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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.40 São Paulo jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Supervisão de estágio e atitude psicoterapêutica: uma proposta educacional

 

Probation supervision and psychotherapeutical attitude: nn educational

 

Proposal Supervisión de prácticas y enfoque psicoterapéutico: uma propuesta educativa

 

 

Celina Maria Aragão XimenesI; Carmem Lúcia Brito Tavares BarretoII; Henriette Tognetti Penha MoratoIII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. celximenes@uol.com.br
IIProfessora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. carmemluciabarreto@hotmail.com
IIIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. hmorato@usp.br

 

 


RESUMO

Este artigo aborda uma modalidade de supervisão de estágio em Psicologia clínica como prática educacional numa perspectiva fenomenológica existencial. Recorre-se a estudiosos que permitem articulações possíveis entre a condição de "ser-no-mundo", proposta particularmente por Heidegger, e escritos da área da educação, em especial os explicitados por Paulo Freire. Entende-se que a pedagogia freiriana, consolidada numa concepção libertadora de homem, permite à condição humana apropriar-se de sua condição existencial no modo de construir uma vida envolta em esferas de sentido. As aproximações teóricas explicitadas permitem, dentre os diversos fenômenos que caracterizam a clínica psicológica, propor um diálogo entre o pensamento de Heidegger e de Freire, possibilitando uma prática psicológica que possa responder às demandas que lhe são endereçadas.

Palavras-chave: supervisão; educação; fenomenologia existencial; Heidegger; Freire.


ABSTRACT

This article discusses a supervision modality in clinical psychology as educational practice in existential phenomenological perspective. Reference is made to scholars who allow links between the condition of "being in the world," as proposed by Heidegger and the writings in the field of education, in particular, as explained by Paulo Freire. It is understood that Freire's pedagogy, consolidated in a liberating conception of man, allows the human takes ownership of their existential condition in order to build a life shrouded in meaning's spheres, fact that illustrates the proposition of a clinical supervision linked to demands of who seeks psychotherapeutic help. The theoretical approaches explicited allow propose, among the various phenomena that characterize the psychological clinic in dialogue with the Heidegger's thought, a psychological practice that can respond to the demands addressed.

Keywords: supervision; education; existential phenomenology; Heidegger; Freire.


RESUMEN

En este artículo es analizada una forma de supervisión en psicología clínica, como práctica educativa, en la perspectiva fenomenológica existencial. Se hace referencia a los académicos que permitan vínculos entre la condición de "estar en el mundo", según lo propuesto por Heidegger, y los escritos en el campo de la educación, en particular, según lo explicitado por Paulo Freire. Se entiende que la pedagogía de Freire, consolidada en una concepción liberadora del hombre, permite que a lo ser humano tomar posesión de su condición existencial con el fin de construir una vida envuelta en esferas de sentido, que ilustra una supervisión clínica vinculada a las demandas reales de ayuda psicoterapéutica. Los dos enfoques teóricos hacen posible proponer, entre los diversos fenómenos que caracterizan a la clínica psicológica en el diálogo con el pensamiento de Heidegger, una práctica psicológica que puede responder a las demandas que son solicitadas.

Palabras clave: supervisión; educación; fenomenología existencial; Heidegger; Freire.


 

 

Apesar dos muitos avanços científicos e tecnológicos que caracterizam o "mundo pós-moderno", conforme apontam alguns cientistas sociais, pesquisadores de diversas áreas revelam a expressiva e multifacetada crise por que passamos independente de raça, sexo, posição social, etc., afetando, sobremaneira, a qualidade de vida de milhões de pessoas no mundo inteiro. Capra (1982) já nos advertira que o mundo e a condição humana encontram-se ameaçados de extinção. Passadas aproximadamente três décadas dessa estimativa, continuamos a participar precariamente desse cenário. Há bem pouco tempo, diariamente, assistíamos a todos os impactos sociais, políticos, econômicos e culturais com grande pesar e a forte impressão de que nos restavam poucas ou quase nenhuma perspectiva de mudança. Em um curtíssimo intervalo de tempo, a crise mundial assumiu um elevado patamar, provocando-nos medo, incerteza e uma forte sensação de desamparo e impotência diante das adversidades do dia a dia, solicitando-nos, de um lado, uma atitude que garanta continuamente a preservação das mais básicas condições de vida, ou, de outro, encaminhando-nos a uma irrefletida e desenfreada busca de status social. Metaforicamente, a população mundial tenta "matar vários leões por dia!". A realidade brasileira não constitui exceção alguma.

Destaca Freire (1996) que o discurso ideológico predominante nesse atual cenário nos ameaça anestesiar a mente, confundindo-nos e levando-nos a distorcer a percepção dos fatos, de modo a nos reconhecermos frágeis e incompetentes, estratégia essa que finda por reforçar ainda mais essa ordem desumanizante. Acreditando que o desenvolvimento científico e tecnológico deve responder às reais necessidades da existência humana, afirma o referido autor: "Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem tratar sua própria presença no mundo [...] sem idéias de formação, sem politizar não é possível" (Freire, 1996, p. 58).

Assim, em meio a um mundo marcadamente caracterizado pelo crescente aumento das desigualdades sociais, acompanhadas de intensos e degradantes conflitos expressos na luta de classes, na massiva e violenta competitividade, assim geradores de variadas crises de sentido, surge a Psicologia clínica como uma das possibilidades ao acolhimento de sujeitos que, emocionalmente fragilizados por essa realidade, encontram-se limitados para, sozinhos, darem prosseguimento a suas histórias de vida, razão pela qual, em meio ao tamanho sofrimento vivido, solicitam a ajuda de um psicoterapeuta. Alguns breves depoimentos do tipo: "Não consigo entender por que estou assim... angustiado!"; "O doutor me encaminhou pra cá... Já fiz tratamento, mas as dores de cabeça persistem!"; "Não consigo aceitar o fim do meu relacionamento conjugal...";"Sinto-me ansioso..."; "Estou deprimido..."; "Não entendo muito bem por que estou aqui... Talvez porque sinto necessidade de desabafar!". Em meio a tantos outros, traduzem, atualmente, os predominantes e sintomáticos modos de ser no mundo de milhões de pessoas no mundo inteiro, em particular, no nosso contexto socioeconômico dos então denominados países emergentes.

Nessa complexa e multifacetada crise, percebemos que a clínica psicológica tem procurado assistir a um número mais e mais crescente de jovens e adultos, de diferentes segmentos sociais, que parecem não suportar a situação de ter que assumir esse lugar em suas dinâmicas de vida, demonstrando, assim, enorme dificuldade de enfrentamento dos muitos conflitos diários decorrentes de incompatibilidades e violência vivida nos contextos familiar, profissional, educacional, do trabalho, etc. Em razão desses entraves, que envolvem questões sociais e do indivíduo, nós, psicoterapeutas, a partir de uma escuta clínica, temos identificado conflitos psicológicos que em sua maioria avançam para quadros mais comprometidos dos assim denominados "transtornos mentais". Inúmeros são os quadros de ansiedade patológica, estados depressivos seguidos ou não de tentativas de suicídio, transtornos de humor, esquizofrenia, dentre outros, cujos diagnósticos são comumente confirmados por profissionais psiquiatras. Muitos são os casos de conflitos familiares e de casais, comumente acompanhados de violência doméstica; de abuso sexual; de pais necessitando desesperadamente prover o sustento da família sem perspectiva de empregabilidade; jovens e adultos suscetíveis a ingressar no mundo do crime para manter a dependência de drogas; crianças e adolescentes com graves problemas de aprendizagem... queixas que inundam, por assim dizer, o setting terapêuticodemandando, dentre outras especialidades, atendimento psicológico.

Impedidos de atuar, de refletir, os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres do compromisso. [...] Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo [...] O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade [...] (Freire, 1979, pp. 18-19)

Acrescenta o referido autor (1979):

Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de "distanciar-se" dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se. (p. 17)

Na condição de profissional engajado no processo de reconstituição de modos de subjetivação de pessoas que sofrem psicológica e emocionalmente em razão do descomprometimento com as suas histórias de vida, diríamos que o psicólogo clínico, na sua prática pedagógica, procura, assim, através do diálogo, suscitar em tais pessoas uma percepção crítica de si e do mundo que os encaminhe a encontrar outras possibilidades e respostas para as dificuldades e sofrimentos vividos decorrentes dos modos como se constituem no mundo com os outros. Nessa trama, que envolve, a um só tempo, o inevitável confronto do homem com as limitações cristalizadas nos modos de habitar o mundo e a sua condição de liberdade no movimento de busca de sentido, propósito maior da prática clínica, o cliente é convocado a comprometer-se com sua história, portanto, a diferenciar-se no seu modo de ser e pensar o mundo, de modo, então, a constituir-se singularmente no contexto de sua existência.

Pensar a clínica psicológica, particularmente como postura, como morada do psicoterapeuta implicado em acompanhar o cliente, com paciência e descrição, no delinear do seu caminhar com naturalidade e no seu próprio ritmo, tem se tornado uma das temáticas centrais por nós propostas nos encontros de supervisão. Os achados da pesquisa desenvolvida por Ximenes (2005) surpreendem-nos, visto que revelam "sintomáticos modos de ser do psicoterapeuta" na relação com seus pacientes. Impactadas com essa realidade e, assim, preocupadas com os encaminhamentos dessa questão, na condição de psicoterapeuta e supervisora de estágio de diferentes Instituições de Ensino Superior (IES), atentas a uma formação profissional consolidada nos princípios éticos, portanto, na formação de psicoterapeutas verdadeiramente engajados em seu fazer de ofício, temos sido instigadas a refletir acercada posição que ocupa, configurada enquanto pré-ocupação antecipatória do apropriar-se, pelo cliente, da ambivalência de sua existência, caminhando para cuidar de si. Pensar a clínica psicológica, em especial, a postura do psicoterapeuta nesse contexto, tem sido um dos assuntos centrais por nós tematizados nos encontros de supervisão. A prática de supervisão de estágio nos permite, assim, perceber o duplo papel de educador que cremos acompanhar como co-responsáveis pela formação de outros educadores, entendendo ser o psicoterapeuta um deles quando afirmamos que sua práticaprofissional tem, também, uma dimensão pedagógica, visto que consiste em acompanhar seus clientes pacientes no movimento de constituição de sentidos outros, respondendo ao destino, considerando possibilidades suspensas ou temporariamente impedidas por acontecimentos ou modos de ser. Inspiradas num modelo pedagógico crítico e libertador, como assim nos sugere Freire (1974/2005), estaríamos nós verdadeiramente atentas a essa proposta de intervenção junto aos pacientes assistidos? Os atendimentos clínicos realizados pelos estagiários estariam, de fato, abertos ao diálogo com a experiência imediata por eles vivida e a compreensão de ação clinica pensada em diálogo com o pensamento heideggeriano? Ou seriam tais atendimentos resultantes de uma mera aplicabilidade das temáticas existenciais à vivência do paciente na tentativa de resolução de seus conflitos? Entendemos que a fenomenologia, a partir de Husserl, apresenta-se como método que privilegia o "retorno às coisas mesmas", convida-nos a um contato mais íntimo com a temática do existir humano no horizonte da clínica, naquilo que, no nosso entender, tem de mais específico: o experienciar de um expressivo sentimento de angústia. Em tal contexto, a ação clínica pode ser compreendida como possibilidade de intervenção do psicólogo implicado no movimento de experienciação do cliente, acompanhando-o na tarefa de cuidar de existir, possibilitando que, na situação concreta e singular do encontro terapêutico, se compreenda e assuma o que está sendo e o que pode ser.

Entendemos que, se por um lado, avolumam-se a cada dia as demandas por atendimento na clínica psicológica decorrentes desse cenário "pós-moderno"; por outro, torna-se crucial a nós, psicoterapeutas, revermos nossa práxis de modo a propormos estratégias de intervenção que favoreçam efetivamente o acolhimento do sofrimento e encaminhem o cliente para compreender, na sua história, dimensões de um determinar-se conturbado e enraizado em limitações cristalizadas dos modos de existir no mundo. Inspiradas em Freire (1996), afirmamos que o fato de nos percebermos no mundo com os outros põe-nos numa posição privilegiada em relação ao mundo e a nós mesmos. Nossa presença no mundo não é a de quem se adapta, mas a de quem luta para ser não apenas objeto, mas sujeito da História.

Diante dos muitos e intrigantes quadros de sofrimento mental, pensamos que a Psicologia clínica, no que lhe compete de mais emergente como proposta de "cuidardaquele que sofre, sobre ele inclinando-se", como assim nos sugere Figueiredo (1996, 2009), necessita rever seu lugar como ciência e profissão. Considerando os percalços que comumente acompanham o fazer do psicoterapeuta nesse contexto, por vezes fincado na aplicação de técnicas e em prévias interpretações calcadas em perscrutadores olhares acerca do humano, inspiradas numa atitude fenomenológica temos, provocativamente, convocado nossos estagiários a refletir, no sentido do pensamento meditante desenvolvido por Heidegger (1959/2001c), sobre o sentido da trama de existir, implicada em modos de ser-no-mundo, sofrendo a experiência com o "estranho" que se apresenta nos acontecimentos do dia a dia. Esse intrigante movimento que gradativamente temos nos proposto a realizar com eles durante as supervisões, no nosso entender, tem proporcionado expressivas mudanças, em especial, no modo como têm se colocado na relação com seus pacientes durante o processo psicoterapêutico. Freire (1996) nos sugere que o conhecimento precisa não apenas ser apreendido nas dimensões ontológica, epistemológica, política e ética, mas precisa também ser testemunhado, vivido; noutros termos, propõe que o discurso teórico seja tão concreto, a ponto de confundir-se com a prática. "Não há diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. [...] Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens" (Freire, 1974/2005, p. 93).

Percebemos que levá-los a refletir sobre a posição que ocupam no encontro com o cliente tem possibilitado a libertação da prisão de uma representação ou significado da prática do psicólogo, já definida pela determinação positivista e naturalista que marcou a origem da Psicologia. Em tal contexto, a ação clínica poderá ser pensada como um modo de estar com o cliente, aguardando o inesperado e aberto a seu próprio movimento (do terapeuta) experiencial. Temos a forte impressão de que quanto mais se aproximam das vicissitudes de sua própria existência, sentem-se implicados no movimento de experienciação do cliente, acompanhando-o nos questionamentos sobre os modos como está no mundo e como cuida do seu existir no mundo com os outros. Continuando no diálogo com Freire (1996), compreendemos que

[...] o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até aintimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio [...] Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas. (p. 86)

Nessa direção, destaca o referido autor (1979):

Não devo julgar-me, como profissional, "habitante" de um mundo estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos "ignorantes e incapazes". Habitantes de um gueto, de onde saio messianicamente para salvar os "perdidos", que estão fora. Se procedo assim, não me comprometo verdadeiramente como profissional nem como homem. Simplesmente me alieno. (pp. 20-21)

 

REFLEXÕES QUE BUSCAM O DIÁLOGO ENTRE CLÍNICA PSICOLÓGICA E EDUCAÇÃO NA SITUAÇÃO DA SUPERVISÃO

O homem é o único animal capaz de engendrar história. Desde tenra idade, o comportamento humano diferencia-se numa escala progressiva que avança da mais elementar manifestação de comportamentos reflexos à busca de sensações que permitam a ele, a partir da exploração do mundo, colocar-se ativamente nesse cenário. Nesse processo, a palavra surge como um elemento distintivo da condição humana, reveladora de um mais elaborado nível de maturidade ao longo do seu desenvolvimento. (Cyrulnik, 1997) comenta: "O nosso equipamento biológico permite-nos apresentar a nós mesmos um mundo despercebido. Então, encontramos um outro homem que, por sua vez, nos apresenta o seu próprio despercebido. [...] Tornamonos, assim, co-autores do artifício e das representações que partilhamos" (p. 288).

O referido autor (1997) afirma que o homem é "um corpo que faz aliança com o logro para criar a existência". Diferente das demais espécies, o homem gozando do seu existir, por um lado, é impregnado por um mundo que lhe é familiar, próprio, evocando nele um sentimento de segurança na continuação de seu desenvolvimento; por outro, sente-se estrangeiro num mundo que o suscita a estar permanentemente em estado de alerta, portanto, angustiado. Assim, paradoxalmente, cabe ao homem no processo de desenvolvimento assumir sua condição de integrante de um grupo que funciona de um determinado modo, submetendo-se às normas que regem seu contexto, porém, incapaz de ajustar-se inteiramente a um grupo estereotipado.

Se só existissem sinais absolutos, a adaptação perfeita produziria uma estratégia do ser vivo muito simples: vive-se ou morre-se. [...] um organismo imperfeito que percebe um sinal não absoluto inventa novas estratégias de existência. É a inadaptação, a flutuação orgânica, a imperfeição do encontro que permitem a evolução e a sobrevivência. Um organismo perfeitamente adaptado eliminar-se-ia a mínima variação do meio ambiente. Por sorte, o sofrimento e o medo oferecem-lhe a sobrevivência. (Cyrulnik, 1997, p. 192)

O processo de hominização, descrito por Cortella(2006), expressa a noção de que o homem torna-se humano produzindo cultura, sendo por ela também produzido. Existindo na relação com o mundo, cabe-lhe necessariamente romper a adaptação, diferenciando-se a si mesmo em busca de uma mudança no ambiente que o favoreça através de uma atitude imbuída de intencionalidade. De modo a efetivar essa ação transformadora, o homem deve dispor do conhecimento que surge como ferramenta imprescindível para intervir na sua existência, bem como da educação como veículo que transporta esse conhecimento para ser produzido ou reproduzido.

Acrescenta Cortella (2006) que uma vida tão somente apoiada em conhecimentos sobre o mundo seria insuficiente, visto que a mesma necessita estar consolidada singularmente em valores por nós mesmos criados. Assim, valores e conhecimentos, sendo coletivamente construídos na vida social, espaço de conquista e manutenção de poder sobre o mundo (bens e pessoas), portanto, a serviço dos interesses da classe hegemônica, passam a ser incontestavelmente difundidos como verdades.

Nesse aspecto, diz Cyrulnik (1997):

[...] os homens, pelos progressos técnicos, modificaram de maneira louca o cenário que constitui a nova ecologia humana. Os objectos técnicos perturbaram o palco onde se representa a comédia humana e alteraram a natureza das encantações que nos enfeitiçam. (pp. 252-253)

Acrescenta o autor (1997):

À força de viverem num mundo de representações abstractas que desprezam o real, os nossos fabricantes de discursos sociais acabaram por desdenhar o corpo (despojo mortal), a biologia (espécie de fezes humanas), mesmo a vida na Terra (vale de lágrimas) e, sobretudo, as nossas raízes animais, escandalosas, blasfemas para um homem que, ao falar, dá a prova da sua alma. Porém, a carne vinga-se quando não é ouvida. (pp. 287-288)

O sofrimento humano vivido por pessoas no mundo inteiro tem sido alvo de inúmeras discussões, nas esferas pública e privada, por estudiosos de diversas áreas, e, mesmo por leigos que, afetados por esse mal-estarcontemporâneo, tentam solitária e precariamente minimizar seus conflitos. Nesse contexto, marcado basicamente por expressivas desigualdades sociais, evidenciamos um inevitável e progressivo aumento de pessoas, de diferentes classes, demandando atendimento psicológico. A seguinte descrição proposta por Cyrulnik (1997) parece revelar a realidade de nossos pacientes que, em seus patológicos e descompassados modos de ser no mundo, procuram precariamente dar conta do existir humano.

Um organismo entorpecido precisa do meio ambiente, ao passo que aquele que procura sensações nos oferece um fator preditor de dependência. Um animal que parte em busca de sensações corre o risco de um encontro que o subjugue. Inversamente, os animais receosos, porque se desenvolveram num mundo cujas saliências os alteraram, tal como uma mãe doente ou um isolamento social, evitarão qualquer encontro e passarão a vida a esconder-se no nicho ou debaixo de um armário, aterrados por qualquer novidade. Libertos da dependência de um prazer, sentem todos os acontecimentos como uma agressão aterradora. Já não são enfeitiçáveis, visto que nada os atrai e tudo os horroriza: um ruído inesperado, a presença de um desconhecido ou um movimento pouco habitual. Sentem qualquer informação como um horror e nunca vão à procura da novidade que os capturaria. (p. 194)

A precariedade da vida humana, decorrente seja do apego à materialidade do mundo na tentativa de supressão de carência afetiva, seja em função da expressiva escassez de recursos materiais necessários à vida de qualquer cidadão comum, emerge a Psicologia clínica como ciência destinada a ocupar-se objetivamente da subjetividade humana no sentido de favorecer a minimização de conflitos psicológicos. Estritamente fundamentada nas ciências naturais, num equivocado modo de lidar com o humano em termos de experiência vivida, a clínica psicológica parece estancar dia a dia, no momento em que, não lançando um olhar que nos permita elucidar o nosso objeto de estudo, o existir humano em sua concretude torna-se incapaz de propor outros modos de intervenção que favoreçam um fazer mais efetivo, contribuindo, assim, para a manutenção do status quo. Inspiradasem Figueiredo (1996), insistimos em repetir um modelo epistemológico que parece não mais atender aos anseios de profissionais que, sensibilizados com a realidade concreta, realizam um movimento de rever, reflexiva e criticamente, suas práticas no sentido de favorecer o redimensionamento do sofrente em seu caráter especificamente humano. Numa perspectiva educacional outra, humanizante, no nosso entender, muito próxima do pensamento freiriano,afirma o autor (1996):

O que vai caracterizar a clínica, no meu entender, é, antes de mais nada, a submissão do sujeito a um outro que irrompe e se eleva à sua frente, expressando sofrimento,fazendo-lhe exigência, desafiando sua capacidade de atenção e hospedagem, escapando em maior ou menor intensidade ao campo de seus conhecimentos e representações, furtando-se ao domínio, desalojando-o (...) Clinicar é, assim, inclinar-se diante de, dispor-se a aprender-com, mesmo que a meta, a médio prazo, seja aprender sobre. (p. 129)

Aponta Cortella (2006) que as instituições sociais (família, trabalho, religião, mídia, etc.), mantenedoras ou não dos conhecimentos e valores adquiridos ao longo da vida, consolidam nossa existência através de processos educativos. A incompreensão dos desdobramentos desses valores e conhecimentos na vida dos sujeitos com os quais nos relacionamos torna-se, assim, um obstáculo para o desenvolvimento de uma relação pedagógica autônoma e produtiva. Diz o autor: "Buscar 'enxergar' o outro não implica de forma alguma aceitá-lo como é; não há prática educativa coerente se não houver inconformidade, dado que a própria palavra 'educação' significa conduzir para um lugar diferente daquele em que se está"(p. 50).

Nesse aspecto, diz Freire (1974/2005):

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição, um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. (pp. 96-97)

Voltando agora para o diálogo com a clínica daseinanalítica, proposta por MedardBoss, percebemos quea fragilidade evidente nas ciências em geral, em particular, na Medicina, na Psicologia e na Sociologia que fundamentadas num modo de atuar mecanicista, demonstra impossibilidade de nos dar orientação e metas terapêuticas significativas. Nessa direção, podemos também trazer Heidegger (1976/2001b) para fazer parte do diálogo, principalmente quando ressalta que

Vivemos numa época estranha, singular e inquietante. Quanto mais a quantidade de informações aumenta de modo desenfreado, tanto mais decididamente se ampliam o ofuscamento e a cegueira diante dos fenômenos. (pp. 101-102)

Acrescenta o referido autor (1976/2001b):"[...] não se pergunta mais quem e como é o homem; em vez disso ele é representado a priori a partir da manipulabilidade técnica do mundo" (p. 167). Podemos responder a tais reflexões, trazendo a compreensão de homem para a Daseinsanalyse,

[...] existimos todos, na acepção mais genuína greco-latina de "existere, ex-sistere"(:existir;) Existimos de uma ou outra maneira relacionados sempre com alguma coisa, que nos concerne, em tal ou qual significado, daquele lugar precioso onde estiver em nossa abertura do mundo. Pode ser que essa coisa nos toque intimamente ou nos deixe indiferentes. (Boss, 1997, p. 8)

Seguindo tal fio condutor, recorremos a Heidegger (1976/2001b) e a sua compreensão de homem, ao apontar que na perspectiva da Daseinsanalyse, todas as concepções "encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na Psicologia e na Psicopatologia, devem desaparecer" (p.33). Apresenta o Dasein para considerar a constituição fundamental do existir humano, significando um "manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir da clareira" (p.33). No revelar dos entes em seus diferentes movimentos de mostração e encobrimento, homem acolhe perspectivamente a presença tomada com o que é dado a partir de si mesma, portanto, não mais como aquilo que se contrapõe ao sujeito pensante sendo por ele "ob-jezado". Nesse estado de abertura, disposição afetiva para aceitar aquilo que se mostra como fenômeno, o homem inicia um novo modo de pensar fenomenológico, que "não é um calcular, mas sim um agradecer [danken], visto que o pensar é devedor [verdankt] a isso" (p. 102).

Trazendo agora a discussão para o campo da Educação, podemos indicar que,

O desrespeito à leitura do mundo do educando revela a atitude antidemocrática do educador, que não escutando o educando, nele deposita seus comunicados. Respeitar o educando é a maneira correta que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo. Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. (Freire, 1996, pp. 122-123)

Mantendo em aberto o caminhar entre a Educação e a supervisão emclínica psicológica, podemos recorrer a Sapienza (2007) quando afirma que na condição de terapeutas o fenômeno que temos diante de nós é a existência de um outro que necessita ser cuidado no sentido de estarmos familiarmente implicados com seu singular modo de ser-no-mundo, o que, no seu entender, significa lidar com todos os significados e afetos que constituem aquele existir, com tudo aquilo que acarreta esperança e sofrimento. A educação impressa na modalidade de supervisão em clínica psicológica, aqui defendida, corresponde à capacidade do aprendiz de psicoterapeuta, imerso na concretude do seu próprio existir, acolher o sofrimento humano no modo como emerge na relação com o paciente. Como educador, interessa ao supervisor clínico em Psicologia incrementar modos humanizantes de ser na relação com o supervisando, suscitando nesse a mesma atitude, capaz de encaminhar sentidos outros de ser naquele que demanda cuidado.

Quem não tem essa capacidade de compartilhar não deve ser terapeuta, pois é sinal de que não sabe de que seu paciente está falando. (A palavra "sabe", do verbo saber, tem a mesma etimologia de "sabor", e, nesse sentido, o saber tem a ver com o "saber o gosto" daquilo que está sendo falado.) (Sapienza, 2007, p. 18)

Preocupados com a posição do terapeuta no encontro com o cliente/paciente, voltamos a dialogar com Heidegger (1976/2001a), na tentativa de chamar atenção para o perigo de "usar" a técnica na clínica. Assim, ao refletir acerca da técnica moderna, aponta que estamos inteiramente "cegos" para a essência da técnica entendida como techné. Aponta que à medida que pretendemos dominar a técnica como um mero instrumento que visa alcançar determinados fins em sua absolutidade, em sua pretensiosa, permanente e inabalável verdade, mais distantes e equivocados nos encontraremos diante de seu caráter mais próprio. Afirma que a excessiva necessidade de dominação da técnica torna-se tanto quanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça fugir do nosso controle. Afirma: "[...] a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico" (p. 11).

Realizando a técnica, o homem participa da dis-posição, como um modo de desencobrimento.[...] Sempre que o homem abre olhos e ouvidos e desprende o coração, sempre que se entrega a pensar sentidos e a empenhar-se por propósitos, sempre que se solta em figuras e obras ou se esmera em pedidos e agradecimentos, ele se vê inserido no que já se lhe revelou. [...] o homem não faz senão responder ao apelo do desencobrimento. (Heidegger, 1976/2001a, p. 22)

No âmbito da Daseinsanalyse, a psicoterapia inspirada na techné proposta por Heidegger requer do terapeuta uma mudança de atitude que se caracterize pelo desprendimento, pela abstenção de um modo de agir presunçoso que pretenda, tão somente, acompanhar o paciente a perseguir um projeto que lhe é próprio.

"[...] se a psicoterapia for dominada pela técnica, pelo controle, pela montagem e pelo poder, somente se mostrará com clareza o dirigir e o simultaneamente o estar atrelado, o não se pertencer, mas o ser conduzido" (Cytrynowicz, 1997, p. 69). Nesse aspecto, pontua Freire (1996): "Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo:

o seu caráter formador" (p.33).

Cytrynowicz (1997) aponta que o falar, na terapia, envolto na intimidade das palavras, não está consolidado em um dizer rigoroso, certeiro no sentido de estabelecer uma apreensão absoluta do dito, mas no genuíno ouvir o sentido para o qual ele se dirige. Diz a autora: "Quando falamos queremos dizer algo para alguém. [...] Dizemos do nosso desvelamento a alguém que, por ser como nós, é também desvelamento.[...] Quando falamos, desvelamos um mundo comum" (p. 68). Nesse sentido, afirma Freire (1974/2005):

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras [...] Existir, humanamente, é procurar pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (p. 90)

Acrescenta Freire (1996):

A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação. (p. 117)

No âmbito da fala, May, Angel eEllenberger (1967) destacam que a função do analista existencial consiste em estar efetivamente presente na relação com todas as conotações que envolvem o existir humano, de modo que o paciente encontre seu caminho e aprenda a viver seu próprio mundo. Para tanto, compete ao terapeuta existencial sensibilizar-se com o humano, interessar-se por sua dinâmica de vida, seus conflitos e mesmo dispor-se a sentir o mundo vivido do paciente. Adverte-nos Binswanger, na obra dos referidos autores (1967):

Quando o tratamento psicanalítico falha, o psiquiatra tende a pensar que o paciente não é capaz de superar a sua resistência [...] possa ser que o que impede romper a barreira, a repetição eterna da resistência da imagem paterna, seja a rejeição à pessoa mesma do terapeuta e a impossibilidade de firmar com ele uma comunicação autêntica. (p. 110)

Cyrulnik (1997), envolto na ideia de que o homem é um organismo que articula sua vida num incessante movimento de diferenciação e indiferenciação através da linguagem, portanto, no ajuste e troca de experiências com aqueles que integram um mesmo mundo, inspira-nos a entender que a função do terapeuta como mediador no processo de redimensionamento da subjetividade do paciente, como destacado em May, Angel eEllenberger (1967), consiste em dispor-se afetivamente a acolher esse outro em sua história. O terapeuta como educador exposto à situação de supervisão, portanto, como agente catalisador no movimento de diferenciação daquele que busca a clínica psicológica deve, assim, cuidar, portanto, para estar à espreita de tudo o que a cada encontro com o paciente revela acerca do seu existir no mundo.

Aprofundando a discussão acerca de uma supervisão clínica em Psicologia ao modo da Daseinsanalyse e em convergência com o pensamento freiriano, entendemos que essa proposta educacional junto ao aprendiz de psicoterapeuta favorece nele reflexões que não apenas extrapolam as predominantes estratégias de intervenção na lida com o sofrimento humano, envoltas em relações causais, mas providencia o movimento de restituição da sua história que vai sendo articulada a cada encontro.Nos contextos profissionais em que se privilegiam modos de subjetivação, como é o caso, em particular, da clínica psicológica, Figueiredo (1996) faz uma distinção entre "formação" e "treinamento", ambos cruciais à preparação desse profissional no trato com pessoas emocionalmente fragilizadas em seus momentos de vida.

Formar é proporcionar uma forma, mas não é modelar uma forma. Ao formar estamos oferecendo um continente e uma matriz a partir dos quais algo possa vir-a-ser. [...] Ser-psicólogo é, por exemplo, saber lidar coma multiplicidade sem recorrer às mais fáceis respostas à angústia que sempre nos acomete quando nos defrontamos com o indeterminado: o dogmatismo e o ecletismo. [...] Em outras palavras, ser-psicólogo, independentemente das escolhas teóricas de cada um implica em situar-se nos campos da epistemologia e da ética, não sendo jamais apenas um feixe de habilidades técnicas. (Figueiredo, 1996, pp. 117-118)

Os estágios supervisionados, incluídos no rol das denominadas "disciplinas de treinamento", objetivam o emergir de uma maior autonomia e compromisso ético da parte do treinando diante de seu envolvimento com a práxis, com seu fazer de ofício, momento em que o mesmo passa a assumir um singular e mais concreto modo de ser e estar na relação com o outro, seu paciente. "Treinar vem de tragere, trazer para si, puxar. Quem puxa, coloca-se à frente [...] "deixa sempre a desejar" porque reconhece no treinando a existência de recursos próprios capazes de serem mobilizados no treinamento" (Figueiredo, 1996, p. 119). Assim, refere Freire (1996):

[...] nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. (p. 26) [...]

[...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os "argumentos de autoridade" já não valem. Em que, para-ser, funcionalmente autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (Freire, 1974/2005, p. 79)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizamos este escrito, tecendo algumas reflexões acerca de uma supervisão clínica em Psicologiacomo proposta educacional, num viés que prioriza uma prática no sentido efetivamente sugerido por uma fenomenologia comprometida com o existir humano. Diante do exposto, destacamos: O que, de fato, define uma supervisão numa perspectiva fenomenológica existencial ao modo da Daseinsanalyse? As supervisões clínicas em Psicologia, simpatizantes dessa vertente teórico-metodológica, estão, de fato, inspiradas nessa libertadora proposta educacional? Há um modo ou diferentes modos de supervisão clínica ancorados na concretude da existência humana? Quais os modos de ser como supervisando necessários visando à concretização desse singular empreendimento? Que impasses e perspectivas acompanham esse fazer de ofício? Parafraseando Morato (1989), como educadores e psicólogos clínicos em situação de supervisão definimos, assim, a nossa experiência: "[...] a supervisão que faço está revestida de um caráter muito especial [...] Falo de uma situação semelhante a um rito de passagem, de nascimento, de um primeiro despertar e despontar da criação" (p.168). Preocupada com o modo de ser supervisor do iniciante terapeuta, a autora (1989) afirma que essa função consiste num "ofício artesanal que ocorre no fazer pela relação". Nesse sentido, pontua que as significativas mudanças que ocorrem no contexto terapêutico, efetivadas pelo cliente, estão, substancialmente, condicionadas à compreensão que o terapeuta tem acerca de si mesmo, do seu próprio ser. Acrescenta a autora (1989):

No desejo de poder, do domínio sobre a natureza e de uns sobre os outros, muito temos desgarrado do valor da existência, do valor do limite, da simplicidade - a curiosidade disponível de interrogar, simples, mas nem por isso menos bela e valiosa. (p. 175)

Do ponto de vista educacional, na mesma linha de pensamento de Morato (1989), afirma Szymanski (2011):

Ao abrir-se para o outro como sujeito da escuta, abre-se para a questão da decisão humana, para a crença na potencialidade criadora dos seres humanos de inventarem novos caminhos para seus impasses existenciais, para além da atitude conformista de 'continuar vivendo assim porque sempre foi assim', ou continuar a educar assim porque 'sempre se educou assim', ou ainda, para além do medo que o desalojar-se provoca quando se abre para o diferente. (p. 10)

 

REFERÊNCIAS

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