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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.37 São Paulo dez. 2013

 

COMPARTILHANDO

 

Elementos de psicologia dos povos: o princípio da linguagem e o pensamento do homem primitivo1

 

Elements of folk psychology: the beginnings of language and the thinking of primitive man

 

Elementos de la psicología de los pueblos: el principio de lenguaje y el pensamiento del hombre primitivo

 

 

Wilhelm WundtI; Estevão de Carvalho FreixoII

IUniversidade Estácio de Sá
IIDepartamento de Psicologia. Universidade Estácio de Sá. estevaof@ig.com.br

 

 


RESUMO

O trabalho trata de uma tradução de duas seções da obra Elemente der Volkerpsychologie, de Wilhelm Wundt, tendo sido feita a tradução a partir da versão inglesa publicada por George Allen & Unwin Ltd. em 1916, que ganha o título Elements of Folk Psychology. As seções vistas na tradução são "O princípio da linguagem" (The Beginnings of Language) e "O pensamento do homem primitivo" (The Thinking of Primitive Man). No conteúdo traduzido, Wundt investiga a origem e o desenvolvimento do pensamento humano a partir do estudo comparativo da linguagem de tribos primitivas, usando também como exemplo a linguagem dos gestos e a linguagem infantil, com as quais traça comparações de sintaxe e tonalidade. O autor identifica as formas de pensamento que se revelam através da estrutura das línguas primitivas, observando, porém, que o conteúdo implícito nas características formais, de natureza senso-perceptiva, e não conceitual, não é inerente às formas dessas línguas, sendo necessário o exame das ideias em si mesmas e os sentimentos e as emoções a elas associados, tarefa essa que cabe à Psicologia Experimental.

Palavras-chave: pensamento; linguagem; História da Psicologia.


ABSTRACT

This paper is a translation of two sections of the work Elemente der Völkerpsychologie, by Wilhelm Wundt, and it has been done from the English version, which has as title Elements of Folk Psychology. The translated sections were "The beginnings of language" and "The thinking of primitive man". Within the translated content, Wundt investigates the origin and development of human thought from the comparative study of the language of primitive tribes, also using as an example the language of gestures and child language, with which draws comparisons of syntax and tonality. The author identifies ways of thinking that are revealed through the structure of primitive languages, noticing, however, that the implicit content in their formal characteristics, of a sense perception nature, and not conceptual, is not inherent to the forms of these languages, being necessary the examination of the ideas in themselves and the feelings and emotions associated with them, a task that falls to Experimental Psychology.

Keywords: thinking; language; History of Psychology.


RESUMEN

El trabajo es una traducción de dos secciones de la obra Elemente der Völkerpsychologie, de Wilhelm Wundt, y esta traducción fue hecha de la versión en Inglés, que se titula Elements of Folk Psychology. Las secciones que son vistas en la traducción son "El principio del lenguaje" y "El pensamiento del hombre primitivo". En el contenido traducido, Wundt investiga el origen y el desarrollo del pensamiento humano a partir del estudio comparativo de la lengua de las tribus primitivas, también utilizando como ejemplo el lenguaje de los gestos y del lenguaje del niño, con el que hace comparaciones de la sintaxis y la tonalidad. El autor identifica formas de pensar que se revelan a través de la estructura de las lenguas primitivas, señalando, sin embargo, que el contenido implícito en sus características formales, de carácter sensoperceptiva, y no conceptual, no es inherente a las formas de estos idiomas, siendo necesario el examen de las ideas en sí mismas y los sentimientos y las emociones asociadas a ellos, una tarea que incumbe a la Psicología experimental.

Palabras clave: pensamiento; lenguaje; Historia de la Psicología.


 

 

O PRINCÍPIO DA LINGUAGEM

O conhecimento que temos dos povos que podemos hoje considerar como primitivos, na medida em que evitamos os erros do passado, levou-nos à convicção de que as tribos asiáticas e africanas descritas acima foram realmente primitivas, no sentido relativo da palavra, como antes mencionado2. Naturalmente a questão relativa à linguagem desses povos começou então a despertar considerável atenção por parte não só de etnologistas, mas também daqueles interessados em Filologia. A questão é de igual importância, para dizer o mínimo, para o psicólogo, já que a linguagem está ligada ao pensamento. Sendo assim, a partir do fenômeno da linguagem, podemos fazer inferências sobre as características mais gerais do pensamento. Diferenças fundamentais de linguagem, como existem, por exemplo, entre as línguas chinesa e indo-germânica certamente não permitem a conclusão direta de que existem diferenças quantitativas no desenvolvimento mental. No entanto, elas implicam a existência de direções e formas de pensamento divergentes. Em sua mudança incessante, o pensamento produz efeitos sobre a linguagem, e essa, por sua vez, influencia características mentais. Nós não podemos supor que no período do alto-alemão antigo, e muito menos no período do alemão original, nossos ancestrais empregavam as mesmas formas de pensamento com as quais nós, nos dias de hoje, estamos familiarizados. É certo que, em grau menor, mudanças como essas sucederam em espaços de tempo muito mais curtos.

Essas considerações fazem com que a questão relativa à linguagem do homem primitivo seja de extrema importância psicológica. Contudo, as investigações linguísticas, na extensão em que elas, em suas primeiras tentativas, têm sido capazes de avaliar o campo, têm trazido à luz um fato que desencorajou todos os esforços no sentido de se descobrir uma linguagem original. De fato, era inevitável que à primeira vista esse fato parecesse excessivamente estranho, especialmente no contexto da vida do homem primitivo. Verificou-se que, na sua maior parte, as línguas originais das tribos primitivas não mais existem. É verdade que nos vocabulários dos Semang e dos Senoi de Malaca, dos Vedas do Ceilão, dos Negritos das Filipinas, e em outros vocabulários que foram coletados, podem ser encontradas palavras isoladas que não ocorrem nas línguas das tribos vizinhas; e é digno de nota que o arco e a flecha são os objetos mais frequentemente designados por tais palavras — uma prova de que essas invenções são de fato relativamente primitivas. No entanto, em geral os Vedas falam a língua dos Cingaleses e dos Tâmises; os Semang e os Senoi, assim como os Negritos das Filipinas, falam a de seus vizinhos, os Malaios; de modo semelhante, entre as tribos africanas, os Pigmeus da África Central aparentemente se apropriaram da linguagem dos Monbutus e outros povos negros, e os bosquímanos da dos hotentotes.

Como pode esse fato notável ser explicado? Que essas tribos possuíssem antes línguas próprias dificilmente pode ser posto em dúvida. Pois, no que diz respeito às características físicas, seus respectivos membros são de raças absolutamente distintas. Além disso, levando-se em conta suas características como um todo, é totalmente impossível que elas pudessem ser desprovidas de linguagem antes de vir a ter contato com os povos que entraram no país em período posterior. Como então esses povos aparentemente vieram a perder sua língua original? A isso nós podemos responder de modo breve que em tais casos sucedeu o que sempre ocorre quando o famoso princípio da luta pela existência é aplicado ao campo do fenômeno mental. O povo mais forte erradicou a mais importante criação mental do mais fraco, sua linguagem. A linguagem do povo mais fraco, que era provavelmente bastante frágil e incipiente, sucumbiu à que era mais desenvolvida. À primeira vista, essa explicação pareceria contradizer o que nós sabemos a respeito da vida dessas tribos primitivas. Com que ansiedade elas se isolam de seus vizinhos! Uma prova contundente disso é oferecida pela prática do escambo secreto, no qual o homem primitivo parte da floresta, se possível à noite, e deposita sua caça em um lugar por hábito reservado para esse propósito, retornando na noite seguinte para pegar o que quer que as tribos mais civilizadas da vizinhança tenham deixado em troca - instrumento de ferro, armas, material para vestimentas, e principalmente artigos de adorno. Os participantes dessa troca não veem um ao outro, muito menos falam um com o outro. Mas onde tal isolamento existe, como é possível a penetração de uma língua estrangeira? Esse problema parece quase insolúvel. Todavia, uma solução que parece no mínimo provável foi sugerida pelas investigações de Kern, um habilidoso estudioso holandês. Seus estudos foram baseados principalmente no desenvolvimento dos vários idiomas malaios. Uma exceção notável à regra de que as tribos primitivas teriam adotado a língua de seus vizinhos mais civilizados veio à luz no caso dos negritos das Filipinas. Seus vizinhos, assim como aqueles das tribos do interior de Malaca, pertencem ao povo bastante migrante dos malaios. Se compararmos as formações de palavras dos negritos que foram coletadas durante os últimos quarenta anos com o vocabulário dos vizinhos malaios, é evidente que todas as palavras são inteiramente diferentes, ou ao menos parecem ser, com poucas exceções. No entanto, quando Kern traçou o provável desenvolvimento dessas palavras e as comparou com estágios anteriores da língua dos malaios, ele descobriu que ali estavam contidos os equivalentes das palavras dos Negritos. Assim, muito embora os negritos tenham permanecido não afetados pelos malaios contemporâneos, que provavelmente entraram no país no mínimo há vários séculos atrás, eles evidentemente derivaram sua língua de um influxo malaio que ocorreu há muito antes. A isso deve ser acrescentado o fato demonstrável, colhido a partir de outra fonte, de que desde tempos muito antigos as tribos malaias empreenderam migrações em intervalos bastante separados. Atravessando os mares em seus barcos instáveis, diversas vezes povoaram as ilhas habitadas pelos Negritos, já que não estavam muito distantes do continente. Hoje as evidências da língua dos negritos, às quais nos referimos antes, demonstram que houve no mínimo duas dessas migrações às Filipinas, e que elas ocorreram em momentos bem diferentes. O dialeto malaio original, que agora se tornou extinto ou desconhecido para os malaios modernos, foi assimilado pelos povos negritos, que provavelmente ocuparam esse território antes da chegada de qualquer dos malaios. Mas isso leva a uma outra inferência. Se os Negritos se apropriaram da língua dos malaios em tempos pré-históricos e se nas condições atuais isso seria dificilmente possível, devemos concluir que as relações entre os imigrantes e os habitantes originais foram diferentes daquelas que agora prevalecem. E, na verdade, isso parece inteiramente provável se nós trouxermos à memória as descrições que os viajantes modernos dão de suas experiências entre esses povos primitivos. Os traços de caráter que os distinguem particularmente são o medo e o ódio de seus vizinhos mais civilizados; por outro lado, há o desprezo que esses últimos sentem, por conta de sua cultura superior, pelos povos mais primitivos. A única coisa que impede o povo imigrante de travar uma guerra de exterminação contra os habitantes originais é o medo da flecha envenenada que o negrito dirige contra seu inimigo numa emboscada. Em vista desses fatos, não é difícil entender o isolamento quase universal do homem primitivo nos dias de hoje. Por outro lado, viajantes que foram admitidos nas vidas das tribos primitivas do Malaca e do Ceilão e buscaram ganhar sua amizade unanimemente nos asseguram que uma vez que alguém tenha conseguido se aproximar dessas pessoas e vencer sua desconfiança encontra seus excepcionais traços de boa índole e sua presteza em dar assistência. Portanto, nós podemos justificar-nos em assumir que o isolamento do homem primitivo não era uma condição sua na origem, mas teria crescido em diversos lugares como resultado de uma guerra de exterminação a qual ele foi exposto por conta dos povos que tentavam expulsá-lo de grande parte de seu território. Antes que esse estado de coisas surgisse, o escambo dificilmente poderia ter tido esse caráter secreto, que somente o medo e o ódio poderiam lhe dar. Muito provavelmente a comunicação que necessariamente se deu entre os habitantes mais antigos e os povos mais recentes em tempos remotos levou a uma competição de línguas em que a língua mais pobre e menos desenvolvida do homem primitivo inevitavelmente sucumbiu. Ainda assim, a língua primitiva pode também ter exercido silenciosamente uma influência recípro ca sobre a língua mais avançada. Uma observação a qual não podemos escapar, mesmo em estágios bem mais avançados do desenvolvimento linguístico, é o fato de que nessa luta entre uma minoria superior e uma maioria menos civilizada, a primeira determina o principal grupo de palavras, e até mesmo, sob condições favoráveis, a forma gramatical, enquanto a última exerce uma influência decisiva na pronunciação. A língua dos bosquímanos é prova de que um processo similar ocorreu em relação à transformação das línguas primitivas. Essa é essencialmente um dialeto hotentote, ainda que caracterizada por certos traços de pensamento primitivo. Todavia, os Hotentotes derivaram seus conhecidos sons estalados dos bosquímanos, que também deram esses sons às línguas dos povos Bantu.

Mas seremos nós desprovidos de todo conhecimento em relação às formas gramaticais mais primitivas e à questão da origem da linguagem, em virtude do fato de que as línguas dos povos primitivos, com exceção de algumas poucas remanescentes, aparentemente se perderam? Existe uma consideração no tocante à questão das formas primitivas de pensamento e de linguagem que nos habilita a responder negativamente essa questão, apesar da dificuldade apontada. O desenvolvimento da linguagem não acompanha de forma alguma o ritmo das outras formas de cultura. Formas primitivas de pensamento, particularmente, e a expressão correspondente que elas recebem na linguagem podem persistir um longo período mesmo depois que a cultura externa esteja relativamente avançada. E assim, entre tribos que estejam bem além do estágio primitivo, podem ser encontradas ainda formas linguísticas que correspondem a fenômenos que, de um ponto de vista psicológico, devem ser considerados primitivos. No que se refere a esse ponto, são especialmente as línguas africanas do Sudão que oferecem um campo típico para o estudo da linguística. Se nós analisarmos a sintaxe de línguas como essas e as formas de pensamento que suas estruturas frasais nos permitem inferir, ganharemos a impressão de que dificilmente será possível imaginar uma forma de pensamento humana cujas características essenciais possam ser mais primitivas. Isso é claramente visível ao se considerar a língua ewe dos povos do Togo, uma possessão colonial alemã. Esse é um idioma sudão, sobre cuja gramática D. Westermann, um missionário alemão, nos deu um valioso tratado. Embora a língua ewe não contenha todos os traços essenciais aparentemente característicos do pensamento relativamente primitivo, ela exemplifica alguns deles. Nós somos levados a essa conclusão particularmente quando a comparamos, junto com outras línguas do Sudão, com uma forma de linguagem que, embora surja sob condições culturais altamente avançadas, deve ser considerada como primitiva, uma vez que é formada de modo inteiramente diverso. Refiro-me à linguagem dos gestos. Nesse caso, não são sons, mas movimentos expressivos, imitativos e pantomímicos, que formam os meios pelos quais o homem comunica seus pensamentos ao seu semelhante. Embora nós devamos considerar a linguagem dos gestos como uma forma original de linguagem, na medida em que nós podemos observá-la no momento de sua criação, obviamente não devemos esquecer que a gênese das formas de comunicação gestual às quais estamos familiarizados pertence a uma cultura superior cujas condições diferem largamente daquelas do pensamento primitivo.

Das várias formas de linguagem gestual, a que está menos sujeita à mudança é, sem dúvida alguma, aquela que constitui o meio de comunicação empregado por aqueles que são destituídos de audição e, portanto, também da fala, nomeadamente os surdos e mudos. Um meio similar de comunicação através de sinais e gestos pode também ser observado entre os povos de cultura primitiva. Especialmente quando consistem de tribos com dialetos muito diferentes, tais povos fazem uso de gestos para se comunicar uns com os outros. Investigações sobre a linguagem gestual espontaneamente criada dos surdos-mudos datam em grande parte da primeira metade do século XIX. Estudos mais recentes têm sido feitos sobre os gestos das tribos indígenas norte-americanas, e observações semelhantes, embora menos completas, têm sido relatadas em relação aos australianos. Contudo, nesses casos, os gestos servem algumas vezes como um tipo de linguagem secreta. Isso é ainda mais verdadeiro no que diz respeito a sinais utilizados entre alguns dos povos da Europa meridional, como, por exemplo, os napolitanos. Ao considerarmos a questão, esses casos certamente devem ser excluídos, uma vez que a intenção de comunicar ideias, nesse caso, é inteiramente substituída pela intenção de mantê-las em segredo; ao invés de uma linguagem que surge espontaneamente, nós temos uma ferramenta que é geralmente elaborada de forma consciente com a finalidade de estabelecer negociações. Se nós desconsiderarmos esses casos, que pertencem a uma ordem de fatos inteiramente diferente, e examinarmos a informação colhida de partes bem diferentes do planeta e de condições bem diversas de cultura, encontraremos uma homogeneidade notável. Em certos detalhes, é claro, existem diferenças. As ideias do índio não são em todos os aspectos como as do europeu civilizado ou as do australiano. Todavia, os gestos que se referem a um objeto concreto específico são frequentemente tão semelhantes que muitos dos sinais empregados pela linguagem dos gestos dos surdos-mudos da Europa podem ser encontrados entre os índios de Dakota. Poderíamos transferir um surdo-mudo para esse grupo de índios, e ele provavelmente não teria dificuldade nenhuma em se comunicar. Em tempos mais recentes, a oportunidade de se investigar a linguagem gestual não tem sido muito boa, porque os surdos-mudos tornaram-se cada vez mais educados para usar a linguagem verbal. Assim, o principal material para o estudo da linguagem gestual natural dos surdos-mudos deve ser encontrado nas observações anteriores de Schmalz (1838, 2. ed. 1848), um professor alemão de pessoas assim afetadas, e em alguns poucos relatos posteriores de um inglês chamado Scott (1870).

O que então essas observações nos ensinam em relação à origem da linguagem dos gestos e provavelmente também em relação aos fatores subjacentes à origem da linguagem em geral? De acordo com a noção popular, um chamado impulso à comunicação, ou talvez certas elaborações mentais e ações, são responsáveis pelo fato de os conteúdos da consciência de alguém virem a ser comunicados a outros indivíduos. No entanto, se observarmos a linguagem dos gestos em sua origem, obteremos uma visão inteiramente diferente. Essa forma de comunicação não é o resultado de elaborações mentais ou propósitos conscientes, mas da emoção e dos movimentos expressivos involuntários que acompanham a emoção. Na realidade, é simplesmente um desenvolvimento natural dos movimentos expressivos dos seres humanos que também ocorrem quando a intenção de comunicar é claramente ausente. Como bem se sabe, não são apenas as emoções que se refletem nos movimentos de alguém, particularmente nos movimentos miméticos da face, mas as ideias também. Sempre que ideias fortemente carregadas de sentimentos entram no fluxo das emoções, as expressões miméticas espontâneas da face são complementadas por movimentos dos braços e das mãos. O homem com raiva gesticula com movimentos que claramente indicam o impulso de atacar, que é inerente à raiva. Ou, quando nós temos um processo ideacional de origem emotiva e surgem ideias referentes a objetos que estão presentes, apontamos para os objetos, apesar de não haver intenção de comunicar as ideias. Da mesma forma, direções no espaço, assim como o passado e o futuro são involuntariamente expressos por meio de movimentos que apontam para trás e para frente; "grande" e "pequeno" são expressos pelo levantar e o abaixar das mãos. Quando outros movimentos são acrescentados, indicando a forma de um objeto através do desenho de sua imagem no ar com as mãos, todos os elementos da linguagem gestual estão completos. Falta apenas que a ideia emocionalmente afetada não seja a mera expressão da emoção de alguém, mas que ela evoque a mesma emoção e, através disso, a mesma ideia, na mente dos outros. Sob a influência da emoção que então é neles despertada, aqueles aos quais se dirige devem então responder com movimentos expressivos iguais ou ligeiramente diferentes. Quanto isso ocorre, desenvolve-se um pensamento comum a partir do qual movimentos impulsivos são cada vez mais substituídos por ações voluntárias. Assim, conteúdos ideacionais, juntamente com seus gestos correspondentes, entram no primeiro plano da atenção. Por força desse conteúdo ideacional, movimentos expressivos de emoções vêm a ser expressões de ideias; a comunicação das experiências de um indivíduo para os outros resulta em uma troca de pensamento - isto é, em linguagem. No entanto, essa evolução é influenciada pelo desenvolvimento de todas as outras funções psíquicas e especialmente pela transição dos movimentos emocionais e impulsivos a ações voluntárias.

De que natureza então é o conteúdo da linguagem gestual, que surge de forma independente dentro de uma comunidade, e pode, nesse sentido, ser considerada como primitiva? A isso podemos resumidamente responder que todos os elementos dessa linguagem são perceptíveis aos sentidos, e, portanto, imediatamente inteligíveis. Por isso é que os surdos-mudos, embora de diferentes nacionalidades, podem fazer-se entender sem dificuldade, mesmo ao se encontrarem pela primeira vez. Todavia, essa inteligibilidade da linguagem gestual se apoia no fato de que os sinais que ela emprega - ou, traduzindo à terminologia da linguagem falada, suas palavras - são representações diretas dos objetos, de suas qualidades, ou dos eventos aos quais se refere. Sempre que o objeto discutido está presente, o gesto de apontar com a mão, e o dedo é em si o modo mais claro de designar o objeto. Assim, por exemplo, "eu" e "você" são expressos apontando-se para si mesmo ou para o outro. Isso sugere um movimento semelhante para designar uma terceira pessoa que não está presente. Nesse caso, o sinal é um movimento do dedo para trás. Sempre que os objetos da conversação estão presentes no campo da visão, o indivíduo mudo, em regra, dispensa qualquer outra forma de representação que não a de meramente apontar para eles.

Uma vez que raramente os objetos em discussão estão presentes, há uma segunda e importante classe de gestos, que, por uma questão de brevidade, devemos chamar gráficos. O surdo-mudo, assim como o índio e o australiano, representa um objeto ausente por figuras desenhadas no ar. O que ele assim esboça em linhas muito gerais é inteligível a quem pratique a linguagem dos gestos. Além disso, há uma tendência marcante de tais gestos a se tornarem permanentes dentro de um determinado grupo social. Para a palavra "casa", os contornos dos telhados e paredes são desenhados; a ideia de caminhar é comunicada pela imitação dos movimentos de caminhar com os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo, que é posto em posição horizontal; a ideia de golpear é representada pela ação da mão em movimentos de golpe. Contudo, não raramente diversos sinais devem ser combinados para tornarem-se um gesto inteligível. Na linguagem dos surdos-mudos inglesa e alemã, a palavra "jardim", por exemplo, é expressa primeiramente pela descrição de um círculo com o dedo indicador para indicar um lugar, e então pela elevação do polegar e do indicador ao nariz como gesto para cheirar. "Jardim" é então, como antes, um lugar onde existem flores para se cheirar. A ideia de "professor" evidentemente não pode ser diretamente representada ou desenhada no ar; é muito complicada para uma linguagem de representação. Sendo assim, o indivíduo surdo-mudo provavelmente procede primeiramente fazendo o gesto para homem. Com esse propósito, ele destaca uma característica incidental, como o gesto de tirar o chapéu. Como as mulheres não tiram seus chapéus quando cumprimentam alguém, esse gesto é tipicamente masculino; o sinal próprio para indicar mulheres consiste em colocar as mãos sobre o peito. Então, com o propósito de comunicar a ideia de "professor", primeiro ele faz o gesto de tirar chapéu, indicando a ideia de homem, e então o dedo indicador é levantado. Isso se deve ao fato de que os alunos na escola levantam seu dedo indicador para sinalizar seu conhecimento sobre certa coisa, ou talvez porque o professor ocasionalmente levanta seu dedo quando deseja chamar atenção ou fazer ameaça de punição.

Assim, gestos de apontar e gestos gráficos representam os dois meios empregados na linguagem dos gestos. No entanto, dentro da segunda dessas classes, podemos distinguir um pequeno subgrupo que pode ser chamado de sugestivo (significant); nesse caso, o objeto não é representado por meio de uma figura diretamente, mas por características incidentais - a ideia de homem, por exemplo, é expressa tirando-se o chapéu. Os sinais são todos perceptíveis diretamente. A característica mais importante da linguagem dos gestos, assim como a característica mais distintiva de uma linguagem primitiva, é o fato de que nela não há traços de conceitos abstratos, existindo meramente representações perceptuais. Mas, no entanto, algumas dessas representações - e isto é uma prova de como insistentemente o pensamento humano, mesmo em seus primórdios, compele-se à formação de conceitos - adquiriram um sentido simbólico, tornando-se meios sensoriais de expressar conceitos que não podem ser apreendidos pelos sentidos. Podemos aqui mencionar apenas um gesto desse tipo, digno de nota porque ocorre de modo independente na linguagem do surdo-mudo europeu e na dos índios de Dakota. A ideia de "Verdade" é representada movendo-se o dedo indicador diretamente para frente a partir dos lábios, enquanto a de "mentira" é indicada por um movimento em direção à direita ou à esquerda. A primeira é assim expressa para indicar um discurso reto e a última, um discurso torto, representações que também ocorrem na língua falada como expressões poéticas. No entanto, tais sinais simbólicos, de modo geral, são raros, no caso de a linguagem gestual natural não ter sido artificialmente reconstruída; e, além disso, eles sempre mantêm sua natureza perceptual.

Assim como os conceitos abstratos estão ausentes na linguagem gestual natural, o mesmo acontece com relação a outro aspecto. Em vão nós procuramos nelas pelas categorias gramaticais de nossa própria língua ou de outras línguas faladas - nada encontramos. Nenhuma distinção é feita entre nome, adjetivo ou verbo; nenhuma entre nominativo, dativo, acusativo, etc. Aquilo a que uma representação se refere pode estar entre qualquer das categorias gramaticais conhecidas por nós. Por exemplo, o gesto para caminhar pode denotar o ato de caminhar ou o próprio curso, o caminho; o de golpear, o verbo "golpear" ou o nome "golpe". Assim, também nesse sentido, a linguagem dos gestos é restrita a sinais que expressam ideias que tenham sido apreendidas sensorialmente. Por fim, o mesmo é verdade sobre a sequência na qual as ideias do falante são organizadas, ou, em outras palavras, sobre a sintaxe da linguagem gestual. Nossa sintaxe, como bem se sabe, permite-nos de diversas maneiras separar palavras que, no que diz respeito ao sentido, caminham juntas, ou, inversamente, juntar palavras que não têm relação imediata, dependendo, entretanto, de certas convenções da linguagem. A linguagem dos gestos obedece apenas a uma lei. Todo sinal deve ser inteligível por si mesmo ou através daquele que o precede. Disso se segue que se, por exemplo, tanto um objeto quanto uma de suas qualidades devem ser mencionados, a qualidade não deve ser expressa primeiro, já que, separada do objeto, estaria desprovida de sentido; portanto, sua menção geralmente ocorre depois da do objeto ao qual pertence. Sempre que, por exemplo, dizemos "um bom homem" (a good man), a inguagem dos gestos diz "homem bom" (man good)3. De modo semelhante, no caso de verbo e objeto, o objeto geralmente precede o verbo. Todavia, quando a ação expressa pelo verbo é considerada mais proximamente relacionada com o sujeito, a ordem inversa pode ocorrer e o verbo pode seguir diretamente o sujeito. Como então a linguagem gestual reproduz a frase "O professor zangado bateu na criança"? Os sinais para professor e para golpear (strike: golpear, bater) já foram descritos; a ideia de "zangado" é expressa mimeticamente pelo franzir da testa; a ideia de "criança", embalando-se o antebraço esquerdo sobre o direito. Portanto, a frase acima é traduzida em linguagem gestual da seguinte maneira: primeiro, fazem-se os dois sinais para professor, tirando-se o chapéu e levantando-se o dedo; em seguida, o gesto mimético para zangado, sucedido pelo embalar dos antebraços, expressando-se a ideia de criança, e, finalmente, pelo movimento de golpear. Se nós indicássemos o sujeito da frase por S, seu atributo por A, o objeto por O, e o verbo por V, a sequência em nossa linguagem seria ASVO (em conformidade com o arranjo sintático inglês, "The angry teacher struk the child"); na linguagem gestual seria SAOV, "professor zangado criança golpe", ou, em casos excepcionais, SAVO. A linguagem gestual reverte assim a ordem da sequência nos dois pares de palavras. Uma construção como "Bateu na criança o professor" (VOS), possível e de ocorrência não rara na linguagem falada (como no latim, por exemplo), seria absolutamente impossível na linguagem dos gestos.

Se a linguagem gestual então nos proporciona certas conclusões psicológicas em relação à natureza de uma linguagem primitiva, é de particular interesse a comparação de suas características com os traços correspondentes das línguas faladas mais primitivas. Como já dito, as chamadas línguas sudanesas são típicos exemplos de uma linguagem que carrega todas as marcas do pensamento relativamente primitivo. Essas línguas da África Central obviamente representam um estágio de desenvolvimento muito mais primitivo que o das línguas dos povos Bantu do sul ou mesmo que o das línguas dos povos hamíticos do norte. A linguagem dos Hotentotes está relacionada à dos povos hamíticos. É de fato por causa desse relacionamento, e também por causa das características que divergem dos negros, que os Hotentotes são considerados como um povo que imigrou do norte e sofreu mudanças por conta da mistura com os povos nativos. Se então compararmos uma das línguas sudanesas, a ewe, por exemplo, com a linguagem dos gestos, uma diferença se fará logo evidente. As palavras dessa linguagem falada relativamente primitiva não têm as qualidades de perceptibilidade e imediata inteligibilidade que caracteriza cada sinal gestual em particular. Isso é facilmente explicável como um resultado de processos de transformação fonética, que inevitavelmente ocorrem, assim como da assimilação de elementos estrangeiros e da substituição de palavras por símbolos conceituais acidentais e independentes do som. Essas mudanças ocorrem na história de toda linguagem. Toda língua falada é o resultado de processos recônditos cujas origens não são mais rastreáveis. Ainda assim, as línguas sudanesas, particularmente, preservaram características que mostram ligações muito mais íntimas entre som e sentido do que nossas línguas civilizadas têm. É digno de nota o próprio fato de que certas gradações ou mesmo antíteses de pensamento são normalmente expressas por gradações ou antíteses de som, em que a tonalidade afetiva claramente corresponde à relação de ideias. Enquanto nossas palavras "grande" e "pequeno", "aqui" e "ali", não mostram nenhuma correspondência entre as características do som e do sentido, o caso é inteiramente diferente com as expressões equivalentes na linguagem ewe. Nessa linguagem, objetos grandes e pequenos são designados pela mesma palavra. Contudo, no primeiro caso a palavra é pronunciada em um tom grave, enquanto no segundo é utilizado um tom agudo. Ou, quando se quer indicar a distância, o tom grave significa maior afastamento, o tom agudo, proximidade. De fato, em algumas línguas sudanesas, três graus de afastamento ou de tamanho são distinguidos dessa forma. "A uma grande distância" é expresso por um tom bem grave; "a meia distância", por um tom médio; e "aqui", pelo tom mais agudo. Ocasionalmente, diferenças de qualidade são distinguidas de modo semelhante pelas diferenças de tom, como, por exemplo, "doce" por um tom agudo, "amargo" por um tom grave, "sofrer uma ação" (ou seja, nossa voz passiva) por um tom grave, e atividade (nossa voz ativa) por um tom agudo. Isso explica um fenômeno prevalente em outras línguas distantes das do Sudão. Nas línguas semíticas e hamíticas, a letra "U", particularmente, tem força de voz passiva quando ocorre como um sufixo à raiz de uma palavra ou no meio da própria palavra. Por exemplo, nas formas hebraicas "Pual" e "Piel", assim como em "Hophal" e "Hiphil", a primeira de cada par tem sentido passivo, e a segunda, ativo. Foi sugerido por diversas vezes que isso era acidental, ou que era devido a transformações fonéticas diferentes das anteriormente mencionadas. Mas quando encontramos as mesmas variações de som e significado em outras línguas radicalmente diferentes, devemos parar e nos perguntar se isso não é o resultado de uma relação psicológica que, embora tenha, de modo geral, se perdido no desenvolvimento posterior da linguagem, nessas línguas ainda sobrevive em alguns casos. De fato, ao lembrarmos o modo pelo qual relatamos histórias às crianças, imediatamente percebemos que precisamente o mesmo fenômeno se repete na linguagem infantil - uma linguagem que é criada, de modo geral, em primeiro lugar, por adultos. Essa conexão de som e significado é claramente devida ao desejo inconsciente de que o som possa comunicar não meramente a ideia, mas também sua tonalidade afetiva. Ao descrever gigantes e monstros, aquele que relata contos de fadas à criança usa tons mais graves; quando fadas, elfos e anões aparecem na narrativa, eleva então a voz a tons mais agudos. Se tristeza e dor entram, o tom é mais grave; com emoções alegres, tons agudos são empregados. Em vista desses fatos, poderíamos dizer que essa correlação direta de expressão e significado, observada na mais primitiva das linguagens, a linguagem dos gestos, desapareceu nas línguas faladas, mesmo nas relativamente primitivas; não obstante, essas últimas retiveram traços disso em maior abundância que as linguagens civilizadas. Nas línguas civilizadas, elas ocorrem, quando muito, em formações de palavras onomatopeicas de origem posterior. Lembremo-nos, por exemplo, de palavras como sausen (sussurro), brummen (zumbido), knistern (estalo), etc.

Permanece ainda a questão de como as outras características da linguagem gestual, particularmente a ausência de categorias gramaticais e uma sintaxe que segue o princípio da inteligibilidade perceptual e imediata, podem ser comparadas aos traços correspondentes das línguas faladas relativamente primitivas. De fato, essas características são de importância incomparavelmente maior que as relações entre som e significado. As últimas são mais fortemente expostas a influências transformadoras externas. As formações de palavras, no entanto, assim como a posição das palavras dentro da sentença, espelham as próprias formas de pensamento; sempre que o pensamento sofre mudanças vitais, inevitavelmente tais mudanças encontram expressão nas categorias gramaticais da língua, bem como nas suas leis de sintaxe.

 

O PENSAMENTO DO HOMEM PRIMITIVO

Do ponto de vista desenvolvido anteriormente, a investigação das formas gramaticais da linguagem primitiva é de particular importância para a psicologia do homem primitivo. É verdade, como já foi observado, que as línguas das tribos mais primitivas não foram preservadas para nós em sua forma original. Ainda assim, é precisamente no reino das formas gramaticais, muito mais até do que no das imagens sonoras e palavras onomatopeicas, que as línguas sudanesas têm características que as distinguem como a expressão dos processos de pensamento que permaneceram em um nível relativamente primitivo. Isso é indicado principalmente pelo fato de que essas línguas carecem do que nós chamaríamos categorias gramaticais. Com relação a esse ponto, a gramática da língua ewe de Westermann está em total acordo com os resultados bem anteriores que Steinthal atingiu em sua investigação da língua Mande, que é também da região sudanesa. Essas línguas consistem de palavras monossilábicas, que seguem uma a outra em sucessão direta sem quaisquer elementos intermediários de inflexão para modificar seus significados. Os filólogos usualmente chamam essas línguas de "línguas de raiz", porque um complexo sonoro que carrega o significado essencial de uma palavra, isolado de todos os elementos modificantes, é chamado por sua ciência de raiz verbal. Na palavra latina fero, fer, significando "levar, trazer", é a raiz a partir da qual são formadas todas as modificações do verbo ferre através de elementos de sufixação. Portanto, se uma língua consiste de complexos sonoros com natureza de raiz, ela é chamada de língua de raiz. Entretanto, as línguas em discussão consistem puramente de palavras monossilábicas; o conceito de "raiz", que em si representa o produto de uma análise gramatical de nossas línguas flexivas, pode apenas de modo impróprio ser aplicado a elas. Uma língua assim é composta de palavras monossilábicas, cada qual com um significado, mas nenhuma delas se encaixa em alguma categoria gramatical específica. Uma mesma palavra monossilábica pode denotar um objeto, um ato, ou uma qualidade, assim como na linguagem gestual o gesto de golpear pode denotar o verbo "golpear" a também o nome "golpe". Portanto, é evidente a extensão em que as expressões "raiz" e "linguagem de raiz" transferem para essa língua primitiva uma abstração gramatical que é inteiramente inadequada no caso de elas sugerirem a imagem de uma raiz. Essa imagem originou-se entre gramáticos em um tempo em que a visão corrente era de que, assim como o caule e os ramos de uma planta crescem a partir de sua raiz, também no desenvolvimento de uma língua uma palavra sempre se desenvolve a partir de um grupo de sons simples ou compostos que contém a ideia principal. Mas as partes elementares de uma língua certamente não são raízes nesse sentido; toda palavra monossilábica elementar se combina com outras, e, a partir dessa combinação, resultam, em parte, modificações em significado, e, em parte, frases. A língua, assim, não se desenvolve por germinação e crescimento, mas por aglomeração e aglutinação. As línguas sudanesas são caracterizadas pelo fato de terem muito poucas combinações fixas desse tipo em que as partes elementares perderam sua independência. Nesse sentido, portanto, assemelham-se à linguagem dos gestos. Essa última também não tem categorias gramaticais, uma vez que essas se aplicam mais propriamente às palavras; os mesmos sinais denotam objetos, ações e qualidades - na verdade, muitas vezes mesmo aqueles para os quais em nossa língua empregamos partículas. Essa semelhança com a linguagem gestual nos causa maior impressão se considerarmos as palavras que as línguas faladas primitivas empregam para ideias formadas mais recentemente, como quando se referem a objetos da cultura que até então eram desconhecidos. Nesses casos, parece que o falante sempre forma o novo conceito pela combinação em série das ideias com as quais ele é mais familiar. Quando escolas foram introduzidas em Tongo, por exemplo, e a palavra para "lápis de ardósia" se tornou necessária, os negros do Togo o chamaram "pedra risca algo" - isto é, uma pedra com a qual riscamos alguma coisa. De forma semelhante, "cozinha", uma configuração desconhecida para essas tribos, foi designada como "lugar cozinha algo"; "prego", como "ferro cabeça larga". Uma palavra sozinha sempre se refere a um objeto perceptível através dos sentidos, e o novo conceito é formado não por meio de uma comparação entre vários objetos, como os epistemologistas normalmente supõem, mas pelo arranjo em sequência das ideias perceptuais cujas características combinadas constituem o conceito. O mesmo é verdade em relação às expressões da nossa língua para tais relações de pensamento, como indicam de diferentes maneiras as inflexões de substantivo, adjetivo e verbo. As línguas sudanesas não fazem distinção inequívoca entre nome e verbo. Muito menos são distinguidos os casos do substantivo, ou os modos e os tempos do verbo; para expressar essas distinções, são sempre usadas palavras separadas. Assim, a frase "a casa do rei" é vertida para "casa pertence rei". O conceito de caso é aqui representado através de uma percepção independente que se insere entre as duas outras ideias, sendo essas duas últimas por ela ligadas. Os outros casos, em regra, não são expressos de modo algum, mas ficam implícitos na ligação entre as palavras. De modo semelhante, os verbos não têm tempo futuro para denotar ocorrências no futuro. Aqui também uma palavra separada é introduzida, que pode ser traduzida como "chegar". "Eu vou chegar" significa "eu irei"; ou, para mencionar o passado, "Eu vou antes" significa "eu fui". Contudo, o tempo passado pode também ser expresso pela repetição imediata da palavra, o que serve como um sinal perceptível aos sentidos de que a ação está completa. Quando o negro do Togo diz "eu como", isto significa "eu estou prestes a comer"; quando ele diz "eu como como", isto significa "eu comi".

Mas ideias de atos e condições como essas, que são, em si, de natureza perceptual, são também expressas ocasionalmente através da combinação das diferentes partes de uma imagem perceptual. A ideia de "trazer", por exemplo, é expressa pelo negro do Togo como "pegar, ir, entregar". Para se trazer alguma coisa para alguém, deve-se primeiro pegá-la, então levá-la a quem se quer dar e finalmente entregá-la a esse alguém. Portanto, acontece de a palavra "ir", em particular, ser frequentemente adicionada mesmo onde não vemos a necessidade de se enfatizar especificamente o ato de ir. Dessa forma, o negro do Togo muito provavelmente expressaria a frase "O professor com raiva bate na criança" da seguinte forma: "Homem-escola-raiva-ir-bater-criança". Essa é a sucessão que diretamente se apresenta a alguém que pensa em imagens, e assim encontra expressão na língua. Sempre que conceitos requerem um número considerável de imagens, a fim de serem propriamente expressos, os resultados poderão ser combinações equivalentes a frases inteiras. Assim, o negro do Togo expressa o conceito "oeste" pelas palavras "sol sentar lugar" - isto é, o lugar onde o sol se senta. Ele pensa o sol como um ser personificado que, depois de completar sua jornada, toma assento nesse lugar.

Esses exemplos devem ser suficientes para indicar a simplicidade e ao mesmo tempo a complexidade de línguas como essa. É simples, na medida em que carece de quase todas as distinções gramaticais; é complexa, porque, na sua dependência constante de imagens perceptíveis através dos sentidos, fragmenta nossos conceitos em numerosos elementos. Isso é verdade não apenas de conceitos abstratos, que essas línguas, de modo geral, não têm, mas até mesmo de ideias concretas. Basta referirmo-nos ao verbo "trazer", que se desdobra em três outros verbos, ou ao conceito "oeste", para cuja expressão é necessário que indiquemos não apenas o sol e sua posição, mas também seu ato de se sentar. Em todos esses traços, portanto, a língua primitiva é absolutamente equivalente à linguagem dos gestos.

O mesmo é verdade da sintaxe dos dois tipos de linguagem, que não é mais irregular e acidental na língua sudanesa do que é na linguagem dos gestos. Na verdade, nelas a sintaxe é, em regra, mais precisa que a da nossa língua, pois nessa última a inflexão torna possível uma certa variação no arranjo de palavras dentro de uma sentença de acordo com a nuance de sentido desejado. Na língua primitiva, o arranjo é muito mais uniforme, sendo governado unicamente pela mesma lei que prevalece na linguagem dos gestos - nomeadamente, o arranjo de palavras na sua ordem perceptual. Portanto, o objeto precede o atributo, e o substantivo, o adjetivo, sem exceções. No entanto, menos constante é a relação entre verbo e objeto na língua ewe; o verbo geralmente vem primeiro, mas o objeto pode precedê-lo; contudo, o verbo sempre segue o sujeito cuja ação está sendo expressa. Esse caráter perceptual da língua primitiva é mais facilmente notado quando traduzimos de uma língua primitiva para a nossa, primeiro em seu sentido geral e então palavra por palavra, qualquer pensamento que seja de algum modo complicado. Tomemos uma ilustração a partir da língua dos bosquímanos, em que o sentido é essencialmente este: "O bosquímano foi recebido primeiro amigavelmente pelo homem branco, a fim de que pudesse ser trazido para pastorear suas ovelhas; então o homem branco destratou o bosquímano; esse último fugiu, ao que o homem branco pegou outro bosquímano, que passou pela mesma experiência". A língua dos bosquímanos expressa isso da seguinte maneira: "Bosquímano-lá-ir, aqui-ir-até-branco homem, branco homem-dar-fumo, bosquímano-ir-fumar, ir-encher-fumo-algibeira, branco homem-dar-carne-bosquímano, bosquímano-ir-comer-carne, levantar-ir-casa, ir alegremente, ir-sentar, pastorear-ovelha-branco homem, branco homem-ir-bater bosquímano, bosquímano-chorar-alto-dor, bosquímano-ir-fugir-branco homem, branco homem-ir-atrás-bosquímano, bosquímano-então-outro, este bosquímano-pastorear-ovelha, bosquímano-todos-embora". Nessa reclamação do homem da natureza contra seu opressor, tudo é concreto, perceptual. Ele não diz que o bosquímano foi primeiro levado amigavelmente pelo homem branco, mas que o homem branco lhe dá fumo, ele enche sua algibeira e fuma; o homem branco lhe dá carne, ele come e está feliz, etc. O que nós expressamos em conceitos relativamente abstratos é inteiramente convertido por ele em imagens perceptuais separadas. Seus pensamentos sempre se ligam a objetos individuais. E como a língua primitiva não dispõe de meios específicos para expressar um verbo, a ação é também ofuscada no pensamento primitivo pela imagem concreta. O homem primitivo vê a imagem com suas partes separadas; e, do modo como a vê, ele a reproduz em sua linguagem. É por essa mesma razão que ele não está familiarizado com diferenças de categorias gramaticais e com conceitos abstratos. A sequência de palavras é inteiramente governada pela pura associação de ideias, cuja ordem é determinada pela percepção e pela recordação do que foi vivido. Na narrativa acima do bosquímano, não é expressa uma unidade de pensamento, mas segue-se imagem após imagem na ordem em que aparecem à consciência. Assim, o pensamento do homem primitivo é quase exclusivamente associativo. Existem apenas traços da mais perfeita forma de combinação de ideias, a perceptiva, que une os pensamentos em um todo sistemático, tal como ocorre na combinação de diferentes imagens de memória.

Muitas propriedades análogas às características formais do pensamento primitivo que são reveladas nesses fenômenos linguísticos podem ser encontradas na linguagem infantil. Contudo, há uma larga divergência no tocante a um elemento que, com a exceção de leves traços, já desapareceu da língua dos povos primitivos. Eu me refiro à relação próxima entre som e significado. Com relação a essa característica, a linguagem infantil é muito mais semelhante à linguagem gestual do que as formas de discurso que sofreram um longo desenvolvimento histórico. Pois, assim como a linguagem dos gestos, a linguagem infantil está continuamente sendo recriada. Evidentemente ela não é criada pelas próprias crianças, como algumas vezes se supõe. É uma língua feita por convenção das mães e babás que conversam com a criança, complementada, em parte, pelos associados à criança, conforme os diferentes modelos tradicionais de família. Os complexos sonoros que significam animais, "au-au" para o cachorro, "pocotó" para o cavalo, "có-có" para a galinha, etc., assim como "papai" e "mamãe" para pai e mãe, são sons de algum modo adequados ao significado e ao mesmo tempo lembram tanto quanto o possível os sons balbuciantes da criança. Mas todo esse processo é instituído pelos associados à criança, sendo no máximo complementado pela própria criança na extensão de uns poucos elementos incidentais. Por essa razão, a linguagem infantil tem relativamente pouco a nos ensinar com relação ao desenvolvimento da fala e do pensamento; equivocam-se os psicólogos e professores que acreditam que ela oferece uma importante fonte de informação referente à origem do pensamento. Tal informação só pode ser obtida a partir dos modos de expressão do pensamento que têm origem no falante, como na linguagem gestual, e não que derivam do meio externo; ou a partir dos modos de expressão que retiveram formas primitivas de pensamento em suas características essenciais, como nas línguas faladas dos povos primitivos. Mesmo nesses casos, apenas as formas de pensamento podem ser reveladas. O conteúdo, que está implícito nas características formais, é de natureza sensoperceptiva, e não conceitual. O caráter específico ou a qualidade deste conteúdo não é inerente às formas de uma língua como esta. Para obter um conhecimento de sua natureza, nós devemos examinar as ideias em si mesmas e os sentimentos e as emoções a elas associados.

Assim surge a seguinte questão: em que consiste o conteúdo do pensamento primitivo? Dois tipos de ideias podem ser distinguidos. O primeiro compreende o grupo de ideias que é fornecido à consciência pelas percepções diretas da vida diária - ideias como ir, levantar, deitar, descansar, etc., assim como animal, árvore (particularmente na forma de animais e árvores individuais), homem, mulher, criança, eu, tu, você, e muitas outras. Esses são objetos da percepção diária que são familiares a todos, mesmo à mente primitiva. Mas há também uma segunda classe de ideias. Essas não representam coisas da percepção imediata; em síntese, elas têm origem nos sentimentos, em processos emotivos que são projetados para o ambiente. Esae é um grupo importante e particularmente característico de ideias primitivas. Incluídas nele estão todas as referências ao que não é diretamente acessível à percepção, ao que é suprassensível, apesar de serem expressas na forma de ideia sensível. Esse mundo da imaginação, projetado a partir da própria vida emocional do homem nos fenômenos externos, é ao que nos referimos quando falamos em pensamento mitológico. As coisas e os processos dados à percepção são complementados por outras realidades que são de natureza não sensorial e, portanto, pertencem a um reino invisível por detrás do mundo visível. Esses são os demais elementos que muito cedo encontram expressão na arte do homem primitivo.

 

 

Tradução de Estêvão de Carvalho Freixo
1 Wundt, W. (1916). Primitive Man: the beginnings of language; the thinking of primitive man. In: Wilhelm Wundt. Elements of Folk Psychology: outlines of a psychological history of the development of mankind (pp. 53-75). (E. L. Schaub, trad.). Londres: George Allen & Unwin Ltd. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]
2 Wundt faz referência nesta primeira frase à noção de sociedade primitiva apresentada na seção precedente, quando aponta algumas instituições e hábitos que constituíram os primórdios da organização social humana.