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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.41 São Paulo dez. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20150014 

ARTIGOS

 

Dimensões da prática cotidiana e (des)humanização do policial militar

 

Daily Practice Dimensions and (de)humanization of military policeman

 

Dimensiones de la práctica cotidiana y (des)humanización de la policia militar

 

 

Maria de Fátima Quintal de Freitas; Marcos Roberto de Souza Peres; Valdir Goedert Filho

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. asp_peres@hotmail.com

 

 


RESUMO

A relação da polícia militar com a sociedade tem se caracterizado por situações de frequente tensão. Nessas situações pode também ser encontrado um processo de desumanização do policial militar, o que não contribui para o estabelecimento de parcerias entre a polícia e a comunidade. A partir da observação de situações do cotidiano desses profissionais, este estudo objetivou identificar e analisar as condições concretas do cotidiano de trabalho que potencializam a (des)humanização. São descritas algumas condições e adversidades da atividade policial, reunindo-se a observação de cinco relatos de experiências pessoais, vividas por policiais militares do Paraná. Sob a ótica dos pressupostos da polícia comunitária, da educação e da psicologia social comunitária, pretende-se discutir o processo de naturalização nas relações entre sociedade e policiais militares e alguns impactos no dia a dia, condição resultante de diferentes interesses políticos e ideológicos. Ao se problematizar esses aspectos busca-se o encontro de possibilidades para relações mais justas e humanas entre a polícia e a comunidade.

Palavras-chave: prática cotidiana do policial militar; desumanização do trabalho; psicologia social comunitária.


ABSTRACT

The relationship of the military police with society has been characterized by reflecting a tension environment. In this conflict situation there is a process of dehumanization of the military police officer, which does not contribute to the establishment of partnerships between police and the community. From the observation of everyday situations these professionals, this study aims to identify and analyze the concrete conditions of the daily work that enhance the (un)humanization. Some conditions and adversities of police activity are described, gathering the observation of five reports of personal experiences lived by military police of Paraná. From the perspective of the assumptions of community policing, education and community social psychology, we intend to discuss the process of naturalization in relations between society and police-military and some impacts on the day-to-day, a condition resulting from different political and ideological interests. By problematizing these aspects, we seek to find opportunities for more just and humane relations between police and the community.

Keywords: daily practice of the military-police; dehumanization of work; community social psychology.


RESUMEN

La relación de la policía militar con la sociedad se ha caracterizado por las tensiones reflejan un entorno. En esta situación de conflicto hay un proceso de deshumanización de la policía militar, que no contribuye a la creación de asociaciones entre la policía y la comunidad. De la observación de situaciones cotidianas de estos profesionales, este estudio tiene como objetivo identificar y analizar las condiciones concretas de la labor diaria que mejoran la (des) humanización. Describir algunas condiciones y la adversidad en la actividad policial, cumpliendo la observación de cinco informes de experiencias personales vividas por la policía militar de Paraná. Desde la perspectiva de los supuestos de la policía de comunidad, de la educación y la psicología socialcomunitaria, hay la propuesta de discutir el proceso de naturalización de las relaciones entre la policía militar y la sociedad y algunos impactos en el día a día, cuya interacción resulta de los intereses políticos e ideológicos que están en juego. Con esta problematización hay la búsqueda de posibilidades que puedan contribuir para la construcción de una vida y sociedad más justa.

Palabras clave: práctica cotidiana y policía militar; deshumanización del trabajo;psicología social comunitaria.


 

 

Em uma sociedade democrática, quando se faz necessária alguma ação das forças policiais essas deveriam refletir e garantir os Direitos Humanos. Contudo a estigmatização das instituições militares e a associação com a ditadura militar colaboraram para um cenário em que o isolamento e o distanciamento entre sociedade e polícia tornam-se um aspecto constante. A relação de confiança pretendida pelas polícias militares deveria apoiar-se em parte na humanização mútua, na compreensão de que a polícia, independente de suas origens, também é um setor da sociedade e que esta, a sociedade,também colabora por construir um tipo de polícia, que poderia caracterizar-se por ser mais afeita à defesa e preservação dos direitos humanos, do que por restar-lhe, na maioria das vezes, a reagir às pressões e violências acontecidas no tecido social.

No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante, da grande classe de excluídos, sendo que foi nessa perspectiva seu desenvolvimento histórico. Uma polícia para servir de barreira física entre os ditos "bons" e "maus" da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor físico e da coragem inconsequente; uma polícia que atuava com grande influência de estigmas e de preconceitos. (Bengochea, Guimarães, Gomes & Abreu, 2014, p. 121)

Assim, desde a sua formação, as polícias militares no Brasil tiveram como ações principais aquelas destinadas à proteção dos interesses, bens e propriedades dos setores privilegiados e dominantes, mesmo que isso pudesse implicar em formas repressivas e ostensivas dirigidas aos segmentos populares e desfavorecidos.

Associado a esta característica repressiva historicamente atribuída à polícia, encontramos o significado militar, cuja palavra é definida como "aquilo que diz respeito à tropa ou à guerra" (Militar, 2015). Essa associação do nome da polícia militar com guerra não colabora para o estabelecimento de uma relação harmoniosa, pretendida pela ordem pública. Durante o período da ditadura militar, o relacionamento entre a população e a polícia militar ficou cada vez mais distante. Muitas vezes, essa instituição militar foi vista e percebida como um bloco monolítico, em que os aspectos relativos aos trabalhadores e profissionais que atuavam pouco eram considerados. Durante várias décadas, quase nada ou pouco se falava dessa instituição, na sua dimensão humana, no sentido de reunir homens e mulheres que trabalham em serviços de segurança, com a finalidade de representar e atender ao Estado. Constantes denúncias de cometimento, por parte dos militares, de ações repressivas e truculentas, sem qualquer respeito à cidadania e aos direitos humanos foram feitas. Esses fatos foram formando, na população, a visão de que os militares (inclusive os policiais) eram pessoas que não tinham coração, não tinham humanidade.

Durante o regime militar, compreendido entre 1964 a 1985, a Polícia Militar caracterizava-se tão somente como órgão repressor, a serviço do governo, e não como protetor de uma sociedade carente e sedenta de segurança.

Nesse período, a população tinha a imagem que a polícia era truculenta, em consequência, logicamente, do constante emprego da violência para conter as manifestações populares que, quase sempre, eram consideradas de oposição ao regime autoritário. A polícia representava, assim, força e poder, firmando-se uma tradição que, por culpa de poucos, ainda perdura, para muitos. (Padilha & Silva, 2008, p. 266)

O caráter militar das polícias ostensivas estaduais tem sido constantemente criticado, sendo considerada, por alguns teóricos, como inaceitável a condição militar numa atividade de polícia. Na visão destes, as ações de polícia deveriam ser eminentemente civis (Valente, 2012).

Neste cenário, passou a emergir da própria sociedade civil a necessidade de uma redefinição da atividade policial. A relação historicamente estabelecida, potencializada pela herança ditatorial atribuída às Polícias Militares, passou a ser repensada com a redemocratização do Estado brasileiro, contudo, os resultados ainda são poucos perceptíveis e mensuráveis. Difunde-se a visão de que "A segurança pública não existirá enquanto a política for de guerra - não existe paz por imposição [...]" (Valente, 2014, p. 224). Começa a emergir a consciência de que a sociedade precisa cobrar e ter um novo modelo de polícia.

Somente nos últimos anos, com casos de violência mais graves, iniciou-se uma discussão nacional na qual apareceram debates sobre a participação da sociedade, sobre polícia comunitária, e sobre controles sociais. Os Estados brasileiros se organizaram com Ouvidorias e as organizações reformularam as corregedorias policiais. A sociedade democrática brasileira sentiu a necessidade de discutir o tema, e os legisladores aprovaram o princípio participativo de segurança pública na Constituição, ao instituírem que a "segurança pública é um dever do Estado e responsabilidade de todos". Portanto, o controle social da polícia é uma garantia constitucional. A polícia, que tem legalmente o dever do uso da força e das armas, necessita de um olhar controlador pela sociedade. Isso é o início da passagem da polícia que controla para a polícia que é controlada. (Bengochea et al., 2004, pp. 124-125)

Neste cenário encontramos vários processos de desvalorização e de conflito que podem culminar em formas de desumanização do policial militar, com práticas excludentes de profissional da área de segurança pública. Algumas vezes os policiais não são percebidos como indivíduos, a eles são negadas algumas condições naturais do ser humano, como sentir frio, fome, ter sentimentos e enfrentar dilemas. Em alguns momentos o fato de um policial militar estar fardado num local público pode gerar indignação na comunidade, como ocorreu no estado do Ceará, no ano de 2014, quando uma policial militar foi retirada da sala de aula por estar fardada e armada. Em nota a Secretaria de segurança pública e defesa social do Ceará repudiou esta atitude, considerando "[...] 'um sentimento pejorativo com relação à policial militar e a instituição Polícia Militar'" (Secretaria, 2014). A farda do policial não é considerada uma simples vestimenta pela comunidade, gerando sensações negativas e constrangimentos (Secretaria, 2014). Mesmo estando próximos fisicamente da comunidade, realizando o patrulhamento diário das ruas, atendendo diretamente aos cidadãos, os policiais podem situar-se de um modo distante das necessidades comunitárias. Esse distanciamento, muitas vezes, pode contribuir para que o policial seja visto em uma condição subumana.

[...] as formas de desumanização propostas podem, em maior ou menor grau, ser utilizadas para promover a exclusão social. Uma vez desumanizadas, as vítimas em potencial já não são consideradas como pessoas com sentimentos, esperanças e preocupações, e sim como objetos subumanos, 'selvagens', 'animais' [...] (Santos& Lima, 2012, p. 86)

Considera-se que os aportes da Psicologia Social Comunitária (PSC), na perspectiva latino-americana, poderiam fornecer reflexões críticas a esta relação entre os profissionais de segurança e os moradores dos bairros, onde trabalham. Entre essas reflexões, situa-se a valorização dada ao papel de participação da própria comunidade, para identificar e problematizar - em uma ação conjunta ao lado do policial militar - as difíceis situações vividas em seu dia a dia. Essa possibilidade de participação conjunta, entre polícia e comunidade, ao lado de um conhecimento das necessidades sentidas pelos diferentes grupos comunitários, assim como pelos próprios policiais constituem-se em dois princípios relevantes nos trabalhos da PSC (Freitas, 2003, 2008). Podem então servir de orientação para a realização de práticas reais próximas e humanizadoras da polícia para com a comunidade. Com alguma coincidência e aproximação, os pressupostos da proposta da polícia comunitária podem situar-se, na medida em que defendem que o agente de segurança conhece mais as necessidades da população e a realidade dessas pessoas. Assim, a defesa e a promoção da cidadania participativa passam a ter primazia sobre o restrito controle social anteriormente herdado e estabelecido.

Quando a comunidade ocupa os espaços de diálogos e os agentes de segurança permitem-se participar do estabelecimento deste processo de interação, a repressão começa a perder espaço nessa relação, além de não fazer sentido dentro de uma sociedade democrática. Pode emergir um sentimento de parceria, e a relação pautada pelo medo é substituída por relações de respeito e trabalho conjunto.

Contudo, essa aproximação ainda é recente e ambos, polícia e comunidade, ainda podem ter um processo de conhecimento, em que as relações do passado, baseadas na violência e arbitrariedade, encontram-se presentes na memória de todos. O seu enfrentamento poderá acontecer se outras práticas mais justas e humanas puderem prevalecer.

Pela complexidade dos fatos, compreender os fatores e os conflitos vividos pelos policiais, bem como os resultados advindos das suas práticas cotidianas que potencializam o processo de desumanização, pode ser importante para a construção de uma nova relação entre polícia e comunidade.

A ação da polícia ocorre em um campo de incertezas, ou seja, o policial, quando sai para a rua, não sabe o que vai enfrentar diretamente; ele não tem uma ação determinada a fazer e entra num campo de conflitividade social. (Bengochea et al., 2004, p. 120)

Assim como foi descrito por Freitas (2007) em relação ao trabalho do educador de jovens e adultos, pode-se pensar em relação ao policial que ele também pode "[...] se sentir lidando com os chamados excluídos, desfavorecidos, [...] e teme, muitas vezes, que este caráter de exclusão e desvalorização também seja atribuído a ele" (Freitas, 2007, p. 58). Além disso, pode-se também dizer que ao policial seria esperado que ele tivesse "[...] uma postura e atitudes quase hercúleas diante de tantas dificuldades, inseguranças e paradoxos vividos na maioria das vezes solitária e silenciosamente" (Freitas, 2007, p. 58).

O presente estudo pretende, pela observação de histórias e contextos reais vivenciados na prática por policiais, identificar os personagens, os resultados e, em especial, os conflitos vivenciados pelos profissionais de segurança pública e que levam a certa desumanização ou humanização. O policial deixa de ser visto, mesmo fora de serviço como um cidadão e

[...] não [há] separação entre espaço público e espaço privado [...] acarretando um perverso subproduto que é o desmanche das fronteiras entre o início e o fim do trabalho, ou seja, ele nunca acaba e sempre invade a vida privada, os seus tempos, os seus espaços e as relações existentes. (Freitas, 2003, p. 143)

Poder compreender as dimensões psicossociais desses policiais, que servem ao Estado, e que são policiais empregados e tutelados pelo poder público, também é importante do ponto de vista da construção de redes mais solidárias e participativas no cotidiano do trabalho dos policiais.

 

MÉTODO

O estudo seguiu a metodologia qualitativa empregando diários de campo dentro de uma proposta da observação participante. Este tipo de observação é adotado em pesquisas que utilizam a abordagem qualitativa, concentrando-se na inserção do pesquisador no cenário observado, passando a constituir parte dele, interagindo com os sujeitos e procurando partilhar o seu cotidiano para conhecer o que representa estar naquela condição (Queiroz, Vall, Souza& Vieira, 2007).

Participantes

Participaram deste estudo dois policiais, autores do presente artigo, ambos Oficiais da Polícia Militar do Paraná com mais de 13 anos de serviços prestados à PMPR e que exerceram funções semelhantes durante a carreira policial.

Procedimento

Foi realizado um diário de campo sobre as diferentes situações de trabalho em que havia momentos de tensão na relação policial/moradores e, posteriormente, realizou-se também uma descrição autonarrativa. Dentre o grupo de episódios, foram selecionadas cinco histórias reais vividas ou presenciadas pelos pesquisadores, transcritas e subdivididas, destacando-se do texto as impressões subjetivas, que passaram a ser denominadas de "As entrelinhas". Para proporcionar uma melhor sistematização e organização dos dados, foi elaborado um quadro esquemático, em que se procurou estabelecer o contexto em que o fato ocorreu, a descrição do fato observado, os personagens envolvidos na situação, o conflito vivido pelo policial militar, os resultados advindos desse conflito, as imagens e impressões geradas no próprio policial e as observações gerais do caso. Em cada célula do quadro, foram registradas informações que permitem descrever os dilemas psicossociais vividos pelos policiais e que auxiliam nos cuidados necessários para evitar interpretações baseadas em deformações subjetivas e interpretações emotivas, sem dados comprobatórios.

 

RESULTADOS

Episódios

Reunião dos CONSEGs

Os Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEGs), regulados por decreto-lei, procuram manter uma estreita relação entre as polícias estaduais e a comunidade, através de reuniões ordinárias mensais. Os encontros realizados visam estimular a interação dos órgãos policiais e a sociedade, no intuito de estruturarem juntos, estratégias de enfrentamento à criminalidade local.

Uma dessas reuniões chamou a atenção. O policial militar responsável, após um turno de 12 horas de trabalho intenso, deslocou-se para o encontro comunitário. No local, diversas foram as reivindicações, como ocorre na maioria dos encontros. Apenas o representante da Polícia Militar estava representando o Estado, não havendo outro servidor público para dividir o peso das reclamações e reivindicações da comunidade, além de tentar buscar soluções junto ao poder público. O policial preparou uma apresentação sobre os índices de criminalidade local, informando sobre as atividades desenvolvidas pela equipe durante o período e orientando a comunidade sobre as dúvidas apresentadas. Ao final da reunião de duas horas, um senhor de aproximadamente 60 anos levantou-se e disse na presença de todos: "Então tá bom, agora você vai dormir? E como é que fica a nossa segurança? Me dá licença que eu vou embora". De imediato, outras pessoas se manifestaram em defesa do militar estadual. Destacaram que o morador era pouco presente nas reuniões e que seu filho, que era policial federal, também era morador do bairro e nunca havia auxiliado nas atividades do Conselho Comunitário.

O policial militar agradeceu o apoio recebido e explicou aos presentes a necessidade de respeitar a opinião de todos. Quase que num desabafo disse da necessidade de enxergarmos os policiais como seres humanos, com necessidades como os demais membros. Destacou que naquele momento encontrava-se na sua décima quinta hora de trabalho, sem ter feito uma refeição adequada. Como sua farda estava manchada, mostrou a todos o sangue ainda presente nela. Como resultado do atendimento a uma ocorrência de extrema gravidade, em que duas pessoas tiveram o carro roubado e foram mantidas como reféns, durante a tentativa de fuga, havendo disparos de arma de fogo e os proprietários, pela ação policial, foram libertados sem ferimentos graves.

O acidente

Era meio-dia de um dia ensolarado e agradável. O episódio deu-se ao lado de um colégio estadual durante a saída dos alunos. A patrulha escolar é uma modalidade de policiamento comunitário na Polícia Militar do Paraná e é responsável por buscar soluções para a segurança das escolas, de maneira conjunta com a comunidade.

Quando os policiais da patrulha escolar, em seu veículo, se aproximaram de uma esquina, havia outro veículo à frente aguardando ambos para ingressar em uma via preferencial. O condutor do veículo da frente deu marcha à ré, não dando tempo do condutor da viatura policial de se desviar, ocorrendo então a colisão da parte traseira do carro com a parte dianteira da viatura policial. Depois do impacto, o policial militar que conduzia a viatura desceu para conversar. Quando percebeu que o policial havia desembarcado da viatura, o motorista começou a ofender os policiais, entrando no seu carro e fugindo do local. Ele deslocou-se, fugindo duas quadras, parou rapidamente e entrou em um salão de cabeleireiro permanecendo sentado em uma escadaria que dava acesso a esse comércio. Com a chegada dos policiais, logo foi dada a voz de prisão ao condutor outro veículo: "O senhor está preso por desacato" [Desacato é um crime previsto no artigo 331 do Código Penal, que consiste em desrespeitar um funcionário público no exercício de sua função].O homem continuou a ofender os policiais, sendo necessária a presença de outra viatura para ajudar na resolução da ocorrência. Com os policiais de apoio somaram-se cinco policiais nesta situação, havendo um policial comandante que foi conversar com o cidadão, que continuava sentado na escadaria de acesso ao salão de cabeleireiro. Informando-lhe que deveria acompanhá-lo até a delegacia, mas que não ficaria preso, simplesmente responderia a um Termo Circunstanciado (TC). [O Termo Circunstanciado foi criado através da Lei 9099 de 26 de setembro de 1995, com o intuito de dar agilidade à justiça. Nos casos de contravenções penais ou crimes cuja pena máxima não supere dois anos, a pessoa não precisa ser autuada em flagrante e permanecer presa, podendo, assinar o TC, sendo imediatamente liberado e convocado para comparecer a uma Vara do Juizado Especial, onde poderá ocorrer conciliação entre as partes ou a aplicação de penas alternativas, como serviços comunitários e pagamento de cestas básicas (Silva, 2003)]. Iria à delegacia, daria a sua versão dos fatos para o delegado, assinaria o Termo Circunstanciado e iria embora. O comandante ainda salientou: "Você vai comigo na viatura ou com seu carro particular, mas a gente precisa ir até a delegacia para que seja ajustado isso".O cidadão não aceitou acompanhar a equipe policial, então houve a necessidade de realizar a condução à força. O homem se agarrou em uma grade e começou a gritar. Neste momento a mãe do mesmo, que era a dona do salão, veio correndo auxiliar o seu filho. Vendo a cena de prisão, sem pensar, a senhora tentou retirar a arma de um dos policiais agarrando-se a ele. Diante da tentativa de saque da arma o policial empurrou a senhora para conter a ação dela e evitar algum disparo inadvertido e perigoso naquele momento.

Com o empurrão recebido, a senhora foi para trás, tropeçou em uma folhagem e caiu ao chão. No mesmo instante o seu filho conseguiu atingir o rosto de um dos policiais com a algema que estava em uma de suas mãos. Enquanto o motorista estava sendo detido, a senhora, que já havia se levantado, começou a gritar dizendo que o seu filho estava sendo morto pelos policiais. Como tudo isso ocorria à saída de um colégio, a aglomeração de pessoas também foi muito grande. Já havia se instalado uma situação caótica, desorganizada, confusa e tensa de todos os lados. Tratava-se mais de um espetáculo urbano, e a cada momento cada vez mais pessoas chegavam para olhar a cena. A senhora gritava: "Estão matando meu filho! Estão matando meu filho!". Enquanto gritava, ela agredia os policiais que neste instante estavam agachados terminando de imobilizar com algemas o seu filho.

Após todo este espetáculo, mãe e filho foram conduzidos à delegacia onde se descobriu que essa senhora havia sofrido, há poucos dias, uma intervenção cirúrgica em sua coluna e a cirurgia tinha aberto durante a queda! O sentimento de sofrimento e aflição invadiu os policiais, em especial aqueles que tiveram que cumprir sua tarefa diante de uma situação como essa. Essa senhora ainda teve um agravamento em seu quadro de saúde, ficou seis meses sem poder trabalhar e a recuperação foi lenta. Nos telejornais da região era trazida a notícia da arbitrariedade dos policiais, o que provocou a transferência dos mesmos e a repercussão negativa do trabalho da polícia. Como nos noticiários foi veiculado o nome dos policiais envolvidos suas famílias também foram atingidas, causando vários problemas de relacionamento entre os policiais e seus familiares. Os policiais responderam a Inquérito Policial Militar e alguns meses depois foram considerados inocentes pela justiça, entretanto essas repercussões já haviam feito suas marcas. Sobre a absolvição dos policiais nada foi divulgado na mídia.

A motocicleta

O terceiro caso ocorreu em uma área de ocupação irregular de Curitiba no início de uma madrugada sem chuva. Quatro policiais em uma viatura efetuavam o patrulhamento, quando avistaram um jovem empurrando uma motocicleta, em uma postura suspeita. Isto fez com que os policiais o abordassem para verificar o que estava acontecendo. Quando solicitaram os documentos o jovem informou que não os portava e que estava empurrando a motocicleta porque estava sem gasolina. Diante destas informações os policiais consultaram junto à Central se havia algum alerta de roubo, de furto, ou qualquer outra situação envolvendo aquela motocicleta. Depois de conferir os dados da moto, a central respondeu que não constava nenhum tipo de restrição para aquela motocicleta. Perguntaram, então se o jovem precisava de alguma ajuda, que respondeu que não precisava de nada, pois morava ali perto. Assim, os policiais orientaram para que ele tomasse cuidado, e seguiram no sentido contrário ao dele, continuando o seu patrulhamento.

Passados poucos minutos depois de terem se afastado desse jovem, que empurrava a motocicleta, a Central entrou novamente em contato com os policiais informando que havia ocorrido um erro no sistema e que aquela motocicleta era sim roubada. Esse erro causou uma grande indignação nesses policiais que haviam abordado e liberado o jovem,sentindo-se frustrados por terem liberado um veículo roubado. Nesse momento, um policial lembrou que o jovem havia indicado qual era a direção de sua casa e, como a motocicleta estava sem gasolina, havia chances de o encontrarem. Os policiais seguiram nessa direção e o encontraram no momento que estava entrando em sua residência. Os policiais conseguiram recuperar a moto e realizar a prisão do infrator.

O fato relevante para os policiais foi que, ao chegar à delegacia, a dona da motocicleta já estava lá. Essa não é uma atitude corriqueira, geralmente os donos de veículos recuperados reivindicam os seus bens apenas no outro dia, principalmente quando eles são recuperados no período noturno. Contudo essa proprietária foi diferente, ela se deslocou imediatamente até a delegacia e, junto com ela, trouxe todo o carnê do financiamento, mostrando aos policiais as inúmeras prestações que ainda faltavam para quitar o veículo. Esta prestação, segundo a jovem, comprometia boa parte de seu salário mensal. Caso não recuperasse a moto ela, ainda, teria que pagar, todos os meses, sem poder usufruir dela. A proprietária da motocicleta também era jovem, trabalhava o dia todo, e o único bem que ela havia conseguido financiar era a motocicleta que havia lhe sido subtraída. A jovem ficou muito grata pela ação policial, dizendo: "Poxa, muito obrigada por terem salvado a minha moto!".

A Gestante Presa

Através de uma ligação telefônica para a Central, a Polícia Militar foi informada que havia uma pessoa armada dentro de uma boate. Esse bar era localizado às margens de uma rodovia federal que corta a capital paranaense, em um bairro populoso e de classe social média. Como é corriqueiro, em uma ocorrência dentro de um bar, envolvendo uma arma de fogo, deslocaram-se para o atendimento desta situação duas viaturas, cada uma composta por quatro policiais. Dentro da casa noturna foi realizada uma "revista" nas pessoas que ali se encontravam, mas a arma não foi localizada.[O termo está entre aspas porque o termo correto a ser utilizado, conforme a técnica policial é "busca pessoal". Mas esta ação é popularmente chamada de "geral", "revista", "batida", entre outros.]

Quando saíram do interior do bar para o estacionamento, os policiais puderam perceber a existência de vários quartos no limite da propriedade. Dentro de um dos quartos,estava uma mulher grávida, com oito meses de gestação, que para surpresa de todos tinha uma arma que estava sob o seu travesseiro. Ao ser perguntada de quem era aquele revólver, respondeu que a arma era dela, e a usava para proteção pessoal. Entretanto, como não tinha autorização de porte a grávida teve de ser presa, sendo, então, conduzida à delegacia.

Este caso, como outros vários, não foi noticiado na imprensa, mas esta situação acompanhou as reflexões daqueles policiais por muito tempo. Ao localizar a arma, os policiais sentiram de imediato a sensação do "dever cumprido", pois tinham conseguido dar a resposta esperada pela pessoa denunciante, tirando uma arma ilegal de circulação. Mas, ao mesmo tempo, veio um grande sentimento de culpa, de ansiedade, porque eles sabiam que, prendendo a mãe, aquela criança iria ser gestada num local insalubre, em uma penitenciária, e ainda poderia ser afastada de sua mãe após seu nascimento. Mais um conflito e uma tensão entre o dever e o "deixar nascer junto à sua mãe"!

A morte sentida de perto

Em uma quinta-feira à noite, perto das 21h30min, numa noite um tanto quanto fria para aquela época do ano, uma equipe composta por quatro policiais, estava encerrando o seu turno de serviço com o patrulhamento em um dos bairros de Curitiba. O motorista já tinha recebido a ordem para seguir para o quartel, onde terminaria aquele dia de trabalho cujo horário de encerramento era às 21 horas. Numa avenida bastante movimentada, o comandante daquela equipe de policiais percebeu que um veículo Toyota/Corolla, havia efetuado uma manobra em alta velocidade por cima da calçada, no outro lado da rua, e seguido no sentido oposto ao que deslocava a viatura. O veículo tinha os vidros muito escuros e fechados e como os faróis estavam apagados, o comandante determinou que o motorista realizasse o retorno para abordarem o veículo suspeito. Apesar do horário de serviço já ter sido ultrapassado (deveriam encerrar às 21h) eles não poderiam deixar de verificar o que estava acontecendo com aquele veículo. Tendo sido levantada a hipótese de ali dentro haver pessoas que precisassem da ajuda deles.

Foram atrás do veículo e, mesmo próximos, não conseguiam ver quem estava dentro. Tentaram abordá-lo, mas a ordem de parada não foi acatada e o motorista do veículo acelerou, tentando fugir da viatura. Os policiais foram atrás do carro, mas o veículo era mais potente que a viatura e,já em uma Rodovia Federal, conseguiu se distanciar bastante. A única chance de abordar aquele suspeito seria apagar as luzes da viatura. O comandante determinou ao motorista da viatura policial que apagasse todas as luzes, e seguiram pela via marginal até que se aproximaram novamente do Corolla.

Quando chegaram bem perto do carro, o motorista ligou os faróis, a sirene e a luz intermitente vermelha, característica dos veículos de polícia, o que produziu no motorista do Corolla um susto seguido de perda do controle do veículo. O carro rodopiou na pista e bateu de frente contra a roda traseira direita da viatura colocando os homens do Corolla em uma posição frontal com relação à viatura. Eles eram quatro criminosos, estavam fortemente armados e haviam acabado de cometer um roubo. Imediatamente depois da colisão esses homens desceram e deram uma rajada de metralhadora contra a viatura policial.

O comandante da equipe policial, que havia determinado a abordagem do veículo, mesmo já tendo sido encerrado o seu turno de serviço, acabou sendo atingido por vários disparos, alguns atingiram seu colete. O comandante foi atingido no pescoço e no tórax. Logo que foi atingido olhou para outro policial, como que pedindo ajuda,porém não conseguia mais falar! Este policial, que também era o seu melhor amigo, retirou-o de dentro da viatura e o abraçou. Abrigaram-se dos tiros que ainda continuavam. O policial atingido morreu ali, nos braços de seu melhor amigo. Como os policiais não sabiam se poderia haver reféns dentro do carro, eles temiam revidar os tiros que continuavam recebendo,mas com muito cuidado, também atiraram, e dois infratores foram baleados e morreram no local. Os outros dois infratores conseguiram fugir. Depois desse dia, após uma investigação, constatou-se que os quatro homens faziam parte de uma quadrilha muito maior, que foi presa um mês depois desse trágico episódio.

As Entrelinhas

Reunião de CONSEG

Mesmo sendo uma grande oportunidade para aproximar as comunidades dos policiais, essas reuniões dos CONSEGs, em uma primeira oportunidade, passaram a atribuir uma responsabilidade demasiada aos policiais militares. Responder por várias demandas, que não são de sua responsabilidade, tornou-se uma constante. Como na maioria das reuniões, apenas um representante da Polícia Militar está presente, as demandas da população que dizem respeito ao Estado são apresentadas a esse policial militar, mesmo que isso não seja de sua competência. Some-se a isso o fato de que há um excesso de carga horária de trabalho dos policiais, e muitas dessas reuniões comunitárias aumentam mais uma carga horária que geralmente passa de 12h. Isto retira este policial militar do seu convívio familiar. Poder-se-ia dizer que parte dos direitos do cidadão policial não estão sendo respeitados. Nem sua condição de ser humano, quando, mesmo depois de mais de 12 horas de serviço ele foi acusado de não se importar com a segurança do bairro, pois sairia dali para dormir. Por outro lado, muitas pessoas da comunidade valorizaram o lado humano daquele profissional, vindo em sua defesa quando foi interpelado pelo idoso.

O acidente

Neste caso o que foi divulgado pela imprensa foi apenas sobre a violência e a truculência dos policiais envolvidos naquela situação. Foram publicadas notícias dizendo que a polícia bateu, frisando principalmente que a polícia agrediu uma idosa e que essas agressões causaram uma lesão na coluna dela. Não foi divulgado que a lesão era proveniente de uma cirurgia recentemente realizada. Foi noticiado como se os policiais militares envolvidos naquela ocorrência que haviam lesionado a coluna da senhora. Nesta situação, assim como em outras, apenas pequena fração da situação foi divulgada pela imprensa. Ações que colaboram para o reforço de um conceito negativo da imagem da polícia perante a sociedade. A Constituição Federal prevê a todo o cidadão brasileiro, a todo ser humano, o princípio da presunção de inocência, previsto em seu artigo 5º, o qual versa: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Porém os policiais foram transferidos e tiveram seus nomes divulgados na imprensa como infratores da lei. Por mais que tenham sido considerados inocentes pela justiça, a mácula que ficou às suas imagens jamais foi reparada.

Outro efeito psicológico identificado neste caso é o sentimento nos policiais de que aquela ocorrência poderia ter sido resolvida de outra forma. Se o cidadão tivesse colaborado com a polícia e deslocado até a delegacia a repercussão negativa teria sido evitada. Por outro lado, a obrigatoriedade da condução para a delegacia de quem comete o crime de desacato também não agrada aos policiais, pois sabem que se trata de um crime pequeno (desrespeito, xingamento, deboche) e que se torna uma ocorrência com um desdobramento muito maior, como neste caso, o resultado foram dois policiais militares feridos e dois civis feridos, e um dos civis feridos, a idosa, teve um ferimento grave que a incapacitou por aproximadamente seis meses.

A motocicleta

Diariamente a Polícia Militar realiza uma infinidade de atendimentos, muitos deles sem repercussão alguma na mídia. Contudo uma parcela significativa destes atendimentos produz efeitos marcantes na vida de quem depende da ação policial. O episódio narrado exemplifica este fato. Recuperar uma motocicleta de baixo valor parece pouco significativo para a segurança pública, contudo as ações policiais repercutem de diferentes formas na vida de cada cidadão. Ações como a mencionada, que ultrapassam o simples cumprimento do dever, provocam pouco interesse na imprensa e, consequentemente, acabam por colaborar pouco para a construção de uma melhor imagem da instituição e seus integrantes.

Neste caso, o aspecto positivo encontrado é o agradecimento sincero do cidadão e o reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Estas condições colaboram para a constituição de um ambiente motivacional para o policial, fundamental no exercício de uma profissão com tamanho estresse em seu desenvolvimento. Perceber que o seu trabalho foi útil para alguém é muito valioso para os profissionais da segurança pública e faz com que se sintam mais humanos.

A gestante presa

Entre os oito policiais envolvidos naquela ocorrência, um deles, casado, tinha a sua esposa também grávida e no oitavo mês de gestação. Depois de terem deixado a mulher na delegacia, ele chorava, pois sabia o que poderia acontecer com aquela criança. Estas ocorrências geram um grande conflito nos policiais. Eles tinham a consciência de que deveriam cumprir a lei, mas e a condição humana? Será que o mais certo era prender aquela gestante? Os policiais têm a consciência de que se não realizassem uma prisão, neste caso, eles também estariam cometendo um crime. É o conflito entre o que é legal e o que é correto. O que é justo e o que deve ser feito. Nem sempre a lei agrada aos policiais, mas, mesmo assim, elas devem ser cumpridas. Essa maneira de agir e de pensar, a formação que é repassada nas Academias Policiais para que a missão seja cumprida, a qualquer custo, transforma, na visão de muitos, os policiais em seres praticamente inanimados, robóticos, sem sentimentos. Uma condição desumana. O desejo de fazer diferente muitas vezes é sobreposto pelo dever de agir dentro da lei.

Esse conflito interno sofrido pelos policiais não é divulgado pela mídia, nem é comentado pelos próprios policiais. Não comentar sobre suas "fraquezas" é percebido pelos militares estaduais como uma autodefesa contra possíveis julgamentos vindos da sociedade e, principalmente, de seus colegas da caserna. Em meio a uma sociedade que idolatra jornalistas que criam campanhas do tipo "Adote um bandido" para criticar quem defende que os direitos humanos sejam aplicados em sua íntegra a quem comete ilícitos penais (Azevedo, 2014), muitos policiais, que também são membros desta mesma sociedade, sentem-se desconfortáveis em sentir compaixão por estas pessoas.

A morte sentida de perto

Com ampla divulgação pela imprensa, a imagem resultante não foi da morte de um policial em serviço em defesa da sociedade, foi de uma polícia ineficiente, que não consegue cuidar nem dela mesma. Além de ter um policial morto na ocorrência ainda deixaram fugir alguns dos criminosos que tiraram a vida de um colega. Se não protegem a eles mesmos, que dirá à população (Brengenski, 2006, Klisiewicz & Lucreia, 2006, Kohlbach, 2006). Foram muitos os conflitos vividos pelos policiais envolvidos naquela ocorrência, direta ou indiretamente. Eles tinham o sentimento de que deveriam verificar aquele carro para constatar o que estava acontecendo com ele, por mais que não fosse mais horário de serviço deles. Alguém poderia ser refém de bandidos no interior daquele carro. E o sentimento de não ter conseguido evitar que o seu companheiro fosse morto foi muito ruim e intenso. O policial baleado era casado, e sua esposa, agora viúva, deveria ser avisada do que acabou de acontecer. Esta é a mais difícil missão a ser desempenhada por um policial militar, dar a notícia do falecimento de um colega, em serviço, à sua família. Essa situação não é ensinada na Academia de Polícia.

A atividade policial militar encontra-se dentre as profissões mais estressantes e de maior risco profissional. Não são raras as oportunidades em que verificamos uma carga excessiva de trabalhos, grande variação de horários e responsabilidade generalizada pelo fracasso no sistema de segurança pública nacional (Monteiro, 2014).Contudo, verifica-se que grande parte da ação policial resulta no contado direto com a comunidade, individual ou coletivamente, proximidade que por algumas vezes relaciona-se ao atendimento de alguma ocorrência e em outras oportunidades ao gerenciamento desta.

Quanto aos personagens, o policial militar, nos episódios relatados, é a figura central na relação. Ele tem a obrigação de aplicar a lei e trabalhar em defesa da sociedade, concentra em si todos os conflitos presentes em uma sociedade multifacetada, sem que muitas vezes seja possível apresentar como impressão resultante de sua intervenção uma imagem positiva. Geralmente em ações policiais o resultado não é agradável para, no mínimo, um dos lados envolvidos, como, por exemplo, na prisão de um criminoso. A vítima pode ficar contente com o trabalho policial, mas o criminoso e sua família, via de regra, não ficarão.

Ao observar a Figura 1, há a presença de um novo protagonista: a imprensa. Fundamental para o processo de conhecimento das atividades policiais, os veículos de comunicação têm algum peso nesse processo de possível desumanização dos trabalhadores no campo da segurança. Dar destaque ao ser humano policial e aos conflitos vividos por eles poderia ser importante no intuito de inverter esse processo estabelecido. Raramente o conflito vivido pelo policial militar recebe destaque na imprensa, que se limita, muitas vezes, apenas a divulgar os fatos ocorridos, infelizmente nem sempre de maneira imparcial.

 

DISCUSSÃO

Diante das situações expostas, o que essas informações provocam na perspectiva psicossocial? Em primeiro lugar fica latente a necessidade de que a formação do policial militar consiga apresentar a eles formas de trabalhar as situações interacionais vivenciadas diariamente. No cotidiano, o policial irá encontra momentos de extremo conflito em sua profissão, e esses também podem gerar reflexos em seu convívio familiar. Ocorrências traumáticas, carregadas de significados são constantes no cotidiano do policial e a formação profissional deve ser capaz de preparar para o correto enfrentamento desta variação de sentimentos. Claro que apenas a formação inicial não basta, ela deve ser continuada, com atualizações profissionais constantes. Desta forma o policial pode rever as suas ações e fortalecer a sua consciência de quais devem ser as atitudes corretas a serem tomadas em sua atividade diária. O policial deve aprender a assimilar os conflitos vividos entre os próprios policiais e a sociedade, policiais e a imprensa, superiores e subordinados, na família e até conflitos internos.

Outro dilema psicossocial enfrentado pelo policial em seu trabalho é a insegurança gerada pela incerteza de que está agindo de maneira correta. Não de maneira legalmente certa, mas, sim, de modo mais humano e justo. Em algumas situações o policial tem dúvidas a respeito do próprio trabalho. O conflito da lei com a ética, com o moral e com o binômio justo/injusto acompanham as atuações, condições que desconstroem a ideia de desumanidade do policial e apontam para a necessidade da avaliação dos resultados de sua própria ação. Balestreri (2003) aponta que muitas vezes a intervenção policial deixa resultados na vida das pessoas ainda mais significativos que o próprio educador, por ofício, o professor. Nesta possibilidade, apresenta-se ainda mais relevante ao policial refletir sobre as consequências de sua conduta e permitir a comunidade uma possibilidade de aproximação mais efetiva.

Fato é que romper com um processo histórico no qual a polícia militar foi instrumento para a defesa do interesse de poucos não é tarefa fácil. Possivelmente esse enclausuramento tenha limitado até mesmo as pesquisas, contudo, para efetivação do exercício da cidadania participativa é essencial o estabelecimento de uma nova forma de atuação, uma nova postura baseada no respeito e na parceria comunitária, uma mudança de comportamento institucional e individual do policial militar. O que parece, ocorre pela necessidade de construção de relações produtivas entre a polícia e as comunidades, passando os policiais a conhecer de fato as pessoas de forma a estar presentes em seu cotidiano (Rolim, 2002).

Observando os casos discutidos nesse artigo e os dilemas apresentados, percebemos a necessidade da atuação comprometida do jornalismo, expondo em suas notícias os dois lados de uma situação conflituosa, apresentando a notícia isenta de qualquer julgamento ou preconceito. É igualmente necessário que a imprensa divulgue os conflitos sofridos pelo policial militar em seu cotidiano. Dessa forma, a imprensa ajudará a sociedade a entender melhor o que se passa na vida do policial militar, percebendo que eles não são diferentes de ninguém. Perceberão que os policiais também são seres humanos, iguais a qualquer um.

Assim, se faz necessária a compreensão de análises psicossociais a partir da perspectiva da Psicologia Social Comunitária (PSC), considerando que deveria haver a apresentação de fatos, seus determinantes estruturais e as condições vividas no cotidiano. Os fatos devem ser mostrados e analisados não apenas pelo resultado alcançado, mas, sim, de maneira ampla, de maneira que se consiga analisar o contexto geral que levou a ocorrer aquela situação. Deve ser a análise realizada pelo policial durante o seu trabalho, mas também pela imprensa, durante a divulgação dos acontecimentos envolvendo os profissionais de segurança pública, rompendo com a constante culpabilização e condenação sumária.

Dentro da perspectiva da PSC podemos indicar contextos, dinâmicas e aspectos positivos na relação entre a polícia e a comunidade. É importante que os profissionais responsáveis pela formação dos policiais militares também compreendam os contextos em que os policiais se relacionam com a comunidade. Compreender o ambiente de trabalho e suas relações é fundamental para uma relação que temcomo característica a dinâmica (Freitas, 2008). Para que isso ocorra é necessário que os profissionais responsáveis pela formação dos policiais se insiram no trabalho com a comunidade, participando ativamente desse processo, para, só assim, compreender essa dinâmica e colaborar de forma positiva para a formação do policial militar (Freitas, 2005).

Por fim, cabe à PSC uma análise do trabalho do(a) PM como uma categoria conceitual: como categoria de trabalho, na qual os seus profissionais são submetido cotidianamente a contradições, dilemas e conflitos, em uma perspectiva das condições estruturais e conjunturais de sua produção e reprodução humana.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A constante formação de consciências coletivas passa por longos processos históricos e, não raras vezes, esse método é contaminado, resultando no estabelecimento de consensos distorcidos, estereotipados, preconceituosos e distantes da realidade. Muitas vezes o negro e o pobre são exemplos desta realidade preconceituosa. Pelo mesmo processo passa, hoje, o policial militar. Vivenciamos a formação de um procedimento constante que apresenta o profissional de segurança como um elemento desprovido de sentimentos, arbitrário, despreparado e corrupto. Assim, os autores deste artigo trouxeram à discussão o policial militar como um ser humano que muitas vezes é desconfigurado de sua condição natural, especialmente pela profissão que escolheu.

Esses conflitos não são aparentes, parecem não serem significativos para a imprensa e para os bancos escolares, não permeiam a discussão da sociedade. O policial se torna apenas uma figura, muitas vezes a mando do estado, fazendo aquilo que lhe é determinado, sem que seus conflitos sejam ao menos percebidos.

Contudo dentro daquela figura, dentro daquele estereótipo criado pela farda e pelo imaginário social, tem uma pessoa, um ser humano. São essas questões que estão sendo trazidas à discussão. Quanto desses conflitos também atingem o policial que também é um ser humano?

Há a necessidade de se desconstruir a imagem atribuída ao policial, ou pelo menos procurar compreender o que ocorre no cotidiano desses profissionais, que os leva a agir, dentro da lei, mesmo que isso não seja uma atitude simpática à sociedade e nem agrade ao próprio ser humano policial. Ou seja, precisamos entender que muitas vezes para cumprir a sua missão o policial age em desacordo com suas crenças e princípios, mesmo que as leis possam lhe dar algum apoio quando do exercício de seu trabalho, no atendimento à lei. Cada profissão tem características específicas e os policiais não são diferentes. Não há como compararmos as situações vivenciadas e enfrentadas no cotidiano de diferentes profissões. Os exemplos apresentados podem indicar algumas situações nas quais os policiais podem - ao se sentirem solitários, incompreendidos e mesmo pressionados a ações constrangedoras - estar em um processo de desumanização quanto ao trabalho que exercem e à vida que esperariam poder ter, junto com uma relação de maior proximidade e compreensão para com a comunidade. Esses aspectos, por reunirem algumas extensões e conflitos, podem contribuir para que os policiais, muitas vezes, desconsiderados em sua condição de ser humano, tornem-se profissionais afastados e, talvez, insensíveis com a comunidade. Esse círculo vicioso necessita ser rompido se pretendemos uma maior aproximação, parceria e parceria respeitosa entre polícia e comunidade.

Pode-se supor que ainda seja difícil, para a nossa sociedade, refletir a respeito dos dilemas que o policial enfrenta em seu trabalho, em especial devido à herança da ditadura e das experiências de comportamentos violentos em que a polícia, direta ou indiretamente, esteve presente. Recentemente têm aumentado os estudos a respeito da vida e condição de trabalho dos policiais, entretanto ainda são poucos aqueles que permitem emergir os conflitos psicossociais vividos por esses trabalhadores, quando do exercício de sua atividade profissional. Ao lado disso, na impressa escrita ou falada, pouco espaço tem sido dado a essas dimensões, como os medos, preocupações, cansaço, a fome e frio que os policiais enfrentam nas atividades realizadas nas ruas, durante as tarefas que lhes são exigidas. Existe um juramento feito pelos policiais que parece reforçar, também, a ideia de que podem ter superpoderes:

Alistando-me soldado na Polícia Militar do Estado, prometo regular minha conduta pelos preceitos da moral, respeitar os meus superiores hierárquicos, tratar com afeto os meus companheiros de armas e com bondade aos que venham a ser meus subordinados; cumprir rigorosamente as ordens das autoridades competentes e voltar-me inteiramente ao serviço do Estado e de minha Pátria, cuja honra, integridade e instituições, defenderei com o sacrifício da própria vida. (Lei Estadual nº 1943, 1954)

O possível processo de desumanização pode estar presente no cotidiano do policial, que vive conflitos entre o que a sociedade entende como certo e o que a lei diz que é certo. Este conflito é enfrentado pelo policial, principalmente nos que atuam diretamente no serviço de rua, em diferentes situações e finalidades de atividade. Esses policiais deveriam receber em sua formação um preparo para que aprendessem a lidar com situações de conflito, não permitindo também se desumanizarem. Freitas (2012), quando cita alguns fatores que contribuíram para a consolidação do campo da Psicologia Social Comunitária, indica que a Educação é um desses fatores, com sua função de transformação social. Trazendo para a realidade analisada neste artigo, a Educação na caserna poderia contribuir para que os policiais, conscientes dos conflitos e dificuldades a serem enfrentadas, consigam lidar de maneira mais justa e humana, além de apoiados por estratégias tecnicamente imparciais, com a preocupação e transformar o meio em que vivem de um modo mais humano e generoso. Além dessa consciência, a formação de qualidade, que possibilite ao policial efetuar a sua missão com eficiência também poderá ser mais um aspecto que colabore para alguma transformação na direção de uma comunidade melhor.

Humanizar os policiais provavelmente seja o primeiro passo para permitir uma aproximação real junto à comunidade. Não há como desejar uma aproximação da instituição com a comunidade se ambos ainda não se conhecem. Quando o conhecimento mútuo ocorrer, poderá existir condições de iniciar uma nova relação comunitária.

[...] prescindimos do contato real e da convivência cotidiana para poder conhecer aquela realidade. Quando se passa a crer que não é mais necessário submergir, diretamente, na realidade concreta para conhecê-la, a sensibilidade para com esta realidade, situação ou pessoas se distorce, fica incompleta e, consequentemente, prejudicada. (Freitas, 2007, p. 53)

Para que ocorra esse conhecimento mútuo a polícia militar deveria permitir que a população conhecesse os problemas da corporação e os dilemas diários enfrentados pelos seus trabalhadores policiais, bem como a população poderia se interessar por conhecer o trabalho policial, principalmente no tocante a esses dilemas. Isso poderia contribuir para uma aproximação baseada no respeito e consideração entre ambos,o que traria uma quebra do distanciamento e uma busca do conhecimento das necessidades tanto dos policiais como da sociedade.

 

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