SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número41Dimensões da prática cotidiana e (des)humanização do policial militarA síntese como registro reflexivo no trabalho do psicólogo escolar com gestores índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.41 São Paulo dez. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20150015 

ARTIGOS

 

Narrativas de professoras de psicologia do ensino médio: entre memórias e reflexões1

 

High School psychology teachers' narratives: between memories and reflections

 

Narrativas de maestras de psicología en la escuela secundaria: entre memorias y reflexiones

 

 

Lineu Norio Kohatsu

Instituto de Psicologia da USP, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. lineu@usp.br

 

 


RESUMO

A pesquisa teve por objetivo principal conhecer quem são os professores efetivos de Psicologia da rede pública de ensino do estado de São Paulo e compreender como se deram a trajetória profissional e a constituição de suas concepções e práticas. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada com onze professoras de Psicologia efetivas e concursadas da rede pública do estado de São Paulo da Capital, Região Metropolitana e interior. A apresentação material das entrevistas foi organizada em três momentos: a 'Alvorada' (sobre a formação inicial na licenciatura e o ingresso na docência), O 'Caminho' (sobre a trajetória vivida na docência, as mudanças nas concepções e nas práticas, as melhores experiências, as dificuldades encontradas) e, por fim, o 'Ocaso' (a etapa final e a aposentadoria). A observação e análise do material das entrevistas possibilitaram a visualização de muitos aspectos comuns e também distintos nas experiências das professoras. A maioria das entrevistadas relatou que apesar do desinteresse inicial pela licenciatura e pela docência, houve um envolvimento crescente com a profissão. A reflexão sobre a prática levou as professoras a buscarem conteúdos mais significativos para seus alunos, com metodologias mais participativas, que resultaram em experiências recordadas com emoção. As difíceis condições de trabalho que ocasionaram processos de adoecimento e afastamento também foram lembradas; a ambivalência diante da aposentadoria também foi relatada por algumas entrevistadas. Espera-se que o estudo possa contribuir como um registro das experiências e colaborar para a formação de futuros professores.

Palavras-chave: Psicologia; licenciatura; ensino médio.


ABSTRACT

This research sets as the main objective to know who are the career Psychology teachers of public schools in the State of São Paulo and understand how their career, conceptions and practices were formed. Data were collected with 11 career Psychology teachers in public schools of the State of São Paulo from different Directories of Education (Capital, São Paulo megalopolis and countryside) through semi-structured interview. The presentation of the material from the interviews was organized in three stages: 'Dawn' (on initial training and the beginning of teaching), the 'Path' (the trajectory, the changes, the best experiences, difficulties encountered) and finally, the 'Twilight' (the final step and retirement).The observation and analysis of the interviews allowed to show many common and also different experiences of teachers. Most interviewees reported that despite of the initial disinterest for the degree and for teaching, there was a growing involvement with the profession. Reflection on the practice led the teachers to seek more meaningful content for their students, with more participatory methodologies that resulted in experience remembered with feelings. The difficult working conditions that caused disease processes and removal were also remembered; the ambivalence before retirement was also reported by some interviewees. It is hoped that the study can contribute as a record of experiences and contribute to the training of future teachers.

Keywords: Psychology; teaching degree; high school.


RESUMEN

La investigación tuvo como objetivo saber quiénes son las maestras efectivas de Psicología de la enseñanza pública de São Paulo y entender cómo fue la carrera y el establecimiento de sus concepciones y prácticas. La recolección de datos se realizó a través de entrevistas semi-estructuradas con once maestras de Psicología del estado de São Paulo en la capital, área metropolitana y el interior. Los datos de las entrevistas fueran organizados en tres etapas: 'Amanecer' (la formación inicial en pregrado y la entrada en la enseñanza);el "Camino" (la trayectoria y la experiencia en la enseñanza, los cambios en las concepciones y prácticas, la las mejores experiencias, dificultades encontradas), y por último, el Ocaso (la etapa final y jubilación). La observación y el análisis de las entrevistas permitieron mostrar muchas experiencias comunes y también diferentes de las maestras. La mayoría de las entrevistadas informaron que a pesar de la falta de interés inicial en grado y para la enseñanza, hubo una implicación cada vez mayor con la profesión. La reflexión sobre la práctica llevó a las maestras para buscar contenidos más significativos para sus estudiantes, con metodologías más participativas que dieron lugar a las experiencia recordadas con emoción. Las condiciones de trabajo difíciles que causaron procesos de enfermedad y ausencias del trabajo también fueron recordados; la ambivalencia hacia la jubilación también fue reportada por algunas entrevistadas. Se espera que el estudio pueda contribuir como un registro de experiencias y contribuir a la formación de los futuros maestros.

Palabras clave: Psicología;formación de maestros;escuela secundaria.


 

 

Segundo dados obtidos junto à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em 2009, havia na rede estadual 125 professores de Psicologia concursados e efetivos, porém, conforme informações obtidas diretamente em algumas escolas, alguns desses já se aposentaram ou estão em processo de aposentadoria. Ainda assim, o número total de professores de Psicologia na rede pública estadual é bem maior do que o informado pela Secretaria de Educação, se considerados também os professores com contrato de Ocupação de Função Atividade - OFA.

Atualmente, os professores de Psicologia vêm exercendo funções pedagógicas e administrativas diversas nas escolas e Diretorias de Ensino em vista da retirada da disciplina de Psicologia do currículo do ensino médio paulista a partir das mudanças promovidas pela Resolução SE nº 92 de dezembro de 2007. Essa, no entanto, não foi a primeira vez que a disciplina de Psicologia foi retirada do currículo do ensino médio.

Em seu artigo, Leite (2007) analisa aspectos históricos do ensino de Psicologia no ensino médio e recorda o momento da retirada da disciplina no período da ditadura militar e a sua reinserção na década de 1980. Leite recorda que a Lei 5692/1971 promoveu a Reforma do Ensino de 1º e 2º graus e, sob o pretexto da educação profissional compulsória, retirou as disciplinas da área de Ciências Humanas do currículo do 2º grau. No final da década de 1970 e na década de 1980, no bojo dos movimentos de redemocratização política no país, ocorreram mudanças na direção das entidades de classe - Sindicato dos Psicólogos e Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - que apoiaram a luta pela democratização da educação e o retorno da disciplina de Psicologia, junto com as disciplinas de Sociologia e Filosofia. Na década de 1990, a ação dos psicólogos na educação sofreu um refluxo e não acompanhou a luta empenhada pelas entidades representativas da Sociologia e da Filosofia, que conquistaram a inclusão dos conhecimentos das disciplinas na LDBN 9394/96 e posteriormente obtiveram o Parecer nº 38/06 e a Lei n. 11.684, de 2 de junho de 2008, que tornaram as disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio (Dadico, 2009), diferentemente da Psicologia que permaneceu como disciplina optativa somente em algumas escolas.

No Estado de São Paulo, antes mesmo da aprovação do Parecer nº 38/06 pelo Conselho Nacional de Educação, a Secretaria de Estado da Educação, sob o comando de Gabriel Chalita, promulgou a Resolução SE nº 6/2005, que fixava duas aulas de Filosofia para o primeiro ano do ensino médio, duas aulas de Sociologia no segundo ano e duas aulas de Filosofia, Sociologia ou Psicologia no terceiro ano (Dadico, 2009). O pouco espaço destinado à disciplina de Psicologia foi finalmente encerrado com a Resolução SE nº 92/2007, que a retirou definitivamente do currículo e essa deixou de ser oferecida a partir de 2008.

Diante desse cenário pouco favorável à continuidade do ensino da Psicologia no ensino médio, entendem-se como necessários e urgentes o registro e a sistematização das experiências dos professores de Psicologia, principalmente dos efetivos e concursados que estão em vias de se aposentar. Considerando que essas experiências são pouco conhecidas e divulgadas devido à escassez de publicações sobre o tema, tal como foi mostrada em outro estudo (Kohatsu, no prelo), com a saída desses profissionais em virtude de suas aposentadorias, parte dessa história, que também é parte da história da Psicologia no Brasil, se tornará mais inacessível e possivelmente cairá no esquecimento.

A pesquisa justificou-se também pela necessidade de dados para subsidiar a formação de professores nos cursos de licenciatura em Psicologia, tendo em vista as mudanças nas Diretrizes Curriculares para a Formação em Psicologia instituídas pela Resolução CNE 5/2011,que tornaram o oferecimento obrigatório pelas instituições de ensino. Desse modo, entende-se a importância de articular o ensino e a formação com a pesquisa como intuito de estimular permanentemente a reflexão da prática docente.

Tendo em vista essas considerações, o estudo teve por objetivo geral "conhecer quem são os professores efetivos de Psicologia da rede de ensino do estado de São Paulo e compreender como se deram a trajetória profissional como docente e a constituição de suas concepções e práticas". Desse modo, é importante esclarecer que o estudo buscou não somente conhecer e registrar as práticas dos professores, mas compreender como as concepções e práticas se constituíram, segundo o relato dos próprios professores. Nesse sentido, ressalta-se o caráter formativo da entrevista na medida em que estimula a reflexão no ato de recordar e narrar suas trajetórias.

Pesquisas sobre a formação de professores têm ampliado sua base de investigação para além da formação mais técnica e instrumental, seja na formação inicial, oferecida pelas licenciaturas, seja por meio da formação continuada. As pesquisas com história de vida de professores, tendo Nóvoa (1995) como importante referência no universo lusófono,têm oferecido importante contribuição para a compreensão mais abrangente da formação docente. No Brasil, conforme revisão da literatura realizada por Bueno e outros (2006), nota-se um crescimento de pesquisas na educação baseadas em autobiografias e histórias de vida a partir da década de 1990. Molina e Lima (2008), no exame que realizam sobre estudos que abordam o desenvolvimento profissional do docente, apontam que desde meados do século XX são questionadas as concepções de formação docente que se restringem à dimensão da racionalidade técnica (reciclagem, capacitação, qualificação, especialização etc.), surgindo novas conceituações e procedimentos que buscam compreender o desenvolvimento profissional do professor em uma perspectiva mais humanizadora, valorizando a dimensão mais crítica e reflexiva. Pesquisas realizadas por Cavaco (1991), em Portugal, e Jesus (2000), no Brasil, Hernandez (1998), na Espanha, entre outras citadas na revisão de Molina e Lima (2008), mostram como os saberes e valores presentes no desenvolvimento profissional do professor se cruzam com a dimensão pessoal e sua história de vida.

Inseridas nessa perspectiva, as pesquisas destacam, igualmente, a experiência pessoal e a prática profissional como importantes fontes de aprendizagem dos professores. Elas indicam que os professores carregam consigo crenças, atitudes, valores, juízos, sistemas conceituais, teorias implícitas, princípios práticos, etc., os quais orientam a ação docente e tendem a não se modificar pelo simples contato com novas crenças, valores e princípios. A prática docente, por sua vez, também é importante fonte de aprendizagem, na medida em que ela gera, integra, revisa, rejeita ou convalida diversos tipos de saberes (curriculares, profissionais, científicos, da experiência, etc.). (Molina & Lima, 2008, p. 99)

Reforçando esse argumento:

Fundamentalmente, é preciso pensar a formação do professor como um processo, cujo início se situa muito antes do ingresso nos cursos de habilitação - ou seja, desde os primórdios de sua escolarização e até mesmo antes - e que depois destes tem prosseguimento durante todo o percurso profissional do docente. (Bueno, 2002, p. 22)

Ainda nessa perspectiva metodológica, uma importante referência para esta pesquisa foi o trabalho de Huberman (1995), que analisa a trajetória profissional como um ciclo de vida, com diferentes fases do desenvolvimento: entrada na carreira, estabilização, diversificação, questionamento, distanciamento afetivo ou conservadorismo, desinvestimento, esse último correspondendo à fase final da carreira. O trabalho desse autor inspirou a elaboração do roteiro de entrevista e a apresentação das entrevistas, como será mostrado adiante.

Embora este estudo não se caracterize rigorosamente como uma pesquisa baseada em histórias de vida de professores, ainda que aborde narrativas sobre formação, pode-se considerar que encontra nessa metodologia importante referência para compreensão do processo formativo de concepções e práticas docentes. Outra consideração importante a se fazer sobre essa metodologia é o modo como as histórias individuais são vistas, como sínteses da história social, ou seja, "reapropriação singular do universal social e histórico" pelo indivíduo, conforme Ferrarotti (1988, apud Bueno, 2002, p.19).

Nessa perspectiva, na presente pesquisa as narrativas não foram consideradas apenas como um conjunto de depoimentos individuais, mas como ato de construção de uma memória coletiva (Halbwachs, 1968/2006) dos professores de Psicologia do ensino médio.

 

MÉTODO

A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira, por meio de questionário autopreenchido enviado por correio eletrônico ou convencional, participaram 20 professores efetivos da Capital, Região Metropolitana e interior e objetivou a coleta de dados sobre os professores e suas práticas em sala de aula: objetivos, metodologia, conteúdos, referências bibliográficas e avaliação. Na segunda etapa, foram contatadas 11 professoras que se dispuseram a participar das entrevistas. Neste artigo, serão apresentados somente os dados coletados na segunda etapa, referentes às reflexões sobre a formação e as experiências dos docentes.

Participantes

Participaram da pesquisa 11 professoras efetivas de Psicologia do ensino médio da rede pública do estado de São Paulo, de diferentes Diretorias de Ensino do Estado de São Paulo. As participantes foram esclarecidas a respeito da participação voluntária, sobre a finalidade da pesquisa, a duração da entrevista, a utilização do gravador e a manutenção do sigilo de suas identidades e do nome da instituição. Após esclarecimento e consentimento, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As informações sobre as participantes apresentam-se na Figura 1. Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade das entrevistadas.

Procedimento de coleta de dados

Entrevistas semiestruturadas, audiogravadas, com duração média de duas horas. As entrevistas foram realizadas nos respectivos municípios das entrevistadas, nos locais determinados por elas (escolas, consultórios ou domicílios). Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e devolvidas para as participantes da pesquisa.

A entrevista foi orientada pelos seguintes pontos:

1. Licenciatura.

2. Por que escolheu a carreira docente?

3. Como era a sua prática em sala de aula?

4. Como foram se constituindo suas concepções teóricas e práticas?

5. Balanço da carreira.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A apresentação do material das entrevistas foi organizada em três momentos: a 'Alvorada' (sobre a formação inicial e o ingresso na docência), O 'Caminho' (sobre a trajetória vivida, as mudanças, as melhores experiências, as dificuldades encontradas) e, por fim, o 'Ocaso' (a etapa final e a aposentadoria).

Alvorada

Alvorada. S.f. Crepúsculo matutino;a claridade que precede o romper do Sol; arraiada, dilúculo. Canto das aves ao amanhecer. (...) Princípio, começo, início, aurora; alvor (Ferreira, 1999).

O ingresso na licenciatura

(...)eu não tinha intenção de ser professora, na época (...), eu queria ser Psicóloga. Você fazia umas disciplinas a mais, tinha umas aulas aos sábados. Tinha que fazer uns estágios, fazia umas matérias a mais, pagava um pouco a mais também e eu decidi fazer. (...) Era opcional, não era obrigatório. (...) a maior parte fazia porque ia ser mais uma opção de trabalho e não ia ser tão complicado. (Profa. Olga)

(...) uns 60 ou 80 por cento da turma fazia. (...)eu tinha que cumprir algumas disciplinas extras e isso me daria o título de licenciatura, eu fiz a opção de fazer simplesmente porque eu achei que era bom pra mim, né, então, eu fui fazer, mas assim, eu não tinha a intenção 'ah eu quero dar aula, ou, eu vou dar aula'... Eu fui fazer, porque era oferecido e eu achei que era bom. Eu acho que eu comecei a partir do terceiro semestre do meu curso, e eu fui fazendo... (Profa. Consuelo)

(...) a Licenciatura era meio obrigatória, não tinha muita escolha. (...) a Licenciatura junto com o Bacharelado todo mundo fazia. Olha, eu não tinha objetivo, eu fazia, era um curso que tinha e eu fiz, sabe assim? Simplesmente, eu fiz, não tinha o objetivo de ser professora. (...) no começo eu tinha interesse na formação clínica. (Profa. Solonia)

(...) porque em termos de projetos, não era um dos meus projetos ser professora, mas como tinha na grade eu fiz a opção também pela Licenciatura. Olha, 98% também fizeram opção pela Licenciatura. (Nina)

A fala das professoras entrevistadas explicita claramente que a licenciatura, opcional ou obrigatória, não foi cursada com o intuito de ingressar no magistério, visto que muitas declararam não terem por objetivo serem professoras, mas, sim, atuarem na área clínica ou organizacional. Segundo os relatos, a licenciatura era vista como possibilidade de mais uma titulação, tendo como exigência apenas o cumprimento de algumas disciplinas extras. É importante apontar que,no período, anterior a publicação da Resolução CNE/ES 01/2002, as licenciaturas em geral, caracterizadas pelo conhecido 3 +1 (três anos de conhecimentos específicos da área e mais um complementar com conteúdos didáticos pedagógicos), conforme Pereira (1999), exigiam carga horária menor do que a exigida atualmente, a partir da Resolução CNE 01/2002, que estabelece carga horária mínima de 2800 horas e normatiza mudanças da LDB 9394/96.

No entanto, duas entrevistas chamaram a atenção. A professora Sonia comentou que já trabalhava na educação quando foi cursar a licenciatura; ao se formar, tinha a expectativa de trabalhar em consultório, mas logo mudou de ideia. Ela foi uma das poucas entrevistadas que considerou a licenciatura significativa para sua formação:

Eu acho que foi [significativa], eu já dava aula, então juntou as duas coisas. (...) eu já estava na educação, para você montar um consultório você precisa de um subsídio, eu já trabalhava com educação, já me sustentava. (...) A licenciatura me proporcionou ter mais clareza do papel do professor. (...) Depois que me formei, eu tinha a expectativa de trabalhar com clínica, até tentei, mas logo vi que não era a "minha praia". A "minha praia" é a educação. (Profa. Sonia)

A profa. Graziele também queria ser professora, mas se interessou pela Psicologia quando a disciplina foi oferecida no ensino médio. Ela também foi uma das poucas que valorizou a licenciatura para formação:

(...) quando eu fazia faculdade, tinha a opção de fazer também a licenciatura (...) eu fui pra fazer a formação de psicólogo, só que anteriormente a escolha de Psicologia, eu tinha uma opção de ser professora, eu queria ser professora, aí quando eu conheci a Psicologia no ensino médio...[Sobre a licenciatura]Foi importante. (Profa. Graziele)

Como era a licenciatura?

Quando perguntado às entrevistadas como era a licenciatura, muitas tiveram dificuldades para se recordar, até mesmo porque, pelo modo como eram oferecidas as disciplinas ao longo do curso, concomitantemente às disciplinas do bacharelado e da formação do psicólogo, algumas professoras não souberam distinguir quais eram as disciplinas específicas da licenciatura, confundindo as com as da Psicologia escolar, por exemplo.

Algumas professoras recordaram das disciplinas de Didática, Estrutura e Funcionamento da Educação, Metodologia de Ensino e dos Estágios Supervisionados. Contudo, o que chama a atenção é o fato de a licenciatura não ter sido significativa para a formação das professoras, como se pode ver a seguir em alguns depoimentos:

(...) eram mais chatas, mas eram mais fáceis, não precisava estudar muito, tinha uns estágios, tinha Didática, Estrutura, Psicologia Escolar, alguma coisa assim (...). Parecia meio antiquado... parecia que eram coisas meio antigas... Era a impressão que me dava, que era uma coisa meio ultrapassada... Parecia que nunca ia usar, sabe? A gente não valorizava, não sei se eram as professoras, não sei... (...) A de Estrutura era muito certinha, assim, ela sabia muito de lei e falava, falava, falava de leis, muito chato, entendeu? Lei 5692 e blábláblá... Era 5692, então ficava falando, falando, era um pouco chato, muito teórico. (Profa. Olga)

Faz muito tempo [rs], mas pelo que eu me lembro deve ter sido teórico e nada que nos capacitou para uma prática em sala de aula, eu teria gravado se tivesse tido algum estágio ou alguma coisa associada à disciplina. (Profa. Cláudia)

"Chatas, antiquadas, ultrapassadas, muito teórico", no sentido negativo, foram alguns termos usados para qualificar a licenciatura. Os estágios supervisionados também foram lembrados da mesma forma pouco significativa:

Eu não fazia nada, a gente não participava. Chegava, entrava no fundo da sala de aula e lá ficava até bater o sinal. Fazia algumas anotações, né? Os alunos não podiam falar nada, não podiam questionar, não podiam se manifestar, a professora falava um monte de abobrinha. (...) a professora falava umas coisas tão desinteressantes que eu não me lembro do que ela falava. (...) Nada, nada, não lembro de nada. Achava muito chato. A gente era muito mal tratada, muito desrespeitada. (Profa. Flávia)

Então, ficava observando o professor. (...) Eu sentava no fundo da sala, fazia uma observação e depois relatava pra professora. (Profa. Nina)

Quando conseguiam se lembrar do estágio o qualificaram como "chato, fraco, pouco participativo", pois eram basicamente de observação - chamam atenção os relatos das professoras Flávia e Nina quando relatam que se sentavam no fundo da sala, praticamente à margem das aulas. Os relatórios, que deveriam ser entregues e discutidos na supervisão, também foram lembrados. Se for correta essa inferência, o relatório era visto como uma tarefa meramente burocrática, como mais uma tarefa sem sentido a ser realizada e entregue ao supervisor de estágio da universidade.

Assim, tal como a licenciatura em geral, os estágios também se mostraram muito pouco significativos para a maioria das entrevistadas. Contudo, a fala de três professoras destoa do coro da maioria, sendo duas delas, Sonia e Graziele, citadas anteriormente, e Hilda que, diferentemente das demais, avaliaram positivamente a licenciatura. As diferentes percepções sobre a licenciatura podem decorrer da formação oferecida por instituições de ensino diversas, algumas privadas, outras confessionais. Interessante observar que das 11 professoras entrevistadas, nenhuma delas graduou-se em universidade pública. Tal fato pode ser explicado pela expansão das instituições particulares iniciada a partir das décadas de 1960-1970 e intensificadas na década de 1990. A reforma universitária e a privatização do ensino superior, como decorrência da política educacional do regime militar, foram discutidas por Florestan Fernandes (1975) e atualizadas por Martins (2009).

No entanto, a predisposição e o interesse das entrevistadas também pode ter sido um fator importante.

A seguir, trecho do depoimento da professora Hilda:

Achei importante, sim, um olhar diferente pra quem é (do) bacharelado. Eu tenho bacharelado e licenciatura e visão de sala de aula que você não tem como psicóloga. É outro enfoque, então a licenciatura é muito importante pra gente, você vê outros pensadores que você não vê no bacharelado, então a licenciatura é importante, sim. (...) foi importante pra você entender uma sala de aula (...) éramos todas de 21, 22 anos, não tínhamos ideia de como funcionava uma sala de aula, então aquilo tudo serviu pra gente entender melhor a rotina de uma sala de aula, né? (Profa. Hilda)

Duas observações: primeira, a avaliação da professora Hilda diverge da apresentada pela professoraConsuelo, e ambas estudaram na mesma universidade confessional, mas em períodos diferentes (Hilda em 1989 e Consuelo em 1981); segunda, a professora Hilda declarou que não tinha interesse inicial pela docência, mas percebe-se uma valorização da licenciatura, podendo indicar o início de mudança na sua visão sobre a docência.

Embora se observem essas três vozes destoantes (Sonia, Graziele e Hilda), a questão que se coloca é: como explicar o desinteresse geral pela licenciatura e pela docência no início da carreira?

Gatti (1997), ao discutir a formação de professores, aponta que muitos alunos que cursam a licenciatura não pretendem seguir a carreira docente, demonstrando ainda baixa satisfação dos licenciados pelos cursos de formação. Na Psicologia, Leite (1986), Mrech (2007), Simões & Paiva (2007) também observam o desinteresse pela licenciatura e pela docência na educação básica. Dois aspectos podem ser apontados como responsáveis pelo desinteresse: 1) condições de trabalho pouco compensadoras (baixos salários, situações precárias, baixo prestígio social da profissão docente) (cf. Lapo & Bueno, 2003; Pereira, 1999); 2) qualidade dos cursos de licenciatura (Larocca, 2007; Mrech, 2007; Simões & Paiva, 2007). Sobre o segundo ponto, Mrech observa que "os professores de ensino superior também não têm uma ideia clara do que é o ensino de Psicologia na Licenciatura em Psicologia"(Mrech, 2007, p. 232). A crítica aos cursos predominantemente teóricos, comentada por algumas entrevistadas, também foi observada no artigo de Larocca (2007).

Além dos argumentos apresentados pelos estudiosos da área, merece ser citada a discussão feita por T. W. Adorno (1965/1995) sobre os tabus acerca do magistério. As considerações não foram baseadas em pesquisa empírica com professores, porém seu ensaio teórico ajuda a compreender a aversão pela docência como um tabu.

O ingresso na docência

Pelos depoimentos apresentados, muitas entrevistadas não tinham a docência como objetivo de suas carreiras profissionais, muitas delas declarando explicitamente o interesse pela área clínica e organizacional. Todavia, como será mostrado, devido as condições desfavoráveis encontradas no início da carreira, a docência acabou se tornando uma alternativa para se manterem na Psicologia. Os relatos, a seguir, são típicos e representativos:

É, foi logo que eu cheguei, já fui tentando abrir consultório, outras áreas, tentei mais na área organizacional, que é a que eu tinha feito estágio, mas tinham poucas empresas aqui na região. Não havia campo ainda pra área organizacional.(...) Eu tentava trabalhar aqui, mas não tinha mercado de trabalho e eu comecei a pegar essas aulas de Psicologia porque foi a opção que me surgiu na época. (...) Eu não lembro como eu fiquei sabendo (...) acho que alguém me falou que no Estado tinham aulas e eu me interessei. Eu precisava de trabalho. (...)Então, dar aulas de Psicologia pelo menos era uma tentativa de me manter dentro da Psicologia naquele momento. (Profa. Cláudia)

Foi porque eu precisava de um emprego fixo, porque o consultório no início é difícil, muito difícil e tinha que investir, tinha que fazer supervisão. (...) Eu precisava trabalhar! Então a escola foi uma alternativa também pra eu ter um emprego mais estável. (...) comecei na clínica em agosto e aí eu tinha uma amiga que já lecionava Psicologia no Estado, a mesma que me convidou pra clínica. É, inclusive ela começou com aula de História e depois que ela pegou a Psicologia, mas, num primeiro momento, ela pegou História, aí a minha amiga foi me orientando, eu fui fazendo inscrição e eu fui indo, entendeu? (Profa. Graziele)

As professoras Cláudia e Graziele, assim como muitas das entrevistadas, encontraram na docência uma alternativa diante da dificuldade de ingressar ou permanecer no mercado de trabalho, ainda que fora das áreas pretendidas (organizacional e clínica), corroborando observações feitas por Leite (1986) e Mrech (2001, 2007). Por meio de amigas ou pessoas conhecidas, foram informadas que algumas escolas públicas estavam à procura de professoras de Psicologia. Assim, ingressaram como ACTs, algumas permanecendo nessa função mesmo após aprovação no concurso para professora efetiva, pois esperaram para tomar posse. Outro dado interessante apresentado por muitas entrevistadas é que, no momento da posse, não puderam ser efetivadas nas escolas de seus municípios de domicílio por falta de vaga. Assim, mantiveram a escola sede em um município e exerceram o cargo em outro, até conseguirem a remoção por meio dos dispositivos legais, fato já observado em outra pesquisa (Kohatsu, no prelo).

O início

(...)eu era recém-formada e eu nunca tinha dado aula (...)Então eu peguei aula no ensino médio, noturno, e no magistério, de manhã. (...) Lembro, assustada, né, eu fui a noite e eram classes com pessoas mais velhas, o noturno (...)naquele dia eu lembro que eu tava muito assustada, mas eu me lembro que logo, eu pensava, eu gosto disso, eu quero fazer isso, fazer com amor... (Profa. Consuelo)

Foi difícil substituir uma pessoa que eles gostavam muito... e realmente ela era uma ótima professora, uma ótima pessoa, então foi difícil... eu quase desapareci lá... e eu tinha preparado toda a minha aula, fui com ela toda preparada, e eu fiquei muito nervosa(...) Era noturno, não tinha colegial de manhã, nem durante o dia... (Profa. Graziele)

A insegurança e a apreensão do início são declaradas; entrar em uma sala de aula, algumas iniciaram no período noturno, com alunas mais velhas, ter de substituir uma professora mais experiente e querida pela sala, fatores que parecem ter aumentado a insegurança das iniciantes. Mas nota-se também o empenho para se preparar, estudar para planejar a aula e, desde o início, a descoberta do gosto pela docência por quem não tinha planos de se tornar professora apontam as transformações que se iniciam já no começo da jornada.

Sobre as mudanças na prática: da transmissão de teorias para trabalho com temas

"Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar" (Antonio Machado).

A frase já tão conhecida da poesia de Antonio Machado resume muito bem o modo como as professoras entrevistadas relataram a constituição de suas práticas e concepções. Não foram dadas a priori, na formação inicial recebida nos cursos de licenciatura em Psicologia, mas construídas no dia a dia, a partir da relação com os alunos, conhecendo-os e dialogando sobre a percepção que eles tinham da vida, da escola, do mundo, sobre seus interesses e expectativas. Embora sabidas como práticas distintas pelas entrevistadas, nota-se como resgatam na prática docente a habilidade clínica de escuta e atenção ao outro, no caso, os alunos. Mas não foi uma via de mão única, pois para algumas entrevistadas, a experiência na sala de aula enriqueceu também a atuação na clínica, principalmente com os adolescentes (Flávia, Nilda).

Assim como as concepções e práticas foram se constituindo ou se consolidando pela experiência em sala de aula, pode-se notar que a própria assunção da identidade docente foi ocorrendo aos poucos, visto que a grande maioria das professoras não tinha a docência como projeto profissional no início de suas carreiras.

A partir dos relatos, é possível identificar dois momentos na trajetória das entrevistadas: o começo, quando enfatizavam a transmissão de conteúdos teóricos e conceituais da Psicologia, e o momento posterior, quando a atenção às experiências e expectativas dos alunos foi ganhando espaço na sala de aula. De modo geral, pode-se notar que as aulas estritamente teóricas foram sendo substituídas por aulas com temas relacionados ao universo de vivência dos jovens. A seguir, alguns depoimentos que ilustram as mudanças:

Quando eu comecei a dar aula, por exemplo, a minha ênfase era muito mais na questão teórica, mesmo. Sabe, de preparar apostila, dar aquele calhamaço de material para o aluno. Mudou muito, se você pegar meu primeiro ano e meu último de Psicologia como professora, era muito diferente. (...) Foi juntando um pouco do conceito de Paulo Freire, mas muito mais com a prática, percebendo, porque quando você traz isso do dia a dia, começa a mexer com eles[alunos]. (...)Se eu for trabalhar Psicologia daquela maneira fechada, só na parte teórica, ninguém vai nem me ouvir. (...) Eu entrei na prefeitura em 76, como eu disse, em plena ditadura militar e a gente vinha discutindo Paulo Freire. E uma das questões que está muito colocada: partir da realidade do aluno e dentro daquilo, buscar essa reflexão. Então isso eu fiz a minha vida inteira, desde a alfabetização às aulas de Psicologia. (Profa. Sonia)

Quando eu comecei a lecionar, em 93, 94, era assim o planejamento, tinha que focar, todas aquelas, todos os teóricos de Psicologia, sabe, o Jung, Freud, Adler, (...) Skinner... Aí eu comecei a ver que não era interessante, era muito cansativo e tava no currículo do estado dar essas matérias (...). (...) eu me lembro que era muito teórico, sabe, da teoria tradicional da Psicologia, né, de quem faz uma licenciatura em Psicologia, então eu fui mudando as coisas assim, fui colocando assuntos mais atuais de acordo com o decorrer dos anos, depois, foi indo, eu fui mudando (...). (...)tinha um livro de Psicologia muito bom que a gente usava, mas que eu não usava tudo também, chamava Psicologias, você sabe qual que é? (...) Porque eu achava que muita coisa não ia acrescentar na vida deles no dia a dia. (...) eu achava que tinham outros assuntos pra falar com eles, motivação, identidade, preconceito, agora bullying, que é moderno agora, esses assuntos eu achava que eram mais relacionados à vida deles. (...) eu fui mudando, eu achava que a minha aula ia ficando mais dinâmica, achei que eles iam se interessar mais pelo outro, pelo ser humano, eles iam ter a bagagem do que era a Psicologia, porque isso tudo eu passava pra eles. (...)e ia deixando mais pra vida deles, entendeu, mais pro dia a dia, assuntos que poderiam causar mais motivação. (Profa. Hilda)

Como se pode ver pelos depoimentos acima, houve mudanças nas práticas das professoras Sonia e Hilda, que inicialmente privilegiavam o trabalho com as teorias da Psicologia, passando, na medida em que iam ganhando experiência na sala de aula, a enfocar mais o trabalho com temas relacionados à 'realidade dos alunos', conforme termo usado pela professora Sonia.

Há, no entanto, um depoimento que destoa da maioria, representada pelos dois depoimentos anteriores: a professora Marta explicita sua posição em favor de aulas que denomina como tradicional para proporcionar aos alunos o contato com os 'clássicos'. Conforme se pode ver em seu depoimento, sua prática foi revista a partir de seu mestrado e doutorado, quando passou a reconsiderar a importância da teoria e dos clássicos para a formação.

Hoje eu preferiria a docência tradicional. Tradicional em que sentido? De você ir aos clássicos, depurar esses clássicos e ver o que eles fomentam de indagação, mas acho que fazíamos um caminho de irmos mais no sujeito, os temas transversais: a violência, homossexualismo, não sei o que, e ia trabalhando isso, e se misturava um pouquinho a professora e a psicóloga deles, e não era o papel... (...) retrospectivamente, eu acho que eu mudaria a minha prática de docência, eu tentaria trabalhar mais com algumas fontes clássicas, principalmente no Ensino Médio, eu acho que as dinâmicas que nós fazíamos com os temas transversais, depois lá no mestrado que eu fui ver que esses temas que trabalhavam a cidadania também eram discutíveis[rsrsrsr], meio balela, mas enfim, teve seu papel. (...) eu reformularia a prática hoje, trabalharia com alguns clássicos e daria um tom mais... Talvez até atendendo esses temas transversais todos, mas optaria pra trabalhar alguns clássicos sim, seria importante pra eles, porque eu acho que seria um investimento maior na formação do que ficar debatendo um tema, sabe? (Profa. Marta).

Se por um lado a professora Marta reavalia seu trabalho com temas transversais, por outro, a professora Nilda critica as aulas em que predominam o trabalho com teorias, que visa somente a memorização dos conteúdos, sem aplicação prática na vida dos alunos.

Eu cheguei a isso porque, sabe, o que adianta eu saber toda a teoria? Qualquer teoria, adianta saber ela de cor? (...) Memorização pra quê? De que adianta o aluno saber teoricamente de tudo, se isso não muda nada na minha vida? Nada. Eu continuo tendo o mesmo tipo de comportamento, embora minha teoria seja diferente. Então eu percebi que isso não adiantava nada, o que vale pro ser humano não é a teoria, o conhecimento da teoria, mas a prática. O conhecimento é importante desde que na prática eu faça uso dele, né, então, só teoricamente, eu percebi que não ia ter resultado nenhum. (...) eu acredito nisso, é daquele jeito que eu vou trabalhar, porque é isso que eu gostaria de fazer, porque não é fácil trabalhar do jeito que a gente trabalha. É mais difícil do que passar a teoria na lousa. É a coisa mais simples que tem, pôr a teoria na lousa, ta lá você pega um livro de capa a capa põe lá na lousa, faz prova, faz chamada oral, faz trabalho, faz uma discussão dentro da sala. (...) desde o início eu já comecei nesta linha, mas eu percebi que depois foi se intensificando mais. (...) eu acho que eu fui tendo mais domínio, né, a experiência vai levando você a uma posição mais de conforto (...) acho que no começo, eu comecei a trabalhar assim menos. Aí depois, eu fiquei tranquila em trabalhar isso sem preocupação nenhuma, sem medo nenhum... (Profa. Nilda)

É interessante notar também, não somente na fala da professora Nilda, mas também em outras, a relação estabelecida entre conteúdo teórico e metodologia tradicional, de transmissão oral ou com cópia da lousa. Ou seja, a mudança no conteúdo, da teoria aos temas, foi justificada também pelo intuito de tornar a aula mais dinâmica e participativa. Assim, pode se observar que a mudança do conteúdo foi acompanhada pela mudança da metodologia, de expositiva para mais participativa. Um aspecto que merece ser ressaltado é que muitas das professoras entrevistadas não abriram mão do conteúdo mais teórico, mas passaram a enfatizar mais o trabalho com temas. Todavia, pelo que se pode entender, teorias e temas eram trabalhados separadamente, em dois momentos distintos, sem necessariamente serem articulados, aspecto observado em outro trabalho (Kohatsu, no prelo). Seria interessante se essa articulação fosse realizada, pois desse modo poderia valorizar a vivência dos alunos e fundamentar a reflexão a partir dos clássicos, tal como discutido pela professora Marta.

De toda forma, o que se pode ver pelos depoimentos foram mudanças nas concepções e nas práticas decorrentes, principalmente, da reflexão das experiências de sala de aula junto aos alunos. No entanto, dois relatos acrescentam experiências que também impulsionaram as mudanças: o primeiro, da professora Olga, faz referência à capacitação oferecida pela CENP, em pareceria com o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP6 e o Sindicato dos Psicólogos de São Paulo(Leite, 1986, 2007); o segundo, da professora Cláudia, é referente à reflexão da prática docente provocada por sua experiência junto à formação de professoras no curso de magistério.

Segue depoimento da profa. Cláudia:

(...) e eu fui mudando esse estilo 'tão conteúdo' e fui partindo da realidade do aluno. (...) eu formando professores, eu me formei, mais ou menos assim. (...) eu mesma fui repensando a minha prática, já que eu não tinha outros colegas pra contribuírem. No Magistério, eu tinha que fazer as teorias virarem práticas e isso foi fazendo eu questionar o meu estilo para com elas, como eu poderia fazê-las se formarem professoras se eu ainda era uma professora tradicional... Então eu tentei fazer das minhas aulas no Magistério algo diferente e colocar na prática o que eu pregava como teoria.

Merece ser ressaltado que as duas professoras citaram a importância de livros de referência para mudança de suas práticas. A professora Cláudia comentou sobre a importância do livro Psicologia Educacional, de autoria de Nelson Piletti(1996). A professora Olga comentou sobre o livro publicado pelo CRP-06, Sindicato dos Psicólogos e CENP, que foi uma sistematização dos cursos de formação citado anteriormente. O livro é organizado por temas, o que pode ter inspirado muitas práticas, embora não tenha sido muito citado pelas entrevistadas, diferentemente do livro Psicologias (Bock, Furtado & Teixeira, 1995) - que foi uma referência praticamente unânime - também organizado por temas, como o livro publicado pelo CRP.

Curiosamente, não houve consenso em relação à existência de um currículo oficial apresentado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Algumas professoras comentaram sobre a existência de um currículo ou materiais de referência oficiais (Hilda, Consuelo e Cláudia), discordando da professora Sonia que afirmou: "A gente nunca teve um currículo estabelecido de Psicologia". Ainda que não ocorra consenso sobre a existência de uma referência curricular oficial, é interessante notar como os depoimentos apontam para práticas e concepções comuns, como o trabalho com temas e metodologias mais participativas.

A docência no curso de Magistério

Retomando o relato da professora Cláudia, nota-se como lecionar para o magistério foi significativo, pois lhe possibilitou uma autorreflexão no processo de formar-se enquanto formava professores, o que resultou também na mudança de sua prática junto aos alunos do ensino médio. Outras entrevistadas também relataram experiências significativas e gratificantes no magistério. A professora Sonia comentou que lecionou durante 16 anos no magistério e pôde conhecer bem os alunos. Na última turma em que lecionou recebeu uma homenagem em um painel na parede da escola. A professora Hilda contou que foi convidada três ou quatro vezes para ser paraninfa dos formandos e que, hoje, uma de suas alunas se tornou supervisora na rede municipal de ensino. A professora Marta relatou também a satisfação em lecionar no magistério, comentando que as alunas eram interessadas e buscavam um diploma profissionalizante; comentou também que o trabalho era mais consolidado, usavam apostilas, tinham plano de aula e podiam trabalhar com os autores e não com os comentadores, diferentemente de como faziam no ensino médio. Assim como a professora Sonia, a professora Marta disse que tinha preferência em lecionar para o magistério. Diferentemente das colegas, para a professora Nina lecionar no magistério significou uma experiência negativa, pois teve de se encarregar de várias disciplinas como Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, Metodologia, Estrutura, muitas vezes para a mesma turma, provocando cansaço na professora e nas alunas. Nesse período, a professora relatou que teve problemas emocionais, o que agravou a relação com as alunas, preferindo se afastar do magistério. Das 11 professoras entrevistadas, somente a professora Olga não lecionou para o magistério.

Experiências significativas no Ensino médio

Embora o magistério tenha sido a 'menina dos olhos' de algumas entrevistadas, experiências significativas e gratificantes junto aos alunos do ensino médio também foram recordadas. Merece destaque as experiências da professora Olga e Hilda, que coincidentemente trabalharam com atividades autobiográficas com os alunos. A professora Olga, inspirada por um professor do ensino médio, começou produzindo uma revista com os alunos; escolhiam um tema - adolescência, por exemplo -elaboravam a capa, escreviam o editorial e os conteúdos; esse trabalho era realizado geralmente em grupo. Posteriormente, com as turmas do terceiro ano, propôs a elaboração individual de um livro autobiográfico, no qual podiam colocar ilustrações, fotos etc. No final, os trabalhos eram expostos para serem vistos pelos pais, que ficavam emocionados. A professora Olga comenta sobre a reação de um pai:

"Nossa eu não sabia que a minha filha escrevia tão bem, de uma forma belíssima" e ela começou a se sentir valorizada, sabe, e ela se aproximou do pai e ele ia procurar uma editora pra quando ela fizesse 18 anos e mandou fazer uns livros pra família. (Profa. Olga)

A professora Hilda também relatou emocionada sobre o trabalho dos alunos com autobiografia, recordando a fala de uma mãe ao ver o trabalho da filha:

"Nossa professora, foi você que fez aquele trabalho? Nossa, eu achei um trabalho muito bom. Porque eu conversei, minha filha veio aqui, ela conheceu coisas que não sabia, porque a gente não tem tempo de ficar conversando no dia a dia, aí teve que parar para perguntar. Nossa, nós vamos ter uma lembrança boa dela, porque tem o álbum até os 17 anos...".Então acho que esse foi o melhor trabalho que eu fiz, foi o mais significativo. Esse deu trabalho, uma autobiografia. (Profa. Hilda)

De modo geral, as experiências mais significativas das professoras entrevistadas foram relacionadas à realização de projetos, alguns envolvendo a família, como as autobiografias, outros com a realização de trabalho de campo, como o projeto das profissões (Profa. Consuelo), projeto sobre as deficiências e projeto sobre as famílias (Profa. Graziele), e também parcerias interdisciplinares. A despeito da diversidade das propostas, todas partiram de temas, umas mais relacionadas às vivências dos alunos, outras menos, mas todas com metodologias mais participativas.

As mudanças nas práticas das professoras foram ocorrendo gradualmente, a partir de diversas influências que foram contribuindo também para a formação das concepções, valores e princípios educativos. A seguir, serão apresentados trechos dos relatos que buscam explicar como as professoras formaram suas concepções sobre a educação.

Como se constituíram as concepções, valores e princípios

A leitura dos relatos das professoras permite notar que as concepções em relação à educação se relacionam com uma visão de mundo que também foi se constituindo a partir de várias experiências vividas em momentos distintos de cada processo formativo. Para a professora Nilda, os valores transmitidos pela sua família foram determinantes; já para a professora Consuelo sua professora da primeira série foi seu antimodelo, diferentemente de seu professor de Língua Portuguesa, no ginásio, que lhe ensinou o gosto pela leitura; para outras, como a professora Olga, Hilda e Flávia, foram os professores do ensino fundamental e ensino médio as grandes referências; a passagem pela universidade também foi marcante para Cláudia e, sobretudo, o mestrado e o doutorado, para Marta. Experiências não acadêmicas, como o balé, também foram importantes para a formação docente, tal como relatado pela professora Flávia. A seguir, trechos desses relatos.

Eu acho que não foi na formação acadêmica, não, eu acho que foi minha formação por que eu venho de uma família, onde, eu me lembro de papai e mamãe (...)Então, eu acredito que a prática me ensinou muita coisa, mas muita coisa eu acho que eu já trazia da minha formação, da minha educação, né, eu acredito. (Profa. Nilda)

Me lembro do meu professor, acho que ele foi meu professor da quinta a oitava série de Língua Portuguesa, que era uma pessoa muito rígida, mas, assim, muito, interessado no aluno, que me ajudou muito a aprender a escrever e a ler, ele me ajudou a gostar de ler, foi meu professor durante quatro anos. (Profa. Consuelo)

[Sobre a professora de História]E ela ia muito bonita dar aulas, ia bem arrumada e explicava muito bem e eu me envolvia com tudo aquilo lá da História e com tudo que ela falava. (...)Outro dia encontrei com ela e disse "você não vai lembrar de mim, mas eu adorava a sua aula. Eu me projetava na sua aula, eu amava, eu gostava muito da sua aula. Eu precisava falar isso pra você" e ela ficou toda contente com o que eu falei.

(...)eu fiz Psicologia porque na época que estava no meu colégio, eu tinha uma professora de Psicologia muito carismática, quando eu estava no ensino médio e aí essa professora mexeu comigo, então por isso procurei fazer Psicologia. (...) eu me espelhei neles depois que eu me tornei professora, tentei me inspirar nos professores bons. (Profa. Hilda)

E eu me apaixonei pela Psicologia com um professor do ensino médio, terceiro ano do ensino médio. Eu não lembro o nome dele, não lembro o nome dele... Eu lembro que ele falava assim "dos quatro gigantes da alma". Eu lembro dele, do professor de terceiro colegial e você vê, ele era um apaixonado "quatro gigantes da alma!". Gente, que universo é esse, eu quero entrar, eu quero conhecer! Eu acho muito importante essa paixão que o professor tem por uma disciplina, pra poder inspirar os alunos. (Profa. Flávia)

(...)as aulas seminárias eram aulas em círculo, com debate, com discussão e eu tive bons professores, professores politizados, que tinham um enfoque de educação não só como transmissão de conteúdo e, sim, como uma coisa muito além disso, a formação da pessoa, do indivíduo, do cidadão, então eu acho que aquele modelo tinha ficado dentro de mim. Sim, a minha formação universitária teve grande importância, porque nós éramos, assim, obrigados, na faculdade, a falar, a participar, tinha notas orais, provas orais, então, eu peguei um pouco desse modelo(...) (Profa. Cláudia)

Eu acho que o grande delineador de modelo foi o mestrado, o doutorado consolidou e aprofundou o que o mestrado formou. (...) Eu lembro que, na Psicologia, a gente trabalhava muito com os temas, a gente fazia muita formação de grupo, juntava temas, mas eu fui ter uma boa aula teórica, no mestrado e no doutorado. (...) eu fui fazer umas aulas na filosofia, não fiquei só na educação (...). E o texto ali, Walter Benjamin, ficava ali lendo, ia conhecendo Hegel aqui, Kant ali (...) (Profa. Marta)

Ao rever os depoimentos, chama a atenção o fato de as aulas de Psicologia que tiveram no ensino médio terem inspirado as professoras Flávia e Hilda a cursarem Psicologia, assim como as aulas ministradas por elas, consecutivamente, terem inspirado seus alunos a ingressar em cursos de Psicologia. É interessante notar como alguns professores, do ensino fundamental à universidade, foram tomados como modelos e, mesmo como antimodelos, inspiradores, não somente pelo domínio do conteúdo, mas pela forma, pelo gesto, pela postura, pelo comprometimento e também pela beleza e carisma. Enfim, como as relações entre professores e alunos foram tão importantes quanto os conteúdos acadêmicos, valores importantes para a formação das entrevistadas. Inspirados por esses modelos, de forma mais ou menos clara ou tornados mais conscientes no momento da entrevista como recordação, as professoras foram encontrando referências para inventar e reinventar aulas que fossem significativas para seus alunos do ensino médio. E, pelo visto, parece que conseguiram também estabelecer vínculos significativos e duradouros com seus alunos.

Durante as entrevistas, várias professoras relataram espontaneamente sobre o encontro com ex-alunos: Sonia, Flávia, Olga, Hilda, Consuelo, Marta, Solonia, Cláudia, Nilda... São vários depoimentos, todos sempre contando sobre as lembranças que esses ex-alunos guardaram das aulas de Psicologia, algumas tão significativas que incentivaram o ingresso no magistério ou no curso de Psicologia no ensino superior.

A seguir, apenas alguns dos depoimentos.

Eu tenho pessoas hoje que são efetivos nesta escola, que foram meus alunos e chegam para mim e dizem: 'eu escolhi ser professora por causa de você' ou 'escolhi fazer Psicologia', isso eu tenho bastante, também. Muitos alunos que chegam e dão esse retorno. (Profa. Sonia)

Então são coisas que você fala, alguma sementinha eu deixei, né, alguma coisa, ou aluno que volta, "olha eu vim te convidar pra minha formatura, que eu fiz Psicologia", ou os meus colegas, que hoje são professores, e que foram meus alunos, porque eu já tenho professor aqui que foi meu aluno, e que, "ah Consuelo, olha, na hora que eu to no aperto na aula, eu lembro de suas aulas", então isso é o que me faz pensar que valeu a pena. Apesar de tudo. (Profa. Consuelo)

Depois de muitos anos, depois de muitos anos, acho que uns 15 ou 20 anos, eu encontrei com uma moça que era quietinha... "Sabe professora, a senhora foi a melhor professora que eu tive em toda a minha vida!" Então aquilo lá pra mim não foi uma vaidade, mas... Opa! Que responsabilidade que a gente como professora tem. Então se eu fui a professora mais importante da vida dela, o quanto, como diz o Rubens Alves, né, - acho que é Rubem Alves que fala que o professor se eterniza no aluno... (Profa. Nilda)

As pedras no caminho

A trajetória narrada pelas professoras foi marcada também por momentos difíceis, crises, desrespeito, adoecimentos, obstáculos e pedras que tiveram de ser enfrentadas e superadas nessa caminhada.

Os três primeiros relatos referem-se ao número de aulas e escolas a serem assumidas; os relatos posteriores contam sobre processos de adoecimento.

Ah, o mais difícil foi... Não sei, assim, foi quando eles puseram uma aula só. Teve dois anos que eu trabalhei com uma aula só por semana, era muito desgastante, eu tinha 20 diários de classe. Acho que isso durou uns dois ou três anos. (Profa. Sonia)

Depois quando houve a extinção do Magistério, houve uma redução grande da carga horária e até pra constituir as 20, às vezes eu tinha que pegar 3 ou 4 escolas. (...) eu tinha que sair correndo no intervalo pra chegar na outra, foi desgastante, poucas aulas em muitas escolas, cansativo, causa um stress na gente. (Profa. Cláudia)

Situação semelhante relata a professora Marta:

(...) aqui na minha cabeça de 2000 a 2003 eu fiquei em 15 escolas. Em cinco escolas dando aula, por isso que eu desanimei e falei "eu vou fazer mestrado, chega".

Em seu depoimento, a professora Flávia conta das dificuldades vividas no momento de sua efetivação, após aprovação no concurso. Como não havia vagas na capital, onde residia, teria de assumir em uma cidade do interior. Segue seu relato:

(...) só que não tinha escolas aqui na capital, tive que me efetivar no interior. Interior não tinha como ir, falei "gente, o que é que eu faço?", daí fiquei doente, literalmente fiquei doente, fiquei depressiva, eu chorava. (...) como que eu ia morar lá, com duas crianças, eu não tinha nem como me estabelecer com salário num lugar estranho, que não tinha nada, enfim... (Profa. Flávia)

A professora Hilda relata a ocasião em que assumiu a função de coordenadora pedagógica, após tornar-se adida em virtude da extinção da disciplina de Psicologia do currículo do ensino médio e seu adoecimento:

(...) tive um problema sério de saúde e aí eu precisei me afastar, só que quando você está na coordenação você não pode se afastar mais de 45 dias, você perde o cargo, só que o meu afastamento foi de seis meses, né, então eu perdi o cargo (...) aí eu me afastei (...) minhas aulas diminuíram, eu tinha 40 aulas. (...) eu me afastei no final do ano de 2010, e aí me cuidei, aí meu tratamento acabou em maio de 2011, mas eu já tinha perdido meu cargo de coordenadora e estava ganhando pelas vinte aulas do adido (...). Muito pouco, aí eu, o que eu vou fazer agora? (Profa. Hilda)

A professora Nilda conta que retornou à sala de aula após um período de afastamento, ocasião em que foi convidada a assumir a Secretaria da Educação em seu município. Todavia, por problemas de saúde, não pôde assumir as aulas:

2001 voltei pra sala de aula, eu até fui pra atribuição, mas eu nem comecei a dar aula, porque eu já estava em processo de cirurgia. E lembro que foi assim, março a cirurgia e aí eu passei o ano fazendo quimioterapia. Eu tive alta em abril de 2002. O INSS me deu alta. (...) Abril de 2002 eu retornei. E aí eu retornava, às vezes tirava uma licença, aí voltava dava aula em outro período, outra licença. (...)Eu tirei uma licença - a partir de julho de 2005, o médico me afastou de novo e aí que o estado me readaptou; 2006 eu voltei como readaptada. Aí eu não voltei mais dando aula. (Profa. Nilda)

A professora Nina também relata seu adoecimento:

Por problemas emocionais, eu me readaptei. Eu sou uma professora readaptada. Agora, em termos, assim, emocionais, eu coloco que eu fui muito machucada, sabe? Depois do E. [escola E.] eu tive de dar aula no B. [escola B.] para a turma do magistério (...). Eu também tive problemas emocionais, eu tive assim, desentendimentos com as alunas e eu me afastei, em termos emocionais a turma achou melhor e eu também achei melhor até sair e eu me afastei. (Profa. Nina)

A partir dos relatos apresentados, não há como passar despercebido o fato de quatro professoras, das 11 entrevistadas, terem apresentado problemas de saúde que implicaram licenças, algumas temporárias e outras definitivas.

Ocaso

Ocaso. [Do lat. Occasu] S.m. 1. Desaparecimento de um astro no horizonte, do lado oeste, proveniente do movimento diurno; por. 2. Ocidente, oeste, poente. 3. Fig. Termo, fim, final. 4. Fig. Queda, ruína, decadência, extinção, morte, crepúsculo. (Ferreira, 1999).

O ocaso aqui se refere a duas dimensões que se entrecruzam: a coletiva, pela extinção da disciplina de Psicologia do currículo do ensino médio público no estado de São Paulo, a partir de 2008; e a individual, das professoras que se encontram no final da jornada marcada pela aposentadoria.

Sobre a extinção da disciplina de Psicologia, as professoras Sonia, Hilda, Consuelo, Cláudia relatam que receberam a notícia somente no momento da atribuição de aulas, no início do ano letivo de 2008, sem nenhuma justificativa por parte da Secretaria da Educação. As reações foram de choque, indignação, tristeza e frustação, como se pode ver nos depoimentos das professoras Hilda, Consuelo e Graziele:

(...) na atribuição de aula de 2008 (...) na minha hora: "não tem mais Psicologia, Psicologia foi retirada do currículo". Então, é uma coisa extremamente chocante na época pra gente. Foi chocante. (...) eu fiquei, assim, extremamente revoltada, aquilo me fez muito mal (...) na época foi assim, eu fiquei chocada, chorava (...) Então, assim foi muito triste. Muito triste, e a gente ficou assim muito revoltado, muito, todos nós ficamos revoltados (...) Eu mandei [uma carta]pra Secretaria de Educação, nunca ninguém respondeu, nada. (Professora Hilda)

Meu período mais difícil foi o primeiro ano que eu saí da sala de aula, primeiro ano foi muito difícil ficar fora da sala de aula, sofri muito. (...) eu gostava da sala de aula, eu amava dar aula e pra mim foi muito difícil. A sensação que eu tive é que pegaram aqui a Psicologia e jogaram no lixo, foi muito duro. (...) mas eu fiquei muito perdida, muito perdida, acho que o pior período da minha história na escola foi esse, porque você fica... (...) A falta de lugar, porque você não tem mais um lugar, não tem lugar, você não tem um espaço, você não entende qual é o seu lugar dentro dessa estrutura. (...) mas assim, o primeiro ano, os primeiros seis meses foram terríveis, uma coisa assim, de você não ter chão mesmo, eu sou professora, mas eu não estou na sala de aula, o que eu faço agora, foi muito duro, terrível. (...) E agora? Tenho que cumprir essas 20 horas aula aqui na escola e eu não tenho lugar, dá o sinal, os professores pegam seus materiais, vão pra sala de aula e eu não tenho pra onde ir, eu não tenho uma turma, isso foi muito difícil. (Profa. Consuelo)

(...) Muito difícil. Porque dá uma sensação de que tudo que você fez não é importante... porque quando retira, dá uma sensação de que não é importante. [Pausa, professora fica emocionada]. Então foi muito difícil pra mim. (...) isso me prejudicou em termos profissionais, aí eu perdi a possibilidade de ampliação de aula, fiquei com uma carga de 20 aulas (...) Então... dá aquela sensação "se não tem, é porque não é importante", não é? Então, assim, pessoalmente foi muito difícil nesse período, até superar tudo isso, 20 anos investindo numa profissão, num trabalho, desenvolvendo vários trabalhos (...) Então assim... É todo um trabalho, toda uma vida e de repente tira, assim, tudo. (Profa. Graziele)

Com a extinção da disciplina de Psicologia, algumas professoras assumiram outras disciplinas, como a professora Sonia e Olga que passaram a ministrar aulas de Biologia/Genética para alunos do terceiro ano do ensino médio; a professora Hilda lecionou História para alunos da sexta série do ensino fundamental, posteriormente assumiu a coordenação pedagógica, perdendo o cargo por motivo de doença e, no final, assumiu a função de professora mediadora na escola. A professora Cláudia relatou que passaram a lhe dar funções na secretaria, substituição de professores e até pedidos de atendimento psicológico, que foram recusados.

Sobre o fim da jornada

Ah, sei lá. Até agora acho que estou meio em choque, sabe, parece que... É uma coisa assim... De imediato aconteceu pra não sofrer. Acho que é por isso que eu não saio daqui. Eu não consigo falar muito... [pausa]. A sala de aula foi muito significativa, então, sei lá, mas... (Profa. Sonia)

Tem dois sentimentos: um, parece que acabou uma etapa e um pouco dá uma sensação assim, e agora? [Rsrsrs] mas ao mesmo tempo um certo alívio (...) É que eu já não estava tão contente dando aula... (...) Eu acho até que eu enrolei pra pedir a aposentadoria. (...) Fiquei ainda um pouco relutante, porque quando eu comecei a dar aula de Biologia e passei a dar aulas em muitas escolas de novo e aí foi mesmo desgastante. É teve uma coisa de alívio e ao mesmo tempo eu sinto falta do convívio com o novo, quando você está na escola você tem que estar sempre atualizado, é cobrado isso, é uma coisa meio intrínseca... você ensina, mas você aprende, tem uma troca (...) Eu gostei de dar aula e não me arrependo de ter ido por esse caminho, talvez eu gostaria que tivesse um certo reconhecimento com relação às autoridades, porque eles vão instituindo leis e vão mudando sem se preocupar com o professor, que ali tem uma pessoa (...). (Profa. Olga)

(...) eu gostei, se eu pudesse voltar a dar aula, eu ia voltar com a maior alegria. (...) eu gosto do ambiente escolar, eu não imaginei que fosse gostar, mas eu gosto. (...) Acho que do contato com os alunos, deles questionarem a gente, perguntarem. (...) então eu acho que vou sentir falta de passar um pouco desse meu conhecimento para eles, porque conhecimento não acaba, só vai acrescentando cada vez mais, então eu acho que vou sentir falta de alguém perguntando algo pra mim ou pedir um conselho... Não sei... Acho que é isso [voz de choro] eu to pensando (...) Eu vou pensando que fui importante na vida de muita gente e que eu fiz a diferença no pouco que eu poderia oferecer naquele momento, eu penso que eu fui útil porque eu tenho esse feedback quando encontro com aluno, com pessoas com quem eu trabalhei (...). Foram importantes pra mim (alunos), porque me ensinaram também um monte de coisa, porque aluno também ensina um monte de coisas, eles têm uma outra visão das coisas e a gente aprende com eles o tempo todo então é muito bom. (Profa. Hilda)

Às vezes eu penso, né, das coisas que aconteceram, que pena que a Psicologia foi jogada no lixo, né, no estado. Depois de tudo que aconteceu, (...) sei que não sou só eu, né, e faço um balanço; acho que não só quando a gente chega numa certa idade, você não faz um balanço só da carreira, mas de vida, do que valeu a pena, eu acho que eu faria de novo, mesmo diante dessa situação de hoje. (Profa. Consuelo)

Eu sei que eu vou sair da escola e que tenho que direcionar a minha vida pra uma outra coisa, mas é difícil... eu já tenho a liquidação de tempo, mas eu não pedi a aposentadoria ainda, porque eu ganho muito pouco (...) Mas eu ainda estou presa, tome sentindo meio presa ainda aqui, e se eu ganhar esse 10% a mais vai ser uma boa e tonessa, nesse dilema, meu dilema é esse, porque aqui, eu agora não tenho mais função, eu perdi a função, isso que é duro. (...) mas eu não tenho mais função, perdi, acabou a minha função e isso é triste, não tenho mais, não tenho função mesmo. (...) tocom medo dessa aposentadoria... (Profa. Solonia)

Ainda que a aposentadoria fosse algo que eu queria muito, foi uma sensação assim de... Perdi, ficou pra trás, acabou. É a sensação que eu tenho; um conflito entre eu quero ficar aposentada, eu quero ficar na minha casa, eu quero cuidar da minha casa, adoro cuidar da minha casa, adoro isso, (...) mas ao mesmo tempo... Parece que a minha vida era a escola, entendeu, como se... Não tenho mais... Ainda eu estou com essa sensação... Um conflito, entre um misto de alegria e... É isto que eu estou sentindo. (Profa. Nilda)

Anoitecer

Com o intuito de mostrar as narrativas como um conjunto polifônico, composto por tons uníssonos e dissonantes, o material das entrevistas foi organizado e apresentado em perspectiva temporal.

A observação e a análise do material das entrevistas possibilitaram a visualização de muitos aspectos comuns e também distintos nas experiências das professoras.

Os depoimentos revelaram, no início, o desinteresse da maioria pela licenciatura, cursada em instituições particulares de ensino, assim como a pouca motivação para o ingresso na carreira docente, fato que ocorreu somente em virtude das poucas oportunidades de trabalho na área. Tal desinteresse pode ser decorrente do desprestígio da docência na educação básica pública no Brasil, decorrente de condições objetivas e também dos tabus relacionados ao magistério comentados por Adorno (1965/1995).

Ao ingressar na carreira - aliás, ingresso difícil pela formação pouco significativa que tiveram nos cursos de licenciatura - as professoras começaram a se interessar e se envolver com a atividade docente. A reflexão e a crítica da prática levaram as professoras a buscar formas e conteúdos mais significativos para seus alunos. A maioria enveredou por metodologias mais participativas, o que poderia ser considerado um consenso se não houvesse entre as entrevistadas uma professora que defendeu o ensino dos clássicos. Uma das hipóteses levantadas, já em estudo anterior (Kohatsu, no prelo), foi a utilização do livro Psicologias, organizado em temas em uma de suas partes. A crítica à educação tradicional e a opção por metodologias mais participativas, presentes na maioria dos relatos, provocam a suspeita da presença de pressupostos escolanovistas no ensino de Psicologia praticado pelas professoras entrevistadas. Todavia, essa questão necessita ser mais aprofundada em outros estudos.

De modo geral, a despeito das influências escolanovistas, as entrevistadas relataram que suas concepções, suas práticas e a identidade de professoras foram se constituindo através da experiência docente exercida junto aos alunos, inspiradas pelos valores e princípios obtidos na família, com os professores da educação básica e na universidade e na militância política.

Se por um lado não houve consenso em relação às metodologias participativas, as professoras fizeram coro ao denunciarem as condições de trabalho a que foram submetidas: grande número de aulas para completar a jornada e, posteriormente, redução drástica com a extinção do magistério até a condição de adidas com a extinção da disciplina de Psicologia do currículo do ensino médio. Com essas condições, a trajetória foi marcada também por processos de adoecimento e licenças; no caso de algumas professoras levando-as à condição permanente de readaptadas.

As 'pedras no caminho', no entanto, não impediram a realização de experiências significativas para as professoras, para os alunos e suas famílias; experiências que foram lembradas com emoção por elas e recordadas nos encontros com ex-alunos.

No balanço de final da carreira, algumas professoras relataram a ambiguidade no momento da aposentadoria: o alívio por se livrarem das condições indignas de trabalho e, ao mesmo tempo, a dificuldade para a despedida de uma jornada construída ao longo de muitos anos.

Vários aspectos levantados neste estudo merecem ser mais aprofundados e discutidos teoricamente, mas buscou-se, neste momento, privilegiar a 'fala' das professoras que foram pouco ouvidas pelos órgãos oficiais de ensino e que, neste momento, com o ocaso na Psicologia no ensino médio, poderiam ficar silenciadas e esquecidas definitivamente. Desse modo, espera-se que o estudo possa contribuir ao menos como um registro das experiências e colaborar para a formação de futuros professores.

 

REFERÊNCIAS

Adorno, T. W. (1995).Tabus acerca do magistério. In: T.W. Adorno. Educação e emancipação.(W. L. Maar, trad., pp. 97-117). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1965).         [ Links ]

Brasil. Resolução CNE/CES 05/2011. Diretrizes Curriculares para a Formação em Psicologia.         [ Links ]

Brasil. LDBN 9394/96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.         [ Links ]

Brasil. Resolução CNE/CP 01/2002. Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação Básica.         [ Links ]

Bock, A. M. B.; Furtado, O.& Teixeira, M. L. T. (1995). Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

Bueno, B. O.(2002). Método autobiográfico e os estudos sobre histórias de vidas de professores: a questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, São Paulo, 28(1),11-30.         [ Links ]

Bueno, B. O. et. al. (2006). Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003). Educação e Pesquisa, São Paulo, 32(2),385-410.         [ Links ]

Dadico, L. (2009). Práticas educacionais distintas: a Psicologia no ensino médio paulista. Cadernos de Pesquisa, 39(137),421-440.         [ Links ]

Halbwachs, M. (2006). A memória coletiva. (B. Sidou, trad.) São Paulo: Centauro.(Trabalho original publicado em 1968).         [ Links ]

Huberman, M. (1995). O ciclo de vida dos professores. In: A. Nóvoa (Ed.).Vida de professores. Porto: Porto Ed.         [ Links ]

Fernandes, F. (1975). Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Omega.         [ Links ]

Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Aurélio Século XXI: Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Gatti, B. A. (1997). Formação de professores e carreira: problemas e movimento de renovação. Campinas: Autores Associados.         [ Links ]

Kohatsu, L. N. (prelo). O ensino de psicologia no ensino médio: relatos de professores da rede pública do estado de São Paulo. Revista Psicologia: Ensino & Formação.         [ Links ]

Lapo, F. R. e Bueno, B.O. (2003). Professores, desencanto com a profissão e abandono do magistério. Cadernos de Pesquisa, 118,65-88.         [ Links ]

Larocca, P. (2007). O ensino de psicologia no espaço das licenciaturas. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, 8(2),295-306.         [ Links ]

Leite, S. A. da Silva.(1986). O ensino da Psicologia no 2º grau. Psicologia, Ciência e Profissão, 6(1),9-12.         [ Links ]

______.(2007). Psicologia no ensino médio: desafios e perspectivas. Temas em Psicologia, 15(1),11-21. Recuperado de http://www.sbponline.org.br/revista2/index.htm.         [ Links ]

Martins, C. B. (2009). A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educ. Soc., Campinas, 30(106),15-35.         [ Links ]

Mrech, L. M.(2001). Casa de ferreiro, espeto de pau: o campo da psicologia no ensino médio. In: A. J. Severino e I. C. Fazenda, I. C. A. (eds.). Conhecimento, Pesquisa e Educação. Campinas: Papirus.         [ Links ]

______.(2007). Um breve histórico a respeito do ensino da psicologia no ensino médio. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, 8(2),225-235. Recuperado de http://www.fae.unicamp.br/revista/index.php/etd/.         [ Links ]

Molina, R. e Lima, S. M. de. (2008). Desenvolvimento e aprendizagem profissional da docência: novos conceitos, outros caminhos. Revista de Educação, XI(11).         [ Links ]

Nóvoa, A. (org.). (1995). Vidas de professores. Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Pereira, J. E. D. (1999). As licenciaturas e as novas políticas educacionais para a formação docente. Educação & Sociedade, ano XX, 68.         [ Links ]

Piletti, N. (1996). Psicologia Educacional. São Paulo: Ática.         [ Links ]

São Paulo. Secretaria da Educação. Resolução SE nº 92 de 19 de dezembro de 2007. Diretrizes para a Organização Curricular do Ensino Fundamental e Médio nas Escolas Estaduais.         [ Links ]

Simões, S. P. e Paiva, M. das G. V. (2007). Licenciatura em Psicologia: legislação e nova proposta curricular na Universidade do Estado Rio de Janeiro. Temas em Psicologia, 15(1),115-125.         [ Links ]

 

 

1 À professora I.B. In memoriam.