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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.41 São Paulo dez. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20150019 

COMPARTILHANDO

 

Literatura como instrumento de discussão acerca da morte1

 

Literature as instrument discussion about death

 

Literatura como instrumento de discusíon acerca de la muerte

 

 

Aline Sberse SengikI; Flávia Brocchetto RamosII

IUniversidade de Caxias do Sul. alinesengik@hotmail.com
IIProgramas de Pós-Graduação em Educação e Letras da Universidade de Caxias do Sul

 

 


RESUMO

Considerando que a morte faz parte do desenvolvimento humano e que é um dos temas mais delicados de se tratar, especialmente quando envolve o esclarecimento do tema com crianças, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a possibilidade de esse assunto ser abordado no ambiente escolar, valendo-se de obras literárias. Para tanto, propõe-se uma reflexão analisando a obra Os dois irmãos, escrito por Wander Piroli e ilustrado por Odilon Moraes, selecionada pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE-2010) para acervos da Educação Infantil. As discussões restringiram-se aos aspectos verbais e visuais a partir do modo como o enredo contempla simbolicamente a ausência, a separação, o abandono, a perda e a morte. Pelo estudo, constata-se que a literatura infantil promove a construção de conhecimentos, implicando a atribuição de significado a partir das vivências do leitor. Desse modo, a escolha apropriada de um livro literário pode ajudar a criança a lidar com diversas situações conflitivas, dentre elas a morte.

Palavras-chave: morte; infância; literatura infantil; leitura.


ABSTRACT

Considering that death is part of human development and one of the most sensitive subjects to deal with in our society, especially when it involves to clarify the subject to children, this article has the purpose to discuss the possibility of this subject be approached at school, taking advantage of the literary works. Therefore,a study is proposed analyzing the work Os dois irmãos [The two brothers], written by Wander Piroli and illustrated by Odilon Moraes, selected by the School Library National Program (PNBE-2010) for archives of early childhood education. The discussions were restricted to verbal and visual aspects from the way the story symbolically comprises the absence, separation, abandonment, loss and death. For the study, it is noted that children's literature promotes the construction of knowledge, involving the meaning attribution from the reader's experiences. Thereby, the appropriate choice of a book can help the child to deal with several situations associated to life, among them death.

Keywords: death; childhood; children's literature; reading.


RESUMEN

Considerando que la muerte hace parte del desarrollo humano y que es uno de los temas más sensibles de tratarse, especialmente cuando abarca el aclaramiento del tema con niños, el presente artículo objetiva disertar sobre La posibilidad de ese tema ser tocado en el medio escolar, basándo se de obras literarias. Para eso, se propone un estudio analizando la obra Os dois irmãos [Los dos Hermanos], escrito por Wander Piroli e ilustrado por Odilon Moraes, seleccionada por el "Programa Nacional Biblioteca da Escola" (PNBE-2010) para colecciones de Educación Infantil. Las discusiones se limitan a los aspectos verbales y visuales desde el modo como la trama ofrece simbólicamente la ausencia, la separación, el abandono, la pérdida y la muerte. Por el estudio, se observa que la literatura infantil promueve la construcción de conocimientos, que implican la asignación de significado desde las experiencias del lector. Por lo tanto, la adecuada elección de un libro literario puede ayudar el niño a hacer frente a diversas situaciones de conflicto, entre ellas la muerte.

Palabras clave: muerte; niñez; literatura infantil; lectura.


 

 

Discussões acerca da morte estão presentes no cotidiano de todos. É ilusório tratar o tema como se fosse uma situação distante, que não faz parte do desenvolvimento natural humano. Os meios de comunicação, por exemplo, retratam o assunto diariamente, mostrando cenas de violência que resultam em mortes, expondo em demasia e até mesmo banalizando o assunto.

Diante de tal contexto, pode-se supor que a morte também permeie o ambiente escolar. A criança leva para a sala de aula suas vivências, e isso implica dividir com outros (colegas, professores, merendeiras, zeladores, etc.) situações de perda, bem como expressar sentimentos de abandono. Entretanto, o adulto, em geral, evita tratar do tema com a criança.

Bromberg (1998) em seus estudos aponta para o fato de que o significado dado pela criança à morte varia conforme sua idade, seu vínculo com a pessoa falecida, o momento de seu desenvolvimento psicológico, além do modo como o adulto, com quem convive, lida com a perda. Segundo a autora (1996, p.111), "assim que a criança tiver idade suficiente para se vincular, pode ter consciência da possibilidade de perder a pessoa amada, de ter os vínculos rompidos". Portanto, não é simples lidar com perdas e é ainda mais delicado quando o tema envolve esclarecimentos e diálogo com a criança.

Em situações como essas, os adultos tendem a pensar que a atitude de omitir, distorcer, silenciar a verdade à criança evita-lhe o sofrimento. Porém, como um efeito colateral, a criança deixa de confiar nos adultos e de perguntar-lhes sobre o assunto, pois "sente uma terrível confusão e um desolado sentimento de desesperança, criado porque já não tem a quem recorrer" (Aberastury, 1984, p. 129).

É pertinente esclarecer que neste estudo, elegem-se autores que tratam especificamente dos sentimentos de perda observados em crianças, porém, no adulto, a repercussão da morte e seus desdobramentos também tende a causar dor, melancolia, tristeza entre outras emoções. Esses sentimentos variam de acordo com o modo como cada pessoa percebe a morte, assim como com o tipo de vínculo estabelecido com o ente perdido.

Para Aberastury (1984), um adulto, quando se nega a esclarecer verbalmente a morte, perturba o momento inicial de elaboração do luto da criança. Luto, aqui, é entendido como "um conjunto de reações a uma perda significativa" (Bromberg, 1998, p. 11).Dessa forma,"a ausência se faz mais dolorosa e conflitiva. Entram em luta uma convicção do que aconteceu - que é percebido pela criança - e o que o adulto lhe relata" (Aberastury, 1984, p.132).

Torres (2002) evidencia em seus estudos que o conceito de morte em crianças apresenta três características: irreversibilidade - a impossibilidade do corpo morto retornar ao estado anterior; não funcionalidade- o entendimento de que todas as funções definidoras da vida cessam com a morte; universalidade- tudo o que é vivo morre. Acrescenta ainda que, no período do desenvolvimento cognitivo pré-operacional - dos dois aos seis ou sete anos de idade (Piaget, 1970/1990) - a criança ainda não domina as referidas características e que, quando passa por alguma perda em função da morte, precisa ser informada sobre estes conceitos (irreversibilidade, funcionalidade e universalidade). Nessa fase, o pensamento da criança é ilógico e egocêntrico, e questões complexas como a sensação de onipotência e o sentimento de culpa devem ser abordadas, especialmente diante da situação relacionada à morte (Kovács, 2002; Torres, 2002).

Já no período das operações concretas (dos sete anos até, aproximadamente, os doze anos de idade), fase em que a criança tem sua vida escolar mais intensificada, ela tende a manifestar pensamentos mais organizados, sendo capaz de manipular mentalmente representações internas que formou, embora ainda limitada a operações concretas (Piaget, 1970/1990). Apesar de a criança ter dificuldades para abstrair a ideia de morte, esta passa a ser compreendida mais realisticamente pelo infante conforme seu nível de maturação cognitiva. Entretanto, ao enfrentar uma perda significativa, independente da etapa de seu desenvolvimento cognitivo e de sua idade, lidar com esse assunto parece ser uma tarefa muito difícil, principalmente, porque em muitas sociedades a morte é tida como um tema causador de inquietações, medos e ansiedades. De modo que, parece razoável inserir a questão da morte no âmbito escolar.

Abordar o assunto no currículo justifica-se por ser a escola um local de aprendizagem e socialização que pode auxiliar em tópicos atinentes ao desenvolvimento emocional, bem como oferecer suporte a alunos que passam precocemente por essa experiência. Além disso, no mundo simbólico, cabe lembrar que o tema da morte é tratado por produtos culturais que são destinados à criança, como se observa, por exemplo, em filmes e livros. Por essa razão, no próximo item, serão discutidas formas de tratar o tema morte na infância.

 

ABORDANDO A MORTE NA ESCOLA

O tema da morte pouco comparece nas práticas vividas pela infância escolarizada. No entanto, os livros literários, especialmente aquelas produções para o público infantil e juvenil podem auxiliar o docente em discussões acerca do tema.

Pela leitura da obra literária, o assunto em questão pode ser tratado de forma mais simbólica, promovendo não somente a formação do conceito de morte, mas também construindo significações às quais a palavra remete. A situação dada na ficção não é igual à vivida pelo leitor, mas há traços presentes no universo ficcional que podem contribuir para antecipar ou mesmo auxiliar o entendimento de eventos já experienciados.

Conforme Ramos (2010, p. 86), a literatura, como objeto da linguagem, construído por palavras e discursos, é "fator indispensável de humanização, pois permite que os sentimentos passem de simples emoção para uma forma mais concreta, uma vez que são experienciados pelo leitor". Com isso quer-se dizer que a leitura de uma situação dramática, por exemplo, possibilita ao leitor experimentar emoções inerentes ao conflito nela estabelecido.

A leitura de uma obra literária, seja feita pelo próprio aluno, seja realizada por um mediador, oportuniza a construção de conhecimentos, implicando sempre a atribuição de significados ao mundo ficcional a partir da vida concreta do leitor/ouvinte. Nesse sentido, as obras literárias podem contribuir para a educação, pois:

... seus efeitos são devidos, em especial, às suas três faces: construção, expressão e forma de conhecimento. Explico: o homem que enuncia, que cria o fenômeno literário, constrói um mundo à parte, similar ao real, baseado no real, mas permeado por elementos da imaginação. (Ramos, 2010, p. 87)

A literatura cria um universo à parte a ser acessado pelo leitor, e a escola pode favorecer a aproximação da criança ao material literário. Smith (2003, p. 212) acrescenta que a leitura sempre envolve algum tipo de emoção, podendo "estimular e aliviar a curiosidade, proporcionar consolo, encorajar, fazer surgir paixões, aliviar a solidão, o tédio e a ansiedade, servir de paliativo à tristeza e, ocasionalmente, como anestesia".

Nas instituições escolares, geralmente, quem exerce essa função de mediação é o professor. É ele quem, frequentemente, inicia o aluno em sua relação com as letras, com as palavras, com os textos, com os livros, minimizando diferenças sociais, culturais, enfim, diminuindo o distanciamento que possa haver entre o leitor e o texto.

Dessa forma, as instituições educativas podem propiciar maior familiaridade com a literatura e, nesse caso, com livros que abordem temas polêmicos, como a morte, por meio do simbólico, de forma natural e espontânea. Qualquer que seja o assunto referido em determinada obra, ele somente terá valor se interagir com o sujeito, promovendo identificação com aspectos mencionados na narrativa e, consequentemente, provocando sua criatividade e imaginação. De acordo com Petit (2008), é o indivíduo que dá vida e atribui sentido ao que lê, tendo em vista o caráter subjetivo que envolve a interpretação.

Defende-se aqui que, oferecendo um espaço para a interação - ao possibilitar à criança falar sobre seus sentimentos em relação ao que lê, sem inibir sua curiosidade - a escola desmistifica assuntos normalmente evitados pelos adultos. Silenciar o tema da morte, a fim de reduzir a dor da criança que passa por uma perda significativa, é um equívoco. Explicações eufemísticas - como foi para o céu, foi viajar, está doente ou, ainda, logo retornará-geram confusão e tristeza na criança, além de permanente frustração, bloqueando seu processo de construção de conhecimento (Aberastury, 1984).

Nesse sentido, alguns livros, principalmente os de literatura infantil e infanto-juvenil, podem auxiliar as crianças a lidarem com as mais diversas situações de vida, tendo em vista a empatia com que seus autores abordam temas como o abandono, o distanciamento, a perda e a morte.

De acordo com Ramos (2010, p. 87), a literatura é um produto da atividade humana que "pode nos humanizar, na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante". Segundo a autora, as obras não são isentas de valores (éticos, religiosos, políticos, sociais). Esses são expressos pelos escritores, consistindo em questões essencialmente humanas - alegrias, conquistas, angústias, sucessos, decepções, etc. "É inegável a força que se deve dar à literatura (...), pois ela pode propiciar a reflexão sobre questões que talvez não consigamos tratar racionalmente" (Ramos, p. 87), ou que provoquem o receio de as discutirmos aberta e naturalmente, como, por exemplo, a questão da morte.

Dessa forma, a literatura mostra-se como um veículo poderoso de comunicação, promovendo um elo entre o leitor e aspectos da sua realidade. Procurando descrever a relação que se estabelece entre texto literário e leitor, Iser (1971) distingue qualidades especiais que caracterizam esse gênero. A primeira delas é que ele difere de outras formas de escrita, porque "não escreve sobre objetos reais nem os constitui" (p. 8). Ao mesmo tempo, o texto literário diverge das experiências reais do leitor "na medida em que oferece enfoques e abre perspectivas nas quais o mundo empiricamente conhecido da experiência pessoal aparece mudado" (p. 8).

Assim, a literatura não pode ser plenamente identificada com os objetos reais do mundo exterior e tampouco com as experiências do leitor. Essa falta de identificação produz um grau de indeterminação que, normalmente, o leitor compensará por meio do ato da leitura e da projeção sobre o lido.

Ao pensar no potencial das obras literárias, o professor, ao conhecer seus alunos, pode escolher livros mais apropriados para trabalhar em sala de aula e promover interações. Esse contexto pode desencadear o interesse, a motivação e a confiança desses leitores para questionarem qualquer assunto que a literatura venha a tratar, dentre eles a morte.

Acessar obras dos acervos do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), alocados nas bibliotecas escolares, é uma forma de buscar títulos de cunho simbólico nas escolas públicas - tratado no próximo item deste artigo.

 

LIVROS LITERÁRIOS NA ESCOLA

Ao eleger a escola como espaço para pensar modos de se tratar a morte, destaca-se o livro de literatura infantil que circula nesse ambiente por meio do PNBE. Esse Programa, criado em 1997, fornece aos estudantes de escolas públicas e a seus professores material de leitura variado, promovendo não apenas a leitura do texto literário como fonte de fruição e reelaboração da realidade, mas também como instrumento que possibilita o aprimoramento das práticas educativas e culturais. O Programa ampliou significativamente seu campo de ação, tendo passado, nesse período, por alterações quanto aos destinatários, à forma de seleção e ao tipo de obras. Desde 27 de janeiro de 2010, a partir da publicação do Decreto 7084, passou a ser política de Estado que integra as ações do Programa do Livro e da Leitura no Brasil.

As ações do PNBE visam a atender a demandas dos usuários da biblioteca escolar - sejam docentes ou discentes. Quanto aos discentes, este estudo prioriza o PNBE de Literatura, que objetiva a formação de acervo literário. O Ministério da Educação articula, anualmente, ações que implicam a avaliação, compra e distribuição de obras literárias. Os acervos de literatura são formados por textos em prosa (contos, crônicas, novelas, memórias, biografias e teatro); textos em versos (poemas, cantigas, parlendas, adivinhas); livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos.

Cada um dos quatro acervos é constituído por 25 títulos, totalizando 100 obras, e cada acervo é formado por obras que pertencem a um dos seguintes segmentos: (a) Textos em verso - poema, quadra, parlenda, cantiga, trava-língua, adivinha; (b) Textos em prosa - pequenas histórias, novela, conto, crônica, teatro, clássicos da literatura infantil; (c) Livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos, dentre os quais se incluem obras clássicas da literatura universal, artisticamente adaptadas ao público dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Após a leitura das obras que compõem o referido acervo, constatou-se a predominância de textos em prosa. Ao serem analisadas as obras dessa edição do PNBE, percebeu-se que pelo menos a metade delas, ou seja, 50 títulos, é em prosa, seguidas pelos livros em versos que totalizam 36, e pelos de imagens e de histórias em quadrinhos, que juntos totalizam 14 títulos.

Para o presente estudo, buscou-se a representação do tema morte em obras escritas em prosa. Foram excluídos do corpus os títulos classificados como poesia, livros de imagem e de histórias em quadrinhos. Restaram, pois, 50 títulos.

Entre as 50 obras classificadas como texto em prosa, há coletâneas formadas por várias narrativas e histórias com apenas um conflito. Novamente, privilegiaram-se títulos com somente uma narrativa. Nesse universo, foi localizada apenas uma obra que contempla, simbolicamente, o tema da morte. Trata-se de Os dois irmãos, escrito por Wander Piroli e ilustrado por Odilon Moraes, cuja primeira edição ocorreu em 1980. O exemplar analisado foi publicado em 2009. O selecionado pelo PNBE, edição 2010, compõe o acervo 1, da Educação Infantil (4 e 5 anos).

Essa escassez de livros sobre a morte pode remeter a dois fatores. O primeiro parece estar relacionado a abordagem do assunto como tabu, especialmente na cultura ocidental. O segundo tende a ser argumentado como a falta de preparo dos professores na abordagem do tema. Nesse sentido, sugere-se ao educador que se dispa de qualquer tipo de pré-conceito e se prepare teórico-metodologicamente para lidar de forma mais apropriada com temas que mobilizam sentimentos em relação àfinitude da vida. Para tanto, o educador deve se familiarizar com o tema da morte, tal como abordado pela literatura (Kovács, 2005; Sengik e Ramos, 2013, entre outros).

 

ANALISANDO A OBRA OS DOIS IRMÃOS

Ampliar o currículo escolar e fomentar ações de leitura são os principais objetivos do PNBE ao selecionar os títulos que compõem seus acervos. Se o currículo é uma forma de contribuir para a formação do estudante, ele deve priorizar temas relativos à vida. E se a morte faz parte da vida, deve estar contemplada no currículo.

Entende-se que a narrativa possibilita ao leitor abordar de forma simbólica situações de perda, ausência, separação, abandono e morte, como será tratado a seguir. A obra analisada neste estudo busca discutir aspectos referentes às linguagens verbal e visual, a partir do modo como o tema morte vai configurando o enredo.

A obra é uma produção conjunta de Wander Piroli e Odilon Moraes. Wander Piroli nasceu em 1931, em Belo Horizonte, onde sempre viveu, até falecer em 2006. Iniciou sua carreira como ficcionista escrevendo para adultos, no entanto foi na literatura infanto-juvenil, a partir da publicação de O menino e o pinto do menino (1975), que se tornou mais conhecido, devido ao emprego de linguagem realista na produção de textos para o público infantil. Reconhecido como contista, destacam-se do conjunto de sua obra: Os rios morrem de sede, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de 1977, e Nem pai educa filho(1998).

Já Odilon Moraes nasceu em São Paulo, em 1966. Desponta no mercado editorial brasileiro, em 2002, com a publicação de A princesinha medrosa, seu primeiro livro ilustrado, seguido de Pedro e Lua (2004). Ambas as obras receberam o prêmio de Melhor Livro para Crianças, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Também recebeu, em 2002, pela FNLIJ, o prêmio Melhor Ilustração. Seja como autor, seja como ilustrador, ou em obras nas quais desempenha os dois papéis, Odilon revela expressão artística cuidadosa, em que a ilustração apresenta função desafiadora e agregadora, ao mostrar que o não dito pela palavra agrega possibilidades de sentido.

A narrativa escolhida Os dois irmãos é um texto híbrido formado por palavras e ilustrações. As duas linguagens se unem, conferindo mais detalhes e dramaticidade ao enredo. Por meio da técnica de aquarela com a predominância de tons azuis e acinzentados, a incerteza parece marcar a narrativa. Essa sensação é percebida visualmente pela imprecisão de algumas formas ou seres/cenas representadas, como se evidencia, por exemplo, nas páginas 6 e 7, em que é apresentado o interior da oficina onde se podem identificar, entre outros elementos, carro, mecânico, caibros, telhado, porta, árvore, dois galos e suas sombras. Nesse sentido, a sombra dos seres está presente nas cenas reiterando a ambiguidade acerca da percepção dos fatos e do viver.

A mudança de perspectiva na composição das cenas é outro dado relevante na obra: nas páginas iniciais, da 4 à 7, o ângulo de observação é do olhar humano, já nas páginas 8 a 10, o cenário é focalizado desde o chão, privilegiando a perspectiva dos dois irmãos. Em determinado momento, quando esses personagens quase são atropelados, a imagem também é abalada e passa a ser mostrada em diagonal. Após o incidente, visualmente, o enredo tende a voltar à normalidade até que um deles desaparece, ficando a página quase toda em branco.

Os aspectos composicionais da narrativa são apresentados gradativamente ao leitor. O espaço - uma oficina mecânica - parece impróprio à ação dos protagonistas, e o tempo, além de não ser delimitado, pouco interfere no conflito.

O título conta a história de dois frangos, "Iguais em tudo. Dos pés à cabeça." (Piroli, 2009, p. 4), sendo difícil diferenciar um do outro, inclusive no que se refere aos aspectos físicos: "Tinham o mesmo tamanho, a mesma cor cabocla, o mesmo canto abaritonado" (p. 5). No início do conto, já é possível identificar o forte vínculo afetivo entre os personagens, além do laço parental, tendo em vista serem irmãos idênticos, fazem tudo sempre juntos, o que denota afeto e cumplicidade.

No entanto, a observação da capa e da página 4 - onde tem início o enredo propriamente dito - lança ao leitor uma dúvida, porque, embora o título indique "dois irmãos", as imagens tendem a mostrar apenas um galo. No entendimento das autoras, o conflito começa a ser posto pelo projeto gráfico, incluindo, por exemplo, título, capa e contracapa, folha de rosto, orelhas entre outros elementos presentes num exemplar. Desde a abertura da obra, a ilustração perturba intencionalmente o leitor ao enunciar sentidos diversos daqueles apontados pela linguagem verbal. Aliás, a palavra não explicita se os protagonistas são galos. Depreende-se essa ideia pela caracterização dada aos personagens à medida que a narrativa avança, sinalizando o papel ativo do leitor nessa construção. Se o interlocutor apenas ouvir a história, sem manusear o livro, a vivência estética implicará desafio maior para a concretização do enredo, uma vez que terá de estar atento às indicações enunciadas pela palavra para entender quem são as personagens.

Na sequência, o narrador descreve onde os irmãos habitavam, passando a imagem de um ambiente amistoso e simples: "Viviam numa oficina mecânica de chão batido, entre carros, peças e ferramentas" (Piroli, 2009, p. 6), acrescentando a ideia de liberdade que ambos tinham para andar entre as pessoas e se deslocarem no momento em que desejassem: "O portão da oficina ficava sempre escancarado" (p. 7). Dessa forma, nota-se que o lugar onde eles viviam era, além de seguro, confiável.

A narrativa também alerta para os gestos de imitação entre os dois irmãos que, além de companheiros, pareciam desfrutar das mesmas coisas: "Se um parava para catar um bichinho no chão, o outro também parava. Se um cantava, o outro fazia o mesmo." (p. 9). Enfim, é pela contínua configuração desses personagens no decorrer da narrativa que o leitor acaba por deduzir que os irmãos são galos.

A criança pode se identificar com os irmãos na medida em que, dependendo da idade, também observa seus familiares (mãe, pai, irmãos) a fim de imitá-los, tendo-os como modelos de conduta. Essa identificação com características infantis pode ser deduzida também quando o narrador se refere a um acontecimento em que os irmãos correram riscos, por exemplo, quando tiveram a ousadia de atravessar a rua e quase foram atropelados por um táxi. Nessa passagem, o leitor infantil pode vir a se reconhecer nas atitudes dos dois irmãos, pois, eventualmente, também age de maneira audaciosa, fazendo coisas que poderiam colocá-lo em situação de perigo. Nesse contexto, também é razoável pensar que, naquele instante, o narrador tenha proposto um evento de ameaça à vida devido à possibilidade de acontecer um acidente e, eventualmente, resultarem em morte. Dessa vez, nada ocorre, pois eles "num só movimento de asas, saltaram para o passeio" (p. 11).

As relações interpessoais são explicitadas no título como se os dois irmãos fossem queridos por muitas pessoas, por serem parceiros um do outro, inclusive na hora das refeições:"a hora do almoço era sagrada. Eles voltavam rápido e ficavam por ali, esperando que os mecânicos terminassem de comer e deixassem um restinho de arroz, feijão, angu, (...). Tudo era dividido irmãmente" (p. 13).

A rotina dos personagens segue contada pelo narrador observador que prevê a atuação do leitor na concretização do enredo. O narrador informa que, ao anoitecer, eles se aproximavam ao pé de manga que ficava atrás da oficina e lá "se ajeitavam num galho, um ao lado do outro, até o dia seguinte" (p. 17) e visualmente a mistura de traços, cores associadas ao contraste entre luz e sombra podem ser indícios do desfecho. Novamente, constata-se a intensidade do vínculo entre os dois irmãos e, talvez, uma relação de dependência entre eles, devido à proximidade e aos laços afetivos.

Acordar, cantar, almoçar, passear, dormir - o narrador descreve o cotidiano dos galos que andavam e faziam as coisas sempre juntos. A amizade e o apego entre eles são evidenciados durante toda narrativa para o leitor. Entretanto, num certo dia, ocorre uma mudança inesperada: "Tinha um empregado que dormia num cômodo perto do pé de manga" (p. 18). Ele acordava, quando o dia mal começava a clarear, com o canto dos dois irmãos. Naquela madrugada, "o empregado, lá da cama, notou uma diferença: ouvia apenas um canto" (p. 20), e o canto era diferente do habitual: "Parecia um canto aflito" (p. 21). Nesse momento, o leitor é desafiado a formular hipóteses sobre o que pode ter ocorrido na história.

O vocábulo "aflito", assim como a mudança na disposição da ilustração - que até então ocupava as duas páginas, e que agora ocupa apenas a página ímpar com somente duas penas voando próximas do miolo do exemplar - rompem com a sequência visual e anunciam que algo preocupante e até mesmo ruim pode ter acontecido.

A ausência do irmão é reafirmada visualmente pelas páginas 21 e 23 quase que totalmente em branco. Posteriormente, o conto alerta para a ausência, a falta de um dos irmãos e o sentimento de confusão do outro que parece desolado, "andava por entre os carros, como se estivesse procurando alguma coisa" (p. 20). Com auxílio dos questionamentos do empregado, o narrador propõe ao leitor algumas possibilidades sobre o que poderia ter acontecido. "Talvez tenha saltado o muro ou o portão (...)" (p. 22), argumento que poderia justificar as penas voando soltas na página anterior.

Palavra e ilustração revelam a busca pelo irmão sumido. A palavra descreve a união do empregado com o irmão e com os outros empregados para procurá-lo na rua e nas casas próximas - apagam-se as diferenças entre pessoas e animais na busca pelo desaparecido. A ilustração materializa cenários e situações de busca pelo desaparecido (Fig. 8). A curiosidade em relação ao que pode ter acontecido a um dos irmãos implica reconhecer nos personagens sentimentos de apreensão, angústia e esperança.

Na sequência, o narrador descreve a atitude de consolo do empregado, sugerindo proteção, amparo e compreensão acerca das emoções que o irmão estava vivendo. O empregado "coçou a cabeça do irmão para que ele não se preocupasse. Ia dar tudo certo" (p. 25). Humano e animal parecem se entender, pela solidariedade e empatia reveladas pelo empregado. Entretanto, o leitor ainda não consegue ter a resposta do que pode ter ocorrido, e a narrativa segue oferecendo pistas sutis para que algo misterioso possa ser desvendado: "Os empregados, todos, gastaram uma boa parte da manhã vasculhando toda a vizinhança (...)" (p. 28) e nem sinal do irmão. Ao outro restou a incerteza, a falta e a descrença: "A partir desse dia, o outro irmão recolheu-se num canto da oficina" (p. 30). Esse isolamento reflete o desânimo, a desesperança e o desolamento por não obter respostas sobre o paradeiro do irmão (Fig. 9).

O não-saber referente ao desaparecimento e a separação do conhecido geraram outras reações que podem ser comparadas àquelas vivenciadas em uma situação real de luto: "parou de comer, beber e cantar" (p. 31). A tristeza, a desmotivação, a apatia, a frustração e a solidão do irmão são apontadas na narrativa, porém o narrador não revela o que de fato aconteceu ao irmão sobrevivente e, com muita sensibilidade, convida o leitor a terminar a história a seu modo: "Se você acha que está faltando alguma coisa, use a sua imaginação e termine esta estória" (p. 32). O leitor-mirim pode não suportar conviver com o final aberto da história e, estrategicamente, no final da narrativa, a última página do livro, antes da terceira capa, abre espaço para o leitor resolver o conflito, caso não consiga conviver com a imprecisão, no estágio de desenvolvimento em que se encontre.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O silêncio da narrativa permeia o título e acolhe o universo do leitor, colocando-o na posição de coautor do enredo. Assim, agir sobre a narrativa veiculada neste exemplar implica, necessariamente, a criança estar atenta às sutilezas da linguagem verbal e da visual, tendo em vista que o enredo é composto por ambas.

A ilustração não confirma as indicações do narrador, antecipando apenas índices que serão percebidos posteriormente pelo leitor. A sobreposição de formas, ângulos, cores reitera o conflito do enredo e a angústia do irmão que fica sozinho na oficina, adensando a dramaticidade da proposta artística da obra e, consequentemente, a concretização pelo leitor acerca de um dos possíveis temas sugeridos pelo título.

A união dos códigos cria um enredo que permite, simbolicamente, ao leitor interagir com a condição de perda de uma pessoa ou de outro ser próximo. O título, por sua vez, propicia o entendimento sobre os sentimentos naturais e esperados por alguém que vive uma situação na qual deva conviver com a ausência/separação do outro. A obra oportuniza ainda à criança a possibilidade de dar um final à história, mobilizando sua criatividade e imaginação, conforme o desenrolar do enredo que privilegia o entendimento da narrativa, considerando seu desenvolvimento emocional.

Em síntese, essa obra pode auxiliar não apenas o sujeito que perde uma pessoa por morte, mas também aquele que teve um familiar querido desaparecido ou que o tenha abandonado, mesmo que voluntariamente. As vivências da falta, do abandono e da perda são situações presentes entre muitas crianças, principalmente, na contemporaneidade, independente da condição social. Da mesma forma, filhos que não conhecem um dos genitores ou que são criados por outros familiares também podem ser beneficiados pelo conflito abordado, tendo em vista a possibilidade de já terem vivenciado ou de virem a experienciar emoções semelhantes.

Essas situações tendem a causar dor, sofrimento e precisam de um espaço para serem expressas seja pela linguagem verbal, seja pela não verbal. A proposta simbólica do título possibilita que a interpretação seja realizada a partir do repertório do leitor, de modo a ele filtrar e selecionar apenas aquilo de que necessita para se entender diante do enredo posto.

Em suma, o estudo possibilitou pensar que o espaço escolar pode ser um ambiente propício para se tratar de diversos assuntos, inclusive os considerados mais polêmicos, e também que o acesso à leitura de obras literárias, como Os dois irmãos, pode ser um instrumento de interação sensível e espontânea, permitindo à criança entender e refletir sobre sentimentos e percepções relativos à morte.

Desse modo, defende-se que uma abordagem pedagógica sobre a morte apoiada na literatura possa ajudar a criança a compreender melhor suas reações e emoções quando vivencie circunstâncias que envolvam ausência, separação, perda.

 

REFERÊNCIAS

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1 Projeto aprovado por FAPERGS e CNPq.