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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.41 São Paulo dez. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20150016 

ARTIGOS

 

A síntese como registro reflexivo no trabalho do psicólogo escolar com gestores1

 

Synthesis as reflective registration at work of the school psychologist with managers

 

Síntesis como registro reflexivo en el trabajo del psicólogo de la escuela

 

 

Vera Lúcia Trevisan de SouzaI; Lilian Aparecida Cruz DugnaniI; Lilian Aparecida Cruz DugnaniII; Ana Paula PetroniIII; Paula Costa de AndradaIV

IPrograma de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. vera.trevisan@uol.com.br
IIPsicóloga. Pontifícia Universidade Católica de Campinas
IIIPsicóloga da Prefeitura Municipal de Valinhos
IVFaculdades Atibaia

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar criticamente a experiência do uso da síntese no trabalho com gestores educacionais e a reflexão e configuração de novos sentidos e significados da prática escolar decorrentes das intervenções. Para este propósito, o instrumento abordado é a síntese, uma forma de registro que visa historicizar o processo de intervenção, realizado pelos psicólogos e pelos participantes de um grupo de reflexão, constituído pela equipe gestora escolar, a saber: um diretor, um vice-diretor e dois orientadores pedagógicos, que ocorreu semanalmente no decorrer de dois anos, em uma escola pública municipal de Ensino Fundamental I e II e Ensino de Jovens e Adultos de uma cidade no interior de São Paulo. Resultados revelam que as sínteses se configuraram como instrumentos que também contribuem para a ampliação da consciência dos gestores, pois os coloca na posição de reflexão sobre o que está escrito, buscando novas formas de agir a partir do que está posto, configurando novos significados e sentidos às suas ações na escola. Assim, podemos dizer que as sínteses se apresentam como importantes ferramentas na atuação do psicólogo, pois possibilitam a ele acessar ao sujeito e se colocar como sujeito, no processo de ampliação de consciência, visto que se estabelece um movimento em que concorrem o afetivo e a volição, que se encontram na base da constituição do psiquismo humano, apresentando-se como possibilidades de construção de narrativas dos sujeitos, de seu tempo e lugar.

Palavras-chave: Psicologia Histórico-cultural; método;Psicologia escolar e educacional; fala e escuta.


ABSTRACT

This article aims to analyze critically the experience of the use of synthesis in the work with educational managers and reflection and configuration of new senses and meanings of school practice arising from the interventions. For this purpose, our instrument is the synthesis, a way of registration that seeks to historicizing the intervention process, carried out by psychologists and by participants of a reflection group, made ​​up of the school management team, namely: a Director, a Deputy Director and two pedagogical advisors, held weekly in the course of two years. The place was a municipal public Elementary School and also Adult Education of a city in the State of São Paulo. Results indicate that the synthesis can become a tool that also contribute to increase the managers consciousness, because it instigates them to reflect on what is written, seeking new ways to act from what is laid and setting up new meanings and senses to their actions within the school. Thus, we can say that the synthesis is presented as important tool in the role of the psychologist, since it allows him access to the subject in the process of expansion of consciousness, and it establishes a movement that is related to affective and volition process, which are at the base of the constitution of the human psyche, revealing possibilities to construct narratives of the subject and of their time and context.

Keywords: Cultural-historical Psychology; School Psychology; method; talk and listen.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar críticamente la experiencia del uso de la síntesis en el trabajo con los administradores educativos y la reflexión y la configuración de nuevos sentidos y significados de la práctica escolar derivada de las intervenciones. El instrumento abordado es la síntesis, una forma de registrar dirigida a historiar el proceso de intervención, llevadas a cabo por los psicólogos y los participantes de un grupo de reflexión, compuesto por el equipo de gestión de la escuela, a saber: un director, un subdirector y dos asesores pedagógicos, producido semanalmente durante dos años. El lugar fue un colegio público de Educación Primaria y de Educación de Adultos de una ciudad en la provincia de São Paulo. Los resultados indican que la síntesis se concretó como instrumentos que también contribuyen a la expansión de la conciencia de los administradores porque, los pone en la posición de reflexión sobre lo que está escrito, buscando nuevas formas de hacer las cosas de lo que está puesto, y en el establecimiento de nuevos significados y sentidos de sus acciones dentro de la escuela. Así que podemos decir que las síntesis se presentan como herramientas importantes en el trabajo del psicólogo, ya que permiten el acceso a los sujetos y sus procesos de expansión de la conciencia en que se establece un movimiento en que lo afectivo intercambiarse con la volición que están en la base de la constitución de la psique humana, constituyéndose como posibilidades para la construcción de las narrativas de los sujetos, de su tiempo y lugar.

Palabras clave: Psicología histórico-cultural; Psicología escolar; método; hablar y escuchar.


 

 

Da perspectiva adotada pelo grupo de pesquisa em que se desenvolveu o trabalho apresentado neste artigo,cuja base teórico-metodológica é a Psicologia Histórico-cultural, defende-se,cada vez mais fortemente, a ideia de que intervenção e pesquisa constituem uma unidade indissociável, que integra à realidade concretado objeto de nossas ações e investigações, no caso, os modos como os sujeitos se constituem, se relacionam e se desenvolvem em espaços educativos (Venancio & Souza, 2011; Souza & Andrada, 2013; Petroni & Souza, 2014).

Este artigo tem por objetivo analisar criticamente a experiência do uso da síntese no trabalho com gestores educacionais e a reflexão e configuração de novos sentidos e significados da prática escolar decorrentes das intervenções. A síntese, revelou-se como um importante instrumento de registro e historicização do processo de intervenção possibilitando a configuração de novas significações tanto pelos psicólogos escolares quanto pelos participantes do grupo de reflexão, neste caso, um diretor, um vice-diretor e dois orientadores pedagógicos.

Freire (2014) defende o uso da síntese, que também denomina registro reflexivo, como instrumento metodológico do educador, pois permite o refinamento de seu pensamento por meio do estabelecimento de um foco, priorizando seus estudos e reflexão, podendo fundamentar e sustentar o próprio pensamento.

Compreende-se por síntese narrativas escritas a partir dos registros feitos pela psicóloga, a partir de gravações em áudio realizadas ao longo dos encontros com o grupo de intervenção, que contempla o cenário em que os atos se desenvolvem, com intuito de destacar as contradições que emergem nos diálogos empreendidos no grupo em torno dos temas propostos para discussão, reflexão e possíveis movimentos de ressignificação. Abarcamos também nesse processo de produção das sínteses, a escrita pela psicóloga, a leitura posterior de seu conteúdo junto com os integrantes do grupo de gestores e a reelaboração de suas vivências: o dito, o não dito, os afetos circulantes e a dinâmica como o processo foi experienciado. Seu uso se justifica como instrumento de trabalho do psicólogo escolar, por compreendermos, a partir de Vigotski (1934/2009) que:

O diálogo é um discurso constituído de réplicas, é uma cadeia de reações. O discurso falado, [...], desde o início está ligado à consciência e à intencionalidade. Por isso, o diálogo quase sempre conclui em si a possibilidade de não-conclusão do enunciado, da enunciação incompleta, da inutilidade de mobilizar todas as palavras que devem ser mobilizadas para revelar o mesmo complexo concebível nas condições do discurso monológico. Em oposição à simplicidade composicional do diálogo, o monólogo (especialmente o escrito) é uma complexidade composicional, que introduz os fatos verbais no campo iluminado da consciência, e a atenção se concentra bem mais facilmente. Aqui as relações discursivas se tornam determinantes e fontes de vivenciamentos que se manifestam na consciência por motivo dessas mesmas relações discursivas (p. 456-457, parênteses nosso).

Por isso, o uso das sínteses nas intervenções realizadas visam a um só tempo: historicizar o processo de intervenção, permitindo que cada encontro seja recuperado no início do encontro seguinte, estabelecendo, portanto, um ponto de partida para a reflexão proposta naquele dia; dar voz aos participantes do grupo uma vez que suas falas são registradas e apresentadas na narrativa;possibilitar que os participantes reflitam sobre suas falas, ideias e concepções, que enfrentem as contradições e reconfigurem sentidos e significados produzidos nas relações com a equipe e com os psicólogos; aprofundar a reflexão do grupo pela confrontação do dito e vivido com dados do cotidiano, investigando possibilidades de superar as contradições e empreender novas ações oriundas das ressignificações erigidas.

Neste sentido, a síntese se constitui em instrumentos que favorece a expressão e elaboração das contradições tão comuns no espaço escolar.

 

A síntese como instrumento de transformação

Vigotski (1934/2001, 1931/2006) toma a palavra como o signo que conceitua, representa e dá sentido e voz ao pensamento: a fala, seja ela oral ou escrita, tem uma função externa de comunicação e inter-relação com o meio e outra função interna, que organiza o pensamento e antecipa a ação.

Mas, como explica o autor (Vigotski,1934/2001), o conteúdo expresso pela palavra vem permeado de afetos, conferindo à palavra uma dimensão afetivo-volitiva que atua na configuração dos significados e sentidos que ela expressa. Para entendermos essa ideia do autor é fundamental adentrarmos na forma como ele concebe o conceito de sentido.

Para Vigotski (1934/2001), o sentido de uma palavra é a somatória das releituras individuais que o homem faz dos signos em que, além do significado das palavras, estão também embutidas lembranças, percepções sensoriais, interpretações feitas de forma singular. O autor afirma que o sentido tem predominância sobre seu significado, justamente porque o significado é uma construção histórica e cultural publicamente compartilhada; já o sentido é a representação pessoal de algo, construída com uma complexidade de aspectos psicológicos variando as impressões de um para o outro: um mesmo objeto pode ter sentidos bem diferentes para duas pessoas. O autor mostra que os sentidos atribuídos a algo, na verdade, são a própria manifestação dos afetos do sujeito.

Decorre dessa compreensão a afirmação de Vigotski (1934/2001) de que para se compreender a fala do outro é preciso compreender seu pensamento, mas, ainda assim, a compreensão do pensamento só é possível quando acessamos o afetivo-volitivo que está em sua base (p. 188). Ou seja, o que mobiliza a fala do sujeito é que possibilitará sua compreensão e não o significado literal do que é expresso.

Por meio da palavra, Vigotski (1931/2006) considera que se elaboram aspectos outrora desconexos e obtém-se a generalização de significados: a palavra é uma forma de generalização, pois condensa conceitos, imagens, lembranças, sentimentos e representações culturais. Ele diz: "La palabra singulariza el objeto (...) lo convierte en objeto de conocimiento" (p. 126). Se, ao expor seus afetos por meio da fala, o sujeito torna-se capaz de convertê-los em objeto de conhecimento, quando percepção se une à fala e à formação de conceitos, o sujeito pode reelaborar suas experiências, afetos, pensamentos em um sistema mais complexo de conexões ampliando-se uma rede de novos nexos (Souza & Andrada, 2013).

Para Maheirie (2010), Vigotski deixa claro que a fala não necessariamente é apenas a expressão vocal audível; ela também se manifesta pela escrita, gestos ou outras manifestações que exprimem sentidos e significados construídos pelo sujeito. Maheirie faz a seguinte afirmação: "Mesmo que Vygotski tenha focado, fundamentalmente, na linguagem verbal/escrita, suas reflexões indicam que, como constituintes e constituídas pelos sujeitos, as diferentes formas de linguagem se definem por ser uma objetivação transformada do pensamento" (Maheirie, 2010, p. 45). Assim, concebemos que, baseados na teoria vigotiskiana, ao mencionarmos a fala, referimo-nos às manifestações que transcendem o vocal e abarcam a escrita, o gestual, a expressão artística, desde que inseridos em um contexto de expressão dos pensamentos e afetos.

Além da fala permitir ao sujeito se expressar, fazer a mediação da cultura e apropriar-se do mundo, ela pode promover o desenvolvimento da consciência (Vigotski1933/2004c; 1931/2006). Consciência compreendida como as relações estabelecidas entre as funções psicológicas superiores, que possibilita que o sujeito, por meio de um movimento dialético permanente entre externo/interno, social e singular, generalize e particularize o real vivido, e o traduza em real a ser construído, tornando-se assim autor de sua conduta em relação ao mundo, a si mesmo, e aos outros, é este movimento que Vigotski (1927/2004a) denomina tomada de consciência.

Isto implica a capacidade de fazer conexões sobre a relação de um objeto com algum outro aspecto. A consciência de nossas ações faz com que sejamos aptos a dominá-las, interferindo e transformando-as e assim podendo agir e recriar a realidade. Dessa perspectiva, a consciência é a maior e mais importante função psíquica, e, para nós, corresponde ao próprio sistema psicológico como um todo (Souza & Andrada, 2013).

A fala evolui na e pela evolução da consciência, pois, por meio dela, acessamos o mundo que nos rodeia e, por conseguinte, seus sentidos e significados. Nesse processo, o sujeito expande suas experiências e interações com seu contexto e desenvolve novas representações do meio ao seu redor, forma novos conceitos e, por conseguinte, amplia sua consciência como possibilidades de integração dessas novas relações ao sistema psicológico. Nas palavras de Vigotski: "a fala produz mudanças na consciência" (1930/2004b, p. 187). Assim sendo, para o autor é por meio da fala que o homem pode adentrar no movimento de saber de si, do outro e da realidade, pois, só acessamos a compreensão do eu e do outro por meio da síntese dos sentidos configurados a respeito do que se sente, se pensa e se fala. E essa é uma das funções da psicologia: apreender esses aspectos internos e explorar como ocorre esse processo até a sua expressão pela fala constituída de sentidos internos do sujeito (Vygotski, 1933/2004c).

Quanto mais capazes de perceber e relatar aos outros e a si mesmo a experiência vivida, mais conscientemente ela é sentida, visto que se fixa na palavra. Por isso o uso da síntese escrita das vivências dos gestores como forma de acessar o sujeito, seus afetos e pensamentos e, por meio da reflexão, provocar a reconfiguração de novos sentidos e significados nos parece estratégia com potencial para promover a transformação no modo de pensar e agir desses profissionais.

 

A contribuição da psicologia no trabalho com a equipe gestora

No município em que a pesquisa, objeto deste relato, foi desenvolvida, a equipe gestora da unidade escolar é composta por diretores, vice-diretores e orientadores pedagógicos que se reportam avárias instâncias da administração pública de ensino, a saber: administração de pessoal, assessoria técnico-pedagógica, coordenações e departamentos que gerenciam as questões financeiras, jurídicas, entre outras.

Segundo Paro (2000), há uma clara relação entre política, democracia, educação e administração escolar. Entendendo política como a possibilidade de convivência entre os homens com relação à atividade de produção de sua existência, democracia como a cooperação existente entre os homens, sem que um se subjugue ao outro, e educação sendo a apropriação do homem das produções humanas (conhecimento, arte, valores, etc.); o autor diz que uma administração escolar efetiva é aquela em que, na busca por seu fim, elege como central uma educação emancipadora que leva em conta o sujeito histórico, lembrando sempre que educação e política estão imbricadas.

Logo, caberia à gestão mediar as ações dos sujeitos escolares para o cumprimento do objetivo fim da educação - apreensão e apropriação das produções culturais humanas - da melhor maneira possível. Ainda segundo o autor, não há como pensarmos em uma administração escolar que se separa do pedagógico, posição esta também assumida por nós. "Assim como é preciso 'administrar' o pedagógico, para coerir meios e fins para propiciar eficácia na realização dos objetivos, é preciso 'pedagogizar' a administração escolar, para que ela se faça mais dialógica e mais democrática" (Paro,2000, p. 21). Em outras palavras, a administração escolar deve ser orientada ao coletivo.

E é justamente na necessidade de uma gestão mais dialógica, que focalize as relações e tenha o coletivo como cerne de seu trabalho que encontramos o espaço de atuação do psicólogo escolar. Segundo Martinez (2010), o trabalho com a equipe é uma forma emergente de atuação diante das possibilidades existentes na escola. Para a autora, ao atuar junto à direção, o psicólogo poderia proporcionar a constituição do espaço coletivo que se espera de uma unidade escolar, pois lança mão de seus conhecimentos para o desenvolvimento dos sujeitos singulares, mas conscientes de sua dimensão social.

A escola como um microcosmo da sociedade vê reproduzida em seus espaços os mais diversos conflitos. Visto que essa instituição não está acima do social, mas ao contrário disso se constitui e é constituída por ele. As representações sociais, as expectativas depositadas na educação, as políticas públicas, todas essas questões afetam todos os atores escolares, sobretudo os alunos.

Em nossas observações a escola se revela um ambiente no qual os acontecimentos fervilham. O tempo todo ocorre o inesperado, para o qual, muitas vezes, os profissionais não encontram repertórios de ações constituídos a priori, mas, ao contrário, se veem convidados a (re)agir, sobretudo na gestão, local para onde são endereçados os problemas inéditos e mais conflituosos (Dugnani & Souza, 2011).

Neste contexto, evidencia-se a necessidade do estabelecimento de parcerias com diversos profissionais de modo a contemplar a complexidade das relações escolares, sobretudo com o psicólogo, visto ser esse o profissional que,reconhecidamente,se ocupa das relações e dos afetos que se encontram na base das relações humanas e determinam os modos de ser, estar e agir dos sujeitos.

Entende-se, portanto, que o trabalho do psicólogo com gestores escolares passa pela construção de instrumentos de atuação que possam promover o processo de tomada de consciência do papel de cada um dos sujeitos no contexto em que estão inseridos, de modo a implicá-los com a transformação e superação dos desafios da realidade em que atuam. A nosso ver, a síntese pode ser um desses instrumentos.

 

MÉTODO

Local

Nosso contexto de atuação e pesquisa foi uma escola pública municipal, de ensino fundamental I e II, de uma cidade do interior de São Paulo. A escola atendia, na época, 1008, sendo 874 do ensino fundamental regular e 134 do Ensino de Jovens e Adultos - EJA, distribuídos em três períodos: manhã, tarde e noite. Para o atendimento desses alunos havia 47 professores. A equipe gestora era composta por um diretor, dois vice-diretores e dois orientadores pedagógicos.

Participantes

Participaram dos estudos e intervenção o diretor, um vice-diretor e os dois orientadores pedagógicos. Os dados utilizados para as análises aqui apresentadas foram coletados nos encontros semanais de intervenção, no decorrer de dois anos.

Procedimento

Em consonância com os pressupostos teórico-metodológicos da psicologia histórico-cultural, priorizamos, na análise das atividades da gestão e das possibilidades de mudança, o processo e não o produto de nosso trabalho. Partimos da complexidade que envolve o trabalho da equipe gestora visando identificar os elementos que promovem a tomada de consciência sobre a importância de se investir no coletivo da escola como forma de superar as dificuldades do cotidiano escolar.

Isso porque, para Vigotski (1934/2001), quanto maior a aproximação e afinidade entre as pessoas, maiores as possibilidades de compreensão dos discursos, na medida em que estas passam a compartilhar não só os significados das palavras, mas a compreender também os aspectos que motivam a fala e o pensamento do outro, ou seja, um compartilhamento de seus sentidos.

Utilizamos a síntese como caminho para investigar as expressões de afetos e reflexões sobre as vivências dos gestores na escola buscando com isso condições da emersão de novos sentidos e significados sobre o vivido. Embasadas nos postulados de Vigotski, Souza e Andrada (2013), apontam que, quanto mais desenvolvemos este processo de atribuir sentidos e significados às vivências, mais ampliamos o caminho para transformação e desenvolvimento da consciência do sujeito. Dizem as autoras que conhecer algo é entender seus significados e conferir sentidos ao fenômeno, dando-lhe novos contornos, produzindo novos nexos; representa um tipo mais apurado de atividade mental "uma nova forma de ver as coisas, criar novas possibilidades e manipulá-las" (Vigotski, 1934/2008a, p. 115); é justamente a capacidade de fazer conexões sobre a relação de um objeto ou fenômeno com outro aspecto.

Assim sendo, Vigotski (1933/2004c) aponta a importância da análise semiótica dos sentidos como método para investigar o conteúdo da consciência e postula que "a verdadeira compreensão consiste em penetrar os motivos do interlocutor" (Vigotski, 1933/2004c, p. 184). Vigotski chega a assegurar que essa é a única metodologia capaz de tal desafio sendo a fala, oral ou escrita, uma forma de se acessar a dimensão afetivo-volitiva dos sujeitos. Para tanto, buscamos promover reflexões dos gestores almejando novas ressignificação de suas práticas e do contexto de que tomam parte, haja vista, ser este movimento, como afirma Vigotski, a base de todo e qualquer processo de mudança.

Todos os encontros foram gravados, auditados e transcritos. Dessas transcrições derivaram as sínteses, que eram lidas com os gestores no início do encontro subsequente. O processo de construção e leitura da síntese dividiu-se em três etapas.

Na primeira,a construção da síntese demandava da psicóloga uma escuta atenta, nos momentos de audição, para o que havia sido central na discussão dos gestores, de modo que fosse possível apresentar um relato do encontro anterior, que pudesse ser lido em voz alta pela psicóloga ou um dos gestores, sem, contudo, tornar-se maçante aos ouvintes. Ao final destes relatos apenas era perguntado para os gestores se gostariam de alterar alguma coisa na síntese.

A segunda etapa derivou de dois movimentos concomitantes: o estabelecimento de vínculos dos gestores com a psicóloga, e as inquietações que as acompanhava ao final de alguns encontros, e que se acreditava derivar dos sentidos e significados configurados pela investigadora e pelos gestores nessas reuniões. Essas percepções deram origem a um novo movimento de construção de síntese, visto que era preciso que se buscassem os movimentos de teses, antíteses e sínteses realizados pelo grupo, como modo de apreender os sentidos e significados configurados nestes espaços. Ainda nessa direção,foram intensificados os momentos de discussão dos resultados encontrados com a professora orientadora, visando ampliar a compreensão desses movimentos. Acrescentamos, ao final da síntese, em forma de tópicos, o que compreendíamos ser os sentidos e significados configurados nos encontros, e pedia-se que os gestores discutissem sobre eles.

No terceiro momento do trabalho, buscou-se favorecer nas sínteses, os movimentos de contradições que emergiam nas reuniões, realizávamos a leitura e tentávamos identificar os sentidos ainda no encontro, de modo coletivo.

Para atender aos objetivos a que se propõe este artigo, destacamos a análise de três encontros que evidenciam o papel da síntese como instrumento que pode favorecer a ampliação da consciência de gestores escolares sobre os seus modos de atuar na escola.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O trabalho com a equipe gestora: primeiras impressões

O grupo de pesquisa já havia desenvolvido inúmeros trabalhos envolvendo diversos atores escolares, professores, alunos e professores de educação especial. Os resultados de uma pesquisa intervenção realizada com um grupo de docentes dessa escola, no qual se buscou compreender a constituição identitária dos professores, revelou a necessidade de uma maior aproximação dos psicólogos com a equipe gestora, como meio de desenvolver um trabalho voltado ao coletivo, objetivando alterar o movimento de culpabilização do outro pelos problemas vivenciados na escola (Souza, 2009).

Ao entrar em contato com os gestores percebeu-se que o mesmo movimento realizado pelos professores de culpar os alunos, a família, as condições socioeconômicas, o sistema público de ensino pelas falhas no processo de ensino e indisciplina eram reproduzidos por eles. Atribuíam ao modo de vinculação dos professores com a escola -funcionalismo público - a"falta de vontade" (sic) dos professores em rever suas práticas pedagógicas. Embora tivessem clareza que os problemas de ensino e indisciplina poderiam ser minimizados com mudanças das práticas pedagógicas e postura em relação aos alunos, os gestores não pareciam se incluir como responsáveis em promover essas mudanças. Ao contrário, colocavam-se como reféns desse sistema sem nada poder fazer para alterá-lo (Dugnani & Souza, 2011; Petroni & Souza, 2014).

Outro aspecto notado foi a constante situação de emergência que envolvia a escola. As reuniões com os gestores ocorriam semanalmente, sempre no mesmo dia e horário, com duração de uma hora e meia e, nesse período, éramos interrompidos constantemente, por professores, funcionários da secretaria e alunos, mesmo a porta estando fechada. Era como se nada pudesse esperar,se tudo devesse ser resolvido naquele exato momento, como se pode observar nos trechos abaixo:

Beatriz [a orientadora pedagógica] diz que os professores questionaram também, o trabalho das psicólogas com a gestão, dizendo que a escola ficava abandonada nesse período e que esse trabalho não era revertido para a escola. [Trecho da síntese do dia 30 de agosto de 2010, em que Beatriz relata algumas questões que foram levantadas pelos professores nos encontros organizados pela gestão para discutir saídas pedagógicas que pudessem minimizar o problema da indisciplina na escola.]

Marcos, o diretor, disse que a nossa presença na escola é algo que incomodava a todos, inclusive da secretária, que comentou sobre estarmos na escola e questionou-o sobre o que seria feito na reunião. Ele respondeu, brincando, que fazíamos uma terapia em grupo; ela se espantou que fizéssemos isso de graça e disse que gostaria de ter esse serviço também. [Trecho da síntese do encontro realizado dia 13 de setembro de 2010.]

O que tanto incomodava os professores e demais profissionais da escola? É Placco (2003) quem nos ajuda a compreender esta questão ao apontar que as atividades de rotina e de urgência acabam adquirindo prevalência na escola e as ações importantes que visam a mudanças e aperfeiçoamento das práticas pedagógicas da escola, como os períodos de quebra da rotina, acabam não ocorrendo ou ocorrem de forma precária, como de importância menor e passam a ser vistas como ameaças ao funcionamento da instituição. Os espaços de reflexão conquistados com a equipe gestora era visto pelos demais profissionais como uma ameaça ao modo imediatista de funcionamento das relações que parecia imperar na escola, e que se constitui como seu movimento característico. Em um ambiente em que tudo precisa ser resolvido no momento em que acontece, não há espaço, nem tempo e, até mesmo, disposição para o exercício da reflexão, o que permitiria transformar essa situação, objeto de queixas constantes dos profissionais. Observe-se a contradição: ao mesmo tempo em que se queixa e se demandam condições mais dignas de trabalho, com tempo para o planejamento e a reflexão, age-se de modo a manter essas mesmas condições, que passam a justificar os poucos resultados positivos da aprendizagem dos alunos e o sofrimento que caracteriza o trabalho na educação.

No entanto, a percepção pelos gestores da necessidade e relevância de pausas como tempo e espaço para trocas e diálogos foi um grande avanço, conquistado a partir das intervenções que realizamos na escola. A iniciativa deles de se reunirem toda semana, conforme eles próprios declararam várias vezes, tinha o propósito de buscar unificar o discurso da gestão, pois percebiam que muitas vezes tinham ações contrárias ao que o parceiro encaminhara. Também defendiam os encontros como espaço de reflexão sobre as demandas a eles apresentadas, sendo possível a discussão entre todos (Petroni & Souza, 2014).

Beatriz disse aos professores que todo o trabalho realizado nessas reuniões trata de questões da escola e Ângelo também disse que explicou aos professores que o nosso trabalho é dar suporte para que eles trabalhem com a equipe. [Trecho da síntese do dia 30 de agosto de 2010, em que Beatriz relata algumas questões que foram levantadas pelos professores nos encontros organizados pela gestão para discutir saídas pedagógicas que pudessem minimizar o problema da indisciplina na escola.]

Entendemos que esse movimento foi possível pelo processo de tomada de consciência provocado pela reflexão desenvolvida com o grupo, em que as sínteses tiveram grande importância. É a essa assertiva que nos dedicamos a seguir.

A síntese como espelho: movimento de tomada de consciência de gestores escolares

Segundo Vigotski (1934/2001), o diálogo como expressão do pensamento segue um movimento dialético no qual o motivo apresentado pela fala de um sujeito se constitui como o motivo gerador da fala do outro, e assim sucessivamente, caracterizando-se como um elaborado processo de planejamento e abstração. Isso porque, para que uma conversa entre duas pessoas ou um grupo ocorra, é preciso que os sujeitos envolvidos planejem e imaginem a reação de seus interlocutores, realizem um rascunho mental e escolham as palavras em que objetivarão o seu pensamento(Vigotski, sd/2008b).

Contudo, Vigotski (1934-2001) nos chama a atenção para o fato de que o ritmo acelerado, desenvolvido social e historicamente, a que estão submetidos os diálogos, não oferece aos sujeitos muito tempo para que escolhas ou deliberações muito elaboradas das palavras que materializarão o pensamento sejam feitas.

Em nossas intervenções havíamos percebido que a síntese se configurava como um instrumento que parecia favorecer elaborações de sentimentos e emoções pelos gestores, promovendo avanços no diálogo e superação de conflitos. Isso porque, a sua leitura em grupo parecia atuar como um espelho, rompendo com a velocidade costumeira das conversas na escola e conduzindo os gestoresa refletir sobre como suas falas afetavam os outros e a si próprios, ampliando suas percepções sobre suas ações em relação aos professores e alunos, por exemplo.

A leitura das sínteses no início dos encontros ocorreu sistematicamente desde o segundo dia de trabalho com essa equipe, como meio de chamar a atenção para o cotidiano escolar. Pudemos perceber gradativamente o interesse da equipe em ouvir as sínteses que traziam os principais pontos discutidos na semana anterior. Contudo, o real envolvimento dos gestores se deu no momento em que passamos a inserir nas sínteses os sentidos configurados no encontro anterior. Parece-nos que ao tomar contato com os sentidos, fossem eles apresentados pela psicóloga ou construídos coletivamente, eram confrontados com o seu pensar e suas ações no cotidiano escolar, segundo sua própria visão e a visão do outro. Esse movimento colocava em evidência as contradições - o que se diz, o que se pensa, não corresponde ao que se faz; ou seu contrário, o que se faz não se sustenta no que se declara pensar e acreditar. E é a reflexão sobre a contradição importante fonte de mudança do pensar e do agir.

A escolha por apresentar os sentidos ao final das sínteses teve início após um encontro em que estavam sendo discutidos os resultados de uma intervenção pensada pela equipe gestora com vistas a construir soluções coletivas na escola para a superação de alguns desafios, como relata o trecho de síntese abaixo:

Reuniões foram planejadas pela equipe gestora, como forma de discutir, do âmbito pedagógico, quais ações poderiam desenvolver para atenuar o problema de indisciplina nas sextas séries, queixa recorrente dos professores. Para tal, a equipe gestora criou uma planilha, na qual os professores deveriam apontar as causas e as possíveis soluções do problema, e dela derivaria o planejamento de ações. O documento produzido pelos professores, conforme observado pela equipe gestora e por nós, tomou um rumo legalista, no qual apontavam, por meio da citação de artigos e capítulos do Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], e do código penal, quais medidas punitivas deveriam ser tomadas com os alunos que cometessem atos de indisciplina. Beatriz se disse frustrada, ao perceber a visão que os professores têm da escola. Estevão disse que o documento confirmava o que já vínhamos discutindo em reuniões anteriores, e Ângelo apontou a dificuldade dos professores em implicarem-se nos processos, apontando que eles esperam que a gestão tome ações punitivas, mas que ao serem questionados se é isso que querem são sempre evasivos. Beatriz contou que na segunda reunião as perguntas dos professores fugiam ao tema proposto. Os professores questionaram ainda a postura da gestão, sobretudo de Beatriz, em não suspender, transferir ou expulsar os alunos. Não raro, os professores acusam a gestão de omissão. Ângelo disse que Marcos deixa os professores à vontade para fazer qualquer tipo de denúncia, mas que ninguém quer ser o carrasco da história e que eles esperam sempre que a gestão assuma esse papel. Diz ainda que se uma mãe for reclamar na Secretaria de Educação cabe a eles responderem pelos alunos fora de sala e fora da escola, e não aos professores.[Trecho da síntese do dia 30 de Agosto de 2010.]

A audição e transcrição para a construção da síntese desse encontro nos levaram a inúmeros questionamentos no que concerne à postura assumida pela equipe gestora em relação ao grupo de professores. Estariam os gestores olhando para os professores? Haveria por parte da gestão um movimento de tentar aproximar-se dos professores ou, ao contrário disso, havia um julgamento que impossibilitava a escuta e o diálogo? Parecia-nos que, embora se queixassem da falta de implicação do professor com o processo de aprendizagem, os gestores apresentavam o mesmo movimento em relação aos professores, na medida em que não davam importância às queixas dos docentes, atribuindo-as à falta de interesse dos professores; parecia-nos que os gestores reproduziam o movimento que estavam criticando, ou seja, não se incluíam no processo de avaliação de seu próprio trabalho. Como chamar a atenção da equipe para esse fato sem reproduzir o movimento de culpabilização do outro que permeava a escola? Esse era nosso desafio naquele momento.

Pareceu-nos que apresentar os sentidos configurados por nós no encontro seria um caminho. Por isso, ao final da síntese do dia treze de setembro os seguintes sentidos foram apresentados:

A equipe gestora se acha prejudicada com as atitudes dos professores; a equipe gestora tem buscado novas maneiras de atingir os professores e de fazê-los refletir sobre sua prática; ainda permanece o sentido de indignação com relação aos professores; não há percepção do movimento dos professores, mas entendem que é necessário olhar mais atentamente para isso; os professores não conseguem fazer uma reflexão ampla de sua prática; há vergonha, por parte dos professores, em pedir ajuda; a gestão têm tido um movimento de reconhecer suas falhas. [Trecho da síntese de 13 de Setembro de 2010.]

Até aquele momento, os gestores concordavam com todos os aspectos apresentados na síntese, não sugerindo nenhuma alteração, contudo, a apresentação dos sentidos ao final desse relato gerou um novo movimento. Após leitura houve um breve momento de silêncio, e os gestores entreolharam-se e iniciaram uma reflexão sobre o que estava posto:

Em relação aos sentidos apresentados Marcos (diretor), Estevão (vice-diretor) e Ângelo (orientador pedagógico) concordaram que o termo "prejudicado", utilizado na síntese não condizia com os sentidos da equipe. Marcos diz que não vê como a equipe de professores poderia prejudicar a equipe gestora, nem no âmbito legal, nem no debate. Diz achar certos conflitos naturais na relação patrão-empregados e que enquanto a cultura vigente permanecer, esses conflitos continuarão existindo. Estevão diz que acha que o termo correto é incomodado. Marcos atribui o incômodo de Estevão ao seu compromisso com a educação e com o trabalho, mas acredita que para pessoas que não tenham o mesmo compromisso, as situações se naturalizam, não gerando incômodos. [Trecho da síntese de 20 de setembro de 2010.]

Para Vigotski (s/d,2008b), o primeiro estágio de consciência é sempre o outro, a consciência como função psicológica superior é desenvolvida em referência às condições materiais de existência do indivíduo, a consciência não existe a priori, mas é constituída em um processo de devir permanente, via integração das demais funções, como percepção, generalização, pensamento crítico, dentre outras. Logo, a percepção de si e dos outros é fundamental no processo de tomada de consciência pelo sujeito.

Parece-nos que os sentidos apresentados fizeram com que os gestores tomassem consciência de que eram afetados pelas ações dos professores e que o modo como lidam com a situação afeta também suas ações. Ou seja, se os professores reagem de modo inadequado com os alunos ao verem suas propostas desdenhadas, criticadas, ou ignoradas, eles, como gestores, reproduziam o mesmo comportamento em relação aos professores e, frustrados por verem seu trabalho recusado pelo outro, fecham-se no grupo de gestores como meio de suportar a frustração e, deste lugar, culpam os professores por não conseguirem levar adiante seu trabalho. Observe este movimento no trecho a seguir:

O segundo sentido apresentado referiu-se às buscas que a equipe gestora tem feito. Marcos diz não perceber essas buscas, mas percebe que a postura da equipe chama o professor para outra realidade. Marcos cita vários exemplos que se referem às formas como os professores lidam com os conflitos, de modo geral, ora se enfrentam (como nos casos de atribuições de aula), ora buscam a gestão para fazerem fofoca de colegas. Marcos diz que ao colocá-los frente a frente não há diálogos. Estevão e Ângelo concordam. [Trecho da síntese de 20 de setembro de 2010.]

A leitura da síntese que traz os sentidos configurados no encontro permite que os sujeitos que exercem a gestão na escola entrem em contato com os motivos de suas ações e de seus discursos. Em um primeiro momento, ocorre a negação dos motivos, contudo, conforme se avança na reflexão sobre as falas do grupo no encontro anterior, a equipe, gradativamente, assume a autoria dos discursos e inserindo-se como autor do processo de transformação da escola, que culmina na reflexão de Ângelo que passa a reavaliar o seu próprio trabalho.

Ângelo traz para o grupo uma reflexão sobre a formação que teve com a coordenadora pedagógica. Diz que ela atribuiu ao orientador pedagógico o papel de provocar. Disse que ficou refletindo sobre o que e como provocar. Se deveria provocar mobilização ou reflexão? [Trecho da síntese de 20 de setembro de 2010.]

Parece-nos que a tomada de consciência das contradições que envolvem a relação entre a gestão e a equipe de professores permitiu a reconfiguração de sentidos, possibilitando a implicação dos gestores com ações que promovam mudanças nas formas de funcionamento da escola, na medida em que refletem sobre suas ações não as tomando por impulso, criando uma unidade de ação que integra pensamento e emoção de forma equilibrada.

Para Vigotski (1934/2001), os sentidos são as zonas mais instáveis do significado, um sentido é tão carregado de significados que seriam necessárias muitas palavras para traduzi-los, e tal complexidade se deve às bases desse que estão ancoradas nos desejos e necessidades do sujeito. São esses motivos que atribuem sentidos para a ação ou não ação dos sujeitos. O significado tem um aspecto social, compartilhado, mas o sentido é único. Contudo, o autor afirma que quanto maior a aproximação e afinidade entre as pessoas, maiores as possibilidades de compreensão dos discursos, na medida em que essas passam a compartilhar não só os significados das palavras, mas a compreender também os aspectos que motivam a fala e o pensamento do outro. A síntese, a nosso ver, permitiu essa maior aproximação por parte da equipe, favorecendo que se constituísse como um grupo.

Após a leitura da síntese e a apresentação dos sentidos Beatriz diz que como não ficou na reunião passada até o final não consegue ver muitas coisas, mas acredita que não haja um fatalismo, cansaço ou desânimo, contudo consegue perceber na equipe um desejo forte de mudança. Diz que as reuniões demonstram esse desejo. Estevão diz que não se trata de fatalismo, mas de tomar pé da realidade, de reconhecê-la como ela é, mas isso não significa jogar a toalha. [Trecho da síntese 27 de setembro de 2010.]

O trecho acima parece revelar um movimento de integração que surge na equipe, um compartilhamento de significados que permite a reconfiguração de novos sentidos para a equipe gestora. Se em um primeiro momento prevalecia a culpabilização do outro, com o decorrer das discussões percebe-se um movimento de olhar para si ao mesmo tempo em que se olha para o outro, identificando-se o que compete a cada um e ao grupo na implementação de ações que levem à mudança da realidade da escola.

Ao longo da intervenção, as sínteses se constituíram como um importante instrumento no aprofundamento da reflexão pelo grupo, conforme observam os gestores:

O que é importante na síntese é essa observação que vocês trazem junto, pela oportunidade de ouvir uma, duas vezes, de captar alguma coisa que no calor da discussão aqui passou despercebido. Então, de resgatar isso, trazer para a gente na semana seguinte, eu acho que é muito importante. [Fala de Estevão quando questionado sobre o trabalho desenvolvido com a síntese - encontro de avaliação de junho de 2011.]

A leitura das sínteses foi ganhando espaço ao longo dos encontros e, aos poucos, foram fazendo sentido para os gestores. Retomar o que havia sido discutido, como haviam se colocado, os sentidos que haviam sido configurados representava, para nós, a possibilidade de se construir algo novo a partir do que estava objetivado.

A pesquisadora comenta, ao término da leitura, que as sínteses estão ficando maiores. Ângelo[um dos orientadores pedagógicos] diz que acha que isso é bom, pois demonstra que as discussões estão surtindo efeito e existem coisas importantes que devem ser registradas. [Trecho da síntese de 7 de junho de 2011 - 8º encontro.]

O uso da síntese e seu papel na estruturação da ação dos gestores pode ser relacionado com o desenvolvimento da fala - palavra - e do pensamento, logo, da ampliação da consciência. Vigotski (1934/2001) considera a escrita a forma mais elaborada da fala, na medida em que, ao tentarmos expressar nosso pensamento, não podemos lançar mão da abreviação e da predicação que a fala oral permite, sob a pena de não conseguirmos expressar o conteúdo do pensamento. Ela exige que desenvolvamos mais a fala, que apresentemos sua complexidade, que aproximemos o leitor das ideias a serem expressas. Ou seja, ao escrever organizamos melhor nosso pensamento e ao ler/ouvir o que escrevemos, podemos pensar melhor, fazer novas relações. É neste sentido que entendemos que as várias formas de registro são instrumentos para a reflexão e, no caso da síntese, que visa historicizar o processo de reflexão de um grupo, ela é também instrumento para a ampliação da consciência dos gestores, pois os coloca na posição de reflexão sobre o que está escrito, conduzindo-os a pensar sobre novas formas de agir a partir do que está posto, configurando novos significados e sentidos de suas ideias e criando novas possibilidades de ações.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caminhando para o fechamento, gostaríamos de evidenciar o processo que buscamos demonstrar: a síntese como instrumento de mediação da consciência da equipe gestora mostrou-se uma prática promissora na intervenção no contexto escolar, na medida em que possibilitou a essa equipe entrar em contato de maneira reflexiva com os seus pensamentos e emoções, ao mesmo tempo em que permitiu a ressignificação dos sentidos atribuídos às ações gestoras, na promoção de mudanças na escola.

A nosso ver, isso foi possível porque a síntese, como objetivação das discussões realizadas, permitia que os gestores e pesquisadora acessassem os significados e os sentidos construídos nos encontros, tornando possíveis novas configurações de sentidos. Da perspectiva teórica da Psicologia Histórico-Cultural, isso se dá devido ao movimento constituinte do desenvolvimento da fala e do pensamento, que percorrem caminhos diferentes, mas em um dado momento se cruzam, ficando impossível definir o que é específico da fala ou do pensamento. Para Vigotski (1934/2001), "el pensamiento y el lenguaje son la clave para comprender la naturaleza de la conciencia humana" (p. 346). A fala possibilita aos outros acessarem o movimento da consciência do sujeito, assim, a palavra desempenha papel fundamental, pois é nela que a consciência se realiza. A palavra é a unidade entre o pensamento e a fala, ou seja, ela contém em si elementos intelectuais e verbais (Vigotski, 1934/2001).

Retomar o que havia sido discutido, como haviam se colocado, os sentidos que haviam sido configurados, representava, para nós, a possibilidade de se construir algo novo a partir do que estava objetivado. A existência de espaços para falar, para ouvir e para ser escutado permite ao sujeito desenvolver seu pensamento e sua consciência como participante ativo de um grupo.

Nesse processo, a fala, como vimos, aparece como função de extrema importância, na medida em que possibilita o diálogo, o processo de reflexão, de troca de experiência, de desenvolvimento dos significados que se referem ao cotidiano escolar.

Entendemos as sínteses como instrumentos que também contribuem para a ampliação da consciência dos gestores, pois os coloca na posição de reflexão sobre o que está escrito, buscando novas formas de agir a partir do que está posto, configurando novos significados e sentidos. Assim, podemos dizer que as sínteses se apresentam como importantes ferramentas na atuação do psicólogo, pois possibilitam-lhes acessar o sujeito e se colocar como sujeito, no processo de ampliação de consciência, na medida em que se estabelece um movimento em que concorrem o afetivo e a volição, que se encontram na base da constituição do psiquismo humano, constituindo-se como possibilidades de construção de narrativas dos sujeitos, de seu tempo e lugar.

Desse modo, o trabalho de intervenção com a equipe gestora permitiu também que esses atores tomassem consciência da real possibilidade de intervenção do psicólogo escolar, bem como do tempo necessário para que ocorram mudanças derivadas de intervenções, dada a complexidade dos processos que se desenrolam na escola. Esse novo olhar da equipe permitiu o estabelecimento de novas parcerias e a inserção de novos projetos nessa escola, com outros atores; como dissemos anteriormente, trata-se de abrir brechas, em condições materiais que permitam ao psicólogo a construção de um trabalho sólido e comprometido com as transformações sociais, sobretudo a qualidade do ensino que se oferece nas escolas da rede pública de educação.

A complexidade do trabalho do psicólogo reside em investigar formas de favorecer e promover relações saudáveis, que tenham a dignidade e o respeito pelo outro como base de atuação de todos os agentes que constituem esse contexto, para que se possa assim transformar as relações nela estabelecidas na sociedade.

Não se pretende esgotar o assunto, dado a limitação a que se submete esse artigo, desse modo aponta-se a necessidade da realização de novas pesquisas aprofundando as possibilidades de práticas.

 

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1 Os resultados dos estudos aqui apresentados foram realizados pelo grupo de pesquisas Processos de Constituição dos Sujeitos em Práticas Educativas - PROSPED, que tem direcionado seus esforços para a construção de instrumentos de pesquisa e de intervenção que possibilitem ao psicólogo escolar desenvolver práticas transformadoras na escola, tomando como ponto de partida as demandas apresentadas pelos profissionais que nela atuam.