das cartas reflexivas, tratavam de co-construir uma nova narrativa que convidasse a diferentes ações e reflexões sobre o coditiano educacional, contribuindo para a ressignificação da infância e dos processos de desenvolvimento e aprendizagem.

Palavras-chave: construcionismo social, cartas reflexivas, educação infantil.


ABSTRACT

From the contributions of Social Constructionism, especially productions concerning narrative therapy, this work comes with the order to report an experience of practice in school psychology, giving visibility to the use of a device, which was called "Reflective Letters" as a resource intervention in the context of early childhood education. The practice, which was through a supervised training was held in a school application, involving two child education, for approximately one year. Immersion in school life, following the weekly activities, nourished and sustained production of dialogues, through reflective letters, tried to co-construct a new narrative to invite the different actions and reflections on the daily education, contributing to the redefinition of childhood and of the processes of development and learning.

Keywords: social constructionism; reflective letters; early childhood education.


RESUMEN

A partir de los aportes de construccionismo social, especialmente producciones sobre la terapia narrativa, esta obra viene con el fin de informar de la experiencia de la práctica en psicología escolar, dando visibilidad a la utilización de un ferramenta, que se llama "Cartas de reflexión", como un recurso intervención en el contexto de la educación infantil. La práctica, que era a través de un entrenamiento supervisado se llevó a cabo en una aplicación de la escuela, con la participación de dos de educación infantil, de un semestre. La inmersión en la vida escolar, a raíz de las actividades semanales, producción alimentada y sostenida de los diálogos, a través de las letras reflectantes, trató de co-construir una nueva narrativa para invitar a las diferentes acciones y reflexiones sobre la educación cotidiana, contribuyendo a la redefinición de la infancia y de los procesos de desarrollo y aprendizaje.

Palabras clave: construccionismo social; letras reflexivas; educación infantil.


 

 

O presente artigo pretende dar visibilidade a um recurso de intervenção em Psicologia Educacional, visando fomentar o conhecimento que circunda o encontro entre a Psicologia e a educação infantil. Tendo como base o referencial teórico do Construcionismo Social e inspiradas pelas articulações de White e Epston (1990) acerca das "cartas terapêuticas" em contextos clínicos, nomeamos de "cartas reflexivas" os textos elaborados e remetidos às educadoras da infância.

De modo a compreender a sustentação teórica desta experiência, faz-se necessário apresentar os preceitos básicos do Construcionismo Social e a utilização de cartas terapêuticas em contexto clínico, conforme proposto por White e Epston (1990), além de apresentar o modo como transportamos tal ferramenta para o contexto escolar, guardando suas especificidades e peculiaridades junto ao trabalho com educadores.

O Construcionismo Social apresenta-se como uma forma de investigação social voltada para as relações entre sujeitos sociais, compreendendo o modo como eles explicam e vivenciam o mundo ao qual pertencem (Gergen, 1999). A partir de Gergen (2009), podemos observar que o construcionismo não é uma teoria unificada, e sim uma confluência de diálogos que se desdobram entre participantes que variam em suas lógicas e valores. Para esse autor, o conhecimento não é uma verdade absoluta, e sim um discurso sócio-historicamente construído com base nas relações sociais. Epistemologicamente, o construcionismo compreende o conhecimento como uma função da interpretação social de uma comunidade linguística, atribuindo soberania ao significado construído pelas pessoas em interação (Grandesso, 2000).

Baseando-se nos trabalhos de Gergen (1999) e Burr (1995), elegemos apresentar as articulações centrais dessa perspectiva teórica, a saber: a compreensão da linguagem como base sustentadora das relações sociais e das descrições de mundo, o destaque da dimensão histórico-cultural no processo de conhecimento do mundo; a consideração dos relacionamentos sociais como fundamentais na constituição e manutenção do conhecimento; a interligação entre conhecimento e ação; e o reconhecimento de uma postura crítica e reflexiva. O construcionismo social nos convida à busca do sentido negociado e compartilhado. Quando descrevemos determinadas situações usando uma forma específica de narrativa, convidamos nossos interlocutores a diferentes ações e construções de realidade (Gergen, 1999).

Sustentada por esSa rede conceitual, que realça a linguagem como forma de ação social, as Cartas Reflexivas surgem como uma ferramenta que enriquece o processo de intervenção no cotidiano escolar fomentando a reflexão das práticas que o compõem.

Compreender a linguagem como construtora da realidade, reforça a compreensão das narrativas em seu potencial de conferir sentido e legitimar a ação das pessoas. Em diálogo aberto com o construcionismo social, a terapia narrativa, articulada principalmente pelos autores White e Epston (1990), sustenta que é por meio da linguagem como prática social que construímos, significamos e constituímos nossas experiências.

A terapia narrativa convida o cliente a explorar novas e outras possibilidades de narrar suas histórias. Por meio das narrativas de reautoria os clientes se veem encorajados a ousarem novas descrições sobre suas vidas de acordo com histórias e acontecimentos alternativos que tenham resultados mais desejáveis. Essa abertura conversacional possibilita o estabelecimento de um processo dialógico, no qual as mudanças podem ser autenticadas (Epston e cols., 1998). O terapeuta, nesse sentido, tem como foco de ação o fortalecimento dessas narrativas de forma que as mesmas possam ser legitimadas e o cliente passe a constituir e ocupar um lugar "inédito" para si e para seus companheiros conversacionais.

Essas premissas são as que sustentam a confecção e a utilização das cartas terapêuticas em contextos clínicos. Por meio da palavra escrita, as cartas terapêuticas são compreendidas como uma forma de narrativa específica que convida a diferentes ações e reflexões, podendo construir novas realidades. As cartas têm como objetivo ampliar o discurso, iluminar elementos antes periféricos, catalisar novas conexões, movimentar as cenas do cotidiano descritas como "sem saída".

De acordo com White e Epston (1990), os elementos constitutivos das cartas terapêuticas são o contexto, o conteúdo, as intenções e os efeitos gerados a partir da narrativa do cliente em sessão. Seu formato literário, além de documentar a prática clínica, permite explorar episódios inéditos que podem alimentar, favorecer novas e múltiplas perspectivas, principalmente por meio de perguntas reflexivas que buscam expandir espaços para novas descrições. Barros e Rasera (2012) apontam que a força retórica das narrativas depende das pessoas que complementarão seu sentido. No contexto terapêutico o terapeuta representa o parceiro conversacional que disponibiliza diversos recursos que propulsionam o processo de reautoria do cliente. O terapeuta, ao escrever as cartas, deve estar atento para a utilização de informações contidas originalmente nos encontros, estando sensível ao outro e ao que será legitimado por meio de linguagem escrita.

As experiências relatadas por Barros e Rasera (2012), acerca da utilização das cartas terapêuticas em settings circunscritos ao atendimento clínico, engendraram a possibilidade de transposição de tal recurso para o contexto escolar, visando provocar mudanças qualitativas no processo de formação de educadores da infância. A migração dessa ferramenta para o contexto educacional fez com que a nomeássemos como "Cartas Reflexivas". As cartas reflexivas convidam a múltiplas interpretações do cotidiano que corroboram para o desenvolvimento de uma linguagem de mudança, em que acontecimentos e encontros estão conectados e são revisitados podendo adquirir novos sentidos, sempre em movimento.

Segundo Larrosa (2010), cartas são como presentes que remetemos, elas seriam "(...) parte de nós mesmos que remetemos aos que amamos, esperando uma resposta" (p. 140). Dessa forma, o uso das cartas reflexivas proposto neste trabalho ocupa este lugar de presente, de algo cuidadosamente elaborado para um remetente particular. As cartas são singulares e devem buscar a amplificação dos sentidos produzidos a partir de uma realidade compartilhada. Portanto, não é tarefa simples escrever uma carta reflexiva. Exige de seu comunicador um cuidado especial com o que escreve, com as palavras que utiliza e com a narrativa que propõe ao seu remetente.

Por meio da escrita das cartas, pretendemos criar espaços onde o educador pudesse dar continuidade ao seu processo de formação e que possibilitasse exercer com autoria uma prática marcada por experiências criativas, com sentidos voltados para a constituição de uma infância rica e plural.

O conceito de infância que escolhemos como fio condutor neste trabalho está de acordo com a perspectiva histórico-cultural, que considera o homem como um ser ativo, social e histórico; e a sociedade como resultado de uma produção histórica dos homens (Bock, Gonçalvez e Furtado, 2009). Ou seja, estar com crianças envolve abertura incondicional para o que ela tem a nos oferecer, deixando-se surpreender pela sua condição de investigadora de mundos. O mesmo autor nos convida a sair do lugar de "sujeito da apropriação, que é aquele que devora tudo que encontra convertendo-se em algo à sua medida" (p. 196), e nos convoca a estar no lugar de "sujeito da experiência que sabe enfrentar o outro enquanto outro (...) e se deixa tombar e arrastar por aquele que lhe vai ao encontro" (p. 197).

Desse modo, adulto e criança se constituem mutuamente durante a história e em um contexto. Juntos constroem sentidos e significados do mundo infantil e adulto, se opondo, contrapondo e complementando; demarcando um campo de tensão e confronto presente no cotidiano desses sujeitos (Leite, 2007). A criança é um autor e ator social, um interlocutor que se relaciona com o mundo conversando, brincando, questionando e, na medida em que realiza esse intercâmbio, possibilita a construção de diferentes versões de sentido.

Dahlberg, Moss e Pence (2003) aproximam-se desse pensamento na medida em que reconhecem algumas características deste novo paradigma da infância, as quais são de relevante importância para a atuação do Psicólogo Educacional envolvido diretamente com a educação infantil.

Nesse cenário, o presente trabalho tem como razão apresentar um recorte de uma atuação em Psicologia Educacional relacionada à formação em serviço de professores da educação infantil. Tendo como referencial teórico o Construcionismo Social utilizamos as cartas reflexivas como uma ferramenta de ação voltada para a intervenção do cotidiano escolar infantil.

 

CONTEXTO DA EXPERIÊNCIA

Esta experiência foi desenvolvida em um estágio supervisionado em Psicologia Educacional, com duração aproximada de um ano, envolvendo uma supervisora e cinco estagiárias do curso de graduação em Psicologia. As estagiárias trabalharam grande parte do tempo em duplas.

O objetivo do estágio foi oferecer subsídios teórico-práticos que permitissem o aprofundamento da reflexão e o desenvolvimento de ações voltadas para as situações de aprendizagem e desenvolvimento de crianças de 3 a 6 anos em instituições educacionais, no intuito de construir, com as educadoras, um projeto educativo voltado para a qualidade do processo de ensino e aprendizagem no contexto da Educação Infantil.

A prática apresentada neste trabalho foi desenvolvida em uma escola de aplicação, junto a três professoras da educação infantil e seus respectivos alunos.

Inicialmente, apresentamos a proposta ao coordenador pedagógico e às professoras, esclarecendo as principais características do trabalho. Esse primeiro contato propiciou um encontro de expectativas no qual foi possível negociar como seriam as próximas ações. Destacamos esse momento como fundamental, pois nossa intenção era constituir junto com esses profissionais uma corresponsabilização pelo trabalho. Juntos, afinamos os objetivos, horários, número de observações semanais que respeitasse a dinâmica da sala e o modo como nos apresentaríamos para as crianças.

Após o aceite da proposta, iniciamos a atuação desenvolvendo as seguintes atividades: entrevistas com as educadoras, observações participantes semanais do cotidiano escolar, elaboração de diários de bordo e cartas reflexivas, encontros com as educadoras para compartilhar e escrita das cartas e ressonâncias das mesmas, podendo ocorrer por meio de encontro presencial ou texto escrito.

As entrevistas foram orientadas no sentido de compreender o percurso das professoras, sua trajetória profissional e compor a história que as levaram ao encontro com a infância. A postura utilizada durante as entrevistas foi de uma escuta aberta, curiosa e ativa, direcionada para o comprometimento com a história narrada.

As observações participantes tinham o intuito de apreender e vivenciar cenas no cotidiano escolar. As estagiárias se colocavam no cenário escolar tendo como foco as diferentes relações construídas entre educadora-crianças e crianças-crianças, e ainda, atentavam para o modo de proposição, organização, elaboração e condução das atividades.

As observações e reflexões sobre a experiência foram registradas em diários de bordos construindo um relato livre, espontâneo e autoral, propiciando às estagiárias um exercício simultâneo de síntese e expansão. Os diários de bordo também serviam de inspiração para a elaboração das cartas, pois continham o registro de muitos episódios eleitos como importantes pelas estagiárias, além de perguntas reflexivas que oportunizavam, junto ao educador, uma sensibilização crítica voltada para as ações do cotidiano escolar.

A escrita dos diários de bordos e das cartas retroalimentava uma série de curiosidades e indagações, atraindo o desenvolvimento de um posicionamento crítico e reflexivo para as questões da formação do educador infantil e da infância.

 

O USO DAS CARTAS REFLEXIVAS

A escrita das cartas reflexivas não adquire um formato padrão, se desdobrando em múltiplas maneiras de expressar e exercitar a reflexão, que estão ligadas ao que é próprio de cada remetente, adquirindo um caráter substancialmente subjetivo, uma vez que quem produz a carta expressa sua versão sobre o que foi observado e convida o outro a refletir e ampliar os repertórios sobre os temas destacados.

Não se trata de comunicar o que foi percebido, mas, sim, de refletir compartilhando, propondo outras formas de olhar e agir sobre determinadas situações, ampliando e dando sentido a elas. Dessa forma, o psicólogo que faz uso desta ferramenta também se beneficia, ao se propor sair do lugar naturalizado e de detentor do suposto saber, e se colocar em uma posição de parceria. Entender como o outro recebeu suas palavras faz parte da construção das cartas e da reflexão que só se dá de forma dialética.

As cartas, desse modo, têm uma marca autoral que é revelada através do estilo do escritor, que recorre a recursos artísticos e teóricos para assegurar o desenvolvimento da ideia que quer compartilhar com o educador.

Essa constatação pode ser exemplificada a partir de um trecho extraído de uma das cartas direcionada para uma das professoras. Neste trecho, as estagiárias tinham o intuito de compartilhar o sentimento vivido por elas ao observarem uma atividade, proposta pela educadora, que envolvia o jogo de quadrinhas que eram encenadas em uma brincadeira de contação de histórias. Inspiradas pela experiência, as estagiárias contextualizaram esse elemento como recurso conversacional na escrita da carta, elaborando a seguinte introdução:

Luz, câmera, ação!

Trinta dias tem novembro,

Abril, junho e setembro.

Vinte e oito só tem um,

Os demais todos trinta e um.

Foi na tarde de setembro

Que pudemos conhecer

Tia Fátima e as crianças

Que prazer é aprender!

Queríamos fazer quadrinhas

Que expressassem gratidão

Por ter conhecido as crianças

E a tia Fátima, que emoção!

Muitas cartas trocaremos

Numa boa parceria

Essa é só a segunda

Prever o desdobramento

Quem se anteciparia.

(Quadrinha retirada de uma das Cartas Reflexivas, inspirada na atividade realizada pela professora)

As autoras dessa carta iniciam a comunicação incorporando o estilo utilizado pela educadora. Tal escolha aproxima o interlocutor porque parte de uma realidade vivenciada em parceria. Com a escrita da quadrinha, as estagiárias chamam a atenção da educadora para a imprevisibilidade do trabalho que está por vir e aproveitam para agradecer a oportunidade da convivência com a sala.

A construção das cartas corrobora para um trabalho participativo que prevê instituir olhares e práticas transformadoras, pautado em uma Psicologia que busca a potência do outro, assim como podemos observar nos trechos que compuseram duas cartas distintas. Os excertos a seguir dão conta de cenas observadas pelas estagiárias e têm como intenção legitimar o trabalho das professoras e trazê-las para o centro da reflexão:

Admiro sua perplexidade ante o cotidiano da educação infantil, pois observo que você permite se surpreender com as crianças e com as inúmeras contribuições que elas tornam estranhamente inéditas. Digo isso me lembrando da sua surpresa de seu sorriso quando ao acompanhar a pintura da caixa de brinquedos, você demonstra um modo desorganizado e pergunta "Se pintar assim como que fica?" e Vanessa responde "fica bonito". E quando se surpreende pela loja organizada por Elisa, pela "ciência" descoberta por João e Rafael e tantas outras situações. (Carta Reflexiva endereçada a uma das professoras)

Durante a atividade da amarelinha, você se aproximou das crianças com mais dificuldades e as ajudou, mostrando fichas com os números e pedindo que outros colegas ajudassem também, sem provocar comparações entre a qualidade e o tempo em que cada criança realizava a atividade. Além disso, percebi seu entusiasmo com o desempenho deles por se tratar de uma primeira tentativa. (Carta Reflexiva endereçada a uma das professoras)

Dessa forma, o estagiário de Psicologia oferece uma escrita composta por cenas capturadas e narradas por ele, além de interrogações que propõem uma abertura a novos sentidos que aguardam ser negociados em um movimento dialógico quando da resposta e troca a respeito do que foi escrito.

É interessante comentar que a escrita das cartas, no momento em que passa a ser apropriada pelo outro, abre sentidos para diversas possibilidades de diálogos e entendimentos. Desse modo, é importante que o texto elaborado se oriente pelas as realidades ou sentidos que as palavras podem adquirir para o interlocutor.

Assim, ao compreender o lugar ocupado pelo ouvinte durante uma conversação é necessário destacar que esse também realiza recortes na história contada pelo outro a partir da forma como foi tocado pelas palavras que ouviu. Nesse movimento, cabe ao ouvinte dialogar sobre o que sua fala produziu nos demais participantes da conversa em um interjogo que gere novos significados. Dessa maneira, o diálogo se configura como uma investigação compartilhada, na qual o ouvinte e seu interlocutor entrelaçam seus sentimentos, opiniões e ideias de tal modo que ambos podem se transformar.

Evidencia-se que dialogar convoca a conviver não só com as convergências, mas também com as divergências que surgem quando pessoas com versões diferentes sobre uma mesma história se colocam em conversação dialógica. Isso requer uma postura de respeito pela alteridade do outro e principalmente de legitimação do lugar que esse ocupa na conversa (Grandesso, 2000).

Schnitman e Fuks (1996) referem que alguns interrogantes têm a capacidade de abrir novas perspectivas a partir de suas perguntas. O cotidiano, antes entendido como possível a partir de uma única leitura, pode ser lido sob diversas pupilas ou lentes, questionando a rigidez e verdades daquela realidade. As autoras articulam questões que ajudam a refletir sobre o que acontece enquanto conversamos:

Que tipo de conversa entre profissionais gera campos de possibilidades para o diálogo, e quais as inibem? Que tipo de certezas que paralisam ou mobilizam o diálogo? O que posso inserir em minhas interações que possibilite a abertura de alternativas? (Schnitman e Fuks, 1996, p. 18)

Sobre a produção de perguntas que levam o interlocutor a uma movimentação no sentido de superar a cristalização e naturalização de sua prática, apresentamos um recorte de uma das cartas elaborada por uma educadora. Ao ser indagada sobre os sentidos de ser professora na educação infantil, a educadora produz uma sequência de perguntas que revelam um movimento de flexibilidade e problematização em relação ao cotidiano bastante interessante. Essa ação reflexiva, muitas vezes desestabilizadora, possibilita a abertura para a geração de versões mais fluidas e situadas em relação aos atores envolvidos, fazendo com que o interlocutor caminhe no sentido de buscar posicionamentos mais interessantes.

A escola tem sido esse movimento contraditório. Ora me sinto muito bem, desejosa na parceria com as crianças e colegas de trabalho, ora não. Ora tenho vontade de fazer o possível, ora gostaria de transformar a escola, o impossível. Essas contradições de certo modo me impulsionam a pensar sobre elas e a compreender o sentido da escola para mim. Resposta a essa questão não tenho, ofereço perguntas, a mim mesma: Quem sou eu, nessa escola? Que escola é essa? O que tenho aprendido com essa escola? Esse espaço conta de mim? O que tenho saboreado nessa escola? Estou com pressa ou devagar? Quem sou na Turma? O que esta turma reverbera em mim.

(Carta Reflexiva de resposta de uma das professoras)

Anderson (2009) faz referência à ressignificação no modo de estar/ser com o outro. É uma postura que convida e encoraja o outro a participar do diálogo de uma forma mais igualitária. Destaca a palavra "com" para defender relacionamentos e conversações mais participativos e mútuos, na medida em que somos "com" as pessoas, falamos "com", reagimos "com", nos orientamos "com" e "para" a outra pessoa.

O papel de destaque que as perguntas geradoras de reflexões assumiram ao longo do trabalho foi sendo delineado concomitante ao desafio enfrentado por nós em elaborá-las. Colocar-se curioso e indagador, sustentando uma postura de não-saber, diante do que nos é familiar pode sim ser excitante, mas exige, por outro lado, um senso de desnaturalização. Esse posicionamento implica uma dose de estranhamento para o que é vivido como comum, natural, rotineiro e verdadeiro (Rezende, 2011).

De acordo com Rezende (2011), a atitude crítica e questionadora, a dúvida em relação às verdades universais e dominantes, a compreensão do conhecimento como processo social interativo e situado, a linguagem ativa e criativa, são proposições que de alguma forma sustentam e constroem um novo lugar para o profissional da Psicologia.

A seguir, apresentamos um trecho que retrata o momento em que a educadora lança mão de perguntas para fazer com que o grupo de crianças reflita sobre a escolha do candidato à direção da escola.

A importância dada à democracia no espaço da escola foi destacada por você em algumas de nossas conversas. Estava presente no dia em que as crianças foram convidadas a conhecer a chapa candidata à direção da escola. Reconheço essa tentativa, porém fiquei pensando no modo como as crianças são realmente incluídas e preparadas para esse momento de escolhas tão fundamentais. Nesse sentido, preciso destacar o momento anterior a irmos ao auditório, quando notei seu empenho em instigar as crianças a pensar sobre o que é uma eleição e sobre as funções da direção para a escola. Foi interessante e convidativo o modo como Mariana contesta esse momento dizendo "porque a gente tem que ir, isso não é coisa de criança". Ao perguntar para Mariana "Será que não?" você amplia a oportunidade oferecida por Mariana, conversando com as crianças sobre como eles são integrantes desse momento político.

Destaco uma cena na roda de conversa:

Vanessa - Eu fiquei em casa (fala baixinho e quase não escuto)...

Lucas - Isso não tem importância!

Educadora - Será que não?

Ao fazer uma pergunta no lugar de determinar que o que Vanessa disse havia importância, você coloca Lucas e as demais crianças em movimento de pensar. Essas duas situações me mostram uma professora que exerce o censo de autonomia e oferece a oportunidade de voz às crianças, legitimando a infância nesse espaço-escola. (Carta Reflexiva direcionada a uma das professoras)

De acordo com Gergen (2009), as perguntas configuram-se como importantes ferramentas reflexivas na escrita de cartas terapêuticas, uma vez que movimentam o diálogo, favorecendo novas conexões e formas de compreensão da realidade. Em busca de significados, a pergunta corresponde a um recurso essencial que se utiliza da dúvida como recurso fundamental. De acordo com Brun e Hoette (1997), no contexto clínico, a pergunta gestada no território de escuta, deixa de ser para o terapeuta compreender melhor o paciente e passa a ser usada como ferramenta que ajuda ambos a construir novas narrativas.

Rezende (2011) qualifica de "ouvido generoso" aquele que se põe ao diálogo de forma atenta e curiosa. Afirma que a "escuta generosa é uma doação ativa, um comprometimento com a história do outro" (p. 8). Essa postura implica uma disposição daqueles que estão no jogo conversacional um "não querer entender muito rápido". Segundo Bondía (2002), um bom ouvinte deve "(...) parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, (...) escutar mais devagar, (...) suspender a opinião, suspender o juízo, (...) aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro (...)" (p. 24).

O desafio da escuta, da escrita e da negociação de sentidos entre as participantes tornou a experiência com a utilização das cartas reflexivas bastante interessante para se refletir sobre a qualificação de profissionais das áreas da Pedagogia e da Psicologia. Recuperamos um trecho de um diário de bordo de autoria de uma das estagiárias que realça em seu percurso a aprendizagem de ser uma autora de cartas:

Descobri no recurso das cartas reflexivas uma ferramenta viva, onde me encontrei pela possibilidade de refletir a partir e através das palavras escritas, em um exercício constante e, em muitos momentos, exigente, de produzir novos sentidos e ampliar repertórios para pensar as relações que se estabelecem no contexto escolar. (Trecho extraído de um Diário de Bordo)

Compreendemos que as cartas reflexivas são recursos úteis que revelam, tanto para remetente quanto para destinatário, a importância de gestar perguntas que movimentam uma escrita cuidadosa. As cartas nos convocam a novas maneiras de compreender a infância, o processo de desenvolvimento e aprendizagem; e também a práxis do pedagogo e do psicólogo no espaço educacional infantil contribuindo para a constituição de um posicionamento mais consistente e reflexivo.

De maneira análoga, as educadoras legitimam a força da experiência vivida na medida em que observam uma transformação de seu cotidiano, amplificando os momentos e a qualidade das reflexões engendradas. Essa legitimidade é reforçada no encerramento do trabalho quando, por meio de carta, algumas das educadoras comentam sobre as reverberações da participação no projeto, como segue:

Tenho observado o quanto as cartas têm tido um efeito em mim para reflexão contínua. Elas me fazem rever, reavaliar, reconsiderar ou mesmo reafirmar meu trabalho em sala de aula. A troca entre Psicologia e Pedagogia é algo que tem muito a contribuir uma com a outra. (Carta Reflexiva de resposta de uma das professoras)

As cartas reflexivas e os momentos de lê-las com você foram momentos instigantes para mim. Fizeram-me "pensar" sobre mim mesma, sobre as minhas opções de formação, a minha constituição (eterna) docente. (Carta Reflexiva de resposta de uma das professoras)

Assim, a utilização das cartas reflexivas no contexto escolar possibilitou a problematização do dia a dia, trazendo indagações e provocações para a rotina de trabalho, além de propulsionar versões e narrativas mais fortalecidas dos sujeitos envolvidos, seja a educadora, a criança ou o estagiário de Psicologia.

Consideramos importante ressaltar a relevância das ferramentas de intervenção que se utilizam da linguagem escrita para reflexão e transformação do processo educativo e de desenvolvimento humano. Além disso, percebemos que tal prática colabora para afinar o diálogo entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento adquirido com a prática profissional, sobretudo com destaque para o potencial dessa interlocução para a qualidade da formação continuada de profissionais da Educação, da Psicologia e de áreas afins.

 

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